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“Diante da Lei” A “moralidade do costume” entre Nietzsche e Kant* * Tradução de Juliana Hass. No título original, o autor utiliza a expressão em alemão “Vor dem Gesetz”.

“Before the Law”: “Morality of custom” between Nietzsche e Kant

Resumo:

A expressão “moralidade do costume” aparece pela primeira vez em Aurora e é significativamente reproduzida em Para a genealogia da moral. Uma pesquisa dos textos nos quais tal expressão é utilizada revela sua centralidade no estudo genealógico nietzschiano, e como ela está ligada a uma decisiva comparação com a filosofia prática de Kant.

Palavras-chave:
moralidade dos costumes; genealogia; Kant

Abstract:

The expression “morality of custom” first appears in Daybreak and is significantly reproduced in the Genealogy of Morality. A study of texts in which such an expression is used reveals its centrality in the Nietzschean genealogical approach, as well as how it is linked to a decisive comparison with Kant's practical philosophy.

Keywords:
morality of custom; genealogy; Kant

I

A expressão “moralidade do costume” [Sittlichlkeit der Sitte]1 1 Em relação à origem deste conceito nietzschiano essencial, substancialmente esquecido pela literatura, E. Salanskis assinalou oportuna e corretamente a dívida de Nietzsche em relação à etnoantropologia de sua época representada neste caso por Lubbock (Cf. Salanskis 2015, pp. 143-152). aparece pela primeira vez no aforismo 9 de Aurora e é significativamente reproduzida em Para a genealogia da moral.2 2 Diferentemente do que Clark e Leiter afirmam (Clark/Leiter 1997), o renascimento de Aurora em Para a genealogia da moral indica claramente como Nietzsche ainda considera válidas e atuais as análises desenvolvidas seis anos antes. O prefácio da Aurora, de 1886, representa um movimento adicional mediante o qual Nietzsche procura mostrar a continuidade temática e teórica entre as duas obras e, assim, também a coerência interna de sua pesquisa como um todo. Uma pesquisa dos textos nos quais tal expressão é utilizada revela sua centralidade na economia e na arquitetura do estudo genealógico nietzschiano sobre origens, fundamento e sentido da moral. Uma importante constelação temática gira em torno da “moralidade do costume”. Está ligada a ela uma decisiva comparação implícita com Kant: o reconhecimento da natureza imanente do imperativo categórico e de sua origem empírica, histórica/antropologicamente determinada sob o indício da obediência à lei; o reconhecimento do sentimento ligado ao imperativo como sentimento não racional, mas religioso.

Em Para a genealogia da moral, com a expressão “moralidade do costume” Nietzsche indica “aquele peculiar trabalho do homem sobre si mesmo” que remonta aos primórdios da humanidade, o longo processo de antropopoiese por meio do qual o homem é tornado “até certo ponto, necessário, uniforme, igual entre iguais, coerente com a regra e consequentemente calculável” (GM/GM II 2, KSA 5.293).

No entanto, Nietzsche refere Aurora ao leitor interessado em saber de maneira mais articulada o que se entende por “moralidade do costume”. “Moralidade não é outra coisa (portanto, antes de tudo, nada mais!)”, escreve Nietzsche em Aurora, “senão a obediência [Gehorchsam] aos costumes [Sitten], sejam eles quais forem” (M/A 9, KSA 3.22). E quais seriam os costumes? “A maneira tradicional [herkömmliche] de agir e avaliar”, responde Nietzsche. Onde falta uma tradição [Herkommen], é a própria moralidade que está faltando. Neste sentido, a tradição se configura como o fundamento da moralidade. Nietzsche continua sua operação de esclarecimento semântico da terminologia que utiliza, perguntando-se o que se deve entender por “tradição”:

E o que é a tradição? Uma autoridade superior [Eine höhere Autorität] à qual se obedece, não porque comanda aquilo que nos é útil, mas apenas porque comanda. Em que se distingue esse sentimento diante da tradição [Gefühl vor dem Herkommen] do sentimento do medo em geral? É o medo diante de uma inteligência superior [einem höheren Intellect] que neste caso comanda, diante de um poder incompreensível, indeterminado, diante de algo mais que pessoal: há superstição nesse medo (M/A 9, KSA 3.22).

Por enquanto, paremos para observar que a tradição encontra seus pilares numa autoridade capaz de exercer um comando e implica a presença de subordinados forçados a obedecer em virtude desse comando. Merece especial atenção o fato de que a tradição é aqui identificada com uma autoridade anônima, indeterminada, “mais que pessoal” [etwas mehr als Persönlichem]. Ao esboçar a relação hierárquica que vincula os subordinados à autoridade, Nietzsche se detém no sentimento que caracteriza os subordinados em relação à autoridade; sentimento fortemente condicionado pela natureza do comando, pois se trata de um comandar desvinculado de qualquer utilidade para aqueles que obedecem a esse comando. Precisamente por esse motivo, trata-se, portanto, de um comando que parece incompreensível e, quanto mais incompreensível tanto mais é desvinculado de sua utilidade visível e reconhecível. Esse sentimento é condicionado, ainda, pelo caráter da autoridade que o transmite: além do “mais que pessoal”, essa autoridade se apresenta como “uma inteligência superior” e um “poder incompreensível, indeterminado” [unbegreiflichen unbestimmten Macht].

Mais adiante, levaremos em consideração, mais amplamente, as propriedades que caracterizam a autoridade: natureza transpessoal ou supraindividual, superioridade intelectual, inescrutabilidade, indeterminação.

Por ora, concentremo-nos na questão da obediência, na circularidade da motivação que a determina: “se presta obediência não porque” a autoridade “comanda o que nos é útil, mas apenas porque o comanda”. Em outras palavras, em termos kantianos: deve-se obedecer à autoridade só porque se deve. Sobre o sentimento que acompanha este ato de submissão, Nietzsche nos diz que se trata de um sentimento de medo. E acrescenta: “há superstição neste medo”, referindo-se, assim, à esfera religiosa.

Nietzsche continua especificando que “originalmente” a moralidade “pretendia que prescrições fossem observadas, sem pensar em si como indivíduos” e continua perguntando-se quem é o homem mais moral. A resposta é: “em primeiro lugar, aquele que cumpre a lei com mais frequência: por conseguinte, aquele que, como o brâmane, em toda a parte e em cada instante conserva a lei presente no espírito de tal maneira que inventa constantemente ocasiões de cumprir a lei. Em segundo lugar, aquele que cumpre a lei também nos casos mais difíceis” (idem).

Nietzsche, portanto, especifica ainda mais o objeto da obediência e do sentimento do subordinado: esse objeto é a lei. A lei é a maneira pela qual a autoridade se manifesta, se torna visível; a forma objetiva que a autoridade assume além das modalidades e nuances afetiva/emotivas subjetivas, por meio das quais cada indivíduo representa ou vive sua relação com ela. Mas a lei também é o meio pelo qual a superioridade, a supra-humanidade, incompreensibilidade e indeterminação da autoridade são traduzidas em linguagem; dessa maneira, são determinadas nomeadamente acessíveis e compreensíveis; pode-se dizer, assim, que se tornam humanas. E o fato de ser necessário que se tornem humanas refere-se implicitamente à sua origem supra-humana ou além-humana humana (ou seja, supraindividual).

Entrando no detalhe das modalidades pelas quais é possível obedecer à lei, Nietzsche distingue, como acabamos de ver, entre a possibilidade de observância no caso mais frequente e a observância do caso mais difícil. Qualquer que seja a forma da obediência, conclui o aforismo de Aurora, o que importa, em última instância, para a moralidade do costume, é a obediência por si mesma e o fato de o indivíduo fazer um sacrifício que assume a forma de renúncia a si.3 3 “O indivíduo deve se sacrificar - assim o exige a moralidade dos costumes - ” (M/A 9, KSA 3.23).

Aqui começamos a ver uma significativa correspondência: a estrutura da relação entre sujeito e lei moral em Kant e sujeito e tradição em Nietzsche parece ser do mesmo tipo: trata-se, em ambos os casos, de prestar uma obediência incondicionada e de renunciar ao útil ou ao amor próprio. A obediência representa, portanto, em ambos os casos, a essência da relação.4 4 No JGB/BM 19, Nietzsche descreve a vontade como fundamentada em uma estrutura baseada no binômio comando obediência. É interessante notar o fato de que, mesmo na descrição da vontade presente no JGB/BM 19, uma estrutura kantiana é reproposta: há algo “em mim” que comanda e algo que obedece. Não é necessário, então, que a entidade que comanda, comande explicitamente. A simples ideia de sua existência é suficiente para convencer quem é submisso: suas propriedades de incompreensibilidade, superioridade, indeterminação. Trata-se de um sentimento de obediência que é interiorizado a ponto de ser incorporado, de ser percebido por quem o vive como algo que fala nele, como voz da consciência.

O tipo de obediência a que Nietzsche se refere em relação à lei, portanto, torna, então, essa lei análoga à lei moral kantiana: se trata de uma obediência incondicionada, marcada por uma circularidade da motivação. Obediência incondicionada a um comando como obediência a uma lei; sentimento em relação à lei suscitada pela própria lei; renúncia ao útil, à vantagem individual e, portanto, ao amor próprio de quem presta obediência, sacrifício próprio em cumprimento à lei: a apresentação dos elementos que contribuem para formar o conceito de “moralidade do costume” revela que aqui Kant é o constante ponto de referência teórico e, em um sentido mais implícito que será esclarecido, o objetivo de Nietzsche, comprometido em (re)apresentar e nos lembrar no aforismo todos os fundamentos da razão prática kantiana.5 5 Sobre este ponto veja também Clark/Leiter 1997, pp. xxviii.

Essa referência implícita a Kant serve a Nietzsche para questionar a reivindicação kantiana de um estatuto puro a priori dos princípios morais, deixando entrever suas origens e enraizamento no âmbito da dimensão historicamente determinada: nos casos em que, na verdade, Kant indica a esfera formal da razão como núcleo fundador da moralidade, Nietzsche retoma completa e inteiramente o fenômeno moral ao devir histórico no momento em que indica na tradição [Herkommen] seu ponto de partida.

Descrevendo a fenomenologia da moralidade do costume, Nietzsche segue Schopenhauer, ao reconhecer e expor a natureza historicamente determinada pelos pilares “a priori” da ética kantiana.6 6 Cf. Clark/Leiter, 1997. Cf. Lupo, 2019, pp. 119-142.

Vejamos agora como o próprio Kant deixa a desejar as objeções de ambos em vários pontos para, depois, retornar, mais adiante, ao terreno nietzschiano e ver como neste terreno o discurso de Kant é revertido em sentido e a relação entre divindade e lei é trazida a um estágio pré-crítico.

II

Leiamos a famosa nota do prefácio da segunda Crítica, na qual Kant responde a um crítico da Fundamentação da metafísica dos costumes:

Um crítico que queria dizer algo para censurar este escrito foi mais preciso do que pensava, dizendo o seguinte: nele não é, de jeito nenhum, proposto um novo princípio da moralidade [Prinzip der Moralität], mas apenas uma nova fórmula. Mas quem quis apresentar um novo Princípio de toda moralidade [Grundsatz aller Sittlichkeit] e, por assim dizer, inventá-lo primeiro? Como se antes dele os homens tivessem ignorado o que era o dever, ou todos o tivessem entendido erroneamente.7 7 Kant, 1992, p. 104-105.

Kant reitera ao seu crítico que a intenção transcendental não é estabelecer uma nova moral, mas justificar criticamente a moral tradicional que, por sua vez, sempre soube o que é o dever. Kant recorre a uma pergunta retórica irônica para dizer que é inclusive inimaginável pensar que alguém possa ter descoberto um novo princípio da moralidade, ou seja, daquilo que sempre foi dado. O que é o dever é evidente para todos, pois, se assim não o fosse, teria ocorrido o paradoxo de que todos teriam se enganado, no passado, sobre o dever a ser cumprido.

Kant circunscreve a importância de sua mudança teórica no âmbito epistemológico, quando reitera que se limitou a introduzir uma nova fórmula da moral. Ao mesmo tempo, porém, ao fazê-lo, ele afirma, com Nietzsche, e parece quase não estar ciente da dimensão de sua afirmação,8 8 Cf. Schopenhauer diz algo análogo em Sobre o fundamento da moral. um primado da tradição como ponto de origem e, portanto, um fundamento da moral. A dimensão histórica, empiricamente condicionada, eliminada do texto, aparece nas notas às quais Kant frequentemente confia as respostas às objeções, os esclarecimentos mais essenciais, mas também as perguntas mais espinhosas e escorregadias.

Os humanos, portanto, sempre souberam o que é o dever, que como Kant nos lembra, consiste no respeito [Achtung] pela lei, o qual “não é um motivo para a moralidade [Sittlichkeit], mas é a própria moralidade [die Sittlichkeit selbst] considerada subjetivamente como um motivo, enquanto a razão pura prática, demolindo todas as alegações de amor próprio em contraste com si mesma, obtém autoridade para a lei que é a única a ter influência”.9 9 Kant, 1992, pp. 284-285.

Em uma nota não menos famosa da Fundamentação Kant se detém, pela primeira vez, no detalhe sobre o sentimento de respeito, indicando seu peculiar e paradoxal estatuto de sentimento “racional”:

Poderiam objectar-me que eu, por trás da palavra respeito, busco apenas refúgio num sentimento obscuro, em vez de dar informação clara sobre esta questão por meio de um conceito da razão. Porém, embora o respeito seja um sentimento, não é um sentimento recebido por influência; é, pelo contrário, um sentimento que se produz por si mesmo através dum conceito da razão, e assim é especificamente distinto de todos os sentimentos do primeiro género que se podem reportar à inclinação ou ao medo. Aquilo que eu reconheço imediatamente como lei para mim, reconheço-o com um sentimento de respeito que não significa senão a consciência da subordinação da minha vontade a uma lei, sem intervenção de outras influências sobre a minha sensibilidade. A determinação imediata da vontade pela lei e a consciência desta determinação é que se chama respeito, de modo que se deve ver o efeito da lei sobre o sujeito e não a sua causa. O respeito é propriamente a representação de um valor que causa dano ao meu amor-próprio. É portanto alguma coisa que não pode ser considerada como objecto nem da inclinação nem do temor, embora tenha algo de análogo com ambos simultaneamente. O objecto do respeito é portanto simplesmente a lei, quero dizer aquela lei que nos impomos a nós mesmos, e no entanto como necessária em si. Como lei que é, estamos-lhe subordinados, sem termos que consultar o amor-próprio; mas como lei que nós nos impomos a nós mesmos, é ela uma consequência da nossa vontade e tem, de um lado, analogia com o temor, e, do outro, com a inclinação. (…) Todo o chamado interesse moral consiste simplesmente no respeito pela lei. 10 10 Kant, 2007, p. 32n.

Ciente das possíveis objeções que seu movimento poderia acarretar, vale observar a cautela com que Kant procura antecipá-las; sem muita eficácia, se as olharmos do ponto de vista schopenhaueriano e nietzschiano. Por essa razão, Kant acompanha a introdução de um sentimento em seu percurso de fundação da moral sobre princípios racionais, apressando-se em logo precisar a origem não empiricamente condicionada desse sentimento. Tratar-se-ia de um sentimento que deriva imediatamente da lei; um sentimento que implica a consciência [Bewußtsein] da submissão à lei e a representação [Vorstellung] de um valor capaz de destruir o amor próprio [Selbst-Liebe]. É algo [ist es etwas] que, embora não possa ser reconduzido diretamente a sentimentos como a inclinação [Neigung] ou o medo [Furcht], embora tendo, todavia, algo análogo [etwas Analogisches] com ambos: com a inclinação, por um lado, uma vez que tem a ver com um ato de submissão decidido por nós mesmos; por outro lado, com o medo, que é acompanhado por todo ato de submissão.

Vale ressaltar, ainda, que, ao descrever as características do sentimento de respeito e ao qualificá-lo como racional, Kant mostra que sabe se aventurar em um terreno em que é difícil manter separado o empírico do racional e, mesmo sustentando que o sentimento de respeito nada tem a ver com sentimentos patologicamente orientados, não pode deixar de recorrer à analogia com tais sentimentos para tornar compreensível a essência do sentimento de respeito.

À luz da leitura da nota, as referências implícitas kantianas contidas no aforismo 9 de Aurora deveriam ser distinguidas ainda mais claramente: em primeiro lugar, ao sentimento que se sente diante da lei e, em segundo lugar, ao tipo de relação de subordinação e obediência que com a lei se estabelece. No primeiro caso, Nietzsche re(con)duz o sentimento de respeito àquele medo, empiricamente condicionado, com o qual, segundo Kant, o respeito tem a ver apenas por analogia.

Kant introduz uma nova fórmula da moralidade na direção de uma nova epistemologia da moral; reitera, no entanto, que não tem nem a intenção nem a possibilidade de propor uma nova moral: afirmação esta que comporta implicitamente o reconhecimento de fato de uma moral preexistente e historicamente dada, tão enraizada que é imutável. Em outras palavras, Kant admite que sua epistemologia tem a tarefa de justificar racionalmente o status quo de uma moral já existente.

O transparecer de um esforço, se não exatamente de uma impossibilidade de base por parte de Kant de dissociar, separar totalmente o racional do empiricamente condicionado é o elemento comum dos textos que acabamos de ler da segunda Crítica e da Fundamentação: como se o requisito fundamental da pesquisa transcendental, solenemente expresso e retomado no fechamento da segunda crítica, não pudesse ser completamente satisfeito. O que equivaleria dizer, em termos estritamente transcendentais, que essa exigência não pode de jeito nenhum ser satisfeita.

O empírico presente no racional está oculto nos conceitos kantianos, orgulho da filosofia crítica: na própria natureza da lei e no sentimento que emana dessa lei. O puro, o racional traz consigo e em si, parece sugerir Nietzsche, o traço do empírico. Nenhum deles, sob a lente de Nietzsche, é puro a priori. Com sua referência ao radicar-se da lei na tradição de tempos muito remotos e do sentimento “racional” no medo bem pouco racional, Nietzsche se opõe à possibilidade dessa separação. Mas, como vimos, Kant já nos permite ver, relutantemente, as duas raízes bem plantadas na esfera do empiricamente condicionado, que mantém ligada a si a fórmula suprema da moral e o sentimento de respeito.

III

Assim, onde Kant considera a lei moral o objeto da veneração e do respeito, para Nietzsche se torna tradição. Vimos como Nietzsche descreve a autoridade que a tradição é, como um “poder” [Macht] “superior” “incompreensível”, “indeterminado”, “mais que pessoal”. Nietzsche confere, assim, à tradição atributos típicos da divindade.11 11 Cf. Otto, 1926. Ao curvar e subordinar a si os indivíduos por meio de sua lei, a autoridade que emana da tradição se manifesta e se revela como divindade. Diante da lei, epifania da tradição, o sentimento dominante do indivíduo é o medo supersticioso. Referindo-se à superstição e ao medo que a acompanha, Nietzsche menciona aqui apenas um dos aspectos que caracterizam habitualmente a relação com o divino, o aspecto negativo. Mas o temor é sempre acompanhado pela veneração que representa o outro lado dessa relação.12 12 Para Cícero, superstição e religião são as duas modalidades fundamentais pelas quais a relação com a divindade é articulada. Esses termos indicam o tipo de sentimento que os humanos sentem em relação à divindade. A superstição consiste em um “vão medo dos deuses [timor inanis deorum]” enquanto a religião “é formada por uma devota veneração dos deuses [deorum cultu pio continetur]” (De natura deorum, I, XLII, 117). Quanto à genealogia dos termos, Cícero escreve que “aqueles que durante dias rezavam e sacrificavam vítimas para que seus filhos fossem ‘sobreviventes’ [superstites] eram chamados supersticiosos [...] ao contrário, aqueles que realizavam com precisão todos os atos do culto divino e, por assim dizer, os reliam atentamente [diligenter retractarent et tamquam relegerent] eram chamados religiosos [...] Assim, “supersticioso” e “religioso” se tornaram um nome de defeito e o outro nome de qualidade”. Cf. Benveniste, 1976. A veneração, que é a chave para a moral dos poderosos [Moral der Mächtigen], é a característica específica que os define como tais: poderosos são aqueles que sabem venerar [zu ehren verstehen]13 13 Cf. JGB/BM 260. , aqueles que têm veneração pelos antigos e pela tradição [vor dem Alter und vor dem Herkommen]. Trata-se de uma dupla veneração da qual nasce “todo direito”. Enquanto aqueles que Nietzsche define “homens das ‘ideias modernas’” e que acreditam “no ‘progresso’ e no ‘porvir’”, “faltam cada vez mais respeito pelos antigos [Achtung vor dem Alter]” (JGB/BM 260, KSA 5.210).

O fato de Nietzsche não mencionar explicitamente a veneração não significa que esse elemento fundamental esteja ausente. A ambivalência do sentimento que a relação com o divino comporta está, em todo caso, presente, mesmo que implícita. O sentimento que para Nietzsche se experimenta diante da tradição, como para Kant diante da lei, é, portanto, um sentimento de natureza religiosa, em que por “religioso” deve-se entender a relação com tudo aquilo que transcende o humano como indivíduo único, aquilo que o excede, mesmo se e quando se manifesta no próprio humano e pertença à dimensão temporal e, por isso, fenomênica. E o sentimento que se experimenta diante de uma entidade superior de um poder extraordinário é um sentimento que se experimenta diante de Deus. Por Deus, deve-se entender geralmente a manifestação de tudo aquilo que excede e transcende o indivíduo humano, assustando-o e subjugando-o pelo medo, mas, ao mesmo tempo, maravilhando-o e suscitando sua reverência. O fenômeno em si transcende o humano quando não é possível dominá-lo e governá-lo: a natureza é transcendente, cuja infinidade representa um desafio contínuo à pesquisa. É transcendente tudo aquilo que, visível ou invisível, os humanos não são capazes de controlar. Transcendente são o imenso fardo e o peso do passado: a tradição ou a comunidade em sua temporalidade histórica, tanto no plano diacrônico quanto no plano sincrônico, em oposição ao indivíduo. E onde há algo que transcende deve haver, se não uma teologia estruturada, pelo menos um discurso religioso. Nietzsche associa, portanto, à esfera religiosa a relação que se estabelece entre indivíduos que pertencem a uma comunidade, por um lado, e tradição, que, dessa maneira, assume a função de Deus, por outro lado. Enquanto uma moralidade do costume é dada, também é dado um sentido de transcendência e submissão ao divino.

IV

A ambivalência do sentimento em relação ao divino e à lei moral surge vigorosamente em Kant, nas passagens da terceira crítica e na Religião. É interessante observar como nesses textos a lei moral não é considerada apenas análoga àquilo que é divino, mas, com leitura cuidadosa, lei e divino acabam por confundir-se e sobrepor-se. A identidade imediata nunca é declarada explicitamente, mas pode ser inferida indiretamente por passagens sucessivas. O sentimento que se experimenta diante do ético está no cruzamento entre o estético e o religioso. O alicerce desses passos é novamente a noção kantiana de respeito. Nesta noção, está em jogo um sentimento que tem a ver com a dimensão do sublime, a complacência [Wohlgefallen] pela qual, emblematicamente, “contém tanto um prazer positivo quanto uma admiração e respeito [Bewunderung und Achtung]”,14 14 Kant, Crítica do juízo, § 23. dupla de termos sobre os quais retomaremos em breve. E a lei moral, poder [Macht] que, não muito diferente de Deus, “se torna esteticamente reconhecível apenas por meio de sacrifícios”,15 15 Kant, idem, § 29, “Nota geral da reflexão sobre a exposição dos julgamentos estéticos”. enquanto bem16 16 Na verdade, na passagem citada, Kant não se refere explicitamente à lei moral: escreve que “o bem intelectual” e entre parênteses especifica imediatamente depois que “(bem moral)” “deve ser representado, se julgado esteticamente, não tanto como belo, mas como sublime”. Infere-se que, para o bem moral, entende a lei, no momento em que acrescenta que o bem moral deve ser representado como sublime, “para que desperte mais o sentimento de respeito (que despreza a atração) do que o de amor e da simpatia confiante”. Trata-se, portanto, na referência ao sentimento do respeito, de deixar claro que o bem moral ao qual Kant aqui se refere é a própria lei. , deve ser representada, se julgada esteticamente, não tanto como bela, “mas sim sublime”17 17 Kant, idem, § 29 “Nota geral da reflexão sobre a exposição dos julgamentos estéticos”. para despertar “mais o sentimento do respeito [...] do que do amor e da simpatia confiante”.18 18 Ibidem.

E, ainda, em razão do fato de que a lei moral “enche o homem do mais profundo respeito” que essa lei “merece ser considerada como um mandamento divino”19 19 Kant, A religião nos limites da simples razão, § 6. , enquanto, ao suscitar respeito, sua majestade, significativamente descrita por Kant, é análoga à da epifania da lei mosaica no Sinai.20 20 Idem, B11. É interessante notar como estrutura e modalidade da revelação da lei sobre o Sinai descritas em Êxodo lembram a descrição das condições de uma experiência do sublime estético: “A maravilha [Verwunderung] que confina com o medo [Schreck], o horror [Grausen] e o sagrado [itálico nosso] arrepio [heilige Schauer] que captura o espectador à vista de massas montanhosas que se elevam ao céu, de horrores profundos e das águas que enfurecem [...]” (Kant, ibidem). É em um análogo cenário sublime que a epifania do Absoluto surge como Deus e como Lei. Nesse cenário do Êxodo, Moisés atua como um filtro entre Deus e seu povo e garante que o povo de Israel permaneça à distância, fique seguro na contemplação do divino do qual o fenômeno natural é o análogo sensível. Moisés se encarrega, portanto, que o povo não tenha uma experiência direta do divino, uma experiência que o destruiria, como o próprio Deus adverte: “Então o Senhor disse a Moisés: ‘Desça e alerte o povo que não ultrapasse os limites, para ver [itálico nosso] o Senhor, e muitos deles pereçam. [...] Moisés disse ao Senhor: “O povo não pode subir ao monte Sinai, pois tu mesmo nos avisaste: ‘Estabeleça um limite em torno do monte e declare-o santo’. O Senhor respondeu: ‘Desça e depois torne a subir, acompanhado de Arão. Quanto aos sacerdotes e ao povo, não devem ultrapassar o limite para subir ao Senhor; senão, o Senhor os fulminará’” (Êx. 19, 21-24). E, sobretudo, finalmente - e aqui nos deparamos com a passagem mais reveladora - é por meio da ideia do sublime que, segundo Kant, “somos capazes de alcançar a ideia da sublimidade desse ser que provoca em nós profundo respeito”,21 21 Kant, Crítica do juízo, § 28. O texto continua assim: “não apenas o poder que demonstra na natureza, mas ainda mais mediante a capacidade, colocada em nós, de julgar a natureza sem sentir temor e de pensar em nosso destino como sublime, acima dela”. aquele mesmo respeito suscitado em nós pela lei moral. O respeito diante da majestade da lei (con)funde-se, portanto, com o respeito à majestade de Deus e determina uma fusão do horizonte ético com o horizonte religioso/teológico.

Esse breve levantamento dos passos, muitas vezes confinados às notas e, portanto, marginais, pelo menos formalmente, em relação ao texto principal, além de ir em direção a uma confirmação das críticas de Schopenhauer à tendência teológica da moral kantiana, deveria destacar com alguma clareza o quão tênue é a fronteira que Kant realmente coloca entre a ideia da lei e a ideia de Deus e como as duas são sobrepostas e identificáveis. No entanto, não é necessário entrar nas entrelinhas do texto kantiano para ver o que já é visível, por assim dizer, a olho nu, como no próximo passo, no qual Kant iguala a irrepresentabilidade de Deus estabelecida no decálogo e a irrepresentabilidade da lei moral por causa de sua essência pura e a priori; a escolha emblemática de se referir à lei mosaica para descrever a lei moral também é digna de nota:

Talvez não haja no Código Civil dos judeus nenhuma passagem mais sublime que o mandamento: Tu não deves fazer-te nenhuma imagem, nem qualquer prefiguração, quer do que está no céu ou na terra ou sob a terra, e assim por diante. Este mandamento por si só pode explicar o entusiasmo que o povo judeu em seu período civilizado sentia pela própria religião, quando se comparava com outros povos, ou aquele orgulho que o maometismo inspirava. O mesmo vale também para a representação da lei moral e para a disposição à moralidade em nós.22 22 Kant, idem, § 29.

Na famosa meditação que conclui a segunda crítica, o céu estrelado e a lei moral representam respectivamente o sublime da natureza e o sublime suprassensível. Trata-se de duas formas distintas de infinidade que contribuem para definir o destino suprassensível do humano: a primeira enfatiza a finitude fenomênica do indivíduo, enquanto a segunda indica sua grandeza transcendente. Aqui Kant utiliza dois pares de termos para designar os sentimentos suscitados por esses objetos. O termo comum a ambos os pares, Bewunderung (admiração, maravilha) refere-se à esfera estético-contemplativa,23 23 Na verdade, o próprio Kant observa: “A admiração [Bewunderung] pela beleza, tal como a emoção para os tão variados propósitos da natureza, que uma alma reflexiva [nachdenkenden Gemüt] é capaz de sentir antes mesmo de ter uma clara representação de um autor racional do mundo, têm em si algo semelhante [etwas Ähnliches] a um sentimento religioso” (Kant, idem, “Nota geral à teleologia”, AA 478). enquanto o termo Achtung à esfera ética, caso pretendamos permanecer no espaço semântico em que Kant tenta laboriosamente circunscrever, como vimos, o significado de Achtung. Até agora, Kant parece limitar-se, então, a designar sentimentos que giram em torno do campo do estético e do ético. É tarefa do terceiro termo em jogo, Ehrfurcht (veneração), estender o horizonte à esfera religiosa e fazê-lo em uma posição de grande importância na economia do texto: no mesmo incipit.

Para Kant, Ehrfurcht indica o sentimento da veneração especificamente religiosa pelo divino como sublime, uma vez que a veneração assim compreendida se opõe à superstição marcada “pelo temor e pelo medo pelo ser de poder superior”. Elemento digno de nota é que, no texto que estamos analisando, não se trata de uma veneração que tenha como objeto Deus, mas a lei moral, confirmando mais uma sobreposição entre o plano ético e o plano religioso.

O fechamento da segunda crítica reitera a centralidade da lei moral na justificativa transcendental da religião. No entanto, se, como Kant argumenta, precisamente por razões transcendentais, a lei deve ser colocada na origem do sentimento religioso e da ideia de Deus, implica paradoxalmente do primado e da anterioridade da lei em relação a Deus, sua instituição de fato como princípio suprateológico, de fundação da religião e, portanto, como um princípio ainda mais sagrado, ainda mais divino do que o próprio Deus. Mas elevar a moralidade acima da religião significa transformar, por sua vez, paradoxalmente, a lei moral não apenas no análogo de um objeto de veneração religiosa, mas em um objeto de veneração religiosa em sentido estrito.

Fonte da lei moral, ou seja, com base no que foi dito até agora, fonte do objeto da veneração religiosa é um “si invisível” [unsichtbaren Selbst]. Tal si reside no eu fenomênico, mas, apesar de sua proximidade e coincidência com tal eu, sua invisibilidade se refere a algo no eu que, ao mesmo tempo, se apresenta como algo que vai além do eu, que o excede enquanto absolutamente outro em relação ao próprio eu, uma transcendência que o habita e o acompanha. Trata-se de um absolutamente outro que é a nossa própria razão; uma razão que suscita um sentimento de espantada admiração, porque não tem outra base senão si mesma e, por essa razão, é de fato sem fundamento; e que guia e governa, mesmo sendo sem fundamento ou talvez, precisamente pelo poder derivante da infinidade insondável deste vazio em que se funda e que não pode deixar de se referir ao divino, mesmo que de maneira negativa. O sujeito moral obedece e se submete a este vazio, se e quando obedece à lei.24 24 Será contestado que é para si mesmo enquanto ser dotado de razão que se submete, e que a autonomia da razão é preservada e realizada exatamente nesse submeter-se a si mesmo, ou melhor, a este algo que comanda em nós. Mas esse algo que comanda em nós é inescrutável e incontrolável, está em nós, mas não somos nós.À luz disso, a liberdade parece paradoxal, pois está vinculada à submissão à lei: obedecer à lei de fato liberta das inclinações, mas independência das inclinações significa dependência da lei. Daí a impossibilidade de escapar completamente de uma lógica do vínculo e da dependência. A liberdade positiva que se realiza no fato de que seja possível ser “livres” para não obedecer à lei deixa inalterado em sua essência o mecanismo de obediência, o fato de a lei se apresentar como um comando: o comando implica uma subordinação, uma dependência que exclui, portanto, a liberdade. A lei é o que determina o nosso agir no sentido que representa a unidade de medida e o ponto de referência, se a obedecemos ou não, ou se a seguirmos ou não: dado que é uma medida do nosso agir, dependemos, de qualquer maneira, dela e somos subordinados a ela. Como diria Jung, Vocatus aut non vocatus, deus aderit. E, em todo caso, a lei nunca nos será indiferente, um sentimento será acompanhado sempre por ela: de amor, de temor, de submissão ou de revolta.

Por meio da identificação e da soldagem entre comunidade e lei sob o signo da divindade, Nietzsche preenche de conteúdo o vazio deixado por Kant; devolve à lei sua plenitude historicamente determinada.

Referências

  • BENVENISTE, Émile.Il vocabolario delle istituzioni indoeuropee Turim: Einaudi, 1976
  • Cícero, -. De natura deorum A cura di Domenico Lassandro e Giuseppe Micunco. Torino: Utet, 2007.
  • CLARK , Maudemarie/ LEITER, Brian. "Introduction”. In: NIETZSCHE, Friedrich. Daybreak Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
  • KANT, Immanuel. Critica del giudizio Introduzione, traduzione, note e apparati di Massimo Marassi. Firenze: Bompiani, 2017.
  • KANT, Immanuel. Critica della ragion pratica Trad. A. M. Marietti. Milano: Rizzoli, 1992.
  • KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.
  • KANT, Immanuel. La religione nei limiti della semplice ragione A cura de Pietro Chiodi. Torino: Utet , 2013.
  • LUPO, Luca. “Pour une généalogie du relativisme nietzschéen: Schopenhauer” In: STELLINO, Paolo/ TINLAND, Olivier (eds.). Nietzsche et le relativisme Bruxelles : Édition Ousìa, 2019.
  • OTTO, Rudolf. Il sacro: l'irrazionale nella idea del divino e la sua relazione al razionale Trad. di Ernesto Buonaiuti. Bologna: Zanichelli, 1926.
  • SALANSKIS, Emanuel. “Nietzsche et ‘la grande préhistoire de l’humanité’: l’anthropologie d’Aurore comme renversement de perspective”. In: Denat, C./ Wotling, P. (eds.). Aurore, tournant dans l'oeuvre de Nietzsche? Reims: Epure, 2015.
  • 1
    Em relação à origem deste conceito nietzschiano essencial, substancialmente esquecido pela literatura, E. Salanskis assinalou oportuna e corretamente a dívida de Nietzsche em relação à etnoantropologia de sua época representada neste caso por Lubbock (Cf. Salanskis 2015SALANSKIS, Emanuel. “Nietzsche et ‘la grande préhistoire de l’humanité’: l’anthropologie d’Aurore comme renversement de perspective”. In: Denat, C./ Wotling, P. (eds.). Aurore, tournant dans l'oeuvre de Nietzsche? Reims: Epure, 2015., pp. 143-152).
  • 2
    Diferentemente do que Clark e Leiter afirmam (Clark/Leiter 1997CLARK , Maudemarie/ LEITER, Brian. "Introduction”. In: NIETZSCHE, Friedrich. Daybreak. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.), o renascimento de Aurora em Para a genealogia da moral indica claramente como Nietzsche ainda considera válidas e atuais as análises desenvolvidas seis anos antes. O prefácio da Aurora, de 1886, representa um movimento adicional mediante o qual Nietzsche procura mostrar a continuidade temática e teórica entre as duas obras e, assim, também a coerência interna de sua pesquisa como um todo.
  • 3
    “O indivíduo deve se sacrificar - assim o exige a moralidade dos costumes - ” (M/A 9, KSA 3.23).
  • 4
    No JGB/BM 19, Nietzsche descreve a vontade como fundamentada em uma estrutura baseada no binômio comando obediência. É interessante notar o fato de que, mesmo na descrição da vontade presente no JGB/BM 19, uma estrutura kantiana é reproposta: há algo “em mim” que comanda e algo que obedece.
  • 5
    Sobre este ponto veja também Clark/Leiter 1997CLARK , Maudemarie/ LEITER, Brian. "Introduction”. In: NIETZSCHE, Friedrich. Daybreak. Cambridge: Cambridge University Press, 1997., pp. xxviii.
  • 6
    Cf. Clark/Leiter, 1997CLARK , Maudemarie/ LEITER, Brian. "Introduction”. In: NIETZSCHE, Friedrich. Daybreak. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.. Cf. Lupo, 2019LUPO, Luca. “Pour une généalogie du relativisme nietzschéen: Schopenhauer” In: STELLINO, Paolo/ TINLAND, Olivier (eds.). Nietzsche et le relativisme. Bruxelles : Édition Ousìa, 2019., pp. 119-142.
  • 7
    Kant, 1992KANT, Immanuel. Critica della ragion pratica. Trad. A. M. Marietti. Milano: Rizzoli, 1992., p. 104-105.
  • 8
    Cf. Schopenhauer diz algo análogo em Sobre o fundamento da moral.
  • 9
    Kant, 1992KANT, Immanuel. Critica del giudizio. Introduzione, traduzione, note e apparati di Massimo Marassi. Firenze: Bompiani, 2017. , pp. 284-285.
  • 10
    Kant, 2007KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007., p. 32n.
  • 11
    Cf. Otto, 1926OTTO, Rudolf. Il sacro: l'irrazionale nella idea del divino e la sua relazione al razionale. Trad. di Ernesto Buonaiuti. Bologna: Zanichelli, 1926..
  • 12
    Para Cícero, superstição e religião são as duas modalidades fundamentais pelas quais a relação com a divindade é articulada. Esses termos indicam o tipo de sentimento que os humanos sentem em relação à divindade. A superstição consiste em um “vão medo dos deuses [timor inanis deorum]” enquanto a religião “é formada por uma devota veneração dos deuses [deorum cultu pio continetur]” (De natura deorumCícero, -. De natura deorum. A cura di Domenico Lassandro e Giuseppe Micunco. Torino: Utet, 2007., I, XLII, 117). Quanto à genealogia dos termos, Cícero escreve que “aqueles que durante dias rezavam e sacrificavam vítimas para que seus filhos fossem ‘sobreviventes’ [superstites] eram chamados supersticiosos [...] ao contrário, aqueles que realizavam com precisão todos os atos do culto divino e, por assim dizer, os reliam atentamente [diligenter retractarent et tamquam relegerent] eram chamados religiosos [...] Assim, “supersticioso” e “religioso” se tornaram um nome de defeito e o outro nome de qualidade”. Cf. Benveniste, 1976BENVENISTE, Émile.Il vocabolario delle istituzioni indoeuropee. Turim: Einaudi, 1976.
  • 13
    Cf. JGB/BM 260.
  • 14
    Kant, Crítica do juízo, § 23.
  • 15
    Kant, idem, § 29, “Nota geral da reflexão sobre a exposição dos julgamentos estéticos”.
  • 16
    Na verdade, na passagem citada, Kant não se refere explicitamente à lei moral: escreve que “o bem intelectual” e entre parênteses especifica imediatamente depois que “(bem moral)” “deve ser representado, se julgado esteticamente, não tanto como belo, mas como sublime”. Infere-se que, para o bem moral, entende a lei, no momento em que acrescenta que o bem moral deve ser representado como sublime, “para que desperte mais o sentimento de respeito (que despreza a atração) do que o de amor e da simpatia confiante”. Trata-se, portanto, na referência ao sentimento do respeito, de deixar claro que o bem moral ao qual Kant aqui se refere é a própria lei.
  • 17
    Kant, idem, § 29 “Nota geral da reflexão sobre a exposição dos julgamentos estéticos”.
  • 18
    Ibidem.
  • 19
    Kant, A religião nos limites da simples razão, § 6.
  • 20
    Idem, B11. É interessante notar como estrutura e modalidade da revelação da lei sobre o Sinai descritas em Êxodo lembram a descrição das condições de uma experiência do sublime estético: “A maravilha [Verwunderung] que confina com o medo [Schreck], o horror [Grausen] e o sagrado [itálico nosso] arrepio [heilige Schauer] que captura o espectador à vista de massas montanhosas que se elevam ao céu, de horrores profundos e das águas que enfurecem [...]” (Kant, ibidemKANT, Immanuel. La religione nei limiti della semplice ragione. A cura de Pietro Chiodi. Torino: Utet , 2013.). É em um análogo cenário sublime que a epifania do Absoluto surge como Deus e como Lei. Nesse cenário do Êxodo, Moisés atua como um filtro entre Deus e seu povo e garante que o povo de Israel permaneça à distância, fique seguro na contemplação do divino do qual o fenômeno natural é o análogo sensível. Moisés se encarrega, portanto, que o povo não tenha uma experiência direta do divino, uma experiência que o destruiria, como o próprio Deus adverte: “Então o Senhor disse a Moisés: ‘Desça e alerte o povo que não ultrapasse os limites, para ver [itálico nosso] o Senhor, e muitos deles pereçam. [...] Moisés disse ao Senhor: “O povo não pode subir ao monte Sinai, pois tu mesmo nos avisaste: ‘Estabeleça um limite em torno do monte e declare-o santo’. O Senhor respondeu: ‘Desça e depois torne a subir, acompanhado de Arão. Quanto aos sacerdotes e ao povo, não devem ultrapassar o limite para subir ao Senhor; senão, o Senhor os fulminará’” (Êx. 19, 21-24).
  • 21
    Kant, Crítica do juízo, § 28. O texto continua assim: “não apenas o poder que demonstra na natureza, mas ainda mais mediante a capacidade, colocada em nós, de julgar a natureza sem sentir temor e de pensar em nosso destino como sublime, acima dela”.
  • 22
    Kant, idem, § 29.
  • 23
    Na verdade, o próprio Kant observa: “A admiração [Bewunderung] pela beleza, tal como a emoção para os tão variados propósitos da natureza, que uma alma reflexiva [nachdenkenden Gemüt] é capaz de sentir antes mesmo de ter uma clara representação de um autor racional do mundo, têm em si algo semelhante [etwas Ähnliches] a um sentimento religioso” (Kant, idem, “Nota geral à teleologia”, AA 478).
  • 24
    Será contestado que é para si mesmo enquanto ser dotado de razão que se submete, e que a autonomia da razão é preservada e realizada exatamente nesse submeter-se a si mesmo, ou melhor, a este algo que comanda em nós. Mas esse algo que comanda em nós é inescrutável e incontrolável, está em nós, mas não somos nós.À luz disso, a liberdade parece paradoxal, pois está vinculada à submissão à lei: obedecer à lei de fato liberta das inclinações, mas independência das inclinações significa dependência da lei. Daí a impossibilidade de escapar completamente de uma lógica do vínculo e da dependência. A liberdade positiva que se realiza no fato de que seja possível ser “livres” para não obedecer à lei deixa inalterado em sua essência o mecanismo de obediência, o fato de a lei se apresentar como um comando: o comando implica uma subordinação, uma dependência que exclui, portanto, a liberdade. A lei é o que determina o nosso agir no sentido que representa a unidade de medida e o ponto de referência, se a obedecemos ou não, ou se a seguirmos ou não: dado que é uma medida do nosso agir, dependemos, de qualquer maneira, dela e somos subordinados a ela. Como diria Jung, Vocatus aut non vocatus, deus aderit. E, em todo caso, a lei nunca nos será indiferente, um sentimento será acompanhado sempre por ela: de amor, de temor, de submissão ou de revolta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2019
  • Aceito
    09 Set 2019
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