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Nietzsche e as mulheres: uma importante contribuição de Scarlett Marton* * Tradução de João Evangelista Tude de Melo Neto.

Resenha de: MARTON, Scarlett. . Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines . Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021.

Em sua última obra (redigida em francês), Scarlett Marton se dedica a um conjunto de escritos de caráter explosivo. De fato, a temática “Nietzsche e as mulheres” delimita um eixo de pesquisa extremamente sensível: que estatuto se deve conferir a alguns comentários, brutais contra as mulheres, encontrados, aqui e acolá, em alguns textos de Nietzsche? Essas formulações depreciativas, agressivas, incontestavelmente perturbadoras para o leitor, são a expressão da parcela “humana demasiada humana” desse pensador? Em outros termos, elas constituem-se como indícios da constituição psicológica do indivíduo Nietzsche? Ou testemunham de forma mais ampla os preconceitos de um ambiente circunscrito numa época específica e, por conseguinte, passíveis de serem esclarecidos com o auxílio de uma interpretação ao mesmo tempo sociológica e histórica? Em qual dos dois casos a especificidade da investigação filosófica pode ser preservada? O risco de diluição em outras disciplinas é efetivamente real … Além disso, o contexto contemporâneo, marcado notadamente pelo movimento ‘‘Me Too’’, caracteriza-se por uma maior vigilância em relação a comentários misóginos ou sexistas: de maneira salutar, já não se aceita mais fazer concessões em relação ao respeito devido às mulheres. Ora, se pressupormos a legitimidade do feminismo, então, evidentemente, o “caso Nietzsche” destoa… Em outras palavras, Scarlett Marton tem muita coragem para trazer novamente à baila escritos tão suscetíveis a alimentar paixões. A opinião pública pressiona por um engajamento sem ambiguidades. Então: com Nietzsche, contra as mulheres; ou: a favor das mulheres, isto é, contra Nietzsche? Ao contrário de constituir-se como mera militância, Les ambivalences et Nietzsche: types, images et figures fémininesMARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. é um grande e belo livro de filosofia.

A introdução se apoia sobre um trabalho considerável de documentação. Nela, a autora mostra que o objeto de pesquisa, ‘‘Nietzsche e as mulheres’’, suscitou nos diferentes pesquisadores uma amplitude de leituras diversas. De tal forma, a obra de Nietzsche foi considerada tanto misógina como também feminista. A fim de superar essa aporia inicial, Scarlett Marton esclarece com precisão seu método, voltar aos ‘‘próprios textos segundo sua ordem cronológica de aparecimento’’, na ordem de uma “leitura imanente que esclarece […] as estratégias empregadas” (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p.13). Conforme é mostrado ao longo do livro, esse método consolida pouco a pouco a tese geral da obra, a saber: ‘‘as reflexões de Nietzsche sobre as mulheres não tiveram um lugar marginal em sua obra; não podem ser reduzidos a preferências pessoais e muito menos a erros ocasionais. Muito pelo contrário, elas se inscrevem no seu projeto filosófico’’ (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p.13).

O capítulo I deixa claro que a filosofia de Nietzsche não pode nem simplesmente distinguir o masculino e o feminino a partir de critérios biológicos, nem abandonar definitivamente essa distinção em favor de um conjunto de construções culturais, na medida em que essa filosofia se situa além do dualismo de alma e corpo. Dentro da perspectiva “fisiopsicológica” nietzschiana (JGB/BM, 23, KSANIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgab. G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd. (KSA). 5.38), masculino e feminino “transformam-se numa segunda natureza, […] esta também em permanente mutação” e aberta ao estabelecimento de uma tipologia (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p. 21). A qual traça os retratos de configurações pulsionais muito diversas com as quais Nietzsche esteve em contato em sua vida, a saber “As mulheres emancipadas, as mães, as solteironas” (título do capítulo I). O estudo de parágrafos precisos do primeiro volume de Humano demasiado Humano permite, entretanto, ressaltar a irredutibilidade da investigação filosófica à simples coleção de dados biográficos.

Esse primeiro volume de Humano demasiado humano contém uma seção intitulada de “Mulher e criança”, na qual Nietzsche se debruça, notadamente, sobre a questão que busca pela resposta de se o casamento pode vir a impedir o desenvolvimento do espírito livre. A obra de Scarlett Marton examina esse campo de reflexão em seu capítulo II, o qual esclarece como Nietzsche, para além de sua crítica ao casamento, reflete sobre a possibilidade de uma articulação entre casamento e concubinato. Ao longo de seu desenvolvimento, o referido capítulo aborda as ambivalências de Nietzsche a propósito das “mulheres que amam”: a autora mensura, dessa forma, a amplitude da observação psicológica nietzschiana que, por sua diversidade, exclui toda constituição de uma essência unívoca “da” mulher.

Essa contestação da noção de uma “natureza” feminina é o objeto do capítulo III, que examina os parágrafos que Nietzsche consagra às mulheres em A Gaia ciência. Uma atenção especial é dada ao § 68 e, mais precisamente, a um trecho significativo considerado a partir dos parágrafos 66-67: “o homem forma a imagem da mulher, e a mulher é formada de acordo com esta imagem.” Essa lógica de produção de imagens resulta na constituição de diferentes tipos de mulheres, numa perspectiva radicalmente diferente em relação à filosofia dogmática de caráter essencialista: “estreitamente ligada ao procedimento genealógico, a tipologia não vem apenas desabonar a ideia de natureza humana; ela também vem desabonar a ideia de identidade feminina” (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p.79). No polo oposto da tensão dogmática, Nietzsche diversifica suas concepções de verdade, explorando as dimensões femininas dessa noção tornada sagrada pelos filósofos. Nessa perspectiva, a autora considera o prefácio de Para Além de Bem e mal, mas igualmente o § 4 do prefácio de A gaia ciência. A análise proposta acerca da figura de Baubo é notável: esse personagem estranho, que não hesita em desvelar sua vulva, convida à sexualidade e talvez até mesmo à procriação. Assimilada a uma mulher, a verdade caracterizar-se-ia sobretudo como a fertilidade: à luz de Baubo, a verdade é, portanto, redefinida como criação de valores fecundos.

Assim falava Zaratustra dá andamento de forma mais ampla a esse processo de “personificação feminina de uma entidade abstrata” (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p.88), como mostra o capítulo IV da investigação de Scarlett Marton. Esse capítulo apresenta a maneira segundo a qual estas três ideias gerais que são a sabedoria, a vida e a eternidade são colocadas em movimento por meio de referências ao feminino que relembram constantemente a força motriz da progressão do Assim falava Zaratustra, a saber, “a experiência vivida” (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p. 95). Em outros termos, é colocado em evidência que, se ele não pode se reduzir a uma descrição de mulheres existentes, o processo de personificação se elabora, mesmo assim, em conexão com as mulheres reais: por exemplo, a autora sublinha que, “nos ‘Setes selos (ou no Canto do sim e do amém)’, Zaratustra não hesita em colocar-se sob a perspectiva de uma mulher humana demasiada humana’’ (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p.110). Devemos notar que esse capítulo, para além de abordar o objeto proposto pela pesquisa, é extremamente esclarecedor sobre o desenvolvimento geral de Assim falava Zaratustra: dele se extrai, entre outras coisas, informações importantes sobre a vontade de potência e o eterno retorno do mesmo, graças a uma leitura atenta das relações precisas que tecem vários extratos particulares desta obra, muitas vezes considerada a principal obra de Nietzsche.

É majoritariamente a partir da análise de Para Além de bem e mal que o capítulo V se debruça sobre as mulheres em busca de emancipação. O veredito de Nietzsche, segundo a autora, é perfeitamente claro: “Buscando tornarem-se independentes, as mulheres se colocam num gênero que, como qualquer outro, é cúmplice da universalidade e fazem apelo a um conceito que, como todos os conceitos, finge capturar uma essência” (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p.18). Scarlett Marton nos faz notar que, quando Nietzsche ataca a vontade de emancipação feminina, é em definitivo a filosofia dogmática que ele fustiga (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p. 18). Por que se esforçar para transformar-se em homens, ou seja, rivalizar no plano do sério e do pesaroso, uma vez que as mulheres possuem um talento de artista para a mentira, para a aparência e para a beleza (p.121), em resumo, para a vida vivente, não fixada pela metafísica? Na medida em que a Europa se orienta em direção a uma prejudicial uniformização, Nietzsche reabilita relações agonísticas entre homens e mulheres (p.129). Ele estima que a hierarquia é salutar, ao ponto de deplorar que as mulheres resistam à submissão: de acordo com ele, a escravidão é necessária para o advento de uma cultura superior (p.133).

O capítulo VI confirma essa ascensão de uma posição muito clara: as ambivalências expostas nos capítulos iniciais desaparecem quando Nietzsche é confrontado com a questão da emancipação feminina. Esta causa, sem nenhuma ambiguidade, é condenada, pois ela se inscreve nas “ideias modernas” que Nietzsche denuncia incansavelmente. Mais precisamente, a modernidade é, no plano psicofisiológico, decadente. Regressiva, ela deseja a igualdade a todo preço, ao ponto de favorecer a emergência das mulheres de letras. Quando ele evoca Mme Roland, Mme de Staël e George Sand, Nietzsche as deprecia intensamente (JGB/BM, 233, KSANIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgab. G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd. (KSA). 5.172). Ele considera mais amplamente a busca por emancipação como uma “estupidez”, uma “desfeminização,” uma “insipidificação” (JGB/BM 239, KSANIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgab. G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd. (KSA). 5.175), de tal forma que a autora nos leva a observar, no termo desse capítulo, que os ataques de Nietzsche direcionados às mulheres de letras são “sem piedade” (Scarlett Marton, 2021MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. , p. 159).

Em primeiro lugar, fiel aos ensinamentos dos capítulos iniciais, a conclusão geral da obra lembra que, relativamente às mulheres, os textos de Nietzsche apresentam ambivalências: recusando a ideia de “mulher em si”, esses textos trazem à tona as diferentes facetas das mulheres reais ou imaginadas. Por exemplo, “no contexto de um casamento bem-sucedido, a mulher, comparável ao amigo, pode proporcionar ao seu cônjuge momentos de intenso prazer intelectual” (p.163). Contudo, a virulência da ofensiva direcionada às mulheres de letras mostra que, a título de “Pensador crítico das ‘ideias modernas’, Nietzsche retoma […] o gesto de exclusão característico da filosofia dos tempos modernos” (p.164).

Les ambivalences et Nietzsche: types, images et figures fémininesMARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. é, portanto, o livro que se esperava para termos um apanhado analítico sobre a maneira que Nietzsche enxerga o feminino. Essa obra é exemplar, na medida em que ela mostra, página por página, que para superar o registro afetivo de tomadas de posições apaixonadas - sejam elas feministas ou antifeministas -, apenas o empreendimento propriamente filosófico fundado sobre o exame metódico de textos precisos pode fornecer a ajuda esperada. Exemplar porque realmente instrutivo: é o conjunto de textos que Nietzsche consagra à mulher que esse livro, passo a passo, examina com um cuidado exaustivo. A obra é por consequência formadora, em pelo menos dois planos. Ela ensina a ler em geral: o método ao mesmo tempo genético e problematizador que é utilizado para examinar o objeto de investigação “Nietzsche e as mulheres” pode ser estendido para decifrar qualquer escrito complexo de outro pensador. Ele também introduz à filosofia de Nietzsche1 1 Para complementar, verificar, pelo menos: Scarlett Marton, Nietzche, Das forças cósmicas aos valores humanos, 1. ed. 1990, 3. ed. 2010, UFMG, Belo Horizonte. Mas Scarlett Marton redigiu uma quantidade considerável de obras sobre o pensamento de Nietzsche. : o tratamento progressivo do problema do feminino incita a reflexão sobre numerosas expressões nietzschianas que são, de antemão, de difícil acesso (vontade de potência, eterno retorno do mesmo, transvaloração de todos os valores, mas também: psicologia, fisiologia, amor fati, verdade, interpretação, ideias modernas, décadence, igualdade, etc.). Enfim, esse belo livro é a obra de uma filósofa, que redige em seu próprio nome2 2 No que concerne ao itinerário intelectual de Scarlett Marton, indica-se sua obra intitulada: A irrecusável busca de sentido. Autobiografia intelectual, Cotia: Ateliê editorial, 2004. . Na medida em que a leitura imanente dos textos é questionada sem cessar, a paciência filológica é o fundamento do julgamento pessoal, como testemunha essa tomada de posição maior: “nós não consideramos [...] que se deva fazer de Nietzsche um interlocutor de envergadura para os estudos feministas” (p. 65, nota 1); ‘‘quando ele se exprime sobre as mulheres, é antes de tudo como filósofo que Nietzsche se comporta’’ (Conclusão, p. 162). Por todas essas razões, Les ambivalences et Nietzsche: types, images et figures fémininesMARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021. é uma obra magistral, convocada a integrar a pequena lista de grandes livros consagrados a Nietzsche.

Referências

  • MARTON, Scarlett. Nietzche. Das forças cósmicas aos valores humanos 1. ed. 1990; 3. ed. 2010, UFMG: Belo Horizonte.
  • MARTON, Scarlett. A irrecusável busca de sentido. Autobiografia intelectual, Cotia: Ateliê editorial, 2004.
  • MARTON, Scarlett. Les ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines Paris: Les éditions de la Sorbonne, 2021.
  • NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgab G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd. (KSA).
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    Tradução de João Evangelista Tude de Melo Neto.
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    Para complementar, verificar, pelo menos: Scarlett Marton, Nietzche, Das forças cósmicas aos valores humanos, 1. ed. 1990, 3. ed. 2010MARTON, Scarlett. Nietzche. Das forças cósmicas aos valores humanos. 1. ed. 1990; 3. ed. 2010, UFMG: Belo Horizonte., UFMG, Belo Horizonte. Mas Scarlett Marton redigiu uma quantidade considerável de obras sobre o pensamento de Nietzsche.
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    No que concerne ao itinerário intelectual de Scarlett Marton, indica-se sua obra intitulada: A irrecusável busca de sentido. Autobiografia intelectualMARTON, Scarlett. A irrecusável busca de sentido. Autobiografia intelectual, Cotia: Ateliê editorial, 2004., Cotia: Ateliê editorial, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2021
  • Aceito
    12 Mar 2021
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