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A medicina do estilo: sintomatologia e terapêutica na estilística de Nietzsche

The Medicine of the Style: Symptomatology and Therapeutics in Nietzsche´s Stylistics

Resumo:

Neste texto, proponho utilizar a noção de estilo como uma chave de interpretação ética para a estética fisiológica de Nietzsche no âmbito de sua crítica tardia a Wagner. Procuro analisar o papel performativo da “arte do estilo” nietzschiana na medida em que, ao comunicar a condição fisiológica de um corpo, ele pode afetar de maneira negativa ou positiva a configuração pulsional de outro corpo. Considero que, ao subsidiar as etapas fundamentais do ato médico, o diagnóstico e a terapêutica, o estilo se apresenta como um componente imprescindível para o filósofo, o médico da cultura.

Palavras-chave:
Arte do estilo; Estilo de décadence; Pathos; Ethos

Abstract:

In this paper, I propose to use the notion of style as a key to ethical interpretation for Nietzsche’s physiological aesthetics in the context of his Wagner’s late critique. I try to analyze the performative role of the Nietzschean “art of style” insofar as, when communicating the physiological body’s condition, it can affect in a negative or positive way the drive configuration of another body. I consider that, by subsiding the fundamental stages of the medical act, diagnosis and therapy, style presents itself as an essential component for the philosopher, the culture’s doctor.

Keywords:
Art of style; Style of decadence; Pathos; Ethos

Neste texto proponho utilizar a noção de estilo (Stil) como uma chave de interpretação ética para a estética fisiológica1 1 Acerca da utilização nietzschiana do termo fisiologia, seguimos a interpretação de Wilson Frezzatti que, em seu A Fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia, afirma: “A palavra ‘fisiologia (…) denota o que determina de modo somático os homens, isto é, as funções orgânicas ou o afetivo no sentido imediato corpóreo (as afecções) - em suma, fisiológico é o relativo ao corpo ou à unidade orgânica” (Frezzatti, 2006, p.25). Esta também é compreensão que Müller-Lauter tem do termo ao afirmar que, embora Nietzsche entenda a palavra ‘fisiologia’ no contexto de seu uso pelas ciências de sua época, ele também opera um deslocamento do sentido para o âmbito de sua própria filosofia, chegando “a interpretar os processos fisiológicos como a luta de quanta de potência que ‘interpretam’”. (Müller-Lauter, 1999, p. 21-22). de Nietzsche no âmbito de sua crítica tardia a Wagner. Partirei da ideia nietzschiana de “comunicação de um pathos” para pensar o papel ético que o conceito de estilo assume em sua estética fisiológica. Neste sentido, tomarei o antagonismo entre as noções de “arte do estilo” (Kunst des Stil), apresentada em Ecce Homo, e “estilo da décadence” (Stil der décadence), apresentada em O caso Wagner, como meio para compreender a avaliação que o filósofo faz, tanto da estilística wagneriana quanto da sua própria estilística. Pretendo demonstrar que, mais do que a expressão formal de uma determinada subjetividade, o estilo se revela, para Nietzsche, como expressão sintomática da condição fisiológica de um corpo: como sintoma de décadence, no caso de Wagner; como sintoma de saúde e vitalidade, no caso de Nietzsche. Ademais, procuro demonstrar o papel performativo que a arte do estilo assume em Nietzsche na medida em que, ao comunicar a condição fisiológica de um corpo, ele pode afetar de maneira negativa ou positiva a configuração de outro corpo. Considero que, ao subsidiar as etapas fundamentais do ato médico, a saber, o diagnóstico e a terapêutica, o estilo se mostra como um componente imprescindível para o filósofo, o médico da cultura, o que confere à estilística de Nietzsche uma disposição eminentemente ética.

O estilo como comunicação (Mitteilung) de um pathos

Se por um lado o estilo nietzschiano é um dos elementos responsáveis por atrair cada vez mais leitores incautos para os seus textos, por outro lado ele é também um dos aspectos de sua obra que desde sempre despertou interesse entre pensadores e intérpretes rigorosos2 2 Entre os pensadores e obras que trataram o estilo como um problema fundamental para o pensamento filosófico de Nietzsche podemos mencionar W. Dilthey, em Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen Systemen (1919), Bertrand Russell, em seu History of Western Philosophy (1945), Georg Lukács, em Die Zerstiirung der Vemunf (1952), Karl Jaspers, em seu Nietzsche, Heidegger, nos seus cursos sobre Nietzsche de 1936 a 1946, Karl Löwith, em seu Nietzsche: philosophie de l’éternel retour du meme, Gilles Deleuze em seu Pensamento nômade e também Nietzsche e a filosofia, Jacques Derrida em Esporas: os estilos de Nietzsche e em Políticas da amizade, M. Blanchot em L’absence du livre, Lacoue-Labarthe em Nietzsche et la réthorique, entre outros. . E não sem motivo. Compreender o papel da estilística de Nietzsche no âmbito de sua filosofia é um desafio que se impõe de modo incontornável a todo leitor diligente, uma tarefa difícil e sobre a qual o próprio filósofo, em diversas ocasiões, se manifestou. Numa carta a Widmann de 4 de fevereiro de 1888, respondendo às considerações feitas por Karl Spitteler3 3 Karl Spitteler foi um crítico de música e teatro suíço, discípulo de Overbeck, escritor talentoso e futuro prêmio Nobel. No começo do ano de 1888, quando os livros de Nietzsche ainda não eram bem recebidos na Alemanha, Spitteler escreveu um artigo sobre obra do filósofo alemão no periódico suíço Bund, de Berna. Neste artigo, o crítico se ocupou, dentre outros assuntos, das questões formais e estilísticas do texto nietzschiano. Juntamente com O Perigoso livro de Nietzsche, artigo de V. Widmann dedicado a Para além de bem e mal e publicado no mesmo periódico, as considerações de Spitteler foram recebidas por Nietzsche com grande entusiasmo: “um maximum em minha vida” (EH/EH Por que escrevo livros tão bons, §1, KSA 6.298), escreverá o filósofo. Para Nietzsche, Spitteler teria tratado o seu Zaratustra de “exercício superior de estilo”, não obstante, o crítico não poupou o filósofo ao exigir a mesma preocupação com o conteúdo (Cf. EH/EH Por que escrevo livros tão bons, §1, KSA 6.298). O artigo de Spitteler dará início a uma série de correspondências entre o intelectual suíço e o filósofo alemão que perdurará até o fim da vida produtiva de Nietzsche. acerca de sua estilística, Nietzsche justifica a dificuldade dos seus escritos a partir do caráter invulgar do objeto comunicado. Diante disso, o filósofo apresenta o que seria uma concepção muito particular de estilo:

A dificuldade dos meus escritos radica em que neles há uma preponderância de estados da alma (Zustände der Seele) infrequentes e novos sobre os estados anímicos normais. Não louvo isso; mas é assim. Para esses estados, ainda indiscerníveis e frequentemente pouco compreensíveis, eu busco signos; me parece que nisso tenho minha inventiva. Nada está mais distante de mim do que a crença em um “estilo que por si só se faça bem aventurado”, naquele que, se entendi corretamente, o senhor Spitteler crê?4 4 Em seu artigo da Bund, Spitteler havia afirmado que o estilo que Nietzsche utilizara em Genealogia da moral era o contrário de um bom estilo. O propósito de um escrito não é o de criar sempre e em primeiro lugar a lei do seu estilo? Eu exijo que, se alterar esse propósito, se altere também inexoravelmente todo o sistema de procedimentos estilísticos (A Josef Viktor Widmann, 4 de fevereiro de 1887, KSB, 8.244-246).

As dificuldades observadas por Nietzsche revelam, ante de mais nada, a preocupação do filósofo em relação à sua arte estilística, o que resulta do modo particular com que ele coloca a própria questão do estilo. À primeira vista, o filósofo parece assentir a uma acepção do estilo eminentemente iluminista remontando uma concepção buffoniana acerca do estilo5 5 No contexto da discussão sobre o estilo do século XVIII, o Discours sur le Style de Georges-Louis L. de Buffon é considerado um testemunho de uma noção de estilo fundamentalmente iluminista. Pronunciado na ocasião de sua recepção na Academia Francesa no ano de 1753, o Discurso de Buffon tende a valorizar as incipientes noções da estética moderna, como as de gênio criador e de gosto, em detrimento das antigas noções normativas da arte retórica, como as de harmonia, proporção e o belo matemático. Dessa forma, no que diz respeito à concepção de estilo, quanto mais se exaltava a expressividade individual e original do artista ou escritor, menos sentido faziam as regras e o decoro da história até o ponto de serem escamoteadas e transformadas em meros instrumentos a serviço do gênio criador. Em seu Discours lê-se: “As regras, dizíeis-me ainda, não podem suprir o gênio; se este faltar, elas serão inúteis. Escrever bem é, ao mesmo tempo, bem pensar, bem sentir e bem reproduzir; é ter, ao mesmo tempo, o espírito, alma e gosto. O estilo supõe a reunião e o exercício de todas as faculdades intelectuais. As ideias, só por si, formam o fundo do estilo, a harmonia das palavras é tão-só o acessório e depende apenas da sensibilidade dos órgãos [...]” (Buffon, 2011, p. 10-11). Produzido a partir de uma operação que envolve todas as faculdades intelectuais do indivíduo, o estilo, para Buffon, consiste na capacidade do homem para dar forma aos seus pensamentos. Logo, o fundamento do estilo não está em cânones clássicos da composição, isto é, não se encontra em princípios objetivos como a harmonia e a proporção, mas sim na subjetividade do autor, em suas ideias e pensamentos. . Desta perspectiva, o estilo de um autor não deve ser o resultado de sua submissão a cânones estéticos pré-estabelecidos, onde as formas são moldes preconcebidos e confortáveis, mas sim a expressão de sua subjetividade, entendendo esta subjetividade no registro moderno de um sujeito uno e idêntico a si mesmo. De fato, a Nietzsche não interessa balizar a sua escrita em qualquer cânone estilístico prévio: num “‘estilo que por si só se faça bem aventurado’”. Quando propõe que cada escrito deve criar a lei de seu estilo, o filósofo afirma a ideia de que o estilo deve comunicar estados e sentimentos singulares do artista ou autor.

No entanto, a despeito de sua recusa em reduzir o procedimento estilístico à objetividade de princípios estéticos normativos, Nietzsche não reduz o estilo a uma mera expressão subjetiva de um sujeito, o que o distancia radicalmente dos preceitos iluministas de Buffon. Para o filósofo alemão, o estilo não é a expressão de um pensamento ou de uma consciência, mas sim a manifestação de um corpo que se revela como uma unidade múltipla de forças antagônicas6 6 Cf. ZA/ZA Dos desprezadores do corpo, KSA 4.39. e que, por ser constitutivamente dinâmico e complexo, torna também complexa a tarefa de se comunicar. No que tange aos seus escritos, as dificuldades ainda se assomam na medida em que neles, afirma o filósofo, protagonizam os estados da alma “infrequentes e novos” em detrimento dos “estados anímicos normais”. Numa carta de 2 de dezembro de 1887 a Georg Brandes7 7 Georg Brandes foi um intelectual e professor da Universidade de Copenhague. Renomado estudioso da literatura europeia do século XIX, Brandes se interessou pelo que chamou de “radicalismo aristocrático” de Nietzsche, bem como pelas críticas que o filósofo alemão dirigiu aos ideais ascéticos e aos valores democráticos, expressão notória da ascensão do medíocre e do numeroso, numa palavra, da massa. Numa carta de 26 de novembro de 1887, Brandes escreve a Nietzsche: “É uma honra para mim, ser conhecido por você, e conhecido de maneira que você pôde desejar ganhar em mim um leitor. Um novo e original espírito sopra para mim de seus livros. Eu ainda não compreendi completamente oque eu li; eu nem sempre posso acompanhar sua intenção. Mas eu encontrei muito do que se harmonize com minhas próprias ideias e simpatias, a depreciação dos ideais ascéticos e a profunda repugnância para com a mediocridade democrática, seu aristocratismo radical” (KSB, 8.246-247). , Nietzsche retoma este argumento acrescentando algumas considerações que podem nos lançar alguma luz sobre o seu modo de compreender o estilo e o procedimento estilístico:

Na escala de minhas vivências [Erlebnisse] e estados [Zustände], a preponderância se encontra do lado das tonalidades mais singulares, mais distantes, mais sutis, contra às normais e medianas. Inclusive tenho (para falar como o velho músico que realmente sou) um ouvido para quartos de tom. Por último - e este é, certamente, o que em maior medida obscurece os meus livros - há em mim uma desconfiança frente à dialética, inclusive frente aos fundamentos [...] (A Georg Brandes, 2 de dezembro de 1887, KSB, 8.205-207).

Nietzsche não só tinha ciência das dificuldades que os seus escritos colocavam ao leitor, mas sabia também que tais dificuldades estavam diretamente relacionadas à sua maneira particular de conceber e utilizar a linguagem. Desde cedo, o filósofo refletiu sobre o caráter convencional da linguagem ordinária, bem como sobre os limites que este universalismo linguístico impõe a um tipo de comunicação de caráter próprio8 8 Já em seus escritos juvenis Nietzsche avalia o registro utilitário e convencional sobre o qual se forma a linguagem, bem como a impossibilidade de comunicar vivências singulares a partir de uma linguagem e de um estilo ordinários. Sobre o tema da linguagem no jovem Nietzsche, Cf. Claudia Crawford, 1988. . Daí resulta o modo como, em seus escritos, ele se apropria dos elementos linguísticos, subverte a ordem gramatical em busca de um estilo que comunique suas vivências e seus estados mais singulares. Assim, se o seu texto impõe certas dificuldades para o leitor, isto se deve menos à falta de habilidade do escritor do que à obscuridade inerente ao próprio objeto a ser comunicado por ele.

Neste sentido, a busca de Nietzsche pelo próprio estilo se torna uma tarefa incontornável cujo objetivo é comunicar o seu pathos de distância em relação ao convencionalismo e à preponderância do vulgar e do mediano na comunicação. Tal tarefa consiste em eleger os signos mais adequados, mas também em realizar a composição mais adequada destes signos de modo dar conta, primeiro, de superar a superfície do “eu” (ich) em busca do conhecimento si mesmo (selbst), o que significa interpretar os sentimentos mais obscuros e profundos, para então comunicar estas disposições mais “singulares”, mais “distantes” e mais “sutis”. Para este propósito, o recurso à dialética se mostra insuficiente, já que, como afirmamos, o que deve ser comunicado não são os pensamentos claros e distintos, mas estados de alma inauditos; sentimentos obscuros e subterrâneos que escapam à linguagem ordinária e à captura de uma consciência (Bewußtsein) cristalina9 9 No parágrafo 354 de A Gaia Ciência, Nietzsche considera o pensar que se torna consciente como sendo a parte mais superficial e pior do pensamento, já que ocorre em signos de comunicação. Isto significa que à consciência está interditado o acesso ao mundo subterrâneo das vivências singulares e estados anímicos particulares e, por conseguinte, interdita também a comunicação destes sentimentos profundos. O filósofo escreve: “Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é natureza comunitária e gregária; que, em consequência, apenas em ligação com a utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente e que, portanto, cada um de nós, com toda a vontade eu tenha de entender a si próprio de maneira mais individual possível, de ‘conhecer a si mesmo’, sempre traz à consciência justamente o que não possui de individual, o que nele é ‘médio’ -que nosso pensamento é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência (…)” (FW/GC, V, §354, KSA 3.590). Sobre este tema, Cf. Alexander Gonçalves, 2018. .

A ausência de um estilo próprio capaz de comunicar os estados anímicos e mais subterrâneos do indivíduo está relacionada ao profundo desconhecimento que nós, homens do conhecimento, temos de nós mesmos10 10 Em Genealogia da Moral, Nietzsche escreve: “Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos (…) - para nós mesmos somos ‘homens do desconhecimento’” (GM/GM Prólogo, KSA 5.247). . Numa anotação póstuma de 1885, Nietzsche aponta esta relação entre o nosso desconhecimento de nós mesmos e a vulgaridade das fórmulas linguísticas que utilizamos para nos compreender e nos comunicar. Nietzsche escreve:

Como desde antigamente o homem vive com o profundo desconhecimento de seu corpo e está satisfeito com algumas formulas para comunicar seu estado de saúde, assim se passa com os juízos sobre o valor dos homens e as ações: quando se trata de si mesmo, se atém a uns poucos signos externos e secundários e não se tem nenhum sentimento de quão profundamente desconhecidos e estranhos somos para nós mesmos. E no que diz respeito ao juízo sobre os outros: quão rápido e “seguro” julga todavia o mais precavido e razoável! (NP/FP 1885 36 [8], KSA 11.552).

Notamos quão complexa é a relação que Nietzsche estabelece entre o corpo e o estilo quando observamos que o nível de conhecimento que temos de nós mesmos é proporcional à nossa capacidade de selecionar e articular os signos mais adequados para a realização de uma comunicação de nossas vivências mais profundas. Ora, se a superficialidade do pensamento consciente decorre do fato dele se formar no âmbito lógico e utilitário dos signos convencionais11 11 Cf. FW/GC, V, §354, KSA 3.590. , “signos externos e secundários”, o conhecimento e a comunicação dos sentimentos mais profundos só pode ocorrer no registro criativo de uma arte do estilo próprio. É neste sentido que devemos entender as palavras de Nietzsche a Widmann quando afirma que o propósito de todo escrito deve ser sempre a criação da lei do “seu estilo”12 12 Cf. Carta a Josef Viktor Widmann, 4 de fevereiro de 1887,EpistolarioV. . Meio através do qual um corpo comunica um pathos, o estilo assume, na fisiologia estética de Nietzsche, um estatuto eminentemente médico, mostrando-se como um importante instrumento do procedimento sintomatológico.

No âmbito médico, o termo sintomatologia diz respeito a um complexo de sintomas ou sinais de uma doença. Primeira etapa do ato médico, a sintomatologia consiste na observação atenta aos sintomas de um organismo. É através dela que o médico avalia as condições fisiológicas deste organismo antes de concluir o seu diagnóstico e determinar a sua terapêutica. Compreendido no âmbito da fisiopsicologia de Nietzsche, o estilo deixa de ser um elemento estético menor e se torna um instrumento fundamental para que o filósofo, o médico da cultura, avalie a saúde de um corpo individual ou social. É sob a perspectiva de uma sintomatologia do estilo que Nietzsche avalia a décadence de Wagner e do seu tempo.

O estilo da décadencede Wagner

Foi sob a ótica da sua metafísica de artista que o jovem Nietzsche viu em Wagner a via para o ressurgimento do estilo trágico e a realização da Kultur alemã, o que o motivou a dedicar a sua primeira obra publicada ao compositor alemão. Não obstante, a superação deste registro estético metafísico por uma compreensão fisiológica da arte, em seus textos maduros, marca também o distanciamento dos ideais estético-políticos do velho mestre. Nestes escritos, Wagner já não é mais visto como uma promessa de realização da cultura alemã, mas sim como um grande perigo para a saúde do indivíduo e da cultura. Em O Caso Wagner, Nietzsche escreve: “O artista da décadence - eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade. Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse décadent nos estraga a saúde - e a música, além disso!” (WA/CW § 5, KSA 6.21). Compreender o “estilo” wagneriano como um sintoma possibilita a Nietzsche propor o seu diagnóstico acerca do estado fisiológico compositor: Wagner é um doente, mas mais do que isso, ele é uma doença contagiosa. Num póstumo redigido entra a primavera e o verão de 1888, o filósofo anota: “O estilo de Wagner contaminou também os seus discípulos (...)” (NP/FP, 1888 16[67], KSA 13.507). E em O Caso Wagner, Nietzsche escreve: “Wagner é realmente um ser humano? Não seria antes uma doença? Ele torna doente aquilo em que toca - ele tornou a música doente - (…) Wagner est une névrose” (WA/CW, § 5, KSA 6.21).

No que concerne a sua convivência com o compositor de Tristão e Isolda, Nietzsche a descreve como um longo e conflituoso processo de aproximação e distanciamento, mas também de adoecimento e convalescimento: “Ninguém, talvez, cresceu tão perigosamente junto ao wagnerismo, ninguém lhe resistiu mais duramente (...) Uma longa história! (...) Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um décadent: mas eu compreendi isso, e me defendi (...) Para uma tarefa assim, era-me necessária uma disciplina própria - tomar partido contra tudo doente em mim (...) Minha maior vivência, foi uma cura. Wagner foi uma de minhas doenças” (WA/CW Prólogo, KSA 6.11). A ruptura com Wagner e com o wagnerianismo é tratada como um acontecimento fisiológico decisivo na vida de Nietzsche: sua maior vivência e sua cura.

Romper com Wagner tem aqui um sentido eminentemente médico de realização da cura de si próprio, o que significa realizar um trabalho sintomatológico e terapêutico sobre si mesmo. Para tanto, foi necessário identificar e expurgar tudo o que há de doente em si para, somente então, reencontrar-se consigo mesmo. Desse modo, não se trata apenas uma ruptura com o indivíduo Wagner, mas de uma ruptura de Nietzsche consigo mesmo; com o décadent que vive em si e interdita o seu encontro consigo mesmo. Em Ecce Homo, Nietzsche escreve: “O que, então, se decidiu em mim não foi propriamente uma ruptura com Wagner - notei um desvio completo do meu instinto, de que o erro concreto, quer se lhe chamasse Wagner ou professorado em Basiléia, era apenas um indício. Apoderou-se de mim uma impaciência comigo próprio; apercebi-me de que era mais do que tempo de voltar a recordar-me de mim.” (EH/EH Humano, demasiado humano §3, KSA 6.324). Relacionada ao exercício do autoconhecimento e da autopoiesis, a cura da décadence se revela como um processo de formação que tem no reconhecimento e na ruptura com o que não se é a via para chegar a ser o que se é.

O tema da décadence aparece cedo no pensamento de Nietzsche13 13 Já em póstumos da década de setenta encontramos apontamentos sobre este tema. . No entanto, é somente no último período de sua produção que este conceito se torna central para a sua filosofia14 14 Cf. Müller-Lauter, 1999, p. 12. . Como se sabe, o contato com o primeiro volume dos Essais de Psychologie Contemporaine (1883), de Paul Bourget, contribuiu de maneira decisiva para a composição da noção nietzschiana de décadence em seus textos tardios15 15 Para Piazzesi (2003, p. 3), os Essais de Bourget foram inicialmente o guia de Nietzsche em sua incursão no mundo da décadence, um interlocutor que permanecerá, ainda que velado, em toda a sua reflexão sobre a arte da décadence. Estes ensaios consistem numa reunião de estudos de crítica literária que traçam progressivamente um amplo e detalhado quadro da cultura, da arte e da psicologia de uma época. Com os seus ensaios, Bourget pretendia ir além dos limites da crítica literária na medida em que procura entender a crise na literatura como sendo a expressão superficial de um mal-estar de proporção muito maior. A comentadora escreve: “a literatura é o documento de uma transformação cultural que se manifesta antes de tudo na evolução psicológica e moral de uma geração de homens (Piazzesi, 2003, p. 3). . Dotado de uma rica análise acerca do fenômeno de desagregação presente na literatura francesa contemporânea, o texto de Bourget, sobretudo o seu ensaio sobre Baudelaire, despertou um forte sentimento de proximidade em Nietzsche16 16 Num de seus últimos apontamentos póstumos, Nietzsche caracteriza Bourget como “(…) alguém de raça profunda (…) quem, com muito, e desde si mesmo mais se aproximou de mim” (NP/FP 1888-1889 25 [9], KSA 13.634). E numa carta destinada a Malvida von Meysenbug, Nietzsche menciona a necessidade de encontrar um “fino e mesmo refinado estilista” para a tradução de O Caso Wagner para o francês. Bourget poderia ser o seu tradutor, afirma, não fosse o seu pleno desconhecimento em questões de música. (Cf. A Malwida von Meysenbug, 04 de outubro de 1888, KSB 4. 8446-48). . Em linhas gerais, o conceito de décadence elaborado pelo psicólogo francês designa o processo pelo qual as partes subordinadas de uma obra se tornam independentes, o que resulta num caos ou anarquia estrutural. Nietzsche se utilizará das considerações de Bourget para avaliar a cultura de seu tempo e, para isso, faz da noção de décadence um conceito central de sua estética fisiológica. Ao se pronunciar sobre a décadence de Wagner, o filósofo afirma: “As minhas objeções contra a música de Wagner são objeções fisiológicas: para quê mascará-las primeiro com fórmulas estéticas? A estética até não é mais nada do que uma fisiologia aplicada” (NW/NW Onde faço objeções, KSA 6.418).

De uma perspectiva literária, a décadence é descrita em O Caso Wagner nos seguintes termos: “Como se caracteriza a décadence literária? Pelo fato de a vida não mais habitar o todo. A palavra se torna soberana e irrompe para fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da página, a página ganha vida em detrimento do todo - o todo já não é mais um todo (WA/CW § 7, KSA 6.26)17 17 A seguinte passagem de O Caso Wagner é quase uma transcrição de um fragmento do texto de Bourget no qual o estilo de décadence aparece descrito nos seguintes termos: “Um estilo de décadence é aquele em que a unidade do livro se decompõe para dar lugar à independência da página, em que a página se decompõe para dar lugar à independência da frase e a frase, para dar lugar à independência da palavra. Na literatura atual, multiplicam-se os exemplos que corroboram essa fecunda verdade” (Bourget apud Müller-Lauter, 1999, p. 12). . Partindo do critério da desagregação da obra, Nietzsche reconhece no estilo da décadénce de Wagner, ou melhor, na sua incapacidade para o estilo18 18 Num fragmento póstumos redigido entre novembro de 1887 e março de 1888, Nietzsche escreve: “Não poder manter uma determinada ótica constitui o estilo da música wagneriana: estilo, usando aqui a palavra no sentido de incapacidade de estilo” (NP/FP 1887-1888, 11[321], KSA 13.134). , o sintoma de sua décadence fisiológica: “Digo mais uma vez, Wagner não era capaz de criar a partir do todo” (WA/CW § 10, KSA 6.35)”. Não é capaz “de criar formas orgânicas” (WA/CW § 7, KSA 6.26).

Com efeito, a acusação de que a ausência de um estilo consiste numa ameaça para o indivíduo e para a cultura, acusação aqui dirigida a Wagner, não é algo inaudito na filosofia de Nietzsche. Já em seus textos de juventude este argumento foi usado para polemizar com outros interlocutores, como é o caso da polêmica que o jovem Nietzsche estabeleceu com David Strauss em sua primeira extemporânea. Dentre outras críticas, Nietzsche acusou David Strauss do mesmo problema que mais tarde acusou Wagner, ou seja, a falta de estilo, entendendo por isso a ausência de unidade na obra advinda da incapacidade para se criar um todo: totum ponere19 19 A noção de totum ponere é proveniente da estética clássica, particularmente das artes poética e retórica. Nesta acepção, a realização do belo na obra de arte depende da capacidade do artista em criar uma totalidade, uma obra de arte em que as partes estejam ordenadas de modo a compor um todo harmônico. O ideal clássico do totum ponere influenciará de maneira decisiva a crítica nietzschiana aos escritores alemães de sua época e, de modo particular, ao teólogo e escritor David Strauss em sua Primeira consideração extemporânea. Sobre a noção de belo na poética antiga, Cf. Tringali, 1993, p. 540. . Assim como a obra musical de Wagner, o livro A antiga e nova fé de Strauss se apresenta como um grande perigo para o indivíduo e para a formação20 20 Em sua primeira extemporânea, Nietzsche compreende a incapacidade para a unidade de estilo como sendo a característica geral do filisteu da formação, logo é também a de Strauss (Cf. GONÇALVES, SOUZA, 2017, p.24). Seu modo de proceder consiste em produzir um mosaico de estilos inspirados em autores autenticamente clássicos e geniais, como Voltaire e Lessing, o que tem a pretensão de fazer enxergar nele mesmo também um gênio e um clássico. Sobre a relação entre estilo e formação no jovem Nietzsche, Cf. Gonçalves; Souza, 2017, pp. 533-551. não apenas pelo seu conteúdo, mas sobretudo pela sua forma. Neste sentido, as objeções estéticas que Nietzsche dirige a Wagner em seus textos tardios poderiam indicar um paralelismo com as polêmicas dirigidas ao teólogo alemão em seu escrito juvenil não fosse o fundo fisiológico que subjaz as sua filosofia tardia.

De fato, a principal objeção de Nietzsche contra Wagner é justamente a incapacidade que este músico tem para o estilo, ou seja, para criar formas nas quais as partes estejam bem hierarquizadas. No âmbito da estética fisiológica nietzschiana, tal fato revela de modo sintomático a desagregação dos seus instintos e de sua constituição fisiológica: “Os princípios e práticas de Wagner são todos eles redutíveis a calamidades fisiológicas; constituem sua expressão (‘histerismo’ enquanto música)” (WA/CW § 7, KSA 6.26). Desta perspectiva, a incapacidade para o estilo expressa, antes de mais nada, a impotência wagneriana para reunir a multiplicidade dos elementos musicais num todo coeso. Numa carta a Fuchs de abril de 1886, Nietzsche descreve a sua compreensão da estética de décadence de Wagner nos seguintes termos:

Também a parte se assenhora sobre o todo, a frase sobre a melodia, o instante sobre o tempo (também sobre o tempo), o pathos sobre o ethos (o caráter, o estilo, ou como se lhe queira chamar -), por último também o esprit sobre o “sentido”. Desculpe! O que creio perceber é uma alteração da perspectiva: vê-se o singular demasiado agudo, o todo demasiado brusco, - e se tem a vontade dessa ótica na música, e sobretudo se tem o talento para isso! Mas isso é décadence, uma palavra que, como é evidente entre nós, não pretende rejeitar, mas apenas designar (A Carl Fuchs, abril de 1886, KSB 7.176- 179).

A desagregação da melodia e do ritmo na música de Wagner são constitutivas de uma arte desmesurada cuja força expressiva, tal como um jorro de sentimentos, não encontra filtro e tampouco potência para a síntese num ethos (aqui entendido enquanto caráter ou estilo): “seu pathos derruba qualquer gosto, qualquer resistência (…) - ele (Wagner) aumentou desmesuradamente a capacidade de expressão da música (...)” (WA/CW § 8, KSA 6.29). A comunicação deste pathos desmesurado é o que, na música de Wagner, faz adoecer o instinto do seu ouvinte: “A maneira como o pathos wagneriano retém o seu fôlego, o não-querer-livrar-se de um sentimento extremos, a aterradora demora em estados em que só o instante já sufoca!” (WA/CW § 8, KSA 6.29). Para Nietzsche, Wagner é uma neurose!

Consequência da expressividade desmedida de seu “estilo”, o protagonismo do efeito patético em detrimento da formação ética não decompõe apenas a música, mas a própria potência de individuação do indivíduo: “Quanto ao fazer intuir: eis o ponto de partida do nosso conceito de ‘estilo’. Sobretudo nenhum pensamento! Nada mais comprometedor do que um pensamento! Mas sim o estado anterior ao pensamento, o amontoar de pensamentos não nascidos, a promessa de pensamentos futuros, o mundo como era antes de Deus cria-lo - a recrudescência do caos... O caos faz intuir... Falando a linguagem do mestre: infinitude, mas sem melodia” (WA/CW §6, KSA 6.23). A técnica da melodia infinita é, para Nietzche, o elemento desagregador por excelência da música de Wagner. Ela subverte aquilo que, se tratando de música, é imprescindível: a estrutura rítmica. Em abril de 1886, Nietzsche envia de Nice uma carta a Carl Fuchs na qual expõe as seguintes considerações:

A fórmula wagneriana da “melodia infinita” expressa da melhor maneira o perigo, a corrupção do instinto, que ao mesmo tempo mantém a boa fé, a boa consciência. A ambiguidade rítmica, de modo que já não se sabe, nem se deve saber, se é cabeça ou cauda, é sem dúvida um artifício com o qual se pode alcançar efeitos assustadores: o Tristão está cheio deles - mas apesar de tudo, como sintoma de toda uma arte é e continua sendo um signo de dissolução (A Carl Fuchs, abril de 1886, Epistolário V).

Da perspectiva de Nietzsche, com a noção de melodia infinita Wagner decompõe a própria noção tradicional de melodia produzindo uma música profundamente marcada pela indiscernibilidade e pela confusão de seus elementos rítmicos e melódicos. Em linhas gerais, remontando a meloidia (canto ritmado) grega, a noção tradicional de melodia consistia numa “sequência de notas organizada sobre uma estrutura rítmica que encerra algum sentido musical” (Dourado, 2004DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de Termos e Expressões da Música. São Paulo: Ed.34, 2004., p.204). Por estar estruturada sobre uma escala diatônica e um ritmo bem delimitado, a melodia tradicional pode comunicar um “sentido” musical que à melodia infinita, pelo seu recurso à escala cromática21 21 Opondo-se à música tradicional tonal, que se caracteriza pelo uso da escala diatônica (oitava de sete notas), o cromatismo (chroma, cor) é uma técnica musical que se utiliza da escala cromática. Baseada em uma oitava de 12 semitons, a escala cromática consiste numa linha ascendente ou descendente de semitons. Foi sobretudo a partir de Tristão e Isolda que o uso do cromatismo se tornou intenso no século XIX, abrindo, desde então, o caminho para a música atonal e todo o vanguardismo musical do século XX (Cf. Latham; Sadie, 1994, p. 239). , está interditado. A melodia infinita, ao mesmo tempo que desagrega a ordem tonal da música tradicional, desagrega também a sua métrica rítmica afetando o tempo do seu estilo. Em Nietzsche contra Wagner, o filósofo afirma:

Richard Wagner quis uma outra espécie de movimento - alterou o pressuposto fisiológico da música até então em uso: nadar, pairar, não mais andar, nem dançar... Talvez com isto se tenha dito o essencial. A “melodia infinita” pretende justamente quebrar toda a boa proporção de tempo e de energia, por vezes até escarnece dela - a sua riqueza inventiva reside precisamente naquilo que, a um ouvido mais antigo, soa como desconchavo e desaforo rítmicos. (…) - a completa degenerescência do sentimento rítmico, o caos em lugar do ritmo… (NW/NW O lado perigoso de Wagner §1, KSA 6.421).

Expressivo a todo custo22 22 Cf. NW/NW, O lado perigoso de Wagner, §1, KSA 6.421. , o “estilo” de Wagner subverte as leis da “boa proporção” rítmica e dissolve o tempo musical na infinita melodia que não se resolve, o que, segundo Nietzsche, altera radicalmente o “pressuposto fisiológico” da música tradicional: a cadência; o andamento e, mais do que tudo, a dança. Refutada a expressividade hipersaturada do romantismo wagneriano, Nietzsche encontra nos clássicos a inspiração para a sua compreensão da noção de ritmo, bem como da sua função na música.

Com acuidade, Jaeger (1995, p. 160-161)JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. percebe que há um vínculo profundo entre as noções de rhythmós e ethos, uma vez que a formação do indivíduo e da cultura está submetida a uma força coercitiva de princípios rítmicos23 23 Tendo em vista a relação entre rhythmós e ethos na épica e a lírica grega, Werner sugere, para além da paidéia do homem grego, um ritmo na constituição da própria cultura grega. O modo como o grego compreendeu a natureza como um curso regular e rítmico, foi decisivo para o desenvolvimento de sua filosofia e de sua história. O filólogo alemão escreve: “A concepção de onde dimana este ethos soberano eleva-se acima do conselho simplesmente prático de guardar a moderação na vida do dia-a-dia, até a intuição de um ‘ritmo’ na totalidade da existência humana. Arquíloco fundamenta nela a sua exortação ao autodomínio e a admoestação perante toda a extravasão sentimental, na alegria e na dor, isto é, perante a pressão exterior, perante a felicidade ou a desventura provenientes do destino. Já se pode, talvez, descortinar neste ‘ritmo’ algo do espírito da filosofia jônica da natureza e do pensamento histórico que, pela primeira vez, caminha para uma intuição objetiva de uma legalidade no curso natural da existência” (Jaeger, 1995, p. 160-161). . Assim, se a acepção moderna do conceito de ritmo se encontra etimologicamente ligada à palavra “fluir” (ρέω), a história desta palavra aponta para um significado radicalmente oposto: o de forma e proporção. Para Jaeger, é no sentido utilizado na música e na dança que encontramos a intuição originária da palavra rhythmós: “A aplicação da palavra ao movimento da dança e à música, da qual deriva a nossa palavra, é secundária e esconde o seu significado fundamental. Antes de mais nada, devemos perguntar como é que os Gregos entenderam a essência da dança e da música (…) O fato de o ritmo ‘manter o homem nos seus limites’ - exclui logo qualquer ideia de um fluxo das coisas” (Jaeger, 1995JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995., p. 161)24 24 Este trabalho de coerção do elemento rítmico na estética antiga foi exposta por Nietzsche na metáfora volteiriana do “dançar acorrentado” (In Ketten-tanzen). Em O andarilho e sua sombra, o filósofo escreve: “ - Em cada artista grego devemos perguntar: qual é a nova coação que ele se impõe e que o torna atraente para seus contemporâneos (de modo que acha imitadores)? Pois o que se denomina ‘invenção’ (na métrica, por exemplo) é sempre esse grilhão auto-imposto. ‘Dançar acorrentado’, tornar a coisa difícil para si e depois estender sobre ela a ilusão da facilidade - eis o artifício que eles querem nos mostrar” (WS/AS §140, KSA 2.612). .

Na mesma linha de Jaeger, Émile Benveniste (1976, pp. 361-70)BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral. Trad. . São Paulo: Edusp, 1976. entende que, a despeito do fato de que o termo esteja associado, ao menos desde a filosofia pré-socrática, à ideia de um “fluir” cósmico - percebido nos próprios acontecimentos naturais como, por exemplo, no curso das ondas do mar -, o sentido que a palavra incorpora tem mais a ver com a regularidade deste movimento do que com a própria fruição.25 25 Esta compreensão cósmica da noção de ritmo também é assumida por Antônio Cândido em O estudo analítico do poema: “Podemos chamar de ritmo a cadência regular definida por um compasso e, noutro extremo, a disposição das linhas de uma paisagem. No primeiro caso, ritmo seria, restritamente, uma alternância de sons; no segundo, uma manifestação da simetria ou da unidade criada pela combinação de formas. Em ambos os casos, seria a expressão de uma regularidade que fere e agrada os nossos sentidos. Sob o aspecto mais geral, ele apareceria como uma espécie de princípio de ordem do universo, e assim vemos Guilherme de Almeida, no seu estudo sobre Ritmo, elemento de expressão, falar na tradução poética dos ritmos da terra, de fogo, da água, do vento; e do olfato, da vista, do tato, do gosto e da audição” (Cândido, 2006, p.67). Assim, para o linguista francês, a noção grega de ritmo se encontra originalmente mais ligada à ideia de “forma proporcionada” do que à de “ondulação energética”, o que significa dizer que está mais próxima da noção de forma do que de força. Se assim for, em seu sentido originário ela se encontra mais relacionada ao conceito de ethos do que de pathos, e ainda, como bem notou José Miguel Wisnik (1989, p. 232)WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra História das Músicas. São Paulo: Companhia das letras, 1989., muito mais próxima do apolíneo do que ao dionisíaco. Se assim for, ao subverter as leis da forma e da proporção rítmica, o “estilo” de Wagner transforma o poder edificador e terapêutico da música em desagregação e doença. Nietzsche escreve:

E assim, me pergunto a mim próprio o que pretende realmente todo meu corpo da música em geral. Pois que não há alma... Creio que o seu alívio: como se todas as funções animais devessem ser aceleradas por meio de ritmos ligeiros, ousados, divertidos, seguros de si; como se a vida, de bronze ou de chumbo, devesse perder o seu peso, graças a melodias douradas, ternas, untuosas. A minha melancolia quer repousar nos esconderijos e abismos da perfeição: para tanto, preciso de música. Mas Wagner põe-me doente (NW/NW. Onde faço objeções).

Além de sintomático, estilo de décadence de Wagner é também contagioso: ele torna doente quem o escuta. Assim, se a história da música reserva a Wagner o lugar do gênio inovador e precursor de uma arte até então inaudita26 26 No que concerne à história da música ocidental, é quase um consenso entre os historiadores atribuir às inovações wagnerianas o lugar mais alto no processo de dissolução dos cânones da música tradicional. Segundo Juan Carlos Paz: “O século XIX constitui um período de transformação da consciência musical caracterizado por uma condensação progressiva do espaço sonoro. Esta época oferece toda uma série de formas transitórias que se projetam para resoluções não previstas (…) Wagner personifica o ponto culminante deste processo de liquidação. Depois dele, é impossível a volta ao quadros e aos dogmas clássicos (…)” (PAZ, 1977, p.72). Sobre o caráter inovador da música de Wagner, cf. Também Wisnik, 1989, pp.113-70. , Nietzsche o tem como o declínio da música. Signo de dissolução, a “melodia infinita” e a ambiguidade rítmica, elementos característicos da estética musical wagneriana, são aqui avaliadas por Nietzsche como expressão sintomática da anarquia e corrupção do instinto que, diante dos elementos constitutivos da obra, já não tem potência para hierarquizá-los. Ora, se um estilo tem o poder de adoecer um organismo, é bem possível que ele também tenha o poder revigorá-lo.

A arte do estilo de Nietzsche

Se o sentido da estilística wagneriana é o de produzir, através de um jorro desmesurado de sentimentos, a expressividade a qualquer custo, a “arte do estilo”27 27 Cf. EH, Porque escrevo livros tão bons, § 4, KSA. de Nietzsche tende ao sentido contrário: o de comunicar um ethos ao seu leitor. Para tanto, a tarefa de seleção, organização e hierarquização dos sentimentos, disposições e estados, bem como a sua tradução em signos apropriados de comunicação é uma tarefa imprescindível. Se o propósito de um escrito é o de criar, antes de mais nada, a lei do “seu” estilo, sendo que a subversão desse propósito compromete todo o sistema de procedimentos estilísticos28 28 Cf. Carta a Josef Viktor Widmann, 4 de fevereiro de 1887,Epistolário V. , o trabalho do estilista não pode iniciar por outra via senão a da modelação de si mesmo. Anti-wagneriana por excelência, a estilística nietzschiana se propõe a realizar a difícil tarefa da coerção do caos dos sentimentos, estados e disposições próprias em busca de uma forma clara a ser comunicada.

A preocupação com o sentido do procedimento estilístico sempre foi, para Nietzsche, um tema de primeira ordem. Embora ela atravesse todo o seu percurso filosófico, é a partir de Humano, demasiado humano, seu primeiro livro em aforismos, que o filósofo vai refletir profundamente sobre ideia de criação do estilo próprio. O andarilho e sua sombra, Nietzsche indica as bases para uma doutrina do “melhor” estilo:

A doutrina do melhor estilo (Die Lehre vom besten Stile). - a doutrina do estilo pode ser por sua vez a doutrina para encontrar a expressão capaz de transmitir cada disposição (Stimmung) ao leitor e ouvinte; depois, a doutrina para encontrar a expressão para a mais desejável disposição de um homem cuja comunicação e transmissão também seja, portanto, a mais desejável: para a disposição retirada do fundo do coração de homens de espírito alegre, claro e sincero, que superaram as paixões. Essa será a doutrina do melhor estilo: corresponde aos homens bons (WS/AS § 88, KSA 2.372).

Ao propor que a comunicação do melhor estilo exige a busca da “melhor disposição”, e não qualquer disposição, a reflexão nietzschiana sobre o estilo se realiza num terreno ao mesmo tempo estético e ético. Para o filósofo, o melhor estilo é alcançável apenas por homens que superaram as paixões, homens espirituosamente alegres, claros e sinceros, ou, nas palavras do filósofo, “homens bons”. Desta perspectiva, o valor do estilo não se encontra condicionado por critérios estritamente estéticos, já que a sua grandeza não pode ser pensada desligada deste procedimento seletivo que, opondo-se radicalmente aos princípios que regem o estilo de décadence, tem como diretriz fundamental a primazia do ethos em relação ao pathos. Resultado da superação das paixões, a doutrina do “melhor estilo” (besten Stile) se avizinha ao conceito nietzschiano de “grande estilo” (große Stil).

Inspirada no classicismo alemão, a noção nietzschiana de grande estilo revela o profundo sentido ético da estilística nietzschiana29 29 Grande estilo foi um termo utilizado pelo classicismo alemão para designar, primeiramente, as características formais e éticas encontradas na arte estatuária grega, sobretudo nas obras de artistas como Fídias e Policleto. Winckelmann acredita que estes artistas procuravam a beleza ideal na perfeita harmonia e proporção entre todas as partes da obra, bem como no destaque da expressão da figura representada. É característico do grande estilo o traço impessoal, equilibrado e austero, pois o que se busca é representar a magnitude de um caráter divino e a aretê ideal. Para tanto, procura-se excluir da representação artística o sentimento individual e as violentas paixões. Winckelmann escreve: “Agora, se o princípio fundamental do grande estilo era, como parece, representar o semblante e atitude dos deuses e heróis como livres de emoção e não agitados por perturbação interior, num equilíbrio de sentimento e com serenidade; estado de espírito constante; vemos então por que uma certa graça foi desejada; mesmo que ainda não tenha sido feita nenhuma tentativa de apresentá-la” (Winckelmann, 2005, p. 135). . Numa anotação póstuma, o filósofo escreve: “Conexão do estético e do ético [Sittlichen]: o grande estilo requer uma forte vontade fundamental e aborrece, sobretudo, a confusão (NP/FP 1884, 25[332], KSA 11. 97). Reservado àquele que tem força e saúde, o grande estilo se restringe ao artista criador capaz de organizar a confusão caótica numa totalidade. Em franca oposição ao artista da décadence, o artista do grande estilo é aquele que tem a grande ambição de impor uma forma simples ao caos: “Dominar o caos que é um; obrigar ao próprio caos que se converta em forma; que a necessidade se converta em forma: que se converta em algo lógico, simples, inequívoco, em matemáticas; que se converta em lei - : nisso consiste a grande ambição”, (NP/FP 1888, 14[61], KSA 13. 246). Controlar e regular o caos dos elementos artísticos da obra só é possível para aquele que antes dominou o caos das paixões dentro de si, criando-se a si mesmo como uma totalidade.

Assim, comunicar um grande estilo significa, antes de mais nada, transmitir a forma de um determinado ethos. É neste sentido que, para Nietzsche, a seleção e a comunicação da melhor disposição através um estilo revela-se como uma arte rara de imprimir um estilo ao caráter: “Uma só coisa é necessária. - ‘Dar estilo’ a seu caráter - uma arte grande e rara!” (FW/GC § 290, KSA 3.530). Em um póstumo dedicado à Lou Salomé e intitulado Sobre a doutrina do estilo (Zur Lehre von Stil), Nietzsche escreve: “O estilo deve adaptar-se a ti, de cara a uma pessoa bem determinada à que se quer dar parte de ti. (lei da dupla relação)” (NP/FP 1882, 1[109], KSA 10.38)”. Assim, adaptar o estilo a si pode significar, em última análise, dar a si as leis do seu próprio estilo.

Não obstante, tendo em vista que os sentimentos são diversos e dinâmicos, já que se trata das manifestações de um corpo, a tarefa da criação estilística de si se revela, para Nietzsche, como uma tarefa constante e sempre inacabada. Este é o sentido o filósofo dá a sua “arte do estilo” que, numa conhecida passagem de Ecce Homo, ele nos apresenta nos seguintes termos:

Já agora, vou dizer ainda umas palavras em geral acerca da minha arte do estilo (Kunst des Stil). Comunicar (mitzutheilen) um estado, uma tensão interior (innere Spannung) do pathos, por meio de signos (Zeichen), incluindo o ritmo (tempo) desses signos, tal é o sentido de todo e qualquer estilo (Stil); e tendo em vista que a multiplicidade de estados interiores em mim é extraordinária, há em mim muitas possibilidades estilísticas - aliás, a mais múltiplice arte do estilo de que jamais um ser humano dispôs” (EH, Porque escrevo livros tão bons, § 4, KSA 6.304).

A arte do estilo, como uma tarefa de aprimoramento estilístico, consiste, portanto, na busca por signos apropriados, bem como um ritmo apropriado capaz de comunicar um determinado estado interior. Não há estilo bom em si; o bom estilo, o melhor estilo, é aquele criado e apropriado a si: “Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca quanto aos sinais, quanto ao ritmo dos sinais, quanto aos gestos - pois todas as leis do período são arte dos gestos. Neste ponto, o meu instinto é infalível (EH/EH, Porque escrevo livros tão bons, §4, KSA 6.304)30 30 Tradução modificada. . Em linhas gerais, “bom” é o estilo que, ao ser submetido à leis próprias, busca, através de signos e de ritmos apropriados, impor forma ao caos dos sentimentos interiores para comunicá-los de maneira clara e concisa.

Ao submeter o pathos à lei de seu próprio estilo, Nietzsche tem em vista à criação e a comunicação de um ethos, o que dá a sua arte do estilo um sentido eminentemente ético. Diferentemente do estilo de décadence, que transmite à alteridade a doença desagregadora do artista, esta perspectiva visa, a partir da construção de um ethos próprio, comunicar uma forma (Form) ou uma imagem (Bild) clara do seu caráter. Desse modo, o estilista nietzschiano opera uma formação (Bildung) ao mesno tempo estética e ética do seu leitor, não no sentido prescritivo de transmiti-lo preceitos estéticos e morais, mas sim no registro criativo de exortá-lo à grande tarefa de tornar-se o que se é. Eis o sentido edificador e terapêutico da arte estilística de Nietzsche.

Referências

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  • WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra História das Músicas. São Paulo: Companhia das letras, 1989.
  • 1
    Acerca da utilização nietzschiana do termo fisiologia, seguimos a interpretação de Wilson Frezzatti que, em seu A Fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia, afirma: “A palavra ‘fisiologia (…) denota o que determina de modo somático os homens, isto é, as funções orgânicas ou o afetivo no sentido imediato corpóreo (as afecções) - em suma, fisiológico é o relativo ao corpo ou à unidade orgânica” (Frezzatti, 2006FREZZATTI Junior, Wilson Antonio. A Fisiologia de Nietzsche: A Superação da Dualidade Cultura/Biologia. Ijuí: Editora Unijuí, 2006., p.25). Esta também é compreensão que Müller-Lauter tem do termo ao afirmar que, embora Nietzsche entenda a palavra ‘fisiologia’ no contexto de seu uso pelas ciências de sua época, ele também opera um deslocamento do sentido para o âmbito de sua própria filosofia, chegando “a interpretar os processos fisiológicos como a luta de quanta de potência que ‘interpretam’”. (Müller-Lauter, 1999, p. 21-22).
  • 2
    Entre os pensadores e obras que trataram o estilo como um problema fundamental para o pensamento filosófico de Nietzsche podemos mencionar W. Dilthey, em Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen Systemen (1919), Bertrand Russell, em seu History of Western Philosophy (1945), Georg Lukács, em Die Zerstiirung der Vemunf (1952), Karl Jaspers, em seu Nietzsche, Heidegger, nos seus cursos sobre Nietzsche de 1936 a 1946, Karl Löwith, em seu Nietzsche: philosophie de l’éternel retour du meme, Gilles Deleuze em seu Pensamento nômade e também Nietzsche e a filosofia, Jacques Derrida em Esporas: os estilos de Nietzsche e em Políticas da amizade, M. Blanchot em L’absence du livre, Lacoue-Labarthe em Nietzsche et la réthorique, entre outros.
  • 3
    Karl Spitteler foi um crítico de música e teatro suíço, discípulo de Overbeck, escritor talentoso e futuro prêmio Nobel. No começo do ano de 1888, quando os livros de Nietzsche ainda não eram bem recebidos na Alemanha, Spitteler escreveu um artigo sobre obra do filósofo alemão no periódico suíço Bund, de Berna. Neste artigo, o crítico se ocupou, dentre outros assuntos, das questões formais e estilísticas do texto nietzschiano. Juntamente com O Perigoso livro de Nietzsche, artigo de V. Widmann dedicado a Para além de bem e mal e publicado no mesmo periódico, as considerações de Spitteler foram recebidas por Nietzsche com grande entusiasmo: “um maximum em minha vida” (EH/EH Por que escrevo livros tão bons, §1, KSA 6.298), escreverá o filósofo. Para Nietzsche, Spitteler teria tratado o seu Zaratustra de “exercício superior de estilo”, não obstante, o crítico não poupou o filósofo ao exigir a mesma preocupação com o conteúdo (Cf. EH/EH Por que escrevo livros tão bons, §1, KSA 6.298). O artigo de Spitteler dará início a uma série de correspondências entre o intelectual suíço e o filósofo alemão que perdurará até o fim da vida produtiva de Nietzsche.
  • 4
    Em seu artigo da Bund, Spitteler havia afirmado que o estilo que Nietzsche utilizara em Genealogia da moral era o contrário de um bom estilo.
  • 5
    No contexto da discussão sobre o estilo do século XVIII, o Discours sur le Style de Georges-Louis L. de Buffon é considerado um testemunho de uma noção de estilo fundamentalmente iluminista. Pronunciado na ocasião de sua recepção na Academia Francesa no ano de 1753, o Discurso de Buffon tende a valorizar as incipientes noções da estética moderna, como as de gênio criador e de gosto, em detrimento das antigas noções normativas da arte retórica, como as de harmonia, proporção e o belo matemático. Dessa forma, no que diz respeito à concepção de estilo, quanto mais se exaltava a expressividade individual e original do artista ou escritor, menos sentido faziam as regras e o decoro da história até o ponto de serem escamoteadas e transformadas em meros instrumentos a serviço do gênio criador. Em seu Discours lê-se: “As regras, dizíeis-me ainda, não podem suprir o gênio; se este faltar, elas serão inúteis. Escrever bem é, ao mesmo tempo, bem pensar, bem sentir e bem reproduzir; é ter, ao mesmo tempo, o espírito, alma e gosto. O estilo supõe a reunião e o exercício de todas as faculdades intelectuais. As ideias, só por si, formam o fundo do estilo, a harmonia das palavras é tão-só o acessório e depende apenas da sensibilidade dos órgãos [...]” (Buffon, 2011, p. 10-11). Produzido a partir de uma operação que envolve todas as faculdades intelectuais do indivíduo, o estilo, para Buffon, consiste na capacidade do homem para dar forma aos seus pensamentos. Logo, o fundamento do estilo não está em cânones clássicos da composição, isto é, não se encontra em princípios objetivos como a harmonia e a proporção, mas sim na subjetividade do autor, em suas ideias e pensamentos.
  • 6
    Cf. ZA/ZA Dos desprezadores do corpo, KSA 4.39.
  • 7
    Georg Brandes foi um intelectual e professor da Universidade de Copenhague. Renomado estudioso da literatura europeia do século XIX, Brandes se interessou pelo que chamou de “radicalismo aristocrático” de Nietzsche, bem como pelas críticas que o filósofo alemão dirigiu aos ideais ascéticos e aos valores democráticos, expressão notória da ascensão do medíocre e do numeroso, numa palavra, da massa. Numa carta de 26 de novembro de 1887, Brandes escreve a Nietzsche: “É uma honra para mim, ser conhecido por você, e conhecido de maneira que você pôde desejar ganhar em mim um leitor. Um novo e original espírito sopra para mim de seus livros. Eu ainda não compreendi completamente oque eu li; eu nem sempre posso acompanhar sua intenção. Mas eu encontrei muito do que se harmonize com minhas próprias ideias e simpatias, a depreciação dos ideais ascéticos e a profunda repugnância para com a mediocridade democrática, seu aristocratismo radical” (KSB, 8.246-247).
  • 8
    Já em seus escritos juvenis Nietzsche avalia o registro utilitário e convencional sobre o qual se forma a linguagem, bem como a impossibilidade de comunicar vivências singulares a partir de uma linguagem e de um estilo ordinários. Sobre o tema da linguagem no jovem Nietzsche, Cf. Claudia Crawford, 1988.
  • 9
    No parágrafo 354 de A Gaia Ciência, Nietzsche considera o pensar que se torna consciente como sendo a parte mais superficial e pior do pensamento, já que ocorre em signos de comunicação. Isto significa que à consciência está interditado o acesso ao mundo subterrâneo das vivências singulares e estados anímicos particulares e, por conseguinte, interdita também a comunicação destes sentimentos profundos. O filósofo escreve: “Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é natureza comunitária e gregária; que, em consequência, apenas em ligação com a utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente e que, portanto, cada um de nós, com toda a vontade eu tenha de entender a si próprio de maneira mais individual possível, de ‘conhecer a si mesmo’, sempre traz à consciência justamente o que não possui de individual, o que nele é ‘médio’ -que nosso pensamento é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência (…)” (FW/GC, V, §354, KSA 3.590). Sobre este tema, Cf. Alexander Gonçalves, 2018GONÇALVES, Alexander. Escrever o que se é: considerações de Nietzsche sobre linguagem e estilo. Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v.9, n.2, p.43-55, jul./dez. 2018..
  • 10
    Em Genealogia da Moral, Nietzsche escreve: “Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos (…) - para nós mesmos somos ‘homens do desconhecimento’” (GM/GM Prólogo, KSA 5.247).
  • 11
    Cf. FW/GC, V, §354, KSA 3.590.
  • 12
    Cf. Carta a Josef Viktor Widmann, 4 de fevereiro de 1887,EpistolarioV.
  • 13
    Já em póstumos da década de setenta encontramos apontamentos sobre este tema.
  • 14
    Cf. Müller-Lauter, 1999, p. 12.
  • 15
    Para Piazzesi (2003, p. 3)PIAZZESI, Chiara. Nietzsche: fisiologia dell’arte e décadence. Lecce: Conte Editora, 2003., os Essais de Bourget foram inicialmente o guia de Nietzsche em sua incursão no mundo da décadence, um interlocutor que permanecerá, ainda que velado, em toda a sua reflexão sobre a arte da décadence. Estes ensaios consistem numa reunião de estudos de crítica literária que traçam progressivamente um amplo e detalhado quadro da cultura, da arte e da psicologia de uma época. Com os seus ensaios, Bourget pretendia ir além dos limites da crítica literária na medida em que procura entender a crise na literatura como sendo a expressão superficial de um mal-estar de proporção muito maior. A comentadora escreve: “a literatura é o documento de uma transformação cultural que se manifesta antes de tudo na evolução psicológica e moral de uma geração de homens (Piazzesi, 2003PIAZZESI, Chiara. Nietzsche: fisiologia dell’arte e décadence. Lecce: Conte Editora, 2003., p. 3).
  • 16
    Num de seus últimos apontamentos póstumos, Nietzsche caracteriza Bourget como “(…) alguém de raça profunda (…) quem, com muito, e desde si mesmo mais se aproximou de mim” (NP/FP 1888-1889 25 [9], KSA 13.634). E numa carta destinada a Malvida von Meysenbug, Nietzsche menciona a necessidade de encontrar um “fino e mesmo refinado estilista” para a tradução de O Caso Wagner para o francês. Bourget poderia ser o seu tradutor, afirma, não fosse o seu pleno desconhecimento em questões de música. (Cf. A Malwida von Meysenbug, 04 de outubro de 1888, KSB 4. 8446-48).
  • 17
    A seguinte passagem de O Caso Wagner é quase uma transcrição de um fragmento do texto de Bourget no qual o estilo de décadence aparece descrito nos seguintes termos: “Um estilo de décadence é aquele em que a unidade do livro se decompõe para dar lugar à independência da página, em que a página se decompõe para dar lugar à independência da frase e a frase, para dar lugar à independência da palavra. Na literatura atual, multiplicam-se os exemplos que corroboram essa fecunda verdade” (Bourget apud Müller-Lauter, 1999, p. 12).
  • 18
    Num fragmento póstumos redigido entre novembro de 1887 e março de 1888, Nietzsche escreve: “Não poder manter uma determinada ótica constitui o estilo da música wagneriana: estilo, usando aqui a palavra no sentido de incapacidade de estilo” (NP/FP 1887-1888, 11[321], KSA 13.134).
  • 19
    A noção de totum ponere é proveniente da estética clássica, particularmente das artes poética e retórica. Nesta acepção, a realização do belo na obra de arte depende da capacidade do artista em criar uma totalidade, uma obra de arte em que as partes estejam ordenadas de modo a compor um todo harmônico. O ideal clássico do totum ponere influenciará de maneira decisiva a crítica nietzschiana aos escritores alemães de sua época e, de modo particular, ao teólogo e escritor David Strauss em sua Primeira consideração extemporânea. Sobre a noção de belo na poética antiga, Cf. Tringali, 1993TRINGALI, D. A arte poética de Horácio. São Paulo: Musa Editora, 1993., p. 540.
  • 20
    Em sua primeira extemporânea, Nietzsche compreende a incapacidade para a unidade de estilo como sendo a característica geral do filisteu da formação, logo é também a de Strauss (Cf. GONÇALVES, SOUZA, 2017______; SOUZA, Antonio Carlos. O jovem Nietzsche e as instituições de formação alemãs. Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 24, n. 3, pp. 533-551, set./dez. 2017., p.24). Seu modo de proceder consiste em produzir um mosaico de estilos inspirados em autores autenticamente clássicos e geniais, como Voltaire e Lessing, o que tem a pretensão de fazer enxergar nele mesmo também um gênio e um clássico. Sobre a relação entre estilo e formação no jovem Nietzsche, Cf. Gonçalves; Souza, 2017______; SOUZA, Antonio Carlos. O jovem Nietzsche e as instituições de formação alemãs. Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 24, n. 3, pp. 533-551, set./dez. 2017., pp. 533-551.
  • 21
    Opondo-se à música tradicional tonal, que se caracteriza pelo uso da escala diatônica (oitava de sete notas), o cromatismo (chroma, cor) é uma técnica musical que se utiliza da escala cromática. Baseada em uma oitava de 12 semitons, a escala cromática consiste numa linha ascendente ou descendente de semitons. Foi sobretudo a partir de Tristão e Isolda que o uso do cromatismo se tornou intenso no século XIX, abrindo, desde então, o caminho para a música atonal e todo o vanguardismo musical do século XX (Cf. Latham; Sadie, 1994SADIE, Stanley (Ed.). Dicionário Groove de Música: edição concisa. Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994., p. 239).
  • 22
    Cf. NW/NW, O lado perigoso de Wagner, §1, KSA 6.421.
  • 23
    Tendo em vista a relação entre rhythmós e ethos na épica e a lírica grega, Werner sugere, para além da paidéia do homem grego, um ritmo na constituição da própria cultura grega. O modo como o grego compreendeu a natureza como um curso regular e rítmico, foi decisivo para o desenvolvimento de sua filosofia e de sua história. O filólogo alemão escreve: “A concepção de onde dimana este ethos soberano eleva-se acima do conselho simplesmente prático de guardar a moderação na vida do dia-a-dia, até a intuição de um ‘ritmo’ na totalidade da existência humana. Arquíloco fundamenta nela a sua exortação ao autodomínio e a admoestação perante toda a extravasão sentimental, na alegria e na dor, isto é, perante a pressão exterior, perante a felicidade ou a desventura provenientes do destino. Já se pode, talvez, descortinar neste ‘ritmo’ algo do espírito da filosofia jônica da natureza e do pensamento histórico que, pela primeira vez, caminha para uma intuição objetiva de uma legalidade no curso natural da existência” (Jaeger, 1995JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995., p. 160-161).
  • 24
    Este trabalho de coerção do elemento rítmico na estética antiga foi exposta por Nietzsche na metáfora volteiriana do “dançar acorrentado” (In Ketten-tanzen). Em O andarilho e sua sombra, o filósofo escreve: “ - Em cada artista grego devemos perguntar: qual é a nova coação que ele se impõe e que o torna atraente para seus contemporâneos (de modo que acha imitadores)? Pois o que se denomina ‘invenção’ (na métrica, por exemplo) é sempre esse grilhão auto-imposto. ‘Dançar acorrentado’, tornar a coisa difícil para si e depois estender sobre ela a ilusão da facilidade - eis o artifício que eles querem nos mostrar” (WS/AS §140, KSA 2.612).
  • 25
    Esta compreensão cósmica da noção de ritmo também é assumida por Antônio Cândido em O estudo analítico do poema: “Podemos chamar de ritmo a cadência regular definida por um compasso e, noutro extremo, a disposição das linhas de uma paisagem. No primeiro caso, ritmo seria, restritamente, uma alternância de sons; no segundo, uma manifestação da simetria ou da unidade criada pela combinação de formas. Em ambos os casos, seria a expressão de uma regularidade que fere e agrada os nossos sentidos. Sob o aspecto mais geral, ele apareceria como uma espécie de princípio de ordem do universo, e assim vemos Guilherme de Almeida, no seu estudo sobre Ritmo, elemento de expressão, falar na tradução poética dos ritmos da terra, de fogo, da água, do vento; e do olfato, da vista, do tato, do gosto e da audição” (Cândido, 2006CÂNDIDO, Antônio. O Estudo Analítico do Poema. São Paulo: Humanitas, 2006., p.67).
  • 26
    No que concerne à história da música ocidental, é quase um consenso entre os historiadores atribuir às inovações wagnerianas o lugar mais alto no processo de dissolução dos cânones da música tradicional. Segundo Juan Carlos Paz: “O século XIX constitui um período de transformação da consciência musical caracterizado por uma condensação progressiva do espaço sonoro. Esta época oferece toda uma série de formas transitórias que se projetam para resoluções não previstas (…) Wagner personifica o ponto culminante deste processo de liquidação. Depois dele, é impossível a volta ao quadros e aos dogmas clássicos (…)” (PAZ, 1977, p.72). Sobre o caráter inovador da música de Wagner, cf. Também Wisnik, 1989WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra História das Músicas. São Paulo: Companhia das letras, 1989., pp.113-70.
  • 27
    Cf. EH, Porque escrevo livros tão bons, § 4, KSA.
  • 28
    Cf. Carta a Josef Viktor Widmann, 4 de fevereiro de 1887,Epistolário V.
  • 29
    Grande estilo foi um termo utilizado pelo classicismo alemão para designar, primeiramente, as características formais e éticas encontradas na arte estatuária grega, sobretudo nas obras de artistas como Fídias e Policleto. Winckelmann acredita que estes artistas procuravam a beleza ideal na perfeita harmonia e proporção entre todas as partes da obra, bem como no destaque da expressão da figura representada. É característico do grande estilo o traço impessoal, equilibrado e austero, pois o que se busca é representar a magnitude de um caráter divino e a aretê ideal. Para tanto, procura-se excluir da representação artística o sentimento individual e as violentas paixões. Winckelmann escreve: “Agora, se o princípio fundamental do grande estilo era, como parece, representar o semblante e atitude dos deuses e heróis como livres de emoção e não agitados por perturbação interior, num equilíbrio de sentimento e com serenidade; estado de espírito constante; vemos então por que uma certa graça foi desejada; mesmo que ainda não tenha sido feita nenhuma tentativa de apresentá-la” (Winckelmann, 2005WINCKELMANN, J.J. Essays on the philosophy and history of art. Vol. III. Trans. Curtis Bowman. New York: Continuum, 2005., p. 135).
  • 30
    Tradução modificada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2021
  • Aceito
    21 Nov 2021
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