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Ser “bons Europeus” - sem a Europa* * Agradeço aos estudiosos do Seminário Permanente Nietzscheano por me terem dado a oportunidade de apresentar as principais linhas argumentativas, posteriormente incorporadas a este artigo, intervindona Sessão pública da XII Edição de seu encontro realizado na Universidade da Calábria, Departamentode Estudos Humanísticos, 10-12 de dezembro de 2015, dedicado a: “A arte de ser ‘Bons europeus’”. Tradução de Juliana Hass.

To be “good Europeans” - without Europe

Resumo:

Este artigo tem como objetivo mostrar como Nietzsche modela o conceito de “bom Europeu” em estreita referência ao seu conceito de síntese. Para entender o processo de síntese, devemos estudar o funcionamento do corpo como sistema de conflitos e de domínio. Os bons europeus de Nietzsche são homens capazes de uma síntese superior. Supranacionalistas e supraeuropeus são defensores do desenvolvimento da civilização após a libertação completa da moral cristã.

Palavras-chave:
bom europeu; síntese; corpo; supranacionalismo

Abstract

The article studies the way through which Nietzsche models the concept of “good European” in strict relationship with his concept of synthesis. To understand the process of synthesis, the body has to be studied as a system of conflict and domination. Nietzsche's “good Europeans” are men capable of a superior synthesis. They are supra-nationalists and supra-Europeans, promoters of the development of civilization resulting from the complete liberation from Christian morality.

Keywords:
good European; synthesis; body; supra-nationalism

Se for permitido assumir que o gesto filosófico deva sempre servir para responder ao próprio tempo, para incorporar-se à realidade de uma mudança sua, como uma tática ou um gatilho; que pensar seja uma política de verdade a ser exercida em conjunturas, na irredutibilidade das contingências e a partir de saberes locais; que conhecer sempre implique não apenas o mapeamento de uma batalha, mas a própria batalha, visível ou não; que a análise seja para praticar nos estados de forças chamados por Michel Foucault focos de experiência [foyers d'expérience]1 1 . Foucault cunhou a própria expressão “focos de experiência” [foyers d’expérience] ao molde nietzschiano Entstehungsherd (literalmente: “foco genético”, “foco do qual emerge”), cf. Boffi, 2016, p. 949. Tradução de Juliana Hass. Revisão Técnica de Wilson Antonio Frezzatti Jr , muito mais do que discriminando e interpretando conceitos complexos para voltar a princípios, condições transcendentais ou causas: se for esse o caso, como acredito, então se questionar sobre consistência e funcionalidade entre texto e extratexto do bom europeu nietzschiano não pode deixar de apresentar problemas que se instalem em uma espécie de diagonal da Europa e dos europeus de nosso tempo. E, no entanto, particularmente neste caso, mas em geral com Nietzsche, isso não basta. Precisamos ter cautela para evitar hermenêuticas fáceis demais ou exageros ideológicos e, consequentemente, a perda justamente daquela realidade em que deveríamos operar. Convém, de fato, que uma leitura histórica geral de seus textos acompanhe o uso de sua conceitualidade, impedindo deslizes como aqueles já ocorridos por vários de intérpretes “nietzschianos, demasiados nietzschianos”, de um jeito ou de outro.

Depois, há a consciência de que “atualizar” politicamente a figura conceitual dos bons Europeus seja impossível, pelo menos por dois motivos intimamente interligados. O primeiro atravessa o campo das teorias e dos enunciados como uma linha tracejada, ou talvez configurando um fractal, dividindo pontos, blocos e figuras sem determinar nenhum inteiro. O “político” colocado em jogo por Nietzsche não é privado de brechas, primeira entre todas, a falta seja da vontade que da capacidade de intervenção: parte de uma análise acurada do presente, da urgência em responder duramente à crise da cultura e da forma social, no entanto permanece o olhar de um diagnosticador da civilização, não de um pensador que trabalhe na conjuntura. Também não faltam ambiguidades em seu discurso, especialmente em sua “grande política” 2 2 Em mérito, cf. Ottmann, 1999, pp. 239-292, 437, 443; ainda: Drochon, 2016, em particular: sobre o “bom Europeu”, pp. 82-87, 175-177; sobre a “grande politica”, 8-22, 150-177. , que preventiva altos custos sociais em termos de exploração e opressão. Ambiguidade também no sentido afirmativo, como um distanciamento das forças tanto reacionárias e regressivas quanto revolucionárias - sem todas as adulterações ideológicas e os equívocos perpetrados pelo abuso nacional-socialista sobre o qual a crítica historicamente mais atenta foi esclarecida há algum tempo, graças ao canteiro filológico inaugurado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, hoje mantido ativo por Giuliano Campioni3 3 Não há melhor introdução para este “canteiro” do que o precioso volume: Campioni, 1992. .

A segunda ordem de razões não é discursiva, ou talvez pudéssemos vê-la complementar à primeira, mas é factual. A Europa à qual se dirigiram aquelas expressões políticas mudou radicalmente, aliás, não existe mais. O mundo inteiro é bem diferente em todos os sentidos (direção e significado). Foi remodelado pelas guerras mundiais, pelo colapso de instituições, pela imposição global do capitalismo, pelos ciclos de crises econômicas desastrosas, pela revolução imposta com as tecnologias computacionais e digitais, pela modificação climática... Em contrapartida, precisamente perguntas e conflitos (por ex.: transformações da subjetividade e da “potência” de agir induzidas pela globalização capitalista, economia e distribuição da violência, fundamentalismos e soberanismos, linhas de fuga da cidadania transnacional, formas ou dispositivos “neocoloniais” de domínio...) que cercam nossos dias tão distantes daquele mundo das últimas décadas do século XIX, podem ajudar a questionar as virtualidades políticas ainda mais ou menos latentes no “bom europeu” de Nietzsche.

Mas quem, dentre aqueles que hoje vivem na Europa, saberá falar com a voz dos bons europeus, uma vez que a tenha entendido? E quais efeitos de verdade saberá capturar ou desencadeará na própria ideia da Europa hoje? Quem manterá com olhos vermelhos a linha de se tornar bom europeu? De fato, olhando para o fracasso das estratégias políticas da União no Mediterrâneo central, o pensamento supranacionalista do qual os bons europeus nietzschianos se fazem portadores bate de frente com os dispositivos de repulsão, das cotas de recolocação, a negação do direito de asilo, os portos fechados e a criminalização de quem trabalha resgatando em mar, os clamores em que se levantam competições retóricas mediáticas securitárias e decretos-segurança policiais. O bom europeu chega a imaginá-lo, talvez até mais do que entre os “homens póstumos”4 4 “Os homens póstumos - eu, por exemplo - são mais mal compreendidos do que os atuais, mas ouvidos melhor. Mais precisamente: nunca somos entendidos - daí nossa autoridade...” (GD/CI, Máximas e setas 15, eKGWB/GD-Sprueche-15). Para citações de Nietzsche: após a indicação do texto, temos a referência da edição digital crítica dos textos: Friedrich Nietzsche. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe, Paolo D’Iorio (editor), Nietzsche Source, Paris, 2009ss. <http://www.nietzschesource.org/eKGWB> = eKGBW). Ao preceder <www.nietzschesource.org> a tais referências, são obtidos os endereços de rede que, todas as vezes, dão acesso às passagens. , como um novo “fantasma que vagueia pela Europa”: o dos regimes ultranacionalistas (Polônia e Hungria in primis), dos países massivamente hostis às migrações e aos migrantes (Áustria, Dinamarca, Holanda) ou nos quais a opinião pública e os resultados das eleições se deslocaram cada vez mais para a direita (Eslováquia, Suécia, França, Itália). Com toda a probabilidade, a vida efetiva dos bons europeus, não a póstuma nem a fantasmática, ainda não começou. E a vida literária?

Introduzida por algum aforismo de Humano, demasiado humano (1878-79) 5 5 Uso este título (errado) comum na divulgação também científica, mas acho que seria o momento de corrigi-lo na versão mais precisa proposta por Paolo D'Iorio: Cose umane, fin troppo umane. Veja as razões linguísticas e filosóficas em D’Iorio, 2015, pp. 195-196. , concebido por Nietzsche como uma autossuperação da moralidade cristã, a figura do bom europeu é abandonada nos textos posteriores a 18876 6 Uma análise cuidadosa das ocorrências em: Gori; Stellino, 2016; a evolução do conceito também em: Niemeyer, 2011. Para entender o perfil problemático, cf. também: D’Iorio; Merliot, 2006; Marti, 2006; Brusotti, 2006. Ainda: Crescenzi; Gentili; Venturelli, 2017. . E, no entanto, em meados dos anos 80, o filósofo tinha vindo tecendo em malhas densas a trama conceitual, dando-lhe a herança de instâncias já bem consolidadas em seu pensamento: o gay saber dos trovadores provençais e o “espírito livre” de um novo iluminismo7 7 Sobre esse duplo componente do pensamento nietzschiano: Venturelli, 2003. . Uma espécie de figura-ponte à qual havia designado a tarefa de redescobrir as energias criativas para responder à décadence da Europa (já em declínio na época). Os textos nietzschianos de 1885 a 1887 ora esboçam o “bom europeu” como alguém que se mostra capaz de trabalhar na fusão dos povos e na circulação supranacional das ideias, ora o representa socialmente em termos de uma comunidade eletiva capaz de orientar o desenvolvimento espiritual da humanidade para chegar a uma maneira de pensar e ser “supraeuropeu”. É o homem que, ao peso do Norte teutônico, sabe opor o Sul, o esplendor, a alma provençal e lígure8 8 Este decisivo componente “provençal” de Nietzsche foi estudado com mérito particular nos últimos anos por Giuliano Campioni, p. ex., Campioni, 2010. , a divina leveza dos “geniais [...] amadores alegres” Gregos, a índole sintética dos Franceses.

Assim, Além de bem e mal:

Na índole francesa se encontra uma síntese [Synthesis], suficientemente bem sucedida do norte e do sul, que permite a eles compreender e fazer muitas coisas que um inglês nunca compreenderá: o seu temperamento que periodicamente se volta para o sul e se distancia nesta direção, e no qual de quando em quando transborda o sangue provençal e lígure, preserva-o do horrível cinzento do norte, do fantástico, da anemia dos países sem sol - da nossa moléstia germânica do gosto, contra cujo excesso momentâneo prescreve-se o sangue e o ferro em grandes quantidades, isto é, a “grande política” (terapia perigosa que me ensina a ter paciência, mas não me permite esperar) […]. Ainda hoje na França uma antecipada compreensão e uma condescendência aos homens raros, dificilmente encontráveis, de vistas mais largas, para poder encontrar a sua satisfação nos limites estreitos dos sentimentos ultrapatrióticos, que sabem amar o Sul em o Norte e o Norte no Sul - para os mediterrâneos de nascimento, para os “bons europeus”. - Para eles foi escrita a música Bizet, deste novo gênio que entreviu novas belezas e novas seduções e que descobriu a fímbria do mezzogiorno della musica (JGB/BM, 254, eKGWB/JGB-254)9 9 A referência a Bizet deve ser lida contextualmente pelo menos nos dois primeiros parágrafos de WA/CW, eKGWB/WA-1, eKGWB/WA-2. .

I

É surpreendente que o conceito de “bom europeu” comporte, em quase toda parte, pelo menos nos textos nietzschianos da maturidade, o de “síntese”. Não há quase nenhuma ocorrência em que essas duas ideias, ainda mais do que as duas palavras, não apareçam direta ou indiretamente em pares, conectadas em um nexo ou em uma referência. O que a “síntese” nietzschiana implica não é algo, todavia, evidente10 10 Querendo registrar a frequência lema em vista de uma indicação significativa, deve-se notar que Nietzsche a utiliza, entre as obras publicadas, apenas no díptico de escritos éticos de 1886 a 1887, Além de bem e mal e Genealogia da moral, e na concomitante Tentativa de autocrítica, dada à nova edição de O nascimento da tragédia. Nada mais. Deve-se ter em mente que, mesmo no “imenso maço de papel” dos cadernos particulares, as ocorrências da Synthesis figuram nas margens de um período de tempo muito restrito: de 1883 a 1887. Deste período, permanece excluída apenas a primeira aparição do termo, marcada durante o verão de 1875 perto da leitura do texto O valor da vida de Eugen Dühring. ; tentaremos entender.

No outono de 1883, Nietzsche está escrevendo notas e esboços para a terceira parte do Zaratustra. A nota 4 relatada na atual seção 20 parece-me permitir a vantagem estratégica de colocar in medias res. Em uma passagem que faz alusão crítica ao De alma aristotélico sobre a propulsão proveniente do desejo e o princípio propulsor da práxis11 11 Cf. Aristóteles, De anima, III 8, 432a15 - 10, 433b30. , Nietzsche faz uso do estudo do importante ensaio O mundo real e o mundo aparente. Nova fundação de uma metafísica (1882), de Gustav Teichmüller12 12 O traço persistente de Teichmüller, um singular pensador meio filósofo, percorre cartas e notas póstumas nietzschianas de dezembro de 1870 a outono de 1887. Nietzsche também tinha estudado os anteriores Novos estudos para a história da filosofia, dos quais ele lembra contextualmente o terceiro e último volume, A razão prática em Aristóteles, publicado em 1879. . A questão consiste na urgência de naturalizar vontade e razão. Precisamente nesta nota particular, podemos encontrar um uso de Synthesis que é decisivo:

Enquanto ainda temos o dever de agir e, portanto, é comandado: ainda não há síntese [Synthesis] (a abolição [die Aufhebung] do homem moral). Não poder ao contrário: instintos e razão que comandam além do fim: desfrutar-se em ação. [...] A própria vontade deve ser superada - é necessário não retirar mais nenhum sentimento de liberdade do oposto da constrição! Tornar natureza! [...] A vontade não move, mas é um fenômeno concomitante. (Nachlass/FP 1883, 20[4], eKGWB/NF-1883,20[4]).

Prossigamos por etapas. À luz de Teichmüller, para Nietzsche vontade (que deseja e dá ímpeto), a razão (que intenciona e delibera) e sensação (que transpõe) compõem fenomenicamente os processos de uma atividade de síntese colocada em círculo por e no corpo. É uma síntese que não reduz nem estabiliza definitivamente. Em vez disso, compõe/organiza uma única corrente metaestável de cargas energéticas e atividades corpóreas que ora se adensam ora se fluidificam, um fluxo que se torna consciente tanto como curva contínua do querer pensar sentir quanto como granularidade descontínua dessa volição assim e tão determinada, deste pensamento assim e tão determinado, desta sensação assim e tão determinada. “Eu entendo apenas um ser [Wesen] que seja ao mesmo tempo um e múltiplo, que transforme e permaneça, que conheça, sinta, queira - esse ser é o meu feito original” (Nachlass/FP 1882, 5[1], eKGWB/NF-1882,5[1]).

O corpo se manifesta assim: pluralidade e síntese diferenciada, transformação e permanência de fenômenos vitais. Agora, é decisivo penetrar nessa ideia de corpo, porque a índole do bom Europeu é sintética e, precisamente, o corpo funciona como seu modelo fisiológico. No entanto, o ponto de vista biológico-fisiológico não é exclusivo. Todo corpo está ligado a um ambiente, inserido em um clima, provém de eventos e eventos dos quais é influenciado e nos quais deixa traços de todos os tipos. É marcado pela historicidade de suas formas e do saber pelo qual, conscientemente ou não, se autopercebe, se conhece, se coloca nas relações que o constituem13 13 Sobre isso insiste a leitura de Michel Foucault no ensaio Nietzsche, la généalogie, l’histoire escrita em 1969, mas publicada apenas dois anos depois: cf. Foucault, 1971/2001. . Não está em jogo um puro substrato carnal, portanto, mas uma síntese viva de natural e artificial, de interno e externo, de histórico e geográfico. Por isso, seu modelo é inevitável se quisermos compreender o temperamento dos bons Europeus. Aos quais se adeque um clima determinado, que molda uma índole precisa, os “mediterrâneos de nascimento”.

i

O querer é auto-organização do corpo, devido à concomitância e interatividade de movimentos psíquicos, atividades sensoriais, centros vitais. Inscreve-se em sua “grande razão”, continuamente renovada por fases alternadas de emergência e hierarquização local de seus componentes em conflito. Manifesta-se na coordenação corpórea de dinâmicas mesmo caóticas, casuais, contraditórias de impulsos, razões, sensações sem que algo “mais do que corpo” imponha a renuncia à sua multiplicidade e à sua única carga “dissidente” de pensamento. O dissídio corpóreo não pode ser conciliado ou extinto: pode, no entanto, ser caso a caso composto em síntese (nem garantida nem progressiva) que determina um domínio funcional. “Mas a própria luta quer conservar-se, quer crescer e quer estar consciente de si mesma” (Nachlass/FP 1885, 1[124], eKGWB/NF-1885,1[124]), reentrando nos processos de determinação da saúde do corpo, que é necessária para se restabelecer em níveis superiores. Enquanto durar o ciclo cooperativo de transformação e auto-organização, a atividade dominante mantém a conexão unitária, agregativa e não substancial, que chamamos precisamente “corpo”: uma interação irredutível de pluralidade de mínimos vivos que contribuem para constituí-lo em seu lutar e crescer em ser. “Aqueles minúsculos seres vivos que constituem nosso corpo (ou melhor, do qual cooperar o que chamamos de ‘corpo’ é a melhor metáfora), não são átomos espirituais para nós, mas algo que cresce, luta, se reproduz e, por sua vez, morre” (eKGWB/NF-1885,37[4] = Opere VII, iii, 257).

Chamar “corpo” significa “dar corpo” a uma assimilação e a uma guerrilha, a “uma formação de domínio que significa uma unidade, mas não é uma coisa só” (Nachlass/FP 1885, 2[87], eKGWB/NF-1885,2[87]). Sinaliza um agregado de componentes energéticos, bioquímicos, volitivos e afetivos que vivem, interagem, se organizam e morrem quando entram em conflito.

As práticas linguístico-conceituais e materiais, de algum modo edificantes, de inventar o corpo, construí-lo e sintetizá-lo em sua irredutível base “polêmica”, seguindo sua metáfora que funciona como fio condutor, implicam (ou deixam pressupor) dinâmicas auto-afetivas e produções de imagens. Subjetiva-se (porque é a própria prática que serve de sujeito) “um” corpo sempre extenso e estético, natural e cultural. No entanto, vale a pena insistir, aqui o corpo é a “melhor metáfora” para falar de uma interação de seres vivos, de um caos a ser moldado em uma forma de agregação superior, tal qual é precisamente também a nova síntese do “bom europeu”.

ii

Um originário sujeito-substrato interno não pode ser assumido pelo corpo que quer pensante sensível, ou então um fim externo mais ou menos durável, mais ou menos elevado. O fenomenalismo epistemológico de Nietzsche também ganha voz nesta ocasião para o qual, em um “mundo de superfícies e de sinais”, nada é possível sustentar sobre o “em si” de uma coisa14 14 Pietro Gori insistiu oportunamente em vários trabalhos sobre essa dimensão da teoria nietzschiana do conhecimento, cf., por ex., Gori, 2012. qualquer. Igualmente do eu, de si mesmo. Consequentemente, não há nada sobre uma suposta “vontade em si”, faculdade de autocertificação imediata do sujeito que invariavelmente presidiria seus fatos psíquicos. A vontade, o eu, o sentimento de livre escolha, as motivações pessoais emergem apenas como fenômenos interativos e concomitantes à ação: menos a faculdade de agir ou o próprio agente do que suas ilusões. Assim, uma anotação de outono de 1883: “Onde existe uma forma de vida [ein Lebendiges] há súbitas explosões de força: o sentimento subjetivo concomitante é o ‘livre arbítrio’”. O número e a potência dessas explosões determinam [...] a direção dada a essas explosões. Quando falamos dos “motivos de ação”, sempre queremos entender apenas “os motivos da direção” (Nachlass/FP 1883, 16[20], eKGWB/NF-1883,16[20]).

Em toda evidência, essa concepção nietzschiana se choca com as predominantes na filosofia europeia moderna, para as quais a vontade, antes de se manifestar enquanto ato de querer, como, em suma, volição, é potência da alma, um conjunto de forças e condições que pressupõem o núcleo adamantino do eu. Na visão “tradicional”, com toda a simplificação que implica o uso desse único termo, o querer toca o nervo descoberto “liberdade” e produz a presença do eu ao avaliar, deliberar e intencionar ou comandar em relação a um fim e aos meios para alcançá-lo. Essa vontade substancial, a força motriz do livre agir e a chave para acessar as verdades metafísicas, para Nietzsche, não passa de uma mentira filosófica típica. Um ocultamento da verdade operado pelos moralistas de todos os tempos, que devem ser abolidos. De fato, embora a “máquina” deles tenha funcionado muito bem por séculos, superando todas as dignidades do corpo; embora, aos olhos deles e na visão generalizada, o comando moral da vontade possa funcionar quase como tese e, eventualmente, a “constrição” de impulsos, inclinações e sentidos da antítese, no entanto, nenhuma síntese pode ser derivada deles, como o Vermittlung, que medeia e domestica a contradição.

iii

A filosofia nietzschiana exclui tanto a síntese conciliatória quanto a maquinação dualística. Agora, nenhum dualismo, nenhuma dicotomização nunca foram irresolúveis e catastróficas para Nietzsche, assim como no platonismo, do qual constituem a essência, o pecado moral original. “Platonismo”, aqui, não designa, como na enciclopédia comum histórico-conceitual, um conjunto de correntes de pensamento inspiradas em Platão, mas coincide, antes de tudo, com um sistema e um gesto teoretico-epistemológicos.

Isso é platonismo: [...] media o grau de realidade com base no grau de valor e dizia: quanto mais “ideia”, mais ser. Distorcia o conceito de “realidade” dizendo: “o que consideramos real é um erro, e nós, quanto mais nos aproximamos da “ideia” de verdade, mais nos aproximamos da “verdade”. - Dá para entender isso? Essa foi a maior transformação; e tendo sido retomado pelo cristianismo, não vemos mais o lado surpreendente”. (Nachlass/FP 1886, 7[2], eKGWB/NF-1886,7[2])

Platonismo não é apenas a invenção platônica do mundo hiperurânico das ideias, da qual a dialética extensiva ser/parecer destinada a degenerar em uma dicotomia. Particulamente, consiste na teoria que hipostatiza-substantifica a alma que o homem é e que se coloca a mais alta unidade de medida, advogando para si perene verdade, unidade, identidade. Nietzsche condena a postura dualista na “invenção platônica do puro espírito e do bem em si”. (JGB/BM, Prólogo, eKGWB/JGB-Vorrede)15 15 Para Platão, a alma funciona como uma entrada bem fundamentada para o sancta sanctorum ideal-hiperurânico do ser (isto é, no chamado “mundo verdadeiro”) e do bem que é o seu ápice. Então, para a verdade. Mas é uma dimensão completamente humana e o objeto de um cuidado particular, ou melhor, de uma técnica: política, “terapia” transformadora, porque, infundindo ordem e forma na alma, produzindo a virtude pela qual ela é boa, as permite recuperar a sua condição originária, naturalmente ótima, orientada nos extremos de uma hierarquia objetiva de valores morais. De fato, não há apenas a exposição do Fédon, que moraliza a antiga concepção órfica da psyché metaindividual (traço de um daimon de origem divina) em oposição ao corpo, condenada a reconquistar a pureza somente após ter vivido no doloroso ciclo de reencarnações terrenas como caminho de expiação e ascendidos. A exposição da República é articulada de uma maneira muito diferente. A alma é apresentada em si tripartida e conflituosa: existe a polaridade superior, sede do conhecimento racional que se dirige, sobretudo, aos valores morais; a passional, emotiva, sensível às interações sociais, cheia de energia guerreira, irracional, mas moldável pela educação e pela técnica política; finalmente, a terceira polaridade, totalmente aberta para o baixo “mundo aparente” dos corpos, condenada a ser devorada por insaciáveis ​​desejos eróticos e alimentares. , de um mundo de ideias e valores que é anterior e oculto, mas mais verdadeiro que o real. Contudo, olhando Platão, ele tem em vista quase metonimicamente a “filosofia dogmática” do platonismo em geral, em particular o rio do platonismo cristão, de Paulo e Agostinho para descer - até a foz onde lança suas águas no leito do moderno, o pensamento cartesiano. Existe o objetivo controverso, em que a divisão do ser/parecer é renovada, centrando-se no ego. Está na gênese da ideia metafísica e cristã da anima-substantia, depois de res cogitans. Em outras palavras, uma entidade espirito-consciencial em definitivo garantida por Deus e assumida como inconcusso fundamento de verdade da moral, e não mais que da ciência. Uma alma-mente afirmada no proprium de teorizar-cogitar, comensurar a validade e a verdade dos corpos, supondo por si, em vez de permanecer além da corrupção de tudo o que altera, muda, cede.

iv

Platão se opõe a Nietzsche porque abre a dicotomização verdade/aparente: “Platão tinha, no fundo, como artista que era, preferido a ilusão ao ser, ou seja, a mentira e a congeminação da verdade, o irreal ao existente. Mas estava tão convencido do valor da ilusão, de conferir-lhe os atributos do ‘ser’, da ‘causalidade’ e da ‘bondade’, da verdade e, em suma, de todas as outras coisas às quais se confere valor” (Nachlass/FP 1886, 7[2], eKGWB/NF-1886,7[2])16 16 Para além da polêmica, Nietzsche sabe perfeitamente que o pensamento de Platão é tudo menos monolítico, desprovido de nuances, bifurcações e até aporias programáticas. Para introduzir o confronto nietzschiano com Platão, consulte Müller, 2005, em particular pp. 221-250. Nietzsche estudou os textos platônicos já dos anos escolares pré-universitários, no período da “venerável” escola de Pforta. Isso está documentado no pequeno ensaio: A relação do discurso de Alcebíades com os outros discursos do Banquete platônico (1864) (cf. Ghedini, 1999, em particular pp. 25-31). .

O platonismo, no entanto, é crucial. Execrável, tornado objeto de repetidas invectivas. Por um lado, penetrou na ética cristã até se tornar sua quintessência; por outro lado, e mais gravemente, traduziu-se na moralização epistêmico-epistemológica do saber filosófico e científico. Talvez isso pareça paradoxal, porém o moralismo contra o qual são lançados os veementes ataques de Nietzsche, coincidindo com a pressuposição de uma instância de unidade apriórica e critério de toda avaliação, é muito mais intensamente epistêmico-epistemológico do que ético. Nenhuma pressuposição de unidade é legítima; nenhuma maquinação dualística; sequer uma hierarquia única e fixa.

Trata-se, portanto, não apenas de uma alma, mas de uma metro-unidade substancial. Isso implica, logicamente, que nem mesmo a matéria pode constituir o prius. Não funciona nenhuma eleição ou pressuposição que se limite subverter o platonismo, confirmando, porém, sua estrutura dualista. É verdade que desde seus primeiros anos de juventude Nietzsche define sua posição filosófica como “platonismo invertido”17 17 Cf. Nachlass/FP 1870, 7[156], eKGWB/NF-1870,7[156]. , mas até a matéria pode atuar como um resíduo dogmático-materialista. Portanto, nenhum materialismo prejudicial é legítimo: Nietzsche está bem ciente disso com base, primeiramente, em Schopenhauer e Lange, depois e mais especificamente em Theoria philosophiae naturalis, de Ruggero Boscovich. A visão nietzschiana dos corpos, das “coisas” as quais na verdade nada mais são do que “centros de força”, é explicitamente imaterialista, baseada no que de fato existe e não é o ser da ontologia filosófica tradicional: interações de forças que se desencadeiam, conflitam, se descarregam. Forças que entram na descrição física da matéria, mas cujo modelo dinâmico é usado por Nietzsche, tanto no arcabouço teórico explicativo de sua teoria do eterno retorno quanto no perspectivismo que subtrai a legitimidade da chamada representação científica objetiva da realidade e, portanto, da verdade18 18 Em relação a toda essa problemática, cf. Gori, 2007. .

II

A síntese é uma unidade assimilativo-agregativa instável e interação de uma variedade irredutível. A verdadeira Synthesis pode subsistir para Nietzsche, tanto no Aufhebung de qualquer posicionamento dogmático (devido seja pela fixação unitária seja pela dicotomização) quanto, ao contrário, no posicionamento local contra o fluxo caótico do informe, a perda das origens, a renúncia niilista ao valor, à significação, à livre, porém necessária configuração de certas formas. Portanto, o moralista não pode resumir. Dimidiado e sob coação, mesmo quando se considera livre, livre para querer isso e não aquilo (isto é, quando presume ideal e projetivamente de ser isso), vive, na verdade, quebrado entre a luminosa atividade da razão, tomada indefectível, e a praticidade sensorial, cegamente afetada, perenemente enganosa, falsa. Não saberá alcançar a síntese daqueles que arrancam ou acabam com os eventos inquietantes de emoções e paixões; quem intencionalmente ergue barreiras internas para os próprios sentimentos, para a autopercepção integral de seu mente-corpo. Synthesis é uma qualidade impossível para quem que, cindido e, portanto, incapaz de sustentar o pensamento bastardo dos instintos, renuncia a coordenar com força o todo, a encarar o seu “devir” sempre e nunca “ser”, suas intenções e multiplicidades. Em vez disso, é a maior qualidade possível do homem. Daquele que saiba conduzir a potência antitética do negativo a uma forma superior, mesmo mediante a dureza e o sofrimento, mas sem vínculos e restrições. Será, portanto, qualidade dos “bons Europeus”.

Não há quem, com um ouvido minimamente exercitado filosoficamente, não sinta ressoar no Aufhebung e na Synthesis o léxico especulativo hegeliano. Hegel, ou seja, a dialética: a expressão real e racional durch Widerspruch. Vale a pena prestar um momento de atenção para verificar a eventual modalidade operacional e funcional dentro da estrutura teoretica de Nietzsche. Agora, lembrarei características mais conhecidas, tentando fazer brevemente o ponto para, em seguida, reiniciar minha argumentação.

Notoriamente, as premissas especulativas e histórico-conceituais da dialética hegeliana são encontradas em Platão e Kant. Platão, pelo menos a partir da República e do Fedro, discute isso como uma arte de navegação para descobrir a estrutura do mundo inteligível. Qualquer técnica ou ciência19 19 Para aprofundar, cf. Cambiano, 1991, pp. 181-204. é subordinada a ela metodologicamente. A dialética serve para identificar as relações de conexão e disjunção existentes entre as ideias, tanto mediante o procedimento de unificação (synagoga) que visa reconduzir a uma única forma aquilo que é múltiplo e disseminado, como também por meio do processo de divisão (diairesis) tendente a quebrar a ideia em sua espécie, seguindo suas nervuras naturais e evitando lacerar suas partes. Assim entendida, no conjunto dos dois procedimentos complementares, a dialética permanece fundamentada na relação um-muitos e é epistemicamente traduzível em uma trama de relações (numéricas) que conecta as partes ao todo.

Hegel mantém em mente a dignidade ontológica que Platão atribui à dialética, repensando-a, no entanto, em uma meditação sobre a Teologia Platônica de Proclo. Aqui, o conceito de ser é ele mesmo um derivado em relação àqueles de um e de muitos, os quais servem para implantar a lei triádica da emanação-procissão-retorno que ritma tudo. No entanto, Proclo também não é suficiente. Kant também é necessário, do qual Hegel extrai o pensamento de antinomias. Designadamente da primeira Crítica à discussão da determinabilidade da ideia de mundo. Essa ideia serve para representar a totalidade dos fenômenos físicos, mas, por mais que possa parecer imediatamente perspícua ao senso comum, na verdade é destinada a dar lugar a posicionamentos teóricos indecidíveis que não são absolutamente capazes de refletir a estrutura objetiva da realidade, implicando a simultânea verdade das asserções opostas e comportando, portanto, uma violação do princípio da não-contradição.

Precisamente essa dimensão aporética, que em Kant torna impossível prosseguir sem se aventurar nos naufrágios causados pelo “raciocínio dialético”, em vez disso, impulsiona o renascimento especulativo hegeliano, cuja estrutura lógico-ontológica nega a lógica aristotélico-escolástica e kantiana. A contradição inerente na situação antinômica, longe de decretar o fracasso da razão, capta para Hegel uma estrutura efetivamente presente no real e, nesse sentido, pode ser assumida como critério fundamental da verdade. Contradizer a regula veri, a regra dos vivos e de sua história efetiva. Nada seria o que é se não fosse indissociavelmente conectado, essencialmente conectado com as outras coisas que não é e, portanto, não as implicasse por si. Em resumo, a oposição é uma relação não contingente, mas intrinsecamente constitutiva de seus termos. Verdade e realidade resultam sempre caracterizadas pela unidade dos opostos, os quais separadamente nunca poderiam ser o que realmente são. Sem ser para os outros, não poderiam ser por si.

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Nos lugares textuais em que Nietzsche leva em consideração a dialética hegeliana, mostra principalmente mal entendê-la, considerando-a comandada pela ideia de totalidade morta - um mal-entendido que nunca deixou de reivindicar vítimas também ilustres, como neste caso. Ele não percebe que, quando muito, ela se enraíza na concepção de uma complexidade viva, ou reticularidade de interconexões. Em outras palavras, na ideia que pela razão existem efetivamente apenas subjetividades singulares as quais, com seu movimento real do qual nunca são abstratamente separáveis, produzem em geral a rede do todo em evolução. O todo concebido por Hegel é o espírito que circula, atravessa todos os círculos de determinações e se reabsorve objetivamente como reciprocidade de “eu” e “nós”: “essa substância absoluta a qual, na perfeita liberdade e independência de sua oposição, ou seja, de diferentes autoconsciências para si, constrói a unidade deles: Eu que é Nós, e Nós que é Eu20 20 Hegel, 1960, vol. I, p. 152. Para desenvolver essas ideias de leitura, consulte pelo menos Bodei, 2014, em particular na dialética histórica: pp. 110-120. . Bem, esse espírito-“tudo”, do qual podemos estudar a fenomenologia histórica, resulta do processo de suas “partes” interdependentes, que lhe são essenciais. Cada uma é ela mesma e já ao mesmo tempo o inteiro-todo, o que explica sua anatomia e constitui sua realidade de atuação. “Que o tudo seja diferente das partes se aplica apenas aos objetos, às coisas mortas; naquilo que está vivo, a parte do todo é o mesmo um que o todo. [...] Aquele que é contraditório no reino da morte não está no reino da vida21 21 Hegel, 2015, Texto 58, p. 580. A edição crítica das obras hegelianas, iniciada em 1968 por Friedhelm Nicolin e Gisela Schüler, permitiu verificar como a antiga compilação alemã dos escritos juvenis organizada por Hermann Nohl tivesse se consolidado, às vezes por continuidade temática, outras vezes apenas por arbítrio próprio, manuscritos fragmentados, assumindo e inventando obras orgânicas que nunca foram realmente escritas por Hegel, coletadas editorialmente na antologia: “Escritos teológicos da juventude”. A passagem que citei, de um texto escrito em Frankfurt, em 1799, aparecia até a quarta parte do inexistente: O espírito do cristianismo e seu destino. ”.

Fora de uma vaga ou utópica mitologia da individualidade, para Hegel nenhum elemento isolado, nenhuma parte é des-integrável. Exceto que sua completa incorporação não é possível sem negação, ou seja, sem que sua particularidade concreta seja submetida ao universal. O espírito-inteiro “acaba” sendo verdadeiro - verdadeiro é o inteiro-espírito. Acabou sendo verdade não no que diz respeito ao que foi fixado de uma vez por todas, o resultado final de uma somatória, uma resolução silenciosa; nem por outro lado, porque pode ser atribuível às suas condições iniciais a qualquer momento, isto é, simplesmente “analisável”-“decomponível” em seus fatores: toda a verdade do espírito é rede de contradições, de relações articuladas, onde cada determinação-anel possui seu valor topológico no desenvolvimento histórico e conflituoso do todo. O inteiro-espírito universal para Hegel é sempre uma circulação em espiral e, ao mesmo tempo, auto-ordenamento de uma topologia teleológica. Nunca anel fechado em si mesmo. É, em outros termos, circulação da subjetividade, trabalho universal do gênero humano, entrar em movimento e seu complexo desenvolvimento reticular. É resultado do processo e, em conjunto, o excede mais do que seja realizado. Trata-se de totalidade: mas totalidade sempre auto-contraditória e, portanto, subjetividade sempre aumentando.

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Que ingenuidade gritante seria presumir que Nietzsche se esqueça de pensar nessa complexa dimensão especulativa, nessas “aventuras da dialética”, e isso - lembre-se - independentemente de seu julgamento sobre a filosofia hegeliana. O ponto observado em Hegel e em Kant e Nietzsche, cada um a seu modo, as apostas conceituais colocadas em jogo pelos três consiste no pensamento do mundo. Um pensamento do mundo como a arte da coordenação, orientação e boa navegação nas relações entre um e muitos, ou entre inteiro-todo e partes. Que entre um e muitos não está apenas entre as principais questões de filosofia antes trabalhadas por gerações de pensadores da antiguidade em diante22 22 O mesmo problema constitui o cerne teórico da questão geográfica, onde o “todo” assume forma concreta de espaço territorial global, uma expansão imprevisivelmente variada da multiplicidade, de diferenças, ainda hoje que muitas de suas “partes” foram unificadas e padronizadas pelo desenvolvimento global do mercado e das tecnologias telemáticas. , mas também, acredito, a questão teorética de Nietzsche. Questão, bem entendido, que encontra maneiras de trabalhar para diferentes soluções. Aquela que parece funcionar coerentemente, é enunciada na alternativa “todo”/“fragmentos” 23 23 Cuidei disso em Boffi, 2018, em particular pp. 367-374. , na qual a dialética “totalitária” inteiro/partes é desativada. Os fragmentos são “pedaços” não reintegráveis, não podem mais ser consideradas como “partes”, “componentes” e o “todo” não é um inteiro, isto é, um conjunto de partes, se não eventualmente o inteiro de todas as totalidades. Em uma anotação particular, redigida entre o final de 1886 e a primavera do ano seguinte, pode-se ler: “Parece-me importante livrar-se do todo, da unidade de qualquer força, de um incondicionado; ninguém poderia deixar de tomá-lo como uma instância suprema e batizá-lo “Deus”. Devemos enviar o todo em fragmentos; desaprender a respeitar o todo; retomar para as coisas próximas e nossas aquilo que demos ao desconhecido <e> ao todo” (Nachlass/FP 1886, 7[62], eKGWB/NF-1886,7[62]).

Agora, essa questão capital é expressa por Nietzsche em termos não apenas de filosofia prévia, mas também adiada e relançada, de diferentes perspectivas (disciplinares), em outras duplas conceituais famosas, que estão esperando para serem relidas na transversal recentemente tornada evidente, da qual continuam a constituir as coordenadas de referência: “realidade” e “aparência”, “verdade” e “perspectiva” (em gnosiologia); “profundidade” e “superfície” ou “máscara” (em estética); “identidade” e “contradição” (em lógica); “comunidade” e “indivíduo”, “paz” e “conflito” (na filosofia política).

III

Após ter tocado um lugar temático que pode parecer o mais distante do início, é hora de verificar se esse movimento não permite, ao contrário, estabelecer de perto a nota nietzschiana de 1883 da qual iniciei. Nessa nota, Nietzsche enfatiza o termo Aufhebung (mas não Synthesis), pretendendo abolir uma oposição abstrata, a rigidez sobre a qual o homem moral eleva sua construção dogmática. Serve para fluidificar. Mas Aufhebung constitui, por assim dizer, apenas meia verdade. A mesma nota acrescenta: “a própria vontade deve ser superada [der Wille selber ist zu überwinden]”. Dessa maneira, contextualmente e d'emblée, a superação-Aufhebung hegeliana, que carrega o peso da “constrição” antitética, replica a superação-Überwindung nietzschiana24 24 De passagem, lembro-me de que sobre esse conceito Heidegger tornará a refletir, que verá uma instância voluntária prevalecer e com ela o enredamento numa determinação metafísica, pela qual o abandonará, preferindo o termo Verwindung, “superação” alheia a qualquer “querer-superar”. . Que diagrama de pensamento é desenhado entre essas tensões conceituais?

Acredito que Nietzsche pense profundamente também na dupla Synthesis-Überwindung, na qual o projeto característico do hegelismo, bem como a lógica do pensamento marxista, se dá implicitamente como agora esgotado. Para marcar decisivamente essa dupla nietzschiana conceitual é o prefixo über-, com o qual geralmente processamos: “além”, “acima” ou “super-”. Ele o antepõe a qualquer dimensão que deva ser atravessada e ultrapassada, embora após tê-lo levado ao seu potencial máximo até que a tenha gritado contra si mesma, abolindo sua determinação fixa. Não é só isso, no entanto. Parece-me que em seus usos linguísticos nunca há necessidade de um “super-” ou “sobre-” o qual não implique o movimento dúplice do “através” e do “contra”. Ou seja, Nietzsche pensa em um dispositivo teórico de liberação dupla: não há “além”, “acima” ou “super-” sem o “contramovimento” introduzido todas as vezes pelo prefixo ent-, que em italiano é escrito com os prefixos “de-” ou “dis” derivado do latim25 25 Podemos encontrar explícitas dimensões de distanciamento (p. ex., “desviar”), de movimento de cima para baixo (p. ex.: “descender”, mas também figurativamente “degradar”), de privação (p. ex.: "detract"), de negação (p. ex., com expressão nietzschiana: “dealemanizar-se”). . Sem o negativo-privativo, não é possível pensar aquilo que Nietzsche recomenda ou indica como multidimensionalidade do “sobre/super-”, requisito essencial, não por acaso e exemplarmente, tanto do “bom europeu” quanto da “nova síntese” que será “o europeu do futuro”, chamado a ser supra-europeu, supracristão, supra-oriental, supranacional. Nesse sentido, por antonomásia, “super-homem”: Übermensch se aplica em sentido ultrahumanístico e ao mesmo tempo deantropomórfico. Não é um ideal regulador - como o “bom europeu” não pode ser -, mas um critério imanente e auto-afirmativo de seleção na “fidelidade a terra”, apesar da carga de contradições e violências que isso implica. Na “Primeira dissertação” de Genealogia da moral, no parágrafo dezesseis, é possível ler, por exemplo, a conhecida interpretação de Napoleão Bonaparte: “este homem muito peculiar, esse fruto extremamente tardio como ninguém mais [...]. Napoleão, essa síntese de desumano e desumano de superhumano...” (GM/GM I, 16, eKGWB/GM-I-16). Napoleão supera as coisas humanas extremamente humanas justamente porque se “desumaniza” e “super-humaniza”. Ele rompe a tabela comum de valores antropomórficos e dá forma a uma síntese de uma vida superior, que exige uma interpretação no auge desse novo. É com ele que sobrevém “problema encarnado do ideal aristocrático em si”.

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Toda síntese assume, compõe, coordena, da forma. A forma não existe: é Erfindung, isto é, invenção ao concluir, organizar uma concreta unidade sintética operativo-projetiva concreta. A modalidade visual com a qual sintetizamos-“inventamos” a forma única, produzindo-a no fluxo de forças e eventos desordenados, é o que chamamos de “indivíduo” (o indivíduo Napoleão é a síntese como do “bom europeu”). Corresponde não a uma substância, mas a um conjunto de perspectivas que é precisamente essa, devido à ocorrência de uma perspectiva temporariamente dominante, o que determina tanto uma hierarquização de forças quanto instantaneamente uma modalidade de visão, da linguagem e uma orientação prática.

Não existe uma forma que não seja ao mesmo tempo força - “Alles ist Kraft” (Nachlass/FP 1882, 1[3], eKGWB/NF-1882,1[3]). Isso não implica em si ao instante, forças violentas, também deformantes, enfim transbordantes. Isto é: forma-síntese não se constitui para Nietzsche sem auto-externalização de força, sem a imposição de uma força sobre outras, sem ação-conflito interno de forças. Se existe síntese formal, é porque houve a ação de uma instância tirânica, dominante. A melhor explicação provém novamente de uma passagem na “Primeira dissertação” de Genealogia da moral, no décimo terceiro parágrafo: “Exigir da força que não se apresente como uma força, que não seja um querer sobrepor-se, um querer abater, um querer dominar, uma sede de inimigos, oposições e triunfos, é precisamente tão absurdo que esperar da fraqueza que se apresente como uma força” (GM/GM I, 13, eKGWB/GM-I-13).

Synthesis significa stasis, “guerra interna”. Aliás, é forma de conflito interno: “enquanto a vida estiver ascendente”, toda síntese conflita em si mesma, é combatida entre as inevitáveis explosões de forças e dos instintos de onde provém, inventa o tirano que os domina. Um desacordo que conhece pausas, mas não conclusões. É uma “guerra civil” contínua, na qual emergem formas-forças de subjetivação que nunca subsistem em um sujeito concluído, mas permanecem, elas mesmas, diferenciações abertas, processos periódicos de mudança e autoestruturação funcional.

Acredito que mais de uma nota póstuma nietzschiana pode ser inserida como uma pérola no fio de uma estaseologia precisa. Além disso, qualquer arranjo metaestável de relações de força, qualquer trégua entre os dissidentes da forma, qualquer stasis-Synthesis, é simultaneamente sujeita à pressão de forças externas. Externas, no entanto, apenas enquanto um fracasso ou desequilíbrio ou uma ruptura instantânea não lhes permitam penetrar, apreender, plasmar, finalmente agindo de dentro para a síntese que somente dessa maneira vem assumindo nova conformação.

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Se for esse o caso, então cada inteira configuração sintética assume o valor particular de um indício específico. De marca, sinal, pista impressa por sua história local. Na análise da (provisória) conformação final, podem ser identificadas as forças que agiram sobre outras forças que as moldando, que configuraram a construção. Portanto, toda forma-síntese reivindica uma semiótica histórica, de modo que a proveniência e interpretada-“inventada” a verdade “política” são descobertas genealogicamente. Interpretar-inventar a verdade significa superar-fluidificar sua estrutura sintética, explorando precisamente as forças que agiram e entram em conflito. Também significa fazer genealogia.

Cada interpretação não apenas decifra sinais, mas também sinaliza. Sinaliza uma raspagem ou remoção da síntese anterior, dos confrontos de forças, de seus significados, a uma expropriação e um mascaramento. Marca a ação de um senhorio que subtrai e retotaliza, traça fronteiras e domina os territórios internos. Impõe e se impõe sem renunciar eventualmente à supressão alteridade e diferença. Tomada de posse que, assim fazendo, configura e dirige o teatro da verdade, interpreta extinguindo, isto é, transformando - sem romper entre eles o interpretar e o agir. Decreta o fim das funções, sentidos, usos, objetivos anteriormente em vigor. Até a próxima apreensão, a remanipulação, adaptações sucessivas impostas por uma nova potência superior26 26 É o que surge claramente na leitura do décimo segundo parágrafo da segunda dissertação sobre a Genealogia da moral, na qual se vê a interpretação de Michel Foucault no ensaio já mencionado: Nietzsche, la généalogie, l’histoire. Lidei com isso em Boffi, 2016. . Até exceder ainda mais, até novo resumo.

IV

Vale lembrar a longa anotação 7 do agrupamento de notas entre agosto e setembro de 1885. Começa com a celebração do evento-Dionísio, “símbolo da mais alta afirmação do mundo e transfiguração da existência”, floração do corpo e alma na Grécia arcaica. Dionísio “juiz” imensurável “metro” do qual cada coisa e cada nome, até os melhores, se encontram medidos: “aquilo que cresceu desde então resulta muito curto, muito pobre, muito apertado”. Por quê?

Para responder não servem “indiscretos olhos eruditos”, não “o nobre zelo de apaixonados pela antiguidade como Goethe e Winckelmann”. Basta Dionísio, a resposta nietzschiana perene ao platonismo que mede todas as realidades com base em valores ideais pressupostos, que funda na alma-ego-mente estabelecida a unidade, o medidor absoluto consciente. O “contra-movimento” à “contra-doutrina cristã que negava a dionisíaca” é suficiente para a - sem que a lógica de tal gesto implique o imperativo vínculo de um Aufhebung dialeticamente entendido. Dionísio, deus incomensurável, derruba e supera todos os limites, cada vínculo. Não reconhece propriedades e delimitações, transcendendo todos eles. Deus estrangeiro, vindo de fora, continua vindo e sinaliza a um mundo futuro, a uma nova jornada da humanidade. Veja como “esperar”, como visar seu gesto inaugural:

Esperar e prepare-se; esperar o surgimento de novas fontes, preparar-se na solidão a vozes e rostos estranhos; lavar a alma e torná-la cada vez mais pura do pó e do barulho da feira desta época; superar [überwinden] todo cristão com algo super-cristão, e não apenas livrar-se dela - porque a doutrina cristã foi a contra-doutrina que negava a dionisíaca; redescobrir em si o Sul e estender sobre ele um céu do Sul claro, esplêndido e misterioso; recuperar a saúde meridional e a resposta potência da alma; gradualmente se tornam mais vastos, mais supranacionais, mais europeus, mais supra-europeus, mais orientais, finalmente mais gregos - já que os gregos foram a primeira grande unificação e síntese [Synthesis] de todo o mundo oriental e, portanto, precisamente o começo da alma europeia, a descoberta do nosso “novo mundo”: - para quem vive sob tais imperativos, quem sabe o que lhes acontecerá um dia? Talvez apenas um novo dia! (Nachlass/FP 1885, 41[7], eKGWB/NF-1885,41[7]).

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O grego foi síntese - do que vinha de longe, da Ásia. Foi inicialmente: assim começou a cultura da Europa. Não é necessária nenhuma pressuposição de pureza e absolutez: o pensamento do começo é impuro, bastardo, inventivo. Não cria ex nihilo. Assimila, une, resume. A alma europeia só poderia ser inventada por meio da assimilação de cada coisa do Oriente, de “tudo o que é oriental” [alles Morgenländischen]. Europa-Ocidente não teria se tornado o que é, se a cultura grega estivesse em conflito consigo mesma e com o que era essencialmente estranho nas “vozes e rostos”, não tivesse alcançado a síntese peculiar da Ásia-Oriente. Nesta linha, há inúmeras passagens das belas palestras universitárias sobre O Serviço Divino dos Gregos, realizadas por Nietzsche uma década antes em Basiléia, entre 1875 e 1878, bem como a massa de notas escritas em cadernos pessoais durante o mesmo período27 27 Para desembaraçar a densa trama de imagens, citações, reelaborações pessoais colocadas de fontes filológicas e etno-antropológicas inventariadas por Nietzsche nesse período, nas quais se espalham aulas acadêmicas e notas particulares do período da Basiléia, as pesquisas de Andrea Orsucci, 2012, pp. 3-67, são fundamentais. . Existem ocorrências importantes do termo “superação”, dentre as quais me lembro: “o que os gregos também haviam recebido de outros, eles o moldaram da maneira mais bonita. Esse é o aspecto mais esplêndido: a apropriação e a superação do que é estranho28 28 Nietzsche, Der Gottesdienst der Griechen, itálico meu. Orsucci (2012, p. 31) observa como “apropriação e superação” foram obtidos por Nietzsche de Deutsche Altertumskunde (I, Berlin: Weidmann, 1870, p. 70) do filólogo Karl Müllenhof, sucessor de Jakob Grimm na cátedra de Berlim. . “Apropriar-se e superar” são válidos como endiadi e selo do gesto inicial.

Em princípio, podemos reconhecer uma crítica potente da lógica dialética, para a qual toda a síntese corresponde, na verdade, ao fortalecimento do regime tético que aboliu-aufgehoben seu oposto, mas, devendo agir para continuar se afirmando. Aqui, por outro lado, não há instância tética reforçada em sua pré-existência pela compulsão intrínseca de abolir seu oposto. A parada junto ao negativo, hegelianamente para olhá-lo na cara, não é necessária para o crescimento. A liberdade dos Gregos não conhece o vínculo coercitivo da Aufhebung, embora seja articulada de acordo com sua própria lógica. Existe uma prática mista que se coloca apenas com uma espécie de síntese “desconstruída”: a assimilação, a coordenação, a transformação simultânea de fatores concomitantes (para parafrasear Foucault mais “infiel”, feitos gritar e um por um ultrapassado em outro29 29 “Eu, os autores que amo, os uso. O único sinal de reconhecimento que se possa testemunhar a um pensamento como o de Nietzsche é precisamente usá-lo, distorcê-lo, fazê-lo chiar, gritar. Que, depois, os comentaristas digam se se é fiel ou não, não tem interesse” (Foucault, 1975/2001, p. 1621). ).

Para Nietzsche, se houver uma síntese, haverá, então, uma superação de outro mundo da experiência. Ou seja: alguém tendo se apropriado de algo e tendo “formalmente sinteticamente” levado além do conjunto de determinações, a multiplicidade fragmentada, passando para derrubar velhas pedras de fronteiras - das quais nenhuma imposição, nem mesmo para a mudança.

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Dionísio do Oriente, excessivo e estrangeiro, representa tudo isso. É o jato espontâneo de uma tradição como uma inversão contínua: um agarrar e virar de cabeça para baixo, um apropriar-se e superar. Daí a forma rítmica da história cultural europeia: mas o núcleo desta história não é uma origem. É, antes, uma pulsação que sempre restaura novamente, ou seja, cada vez que transporta seu centro e seu eixo, sem restrições de desenvolvimento, inventando seu início como apoio, cruzamento e síntese de outro de si. Para apanhá-lo e manter sua lógica peculiar, aberrante em relação à dialética, é preciso de um “pensamento impuro”, um “raciocínio bastardo” no sentido platônico, carecendo (e excluindo) as condições de possibilidade para qualquer síntese harmônica prejudicial, domesticador e conciliador.

Como um bom filólogo clássico, mas crítico nos confrontos da embalsamada filologia clássica acadêmica sua contemporânea, Nietzsche tinha entendido que essa forma rítmica também é uma forma de migração. Porque o núcleo clássico da pulsação mencionada - a cultura grega, a Eliade nietzschiana - morre e renasce, mas não necessariamente no mesmo lugar. A Europa se “alma” na Ásia. E que, depois, foi escrito nos rostos dos deuses, ao longo do trajeto de suas histórias contadas e transmitidas pelos mitógrafos: Dionísio perambulando entre Egito, Síria, Trácia, Arábia, Pérsia, Índia; Afrodite também se movendo do Oriente para Ocidente, parou em Chipre; Apolo viveu em Delos e Delphi, como Nietzsche nunca deixa de se lembrar, mas às vezes voava para o norte, entre os hiperbóreos; o próprio Zeus, que estava indo para o sul, visitando os etíopes, nem teria sido o senhor do Olimpo, se os Curetes, vindos da Frígia, não o tivessem alimentado em uma caverna em Creta.

O que “marca” esse entrelaçamento de figuras migrantes? A necessidade de ser “supranacional”, “super-europeu”, como visto nas passagens nietzschianas lidas. Não são termos sem significado muito além do século que se separa de Nietzsche, após a passagem da época. Por mais que essa distância impeça, como previsto, qualquer reivindicação de atualização-tradução “política”, nossos dias, encontrando-as, configuram um espaço de difração, abrem uma ressonância preocupante.

V

Colocar a questão das “fronteiras”, tomá-la como uma das apostas em jogo na lógica nietzschiana da “superação-síntese” operada pelos bons Europeus, parece-me longe de ser óbvio. “Trabalhar” tal concepção serve para “abolir” tanto as retóricas humanistas ou cientificas do “mundo sem fronteiras” quanto as legitimações da fronteira como uma instituição que garanta justiça (ambas encarnações de um mundo “aparentemente” bom que, no entanto, mistifica o mundo “verdadeiro”).

Toda fronteira é produtiva30 30 Para um exame político-filosófico da função estratégica da fronteira na “fabricação do mundo” atual, isto é, na heterogênese do tempo e do espaço no capitalismo global, cf. Mezzadra; Neilson, 2013. . Relaciona, divide e une. Para “pôr em prática o conceito, tornar operacional a explicação da subjetividade e da socialidade, algumas passagens dedicadas por Nietzsche precisamente à figura do “bom europeu” podem ser úteis. Volto às suas primeiras ocorrências, em dois aforismos: o 475 (“O homem europeu e a destruição das nações”) do primeiro Livro do Humano, demasiado humano e o 87 (“Aprender a escrever bem”) de O viajante e a sua sombra. Essas são passagens conhecidas, nas quais o anti-nacionalismo surge como um requisito fundamental em vista de uma tarefa imperativa. Sua figura futura é preanunciada por um tipo de homem pertencente a uma “raça mista”, efeito em contínua atualização das circunstâncias das quais nós, há trinta anos, aprendemos o novo nome: globalização: “o comércio e a indústria, a troca de livros e de cartas, a comunhão de toda a cultura superior, a rápida mudança de lugar e de país, a vida nômade de hoje de todos aqueles que não têm terra” (MA I/HH I, 475, eKGWB/MA-475).

Operar contra o evento de um homem novo são as “inimizades nacionais”, um “nacionalismo artificial [...] em sua essência um estado de emergência e de bloqueio, [...] proclamado por poucos sobre muitos” por sua interesses tanto dinásticos quanto econômico-comerciais ou sociais, necessitando-se de “astúcia, mentira e violência para se manterem creditadas”: e, no entanto, “uma vez que isso seja reconhecido, é necessário dizer francamente, apenas bons Europeus e contribuir para a fusão das nações” (MA I/HH I, 475, eKGWB/MA-475). As diferenças culturais não estão enraizadas em origens ou estatutos primordiais e requerem novos métodos de compartilhamento, de comunicação.

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Para cobrir interesses econômicos específicos, o nacionalismo político se veste de proclamações universalistas, enquanto promove o ódio entre populações de diferentes grupos étnicos. Nietzsche contrasta o que chama de “supranacionalismo”, “supra-europeuismo”, mas já o considerando incompreensível à germanidade de marca prussiano-bismarckiana, para os alemães que, de maneira nada análoga, não foram capazes de entender sequer o título da Gaia ciência, porque para eles o mundo provençal ao qual a obra se intitula não era traduzível. Vale enfatizar este termo: “traduzível”. Podemos insistir nisso porque entre as características do “bom europeu” nietzschiano, pelo menos nos dois aforismos mencionados, há precisamente a capacidade de traduzir, de tornar e tornar-se traduzível. Não é pouca coisa, aliás. E, talvez, justamente na traduzibilidade, a dimensão supranacional-supra-europeia possa encontrar um novo impulso. No aforismo de Humano, demasiado humano, Nietzsche, de fato, concede aos alemães a possibilidade de colaborar na construção supranacional, recorrendo à sua “antiga e comprovada qualidade de agir como intérpretes e mediadores dos povos”, mais que ao presente tão bárbaro” (MA I/HH I, 475, eKGWB/MA-475). E no aforismo de O viajante e sua sombra elogia “escrever bem e cada vez melhor”, porque “escrever melhor significa simultaneamente também pensar melhor”. Isto é seguido por um estímulo à comunicabilidade: “tornar traduzível para as línguas dos vizinhos; tornar-se acessível ao entendimento desses estrangeiros que aprendem nossa língua; trabalhar para que todo bem se torne um bem comum e para que tudo seja livre aos livres” (WS/AS, 87, eKGWB/WS-87 [itálico meu]). Traduzir transforma relações sociais, cria um bem comum. Portanto, não é “apenas” de uma questão intrínseca à literatura, nem à verticalidade da poesia ou à horizontalidade da prosa, ou mais geralmente aos fenômenos linguísticos de recriação, reconstrução ou paráfrase, mas diz respeito à criação e evolução de contextos sociais, a produção de círculos de socialização. A apropriação genial, da qual os gregos nietzschianos são defensores exemplares, também se refere a técnicas e práticas de tradução que nunca são neutras. No entanto, não se trata, mesmo na vertente linguístico-literária, de transferir outras culturas nacionais para a própria, eliminando sua especificidade, mas tendendo a ser e a tornar-se soberbamente livres, ao mesmo tempo fieis (literais) e criativas. Deixar o “outro” texto viver ao lado de sua tradução e integração, sem impor-lhe uma hierarquia de ser e de valor. Tradução investe e mobiliza singularidades (afetos, sotaques, gestos) no “nós” como no “eles”, no familiar como no estranho. Ao mesmo tempo, ele percebe profundamente a frieza do próprio construir um trâmite, não pressupondo totalidade, junto bons “por natureza”, nem no começo nem na conclusão.

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Intitulando o aforismo 323 de Opiniões e sentenças diversas, Nietzsche escreve: “Ser bom alemão significa se desalemanizar” (VM/OS, 323, eKGWB/VM-323). Já pode ser suficiente. O espírito supranacionalista dos bons Europeus bate de frente com a “arrogância nacionalista”, o contradiz. Meditar pode ser apropriado, dentro da fase transitória precisa pela qual a Europa está passando (e Nietzsche, a quem me refiro, ele mesmo escreveu em tempos de transição!), apanhada entre impulsos soberanistas e etnorregionalismos, intolerâncias radicais e xenofobias perturbadoras, nacionalismos em crescimento e conflitos econômicos, em plena crise de legitimidade e representatividade no qual se encontra o projeto da União. De fato, estamos “deseuropeizados”: isso não poderia talvez construir a condição para mover para outra Europa, ainda a ser construída, em relação àquela definitivamente desaparecida?

Para querer criar um bem comum, a lição nietzschiana da segunda metade dos anos setenta é, talvez, a mais instrutiva - sem, com isso, negar os flashes ousados, a lucidez implacável, a brilhante autocrítica de outras fases (bem como a fragilidade, ambiguidade, falhas e gritos excessivos). Meditar sobre a desconstrução do classicismo feito por Nietzsche neste período e os intrincados e sutis percursos de sua reconstrução contemporânea “embutida” (síntese!) de outras civilizações antigas, sobre o necessário “sentido das distâncias” e seus efeitos de verdade ajuda a compreender como a criação de um ser comum “bom europeu” implique tanto a negociação de diferenças específicas quanto a ruptura de identidades pré-estabelecidas, o esculpir em sua dureza a “síntese superior” de processos de agregação e subjetivação não publicados. Porém, nunca queremos o mito de uma civilização harmônica - o que era, afinal, a representação da cultura grega operada pelos filólogos clássicos nos tempos de Nietzsche (nunca completamente definida).

Criar um bem comum requer um trabalho contínuo de traduções e contra-traduções, de construção e desconstrução de fronteiras, para atravessá-las. Requer saber produzir convergências e circulação entre singularidades (afetos) e descontinuidades, vastas sínteses em uma rede de conexões e distinções que não anulam diferenças. As quais, aliás, devem permanecer, mesmo que envolvam conflitos irredutíveis que impõem estratégias extenuantes de recomposição (ou seja, de sínteses não conciliatórias). O hibridismo generalizado não menos que as fixações identitárias e nacionalistas impede de pensar na nova “universalidade das diferenças” comportada pela índole “boa europeística”. A qualquer momento: “aprendemos que nosso sentir-nos estranhos é ainda mais instrutivo do que nosso sentido de familiaridade” (Nachlass/FP 1883, 24[1], eKGWB/NF-1883,24[1]).

Devemos nos livrar disso?

Referências

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  • *
    Agradeço aos estudiosos do Seminário Permanente Nietzscheano por me terem dado a oportunidade de apresentar as principais linhas argumentativas, posteriormente incorporadas a este artigo, intervindona Sessão pública da XII Edição de seu encontro realizado na Universidade da Calábria, Departamentode Estudos Humanísticos, 10-12 de dezembro de 2015, dedicado a: “A arte de ser ‘Bons europeus’”. Tradução de Juliana Hass.
  • 1
    . Foucault cunhou a própria expressão “focos de experiência” [foyers d’expérience] ao molde nietzschiano Entstehungsherd (literalmente: “foco genético”, “foco do qual emerge”), cf. Boffi, 2016BOFFI, G. Genealogia e semiotica. Una pagina di Nietzsche (con Foucault). Rivista di Filosofia Neo-Scolastica, n. 4, pp. 937-961, 2016., p. 949. Tradução de Juliana Hass. Revisão Técnica de Wilson Antonio Frezzatti Jr
  • 2
    Em mérito, cf. Ottmann, 1999OTTMANN, H. Philosophie und Politik bei Nietzsche. Berlin-New York: De Gruyter, 1999., pp. 239-292, 437, 443; ainda: Drochon, 2016DROCHON, H. Nietzsche’s Great Politics. Princeton: Princeton University Press, 2016., em particular: sobre o “bom Europeu”, pp. 82-87, 175-177; sobre a “grande politica”, 8-22, 150-177.
  • 3
    Não há melhor introdução para este “canteiro” do que o precioso volume: Campioni, 1992CAMPIONI, G. Leggere Nietzsche. Alle origini dell’edizione Colli-Montinari. Con lettere e testi inediti. Pisa: ETS, 1992..
  • 4
    “Os homens póstumos - eu, por exemplo - são mais mal compreendidos do que os atuais, mas ouvidos melhor. Mais precisamente: nunca somos entendidos - daí nossa autoridade...” (GD/CI, Máximas e setas 15, eKGWB/GD-Sprueche-15). Para citações de Nietzsche: após a indicação do texto, temos a referência da edição digital crítica dos textos: Friedrich Nietzsche. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe, Paolo D’Iorio (editor), Nietzsche Source, Paris, 2009ssNIETZSCHE, F. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe. Paolo D’Iorio (editor). Paris: Nietzsche Source, 2009ss. <http://www.nietzschesource.org/eKGWB>
    http://www.nietzschesource.org/eKGWB...
    . <http://www.nietzschesource.org/eKGWB> = eKGBW). Ao preceder <www.nietzschesource.org> a tais referências, são obtidos os endereços de rede que, todas as vezes, dão acesso às passagens.
  • 5
    Uso este título (errado) comum na divulgação também científica, mas acho que seria o momento de corrigi-lo na versão mais precisa proposta por Paolo D'Iorio: Cose umane, fin troppo umane. Veja as razões linguísticas e filosóficas em D’Iorio, 2015D’IORIO, P. Le voyage de Nietzsche à Sorrente. Genèse de la philosophie de l’esprit libre. Paris: CNRS-Éditions, 2015., pp. 195-196.
  • 6
    Uma análise cuidadosa das ocorrências em: Gori; Stellino, 2016GORI, P.; STELLINO, P. Il buon europeo di Nietzsche oltre nichilismo e morale cristiana. Giornale critico della filosofia italiana, n. I, pp. 98-124, 2016.; a evolução do conceito também em: Niemeyer, 2011NIEMEYER, C. guter Europäer. In: NIEMEYER C. (ed.). Nietzsche-Lexikon. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft (WBG), 2011, pp. 153-154.. Para entender o perfil problemático, cf. também: D’Iorio; Merliot, 2006D’IORIO, P. ; MERLIOT, G. Avant-propos. Un bon Européen à Cosmopolis. In: D’IORIO, P. ; MERLIOT, G. (eds.). Nietzsche et l’Europe. Paris: Éditions de la Maison de l’Homme , 2006, pp. 7-11.; Marti, 2006MARTI, U. “The good, the bad and the ugly European”. Les trois faces de l’européisme de Nietzsche. In: D’IORIO, P.; MERLIOT, G. (eds.). Nietzsche et l’Europe. Paris: Éditions de la Maison de l’Homme , 2006, pp. 179-192.; Brusotti, 2006BRUSOTTI, M. Européen et supra-européen. In: D’IORIO, P.; MERLIOT, G. (eds.). Nietzsche et l’Europe. Paris: Éditions de la Maison de l’Homme, 2006, pp. 193-211.. Ainda: Crescenzi; Gentili; Venturelli, 2017CRESCENZI, L.; GENTILI, C.; VENTURELLI, A. Alla ricerca dei “buoni europei”. Riflessioni su Nietzsche. Ed. C. Gentili. Bologna: Pendragon, 2017..
  • 7
    Sobre esse duplo componente do pensamento nietzschiano: Venturelli, 2003VENTURELLI, A. Aufgeklärte Geister e Libres Penseurs. L’interpretazione nietzscheana dell’illuminismo fra storia ed ermeneutica. In: GENTILI, C.; GERHARDT, V.; VENTURELLI, A. (eds.). Nietzsche Illuminismo Modernità. Firenze: Olschki, 2003, pp. 17-36..
  • 8
    Este decisivo componente “provençal” de Nietzsche foi estudado com mérito particular nos últimos anos por Giuliano Campioni, p. ex., Campioni, 2010CAMPIONI, G. “Gaya scienza” und “gai saber” in Nietzsches Philosophie. In: PIAZZESI, C.; CAMPIONI, G.; WOTLING, P. (eds.). Letture della Gaia scienza - Lectures du Gai savoir. Pisa: ETS , 2010, pp. 15-37..
  • 9
    A referência a Bizet deve ser lida contextualmente pelo menos nos dois primeiros parágrafos de WA/CW, eKGWB/WA-1, eKGWB/WA-2.
  • 10
    Querendo registrar a frequência lema em vista de uma indicação significativa, deve-se notar que Nietzsche a utiliza, entre as obras publicadas, apenas no díptico de escritos éticos de 1886 a 1887, Além de bem e mal e Genealogia da moral, e na concomitante Tentativa de autocrítica, dada à nova edição de O nascimento da tragédia. Nada mais. Deve-se ter em mente que, mesmo no “imenso maço de papel” dos cadernos particulares, as ocorrências da Synthesis figuram nas margens de um período de tempo muito restrito: de 1883 a 1887. Deste período, permanece excluída apenas a primeira aparição do termo, marcada durante o verão de 1875 perto da leitura do texto O valor da vida de Eugen Dühring.
  • 11
    Cf. Aristóteles, De anima, III 8, 432a15 - 10, 433b30.
  • 12
    O traço persistente de Teichmüller, um singular pensador meio filósofo, percorre cartas e notas póstumas nietzschianas de dezembro de 1870 a outono de 1887. Nietzsche também tinha estudado os anteriores Novos estudos para a história da filosofia, dos quais ele lembra contextualmente o terceiro e último volume, A razão prática em Aristóteles, publicado em 1879.
  • 13
    Sobre isso insiste a leitura de Michel Foucault no ensaio Nietzsche, la généalogie, l’histoire escrita em 1969, mas publicada apenas dois anos depois: cf. Foucault, 1971FOUCAULT, M. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In: BACHELARD, S. ; CANGUILHELM, G.; DAGOGNET, F. ; FOUCAULT, M. (eds.). Hommage à Jean Hyppolite. Paris: Puf, 1971, pp. 145-172. /2001FOUCAULT, M. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits. 1954-1988. v. I: 1954-1975, texto n. 84. Édition établie sous la direction de D. Defert et F. Ewald avec la collaboration de J. Lagrange. Paris: Gallimard, 2001, pp. 1004-1024. .
  • 14
    Pietro Gori insistiu oportunamente em vários trabalhos sobre essa dimensão da teoria nietzschiana do conhecimento, cf., por ex., Gori, 2012GORI, P. Nietzsche as Phenomenalist? In: BRUSOTTI, M.; ABEL, G.; HEIT, H. (eds.). Nietzsches Wissenschaftsphilosophie: Hintergründe, Wirkungen und Aktualität. Berlin-Boston: De Gruyter, 2012, pp. 341-351..
  • 15
    Para Platão, a alma funciona como uma entrada bem fundamentada para o sancta sanctorum ideal-hiperurânico do ser (isto é, no chamado “mundo verdadeiro”) e do bem que é o seu ápice. Então, para a verdade. Mas é uma dimensão completamente humana e o objeto de um cuidado particular, ou melhor, de uma técnica: política, “terapia” transformadora, porque, infundindo ordem e forma na alma, produzindo a virtude pela qual ela é boa, as permite recuperar a sua condição originária, naturalmente ótima, orientada nos extremos de uma hierarquia objetiva de valores morais. De fato, não há apenas a exposição do Fédon, que moraliza a antiga concepção órfica da psyché metaindividual (traço de um daimon de origem divina) em oposição ao corpo, condenada a reconquistar a pureza somente após ter vivido no doloroso ciclo de reencarnações terrenas como caminho de expiação e ascendidos. A exposição da República é articulada de uma maneira muito diferente. A alma é apresentada em si tripartida e conflituosa: existe a polaridade superior, sede do conhecimento racional que se dirige, sobretudo, aos valores morais; a passional, emotiva, sensível às interações sociais, cheia de energia guerreira, irracional, mas moldável pela educação e pela técnica política; finalmente, a terceira polaridade, totalmente aberta para o baixo “mundo aparente” dos corpos, condenada a ser devorada por insaciáveis ​​desejos eróticos e alimentares.
  • 16
    Para além da polêmica, Nietzsche sabe perfeitamente que o pensamento de Platão é tudo menos monolítico, desprovido de nuances, bifurcações e até aporias programáticas. Para introduzir o confronto nietzschiano com Platão, consulte Müller, 2005MÜLLER, E. Die Griechen im Denken Nietzsches. Berlin/New York: de Gruyter, 2005., em particular pp. 221-250. Nietzsche estudou os textos platônicos já dos anos escolares pré-universitários, no período da “venerável” escola de Pforta. Isso está documentado no pequeno ensaio: A relação do discurso de Alcebíades com os outros discursos do Banquete platônico (1864) (cf. Ghedini, 1999GHEDINI, F. Il Platone di Nietzsche. Genesi e motivi di un simbolo controverso (1864-1879). Napoli: ESI, 1999., em particular pp. 25-31).
  • 17
    Cf. Nachlass/FP 1870, 7[156], eKGWB/NF-1870,7[156].
  • 18
    Em relação a toda essa problemática, cf. Gori, 2007GORI, P. La visione dinamica del mondo. Nietzsche e la filosofia naturale di Boscovich. Napoli: La Città del Sole, 2007..
  • 19
    Para aprofundar, cf. Cambiano, 1991CAMBIANO, G. Platone e le tecniche. Roma-Bari: Laterza, 1991., pp. 181-204.
  • 20
    Hegel, 1960HEGEL, G. W. F. Fenomenologia dello spirito. Tr. it. E. De Negri. Firenze: La Nuova Italia, 1960. 2 v., vol. I, p. 152. Para desenvolver essas ideias de leitura, consulte pelo menos Bodei, 2014BODEI, R. La civetta e la talpa. Sistema ed epoca in Hegel. Bologna: il Mulino, 2014., em particular na dialética histórica: pp. 110-120.
  • 21
    Hegel, 2015HEGEL, G. W. F. Scritti giovanili. E. Mirri (cura). Napoli-Salerno: Orthotes, 2015., Texto 58, p. 580. A edição crítica das obras hegelianas, iniciada em 1968 por Friedhelm Nicolin e Gisela Schüler, permitiu verificar como a antiga compilação alemã dos escritos juvenis organizada por Hermann Nohl tivesse se consolidado, às vezes por continuidade temática, outras vezes apenas por arbítrio próprio, manuscritos fragmentados, assumindo e inventando obras orgânicas que nunca foram realmente escritas por Hegel, coletadas editorialmente na antologia: “Escritos teológicos da juventude”. A passagem que citei, de um texto escrito em Frankfurt, em 1799, aparecia até a quarta parte do inexistente: O espírito do cristianismo e seu destino.
  • 22
    O mesmo problema constitui o cerne teórico da questão geográfica, onde o “todo” assume forma concreta de espaço territorial global, uma expansão imprevisivelmente variada da multiplicidade, de diferenças, ainda hoje que muitas de suas “partes” foram unificadas e padronizadas pelo desenvolvimento global do mercado e das tecnologias telemáticas.
  • 23
    Cuidei disso em Boffi, 2018BOFFI, G. “Se penso alla mia genealogia filosofica”, Nietzsche. II. Meccanicismo e décadence. Rivista di Filosofia Neo-Scolastica, n. 1-2, pp. 351-375, 2018., em particular pp. 367-374.
  • 24
    De passagem, lembro-me de que sobre esse conceito Heidegger tornará a refletir, que verá uma instância voluntária prevalecer e com ela o enredamento numa determinação metafísica, pela qual o abandonará, preferindo o termo Verwindung, “superação” alheia a qualquer “querer-superar”.
  • 25
    Podemos encontrar explícitas dimensões de distanciamento (p. ex., “desviar”), de movimento de cima para baixo (p. ex.: “descender”, mas também figurativamente “degradar”), de privação (p. ex.: "detract"), de negação (p. ex., com expressão nietzschiana: “dealemanizar-se”).
  • 26
    É o que surge claramente na leitura do décimo segundo parágrafo da segunda dissertação sobre a Genealogia da moral, na qual se vê a interpretação de Michel Foucault no ensaio já mencionado: Nietzsche, la généalogie, l’histoire. Lidei com isso em Boffi, 2016BOFFI, G. Genealogia e semiotica. Una pagina di Nietzsche (con Foucault). Rivista di Filosofia Neo-Scolastica, n. 4, pp. 937-961, 2016..
  • 27
    Para desembaraçar a densa trama de imagens, citações, reelaborações pessoais colocadas de fontes filológicas e etno-antropológicas inventariadas por Nietzsche nesse período, nas quais se espalham aulas acadêmicas e notas particulares do período da Basiléia, as pesquisas de Andrea Orsucci, 2012ORSUCCI, A. Da Nietzsche a Heidegger. Mondo classico e civiltà europea. Pisa: Edizione della Normale, 2012., pp. 3-67, são fundamentais.
  • 28
    Nietzsche, Der Gottesdienst der Griechen, itálico meu. Orsucci (2012ORSUCCI, A. Da Nietzsche a Heidegger. Mondo classico e civiltà europea. Pisa: Edizione della Normale, 2012., p. 31) observa como “apropriação e superação” foram obtidos por Nietzsche de Deutsche Altertumskunde (I, Berlin: Weidmann, 1870, p. 70) do filólogo Karl Müllenhof, sucessor de Jakob Grimm na cátedra de Berlim.
  • 29
    “Eu, os autores que amo, os uso. O único sinal de reconhecimento que se possa testemunhar a um pensamento como o de Nietzsche é precisamente usá-lo, distorcê-lo, fazê-lo chiar, gritar. Que, depois, os comentaristas digam se se é fiel ou não, não tem interesse” (Foucault, 1975FOUCAULT, M. Entretien sur la prison: le livre et sa méthode (entretien avec J.-J. Brochier). Magazine littéraire, n. 101, pp. 27-33, 1975./2001FOUCAULT, M. Entretien sur la prison: le livre et sa méthode (entretien avec J.-J. Brochier). In: FOUCAULT, M. Dits et écrits. 1954-1988. v. I: 1954-1975, texto n. 156. Édition établie sous la direction de D. Defert et F. Ewald avec la collaboration de J. Lagrange. Paris: Gallimard , 2001, pp. 1608-1621. , p. 1621).
  • 30
    Para um exame político-filosófico da função estratégica da fronteira na “fabricação do mundo” atual, isto é, na heterogênese do tempo e do espaço no capitalismo global, cf. Mezzadra; Neilson, 2013MEZZADRA S.; NEILSON, B. Border as Method, or, the Multiplication of Labor. Durham: Duke University Press, 2013..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2019
  • Aceito
    14 Out 2019
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