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De Dioniso a Bismarck. Tragédia e Política em Nietzsche* 1 Baeumler, 1931, p. 88. NT: Quanto à tradução dos textos de Nietzsche: Para a Consideração Extemporânea II, foi utilizada a versão de André Itaparica, da editora Hedra. Para O Anticristo, foi utilizada a tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, da Abril Cultural. Para os textos (Humano, demasiado humano, A gaia ciência, Genealogia da Moral e Crepúsculo dos Ídolos), foram utilizadas as traduções de Paulo César de Souza, da Companhia das Letras. Os fragmentos póstumos, e demais textos aqui não indicados, foram vertidos ao português pelos tradutores.

From Dionysus to Bismarck. Tragedy and Politics in Nietzsche

Resumo:

Partindo da análise realizada por Alfred Baeumler, em Nietzsche der Philosoph und Politker (1931), o artigo pretende ressaltar a inspiração política de O nascimento da tragédia. A distinção de Baeumler entre o elemento germânico e o alemão - que teria por meta justificar a crítica de Nietzsche ao Estado e é quase ausente na obra de Nietzsche - é objetada aqui. O artigo sublinha a presença de uma concepção política em O nascimento da tragédia, que gira em torno o conceito de Gemeinschaft, definindo uma comunidade cultural no âmago de Dioniso. A oposição nietzschiana entre Estado e cultura está na origem da crítica à política de Bismark.

Palavras-chave:
Bauemler; Estado; cultura; Dioniso; Bismark

Abstract:

Starting from the analysis formulated by Alfred Baeumler inNietzsche der Philosph und Politker(1931), the essay intends to highlight the political inspiration ofThe Birth of the Tragedy, by Friedrich Nietzsche. Baeumler’s distinction between the Germanic element and the German element - which would intend to justify Nietzsche’s critique of the State and is almost absent in all of Nietzsche’s work - is objected here. The essay underlines the presence of a political conception inThe Birth of Tragedy, gathered around the concept ofGemeinschaftwhich defines a cultural community at the heart of Dionysus. The Nietzschean opposition of State andKulturis at the origins of critique of Bismarck’s politics.

Keywords:
State; Kultur; Dionysus; Bismark

Pode-se afirmar que o reconhecimento do alcance político da filosofia de Nietzsche acompanha, desde o início, a interpretação de seu pensamento. Não é por acaso que as grandes interpretações dos anos 30 do século passado - as de Jaspers, Löwith e Heidegger -, que reconhecem plena dignidade filosófica ao pensamento de Nietzsche, tornando-o, de fato, um filósofo do séc. XIX, foram precedidas pelo livro de Alfred Baeumler, através do explícito título Nietzsche der Philosoph und Politiker (1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931.).

Neste pamphlet, Baeumler liga o Nietzsche “político” à sua ideia de Estado e propõe uma fundamental distinção entre o elemento germânico e aquele propriamente alemão; onde, por alemão, ele compreende “a última imagem daquilo [...] que, no curso da nossa história, cresceu sobre o solo germânico sob a influência cristã-romana” 1 1 Baeumler, 1931, p. 88. NT: Quanto à tradução dos textos de Nietzsche: Para a Consideração Extemporânea II, foi utilizada a versão de André Itaparica, da editora Hedra. Para O Anticristo, foi utilizada a tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, da Abril Cultural. Para os textos (Humano, demasiado humano, A gaia ciência, Genealogia da Moral e Crepúsculo dos Ídolos), foram utilizadas as traduções de Paulo César de Souza, da Companhia das Letras. Os fragmentos póstumos, e demais textos aqui não indicados, foram vertidos ao português pelos tradutores. . Baeumler pretende explicar “a constante tensão” de Nietzsche com relação àquilo que o termo Deutschland designa, referindo-se “ao fundamento germânico do ser alemão”; especificando logo depois que, todavia, onde “o ser alemão alcança um ápice histórico, ali o elemento germânico vem à luz com força particular”2 2 Baeumler, 1931, p. 88. . Neste contexto, Baeumler apoia a sua proposta de um Nietzsche profeta do germanismo que, se ainda não é a instrumentalização de um Nietzsche antecipador do nacional-socialismo, apresenta, por certo, um pressuposto3 3 Tornado o filósofo oficial do regime nazista, em um ensaio publicado em 1935 - Nietzsche und der Nationalsozialismus - Baeumler celebra Hitler como aquele que realizou o “autêntico” significado político do pensamento de Nietzsche. O ensaio termina com essas palavras: “E quando bradamos à esta juventude: Heil Hitler!, com esse grito saudamos ao mesmo tempo Friedrich Nietzsche” (Baeumler, 1937, p. 294). .

Na realidade, é difícil encontrar traços consistentes da distinção entre germânico e alemão na obra de Nietzsche. Desta, porém, Baeumler faz uso para explicar a radical crítica nietzschiana da ideia de Estado, de outro modo difícil de conjugar, coerentemente, com o retrato de um Nietzsche político que ele se esforça para delinear. Isso tem, ao menos, o mérito de pôr em evidência a importância, embora no sentido negativo, que a concepção do Estado assume desde o início na filosofia de Nietzsche: “A chave para compreender todas as concretas exigências e finalidades de Nietzsche está na sua visão do Estado”. Todavia, a ideia nietzschiana de Estado seria “germânica e não alemã4 4 Baeumler, 1931, p. 88. . A radicalidade da sua crítica se explicaria com base nessa referência a uma origem, também do ponto de vista histórico, primordial e mais essencial com relação ao elemento alemão. No germânico, estaria o fundamento da diversidade das estirpes alemãs as quais, em nome da tutela dessa diversidade, sempre se opuseram à edificação de um Estado. Se o mérito de Bismarck consistiu em ter superado “a antiga obstinação germânica que se opõe ao Estado”, a sua obra de unificação das estirpes germânicas no Estado alemão “permanece desprovida da íntima verdade”; ao ponto que, “se enfim Lutero e Henrique VI se encontrassem um ao lado do outro, não se reconheceriam”5 5 Baeumler, 1931, p. 89. . E isso porque o Estado de Bismarck não afunda as próprias raízes no elemento germânico, mas sim na tradição cristã-romana: Bismarck fora o “criador e o guia” (Schöpfer und Füher) do “Estado nacional e cristão” 6 6 Baeumler, 1931, p. 120. .

Em uma palavra, aquilo que Baeumler repreende em Bismarck é ter criado o Estado alemão unicamente sob o aspecto político e não, também, sob o cultural: o que seria possível apenas recuperando aquela “íntima verdade” (innere Wahrheit) representada através do elemento germânico. Isto assume, na crítica de Nietzsche, a forma da oposição entre Estado e Kultur, em que caberia nesta última a tarefa de produzir a coesão que o Estado político criado por Bismarck - aquele Estado que Nietzsche “sente como uma instituição não alemã, mas romana”7 7 Baeumler, 1931, p. 90. - não foi capaz de produzir. Na crítica nietzschiana do Estado volta a viver, “forte como nos mil anos precedentes”, a antiga “obstinação” dos povos germânicos que toma a forma de uma “oposição ao novo Estado” 8 8 Baeumler, 1931, p. 89. : “Pela Kultur, contra o Estado; fora essa a sua solução” 9 9 Baeumler, 1931, p. 120. .

Para reassumir a posição de Nietzsche sobre toda a questão, Baeumler parte, por assim dizer, do fim, citando uma conhecida passagem de Crepúsculo dos ídolos na qual Nietzsche se posiciona contra o “Estado de cultura” (Cultur-Staat) que, escreve, “é somente uma ideia moderna”:

A cultura e o Estado - não haja engano a respeito disso - são antagonistas: [...] Um vive do outro, um prospera à custa do outro. Todas as grandes épocas da cultura são tempos de declínio político: o que é grande no sentido cultural é apolítico, mesmo antipolítico (GD/CI O que falta aos alemães 4, KSA 6.106).

Essa crítica do Estado de cultura tem o seu alvo - embora não declarado, mas suficientemente reconhecível - em Hegel. Como observa Baeumler, “o filósofo dessa ‘culturalidade’ (Gebildetheit) que participou distraidamente da fundação do Reich, o espírito representativo da classe intelectual burguesa alemã, é ainda, nos anos 1870, Hegel”10 10 Baeumler, 1931, p. 133. . Como foi dito, esse posicionamento não é nada mais do que o êxito final de uma reflexão que vem de longe, desde os primeiros documentos do pensamento de Nietzsche11 11 Já na terceira conferência Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, Nietzsche observa: “Aliás, um ‘Estado cultural’ (Kulturstaat), como dizem agora, que faz tais reivindicações” - ou seja a demanda de um número excessivo de professores, que demonstra apenas uma objetiva falta de cultura - “é um fenômeno recente e apenas no último meio século que ele se tornou algo ‘evidente’”; isto é, cai no âmbito de todas as coisas que pretendem ser entendidas por si, “mas, se dissermos a verdade, em si mesmos eles não são imediatamente compreendidos” (BA/EE III, KSA, 1, 706 s). E na Consideração Extemporânea III, Schopenhauer como educador: “Onde hoje se fala de ‘estado de cultura’, vemos que está posta a tarefa de libertar as forças espirituais de uma geração na medida em que assim possam servir e beneficiar as instituições existentes”; no entanto “Essa libertação é ao mesmo tempo, e ainda mais, um acorrentamento” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.389). . De fato, essa reflexão tem a sua origem já em O Nascimento da Tragédia e em seus documentos contemporâneos. Como observa Baeumler, essa obra, “é certamente dedicada a um problema estético: mas o problema da cultura, que o sustenta, é tudo menos apolítico (unpolitisch)”12 12 Baeumler, 1931, p. 123. . No formato editorial definitivo que Nietzsche dá à obra, publicada em janeiro de 1872, pode ser difícil identificar uma possível linha de leitura política. Todavia, já no Prefácio à Richard Wagner - que abre a primeira edição do livro e que Nietzsche substituirá, na terceira edição de 1886, com a Tentativa de autocrítica - se percebe a alusão a um tema que não parece encontrar sequência no desenvolvimento do texto. Nietzsche relembra a Wagner como os pensamentos desenvolvidos no livro começaram a se apresentar a ele no mesmo período do escrito de Wagner sobre Beethoven, “isto é, entre os terrores e as grandezas da guerra que tão logo eclodiu”13 13 Essa expressão certamente demonstra, segundo Baeumler, como Nietzsche “vê o próprio problema em uma profunda conexão com os acontecimentos políticos” (Baeumler, 1931, p. 128). . Trata-se do conflito franco-prussiano de 1870-71 que fora, de fato, o ato de nascimento do Reich. Que a reflexão sobre a tragédia no curso de um evento histórico similar pudesse ser mal compreendida como “contraste entre comoção patriótica e vontade estética, entre brava seriedade e jogo despreocupado”, mostra “com quão grave problema alemão nós temos que lidar, problema que é por nós levado precisamente em meio às esperanças alemãs, quase uma inspiração [...] uma inversão”. O protesto sucessivo contra aqueles que veem em um “problema estético” nada mais que “um retinido de guizos” (Schellengeklingel), dos quais se poderia dispensar “diante da ‘seriedade da existência’” (GT/NT, Prefácio, KSA 1.23 ss.), indica com clareza que o grave problema alemão reside na incapacidade, que precisamente o êxito vitorioso dessa guerra destaca, de conciliar grandeza política e militar e grandeza cultural; na dissociação entre potência militar, que compete à Prússia e, então, ao novo Reich, e hegemonia cultural, que cabe à França apesar da derrota. Esse tema, sobre o qual não podemos aqui nos deter devido os limites de espaço, é amplamente tratado por Nietzsche na Considerações extemporâneas I - David Strauss, o devoto e o escritor. Desse escrito, todavia, não se pode deixar de citar ao menos a definição do conceito de Kultur, o qual o próprio Baeumler chama atenção14 14 Baeumler, 1931, p. 119. : “Cultura é sobretudo unidade de estilo artístico em todas as manifestações vitais de um povo” (DS/Co. Ext. I 1, KSA 1.163). Dessa definição, Baeumler conclui que a crítica nietzschiana do Estado foi movida principalmente a partir de um interesse de natureza estética e psicológica. Ele sustenta essa conclusão com uma citação15 15 cf. Baeumler, 1931, p. 130. da versão anterior do Prefácio a Richard Wagner, então substituída com aquela efetivamente publicada, na qual Nietzsche, depois de ter declarado reprovar com “horror” o “preconceito segundo o qual o povo, ou até mesmo o Estado, deva ser o ‘propósito em si’”; no entanto, admite temer da mesma forma “o desejo de buscar o escopo da humanidade no futuro da humanidade”. O único e autêntico propósito de uma civilização não pode visar “nada além do que a preparação e a procriação do gênio” e, nesse sentido, também o Estado, “apesar de sua origem bárbara”, não sendo mais que “um meio para este fim”, pode se tornar útil. Essa “única força política produtiva na Alemanha”, que “agora alcançou a vitória de maneira mais extraordinária” - uma evidente alusão ao êxito da guerra franco-prussiana - decreta o fim daquilo que Nietzsche chama de “o verdadeiro adversário (Gegner) de toda mais profunda filosofia e consideração da arte, um estado de doença”. Este adversário tem um nome inequivocamente político: “Aquela doença chamada ‘liberalismo’ [...]. Todo o liberalismo, construído sobre uma sonhada dignidade do homem, da espécie homem, sangrará até a morte, junto com seus irmãos mais rudes, por causa dessa potência inflexível que foi mencionado acima” (NF/FP, fevereiro 1871 11[1], KSA 7.354-5); o que leva Baeumler a supor que Nietzsche estava depositando a própria esperança, neste aspecto, “na potência guerreira da Prússia” 16 16 Baeumler, 1931, p. 131. .

Portanto, segundo Baeumler, o que teria distraído Nietzsche de suas supostas intenções políticas, desviando a sua atenção em direção a um propósito puramente estético que termina por conferir o próprio caráter distintivo e totalizante a O Nascimento da Tragédia? O responsável por esse desvio seria a amizade com Wagner. Na realidade, observa Baeumler, “quando o jovem Nietzsche fala de arte, ele não está tão distante da ideia de Estado como poderia parecer”. E, para confirmar, Baeumler cita o uso de expressões como “A obra de arte trágica. O homem trágico. O Estado trágico”, “citadas uma ao lado da outra” 17 17 Na realidade essas três expressões ocorrem juntas apenas no fragmento 5 [95] de setembro de 1870 a janeiro de 1871 (KSA 7.119). . “É apenas à amizade de Nietzsche com Wagner - prossegue Baeumler - que seus pensamentos sobre os gregos não assumiram uma inclinação diferente”. Tudo devia se resolver no primado do estético, pois essa era a preocupação de Wagner, à qual Nietzsche vem em socorro porque “o amigo estava em perigo!”. Por essa razão “o planejado ‘livro sobre os gregos’ apareceu-nos sob uma forma puramente estética” 18 18 Baeumler, 1931, pp. 123-4. .

O “perigo” ao qual Wagner estaria exposto estava provavelmente ligado à sua ambição de superar o sucesso popular, que a sua obra tinha obtido, para encontrar acolhimento junto a classe intelectual, da qual considerava que o jovem e promissor professor da Basiléia, aluno de um dos príncipes da filologia acadêmica, Friedrich Ritschl, fosse um digno representante. Com essa preocupação, Baeumler explica o fato de que Wagner tivesse recomendado Nietzsche a expurgar através da primeira redação de O Nascimento da Tragédia uma vasta discussão que dizia respeito, justamente, à origem e à função do Estado: “Uma ampla seção sobre o Estado grego fora assim suprimida”19 19 Baeumler, 1931, p. 124. Nos dias 1 a 4 de janeiro de 1873, Cosima anota nos seus diários esta frase de Wagner: “O manuscrito do professor Nietzsche não nos alegra, às vezes se expressa duramente desajeitado, mas ainda com grande profundidade do sentimento. Queremos que ele lide preferencialmente com as questões relativas aos Gregos” (1976, p. 623). . Esta seção é hoje conhecida com o título de “Manuscrito de Lugano”, porque foi escrita por Nietzsche durante uma temporada na cidade suíça em companhia da irmã Elisabeth a partir da metade de fevereiro de 1871. Por ocasião do natal de 1872, Nietzsche retomará o texto, com poucas mudanças insignificantes, sob o título de O Estado grego e o compilará em um caderno, no qual reúne outros quatro textos, que os intitula como Cinco prefácios para cinco livros não escritos20 20 cf. CV/CP O Estado grego, KSA 1.764-77. , dando-os de presente para Cosima Wagner.

Nesse escrito, Nietzsche reconhece ao Estado - por si só “de nascimento infame” e “pela maior parte dos seres uma fonte ininterrupta de inquietudes” - o caráter de uma “terrível necessidade”; sem ele “a natureza não conseguiria alcançar através da sociedade a sua própria redenção na aparência, no espelho do gênio” (NF/FP Início de 1871 10[1], KSA 7.343; cfr. CV/CP O Estado grego, KSA 1.771). O Estado é, portanto, justificado somente na medida em que - graças a seus instrumentos de coerção e de divisão, entre os quais Nietzsche inclui a guerra e a escravidão - consegue produzir o gênio. Com razão Baeumler identifica, no reconhecimento desta natureza intrinsecamente má do poder do Estado, um eco das conferências de Jacob Burckhardt sobre a história, ouvidas por Nietzsche na Basileia21 21 cf. Baeumler, 1931, p. 124. . Burckhardt tinha afirmado que não se pode alimentar dúvidas sobre a origem do Estado, “dado que surge por si mesmo através da desigualdade das atitudes humanas”, da qual o Estado não é nada além “do que a sua sistematização”. De fato, há na base do Estado um dado que é indiscutível para Burckhardt: “A violência é sempre o prius22 22 Burckhardt, 1982, p. 257. . Percebe-se um eco pontual dessas palavras no escrito de Nietzsche, onde ele identifica a origem da potência do Estado no direito que concede o vencido - “com a sua mulher e os seus filhos, com todos os seus bens” - ao vencedor: “A violência fornece o primeiro direito, e não existe um direito que não se fundamente sobre a violência” (NF/FP Início 1871, 10[1], KSA 7.342; cfr. CV/CP O Estado grego, KSA 1.770)23 23 O quanto Nietzsche está convencido dessa afirmação é mostrado pela maneira como ele a retoma em Genealogia da moral: “o ‘direito’ foi por muito tempo um vetitum [algo proibido], um abuso, uma inovação, apareceu com violência, como violência, à qual somente com vergonha de si mesmo alguém se submetia” (GM/GM, III, 9, KSA 5.358). . Por outro lado, o Estado necessita dessa violência, uma vez que, embora admitindo que o impulso à sociabilidade seja igualmente dividido entre todos os homens, “é, porém, apenas a mão de ferro do Estado que mantêm unidas, deste modo, as grandes massas” (NF/FP Início 1871 10[1], KSA 7.342; cfr. CV/CP O Estado grego, KSA 1.769).

Portanto, se na concepção de Nietzsche o Estado continua a ser apenas um meio para a produção do gênio, pelo qual “a arte é o propósito, mas a estrada que conduz a ela passa através do Estado”24 24 Baeumler, 1931, p. 126. , o que é suficiente, de acordo com Baeumler, para conjecturar uma aceitação nietzschiana da ideia de Estado. As considerações realizadas na seção suprimida de O Nascimento da Tragédia demonstrariam que o pensamento de Nietzsche “poderia tomar a via que conduz ao Estado”. Deste modo, a vontade de potência não seria mais “a obra de um solitário”, mas sim o encontro entre a vocação heraclitiana da filosofia de Nietzsche e a realidade estatal alemã. A tal ponto que “Bismarck e Nietzsche não se tornariam inimigos” 25 25 Baeumler, 1931, p. 125. .

A dificuldade de reconhecer um perfil político a O Nascimento da Tragédia dependeria, portanto, essencialmente, de acordo com Baeumler, do corte ao qual Nietzsche se vê forçado pela sujeição nos confrontos do amigo músico. Na realidade, Baeumler não percebe o quanto a obra - na versão efetivamente publicada e a despeito da supressão do “Manuscrito de Lugano” - contém uma ideia política precisa que, novamente, se posiciona a favor da Kultur e contra o Estado. Além disso, como se notará, nunca aparece, nas reflexões de Nietzsche relatadas, qualquer referência a um suposto elemento originário germânico. Que ao “Manuscrito de Lugano”, na versão encadernada e oferecida a Cosima, ele dera o título de O Estado grego, não é, claramente, apenas uma questão nominal. O modelo são os gregos e não as antigas estirpes germânicas. Bastará recordar, a este respeito, que a mesma definição da cultura como “unidade de estilo artístico”, proposto na Extemporânea I, é retomada ao fim da Extemporânea II, Sobre a utilidade e desvantagem da história para a vida, e indicada como o meio pelo qual os gregos conseguiram superar a sua disparidade cultural e, por isso, apresentada como modelo aos alemães modernos: “Houve séculos em que os gregos se encontravam no mesmo perigo em que nos encontramos, ou seja, de sucumbir na inundação do estrangeiro e do passado, na história”. A cultura dos gregos “foi sempre, por muito tempo, um caos de formas e conceitos estrangeiros, semíticos, babilônicos, lídios e egípcios, e sua religião uma verdadeira batalha de deuses de todo o Oriente”. Fora graças ao lema do “deus délfico” - “Conhece-te a ti mesmo” - que eles aprenderam aos poucos a organizar o caos ao se voltarem [...] a refletir sobre si” (HL/Co. Ext. II 10, KSA 1.333)26 26 Para essas considerações: “Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”. Os conceitos de estilo e de cultura na Segunda consideração extemporânea de F. Nietzsche (Gentili, 2010, pp. 51-71). .

Se a concentração possibilitada por Apolo conduziu, graças ao principium individuationis, à formação de uma identidade cultural, ela não podia deixar de repousar por outro lado, em uma unidade originária e indistinta que não estava, contudo, sob o signo do germânico, mas sim sob aquele de Dioniso. Nisso se apresenta, novamente, a contraposição entre Kultur e Estado. No capítulo 7 de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche propõe a ideia de uma comunidade cultural que transfere a própria forma, em virtude do seu reflexo na ficção trágica, à comunidade dos espectadores que assistem às tragédias. Retomando literalmente as palavras usadas por Schiller em seu prefácio (Sobre o uso do coro na tragédia) à Noiva de Messina (1803), Nietzsche define o coro - que constitui para ele, sempre segundo a ideia de Schiller, a forma originária da tragédia27 27 cf. (GT/NT 7, KSA, 1, 52) a tradução antiga “Nos diz com total determinação que a tragédia surgiu do coro trágico, e que originalmente era um coro e nada mais que um coro”; e Schiller, 1959, p. 819: “Como sabemos, a tragédia grega nasceu do coro”. - “um muro vivente (eine lebendige Mauer) que a tragédia traçou em volta de si mesma para se isolar nitidamente do mundo real e para preservar o seu terreno ideal e a sua liberdade poética” (GT/NT 7, KSA 1.54)28 28 cf. Schiller, 1959, p. 819: o coro é “o muro vivente do qual a tragédia nos cinge para separar-se nitidamente do mundo real e preservar o seu solo ideal, a sua poética liberdade”. . Na encenação teatral, o coro representa “um falso estado de natureza” sobre o qual o homem grego coloca “falsos seres naturais”: os coristas em vestes de sátiros. Com tudo isso, não se trata de um puro e simples “mundo de fantasia”: “O sátiro como corista dionisíaco vive em uma realidade religiosamente reconhecida, sob a sanção do mito e do culto”. Por esta via, o coro dos sátiros reconduz o espectador a uma dimensão natural primordial que vem antes de qualquer agregação humana: “O homem grego civilizado se sentia anulado na presença do coro dos sátiros: e o efeito imediato da tragédia dionisíaca consiste nisso, que o Estado e a sociedade, e em geral os abismos entre homem e homem cedem a um irresistível sentimento de unidade (einem übermächtigen Einheitsgefühle) que reconduz ao coração da natureza” (GT/NT 7, KSA 1.56). Esta dimensão natural, recuperada graças ao dionisíaco, está na raiz não apenas da denúncia do Estado e da sociedade como mentira, mas redefine o próprio conceito de uma Kultur que não tem medo de enfrentar o sofrimento como a experiência que todos os homens partilham. O sátiro é o “camarada compassivo (mitleidender Genosse), no qual o sofrimento do deus se repete”, é o “arauto de uma sabedoria extraída do seio mais profundo da natureza”. Deste modo, “a ilusão da civilização foi apagada através da imagem originária do homem, no qual se desvendava o homem verdadeiro, o sátiro barbudo, que louvava ao seu deus” (GT/NT 8, KSA 1.58).

Portanto, Nietzsche parece opor a dimensão de uma Gemeinschaft fundada sobre a partilha de valores religiosos, capaz de reconhecer o sofrimento como sentimento comum, ao Estado e à sociedade (Gesellschaft), construções mecânicas que perderam todo fundamento na natureza29 29 Esta passagem de O Nascimento da Tragédia fornecerá a inspiração para a “teoria da comunidade” formulada por Ferdinand Tönnies em seu célebre Gemeinschaft und Gesellschaft (1887), antes de ocorrer seu distanciamento de Nietzsche com a publicação de Der Nietzsche-Kultus. Eine Kritik (1897). A Gemeinschaft é construída através de relações orgânicas entre os indivíduos, contraposta à Gesellschaft, na qual os indivíduos aparecem ao invés disso separados. Tönnies define a primeira forma da comunidade construída sobre o “parentesco”; ela “tem a casa como sua sede”, “representa a coabitação sob um mesmo teto que protege”, e é caracterizada pela posse de bens, pelo desfrutar do alimento, pelo “sentar juntos à mesa”. A comunidade construída sobre a “amizade” representa, ao contrário, a expansão com relação ao parentesco e à vizinhança; a ligação que ela produz “deve, contudo, ser sempre próximo e mantido através de reuniões fáceis e frequentes, que são mais prováveis no âmbito de uma cidade” (Tönnies, 1963, pp. 14 ss.). Por outro lado, “a teoria da sociedade parte da construção de um círculo de homens que, como na comunidade, vivem e habitam pacificamente lado a lado, mas que não estão essencialmente ligados, mas essencialmente separados, permanecendo separados apesar de os laços, enquanto ali permanecem ligados apesar de todas as separações” (Tönnies, 1963, p. 40). Certamente, Tönnies, privado de sua cátedra na Universidade de Kiel por sua oposição ao regime, não pode ser responsabilizado pela exploração que a ideologia nacional-socialista fez do conceito de Gemeinschaft. Precisamente Bauemler pode ser incluído entre os responsáveis ​​por essa exploração. A “comunidade” torna-se, para ele, o conceito que une Reich e Estado, política e Kultur: “Quando dizemos Reich, não queremos dizer um Reich espiritual separado do político, mas sim aquela comunidade (Gemeinschaft) da qual resultam a unidade política tanto quanto a unidade espiritual” (Baeumler, 1942, p. 16). . O fundamento dessa Gemeinschaft é a religião de Dioniso. É fácil identificar a fonte de Nietzsche nas Bacantes do tão insultado Eurípedes. Na sua primeira intervenção, o coro assim celebra aquele que, possuído por Dioniso, dissolve a própria individualidade no tíaso, o sagrado cortejo dos seguidores do deus: “O bem-aventurado que, protegido pelas deusas, / conhecendo os mistérios divinos/ conduz uma vida pura/ e confunde no tíaso a alma (kai thiaseyetai psychan)” (vv. 73-5).

Escusado será dizer que Baeumler só pode refutar essa ideia, de uma comunidade cultural fundada sobre o dionisismo. A mesma importância que foi atribuída a Dioniso, pelos intérpretes de Nietzsche, lhe parece um desvio da correta visão de um Nietzsche discípulo, ao contrário, de Heráclito; o único modo que consentiria considerá-lo como filósofo, “o amigo autêntico dos gregos”30 30 Baeumler, 1931, p. 85. . Demasiado distante daquilo que Baeumler considera a verdadeira filosofia de Nietzsche, Dioniso é retomado na ideia da vontade de potência. O nome Dioniso não é, para Baeumler, nada mais do que “um sinal de movimento contrário que o jovem Nietzsche inaugurara contra a moral cristã”31 31 Baeumler, 1931, p. 85. . Mas, talvez mais ainda, a recusa de Dioniso deriva do fato que indica claramente como a arte é a preocupação que está no coração de Nietzsche, com relação à qual o Estado não é nada mais do que uma ferramenta acessória: “A realidade do Estado deve reorganizar-se nos termos do escopo estético, enquanto não seja alcançada a condição que corresponde ao “escopo”, isto é, enquanto não seja realizada a condição de uma comunidade cultural estético-pacifista”32 32 Baeumler, 1931, p. 126. . Que é, claramente, a maneira em que Baeumler lê, distorcendo-o, o sentido dado por Nietzsche ao papel da comunidade cultural. Isso reside, de fato, no fundamento de uma crítica da sociedade, do Estado e da cultura que ele desenvolverá no conjunto das Considerações Extemporâneas, que denunciam assim claramente a sua linha de continuidade com O Nascimento da Tragédia33 33 Para a documentação sobre o assunto, refiro-me a: Gentili, 2001, pp. 51 ss. . Estado, sociedade e cultura não são liquidados por Nietzsche, mas a indicação desse pano de fundo natural sobre o qual eles operam abre o espaço para uma visão crítica que evidencia o remorso. Com a obra publicada em 1930, Das Unbehagen in der Kultur, Sigmund Freud irá se debruçar precisamente sobre essa linha. E, por outro lado, Nietzsche se encontra, da sua parte, no caminho sinalizado por Schiller nas suas Cartas sobre a educação estética do homem, em que o ideal de um “Estado estético” (ästhetischer Staat) é proposto como a superação e o cumprimento do “Estado dinâmico”, no qual a força domina como elemento natural, e do “Estado ético”, onde a “majestade da lei” acorrenta o querer de todo indivíduo singular. “Dar a liberdade através da liberdade” é a lei fundamental do Estado estético, que está diante do indivíduo “apenas como forma” e torna real a sociedade “porque cumpre a vontade do todo por meio da natureza do indivíduo” 34 34 Schiller, 2004, vol. V, p. 667. .

Se a comunidade natural e cultural, da qual o símbolo é o sátiro, está no signo de Dioniso, é evidente que o Estado, a sociedade e a cultura são a modelação desse indistinto originário. Esta síntese não pode se realizar a não ser em nome de Bruderbund, do pacto fraterno com Apolo. Naquilo que, com razão, Julian Young define “comunitarismo religioso”, ou seja, a “comunidade dionisíaca”, já está contida a premissa que “what is ultimately essential to life itself is Apollonian community so that the art we need is, above all, art which valorises the Apollonian”35 35 Young, 2006, p. 76. N.T: “O que é, em última instância, essencial à própria vida é a comunidade apolínea, de modo que a arte de que precisamos é, acima de tudo, uma arte que valorize o apolíneo”. . O que coloca fora de jogo todo discurso sobre o frequente esteticismo declarado de Nietzsche, assim como o seu exigido recurso à mera barbárie da força e da violência.

Todavia, se a relação entre religião e Estado diz respeito, no que foi dito até agora, à religião dionisíaca, o discurso muda com o ingresso do cristianismo em campo. E o que determina essencialmente essa mudança é a concepção diversa do papel e do significado do povo. Como observa ainda Young, a idade moderna, a cristã, dissolveu o próprio conceito de povo na medida em que perdeu “the homeland of myth”, isto é, “the unifying ethos which, as we know, is the precondition of being a Volk”. O cristianismo “has degenerated to empty ritual, ‘hypocrisy and superficiality’; myth in general has lost its ‘serious manly nature’ and has been based into the mere ‘fairy tale’”36 36 Young, 2006, p. 52. N.T: “Como observa ainda Young, a idade moderna, a cristã, dissolveu o próprio conceito de povo na medida em que perdeu ‘a pátria do mito’, isto é, ‘o ethos unificador, que, como sabemos, é a pré-condição de ser um Volk [povo]’. O cristianismo ‘degenerou em ritual vazio, “hipocrisia e superficialidade”; o mito em geral perdeu sua ‘natureza viril séria’ e foi baseado no mero ‘conto de fadas’”. . Assim, quando a atenção de Nietzsche se desloca da Grécia Antiga à Alemanha moderna, e por conseguinte à era de Bismarck, o chamado à religião muda de significado e o povo, que não pode mais ser identificado com a comunidade cultural dionisíaca, torna-se objeto passivo de uma instância religiosa a qual, contudo, embora em sentido instrumental, é ainda atribuída uma função essencial nos confrontos do Estado enquanto agência de coleta de consenso. E, com isso, torna-se para Nietzsche inevitável o ataque à política bismarckiana do Kulturkampf. No aforismo Religião e governo de Humano, demasiado humano, Nietzsche sustenta que, sendo o povo tornado “uma massa incapaz”, o Estado e o governo devem instituir-se como seus tutores e, para este fim, diante da questão “se a religião deve ser conservada ou eliminada”, será sempre resolvida pela sua conservação. De fato, apenas a religião é capaz de tornar as multidões pacientes, de apaziguar os instintos de rebelião devido às deficiências dos governos: “os não perspicazes pensam enxergar o dedo de Deus e pacientemente se submetem às determinações do alto (conceito em que habitualmente se fundem os modos humano e divino de governar)” (MA/HH I 472, KSA 2.302). Esta é o tipo de teologia política que Nietzsche, conscientemente ou não, deriva diretamente de Paulo: “Toda pessoa está submetida aos poderes superiores, porque não há poder senão de Deus e os poderes que existem são instituídos por Deus. De maneira que, quem se opõe ao poder se opõe à ordem estabilizada por Deus” (Rm 13, 1-2). Apenas a religião, ainda que em virtude de uma ação agora externa ao povo, é capaz de garantir essa “unidade do sentimento popular” no qual reside a potência e, portanto, a própria legitimidade do Estado e da ação dos governos. Para isso, “o Estado saberá conquistar os padres, porque necessita da sua educação muito privada e oculta das almas”. Sem o apoio do clero não pode existir potência “legítima”: “como Napoleão compreendera”37 37 Nietzsche alude à coroação do imperador Napoleão pelo Papa Pio VII, que ocorreu em 2 de dezembro de 1804 na igreja de Notre-Dame. . Legitimidade que é destinada a desaparecer está fadada ao fracasso nos “Estados democráticos”, quando se vê no governo “apenas o instrumento da vontade popular, não um ‘alto’ em comparação a um ‘baixo’, mas meramente uma função do único soberano, do povo” (MA/HH I 472, KSA 2.302-3). A “batalha de civilização” (Kulturkampf)38 38 O termo foi originalmente cunhado por Rudolf Virchow, expoente do “Partido Progressista Alemão” (Deutsche Fortschrittspartei) que, em seu programa, pretendia reduzir a influência moral e cultural da Igreja de Roma. Tratava-se, portanto, de um programa liberal, progressista e anticlerical que pretendia reagir à Encíclica Syllabus errorum, promulgada por Pio IX em 1864, bem como à doutrina da Igreja, caracterizada em sentido antimodernista e antiliberal, sancionada pelo Concílio Vaticano I (1868-70). Bismarck apropriou-se dela após a fundação do Reich, transformando sua inspiração em sentido nacional. Entre as medidas adotadas como resultado da Kulturkampf estava também a instituição do casamento civil. empreendida por Bismarck - com a qual o chanceler pretendia reforçar a unidade cultural da Alemanha em nome de uma laicização do Estado promulgando, entre outras coisas, uma lei que privava os ministros do culto do ensino público da religião - é considerado por Nietzsche um essencial e fatal enfraquecimento e uma deslegitimação do Estado, bem como um fruto extremo e perverso da Reforma. Precisamente esta última é indicada como o inimigo no aforismo de A gaia ciência intitulado Em honra dos homens religiosos, que se inicia com uma clara referência ao Kulturkampf:

A luta contra a igreja é certamente, entre outras coisas […] também a luta das naturezas mais vulgares, mais contentes, confiantes e superficiais contra o domínio das pessoas mais graves, profundas e contemplativas, ou seja, mais ruins e desconfiadas, que com prolongada suspeita meditaram sobre o valor da existência e sobre o seu próprio valor (FW/GC 350, KSA 3.586).

Contra eles, se indignava “o instinto vulgar do povo, a sua alegria dos sentidos, o seu ‘bom coração’”. Está nítida aqui a contraposição entre a Igreja de Roma, à qual Nietzsche reconhece um maior conhecimento da alma humana uma vez que “repousa numa desconfiança meridional quanto à natureza do ser humano”, e o protestantismo, “uma revolta popular em favor dos honestos, cândidos e superficiais” (FW/GC 350, KSA 3.586) 39 39 No aforismo 358 (A rebelião camponesa no âmbito do espírito) de A gaia ciência, Nietzsche destaca as características negativas aqui atribuídas de modo genérico à Reforma diretamente à figura de Lutero, um homem “desastrosamente limitado, superficial e imprevidente nas questões cardinais do poder, como homem do povo que era, a quem faltava toda herança de uma casta dominante” (FW/GC 358, KSA 3.603). Por esta razão, acrescenta em O anticristo “Lutero viu a corrupção do Papado, enquanto era precisamente o contrário que se podia pegar com as mãos: a velha corrupção, o peccatum originale, o cristianismo não estava mais sentado na cadeira do Papa! Mas sim a vida! Mas sim o triunfo da vida! Mas sim o grande Sim a todas as altas, belas, temerárias coisas!...” (AC/AC 61, KSA 6.251). Para outras considerações sobre estes temas, cf. Gentili, 2017, pp. 509-34. . Consequência direta da Reforma fora a Revolução Francesa, na qual Nietzsche vê o triunfo do povo como único soberano já apontado como falência do Estado no aforismo de Humano, demasiado humano: a Revolução “colocou inteira e solenemente o cetro nas mãos do ‘homem bom’ (da ovelha, do asno, do ganso e de todos os irremediavelmente rasos, ruidosos e maduros para o hospício das ‘ideias modernas’” (FW/GC 350, KSA 3.586).

O triunfo de um tal homem bom assinala o eclipse definitivo do homem trágico e, com ele, a fratura insolúvel do Bruderbund, em virtude do qual Dioniso e Apolo puderam fazer da arte o instrumento de uma criativa crítica do existente. E, todavia, na dura acusação antidemocrática de Nietzsche, por mais que possa hoje ressoar desagradável às nossas orelhas, deve-se ler a lúcida capacidade diagnóstica dessas fraquezas das democracias, que, no séc. XIX, abriram caminho para o totalitarismo.

Referências

  • BAEUMLER, A. Bildung und Gemeinschaft, Berlin: Junker und Dünnhaupt, 1942.
  • BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker Leipzig: Reclam, 1931.
  • BAEUMLER, A. Studien zur deutschen Geistesgeschichte, Berlin: Junker und Dünnhaupt, 1937.
  • BURCKHARDT, J. Über das Studium der Geschichte Editado por: P. Ganz. München: Beck, 1982.
  • GENTILI, C. Il «monaco impossibile». Nietzsche pro e contra Lutero, in «Dianoia», 25 (2017), pp. 509-34.
  • GENTILI, C. Nietzsche Bologna: Il Mulino, 2001
  • GENTILI, C. “Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”.Os conceitos de estilo e de cultura na Segunda consideração extemporânea de F. Nietzsche. «Cadernos Nietzsche», 27 (2010), pp. 51-71.
  • SCHILLER, F. Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen, 27, in Sämtliche Werke, cit., vol. V, p. 667, 2004.
  • SCHILLER, F. Über den Gebrauch des Chors In: der Tragödie, em Sämtliche Werke, editado por G. Fricke e H.G. Göpfert, vol. II, Hanser, München/Wien, 1959.
  • TÖNNIES, F. Geneinschaft und Gesellschaft Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963.
  • WAGNER, C. Die Tagebücher, vol. I: 1869-1877 Editado por: M. Gregor-Dellin e D. Mack. München: Piper, 1976.
  • YOUNG, J. Nietzsche’s Philosophy of Religion New York: Cambridge University Press, 2006.
  • *
    Tradução de Samantha Lopes Inacio da Silva e Luiz Felipe Xavier Gonçalves
  • 1
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 88. NT: Quanto à tradução dos textos de Nietzsche: Para a Consideração Extemporânea II, foi utilizada a versão de André Itaparica, da editora Hedra. Para O Anticristo, foi utilizada a tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, da Abril Cultural. Para os textos (Humano, demasiado humano, A gaia ciência, Genealogia da Moral e Crepúsculo dos Ídolos), foram utilizadas as traduções de Paulo César de Souza, da Companhia das Letras. Os fragmentos póstumos, e demais textos aqui não indicados, foram vertidos ao português pelos tradutores.
  • 2
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 88.
  • 3
    Tornado o filósofo oficial do regime nazista, em um ensaio publicado em 1935 - Nietzsche und der Nationalsozialismus - Baeumler celebra Hitler como aquele que realizou o “autêntico” significado político do pensamento de Nietzsche. O ensaio termina com essas palavras: “E quando bradamos à esta juventude: Heil Hitler!, com esse grito saudamos ao mesmo tempo Friedrich Nietzsche” (Baeumler, 1937BAEUMLER, A. Studien zur deutschen Geistesgeschichte, Berlin: Junker und Dünnhaupt, 1937., p. 294).
  • 4
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 88.
  • 5
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 89.
  • 6
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 120.
  • 7
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 90.
  • 8
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 89.
  • 9
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 120.
  • 10
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 133.
  • 11
    Já na terceira conferência Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, Nietzsche observa: “Aliás, um ‘Estado cultural’ (Kulturstaat), como dizem agora, que faz tais reivindicações” - ou seja a demanda de um número excessivo de professores, que demonstra apenas uma objetiva falta de cultura - “é um fenômeno recente e apenas no último meio século que ele se tornou algo ‘evidente’”; isto é, cai no âmbito de todas as coisas que pretendem ser entendidas por si, “mas, se dissermos a verdade, em si mesmos eles não são imediatamente compreendidos” (BA/EE III, KSA, 1, 706 s). E na Consideração Extemporânea III, Schopenhauer como educador: “Onde hoje se fala de ‘estado de cultura’, vemos que está posta a tarefa de libertar as forças espirituais de uma geração na medida em que assim possam servir e beneficiar as instituições existentes”; no entanto “Essa libertação é ao mesmo tempo, e ainda mais, um acorrentamento” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.389).
  • 12
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 123.
  • 13
    Essa expressão certamente demonstra, segundo Baeumler, como Nietzsche “vê o próprio problema em uma profunda conexão com os acontecimentos políticos” (Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Bildung und Gemeinschaft, Berlin: Junker und Dünnhaupt, 1942., p. 128).
  • 14
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 119.
  • 15
    cf. Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 130.
  • 16
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 131.
  • 17
    Na realidade essas três expressões ocorrem juntas apenas no fragmento 5 [95] de setembro de 1870 a janeiro de 1871 (KSA 7.119).
  • 18
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., pp. 123-4.
  • 19
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 124. Nos dias 1 a 4 de janeiro de 1873, Cosima anota nos seus diários esta frase de Wagner: “O manuscrito do professor Nietzsche não nos alegra, às vezes se expressa duramente desajeitado, mas ainda com grande profundidade do sentimento. Queremos que ele lide preferencialmente com as questões relativas aos Gregos” (1976WAGNER, C. Die Tagebücher, vol. I: 1869-1877. Editado por: M. Gregor-Dellin e D. Mack. München: Piper, 1976., p. 623).
  • 20
    cf. CV/CP O Estado grego, KSA 1.764-77.
  • 21
    cf. Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 124.
  • 22
    Burckhardt, 1982BURCKHARDT, J. Über das Studium der Geschichte. Editado por: P. Ganz. München: Beck, 1982., p. 257.
  • 23
    O quanto Nietzsche está convencido dessa afirmação é mostrado pela maneira como ele a retoma em Genealogia da moral: “o ‘direito’ foi por muito tempo um vetitum [algo proibido], um abuso, uma inovação, apareceu com violência, como violência, à qual somente com vergonha de si mesmo alguém se submetia” (GM/GM, III, 9, KSA 5.358).
  • 24
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 126.
  • 25
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 125.
  • 26
    Para essas considerações: “Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos. Os conceitos de estilo e de cultura na Segunda consideração extemporânea de F. Nietzsche (Gentili, 2010GENTILI, C. “Os gregos aprenderam aos poucos a organizar o caos”.Os conceitos de estilo e de cultura na Segunda consideração extemporânea de F. Nietzsche. «Cadernos Nietzsche», 27 (2010), pp. 51-71., pp. 51-71).
  • 27
    cf. (GT/NT 7, KSA, 1, 52) a tradução antiga “Nos diz com total determinação que a tragédia surgiu do coro trágico, e que originalmente era um coro e nada mais que um coro”; e Schiller, 1959SCHILLER, F. Über den Gebrauch des Chors. In: der Tragödie, em Sämtliche Werke, editado por G. Fricke e H.G. Göpfert, vol. II, Hanser, München/Wien, 1959., p. 819: “Como sabemos, a tragédia grega nasceu do coro”.
  • 28
    cf. Schiller, 1959SCHILLER, F. Über den Gebrauch des Chors. In: der Tragödie, em Sämtliche Werke, editado por G. Fricke e H.G. Göpfert, vol. II, Hanser, München/Wien, 1959., p. 819: o coro é “o muro vivente do qual a tragédia nos cinge para separar-se nitidamente do mundo real e preservar o seu solo ideal, a sua poética liberdade”.
  • 29
    Esta passagem de O Nascimento da Tragédia fornecerá a inspiração para a “teoria da comunidade” formulada por Ferdinand Tönnies em seu célebre Gemeinschaft und Gesellschaft (1887), antes de ocorrer seu distanciamento de Nietzsche com a publicação de Der Nietzsche-Kultus. Eine Kritik (1897). A Gemeinschaft é construída através de relações orgânicas entre os indivíduos, contraposta à Gesellschaft, na qual os indivíduos aparecem ao invés disso separados. Tönnies define a primeira forma da comunidade construída sobre o “parentesco”; ela “tem a casa como sua sede”, “representa a coabitação sob um mesmo teto que protege”, e é caracterizada pela posse de bens, pelo desfrutar do alimento, pelo “sentar juntos à mesa”. A comunidade construída sobre a “amizade” representa, ao contrário, a expansão com relação ao parentesco e à vizinhança; a ligação que ela produz “deve, contudo, ser sempre próximo e mantido através de reuniões fáceis e frequentes, que são mais prováveis no âmbito de uma cidade” (Tönnies, 1963TÖNNIES, F. Geneinschaft und Gesellschaft. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963., pp. 14 ss.). Por outro lado, “a teoria da sociedade parte da construção de um círculo de homens que, como na comunidade, vivem e habitam pacificamente lado a lado, mas que não estão essencialmente ligados, mas essencialmente separados, permanecendo separados apesar de os laços, enquanto ali permanecem ligados apesar de todas as separações” (Tönnies, 1963TÖNNIES, F. Geneinschaft und Gesellschaft. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963., p. 40). Certamente, Tönnies, privado de sua cátedra na Universidade de Kiel por sua oposição ao regime, não pode ser responsabilizado pela exploração que a ideologia nacional-socialista fez do conceito de Gemeinschaft. Precisamente Bauemler pode ser incluído entre os responsáveis ​​por essa exploração. A “comunidade” torna-se, para ele, o conceito que une Reich e Estado, política e Kultur: “Quando dizemos Reich, não queremos dizer um Reich espiritual separado do político, mas sim aquela comunidade (Gemeinschaft) da qual resultam a unidade política tanto quanto a unidade espiritual” (Baeumler, 1942BAEUMLER, A. Bildung und Gemeinschaft, Berlin: Junker und Dünnhaupt, 1942., p. 16).
  • 30
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 85.
  • 31
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 85.
  • 32
    Baeumler, 1931BAEUMLER, A. Nietzsche der Philosoph und Politiker. Leipzig: Reclam, 1931., p. 126.
  • 33
    Para a documentação sobre o assunto, refiro-me a: Gentili, 2001GENTILI, C. Nietzsche. Bologna: Il Mulino, 2001, pp. 51 ss.
  • 34
    Schiller, 2004SCHILLER, F. Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen, 27, in Sämtliche Werke, cit., vol. V, p. 667, 2004., vol. V, p. 667.
  • 35
    Young, 2006YOUNG, J. Nietzsche’s Philosophy of Religion. New York: Cambridge University Press, 2006., p. 76. N.T: “O que é, em última instância, essencial à própria vida é a comunidade apolínea, de modo que a arte de que precisamos é, acima de tudo, uma arte que valorize o apolíneo”.
  • 36
    Young, 2006YOUNG, J. Nietzsche’s Philosophy of Religion. New York: Cambridge University Press, 2006., p. 52. N.T: “Como observa ainda Young, a idade moderna, a cristã, dissolveu o próprio conceito de povo na medida em que perdeu ‘a pátria do mito’, isto é, ‘o ethos unificador, que, como sabemos, é a pré-condição de ser um Volk [povo]’. O cristianismo ‘degenerou em ritual vazio, “hipocrisia e superficialidade”; o mito em geral perdeu sua ‘natureza viril séria’ e foi baseado no mero ‘conto de fadas’”.
  • 37
    Nietzsche alude à coroação do imperador Napoleão pelo Papa Pio VII, que ocorreu em 2 de dezembro de 1804 na igreja de Notre-Dame.
  • 38
    O termo foi originalmente cunhado por Rudolf Virchow, expoente do “Partido Progressista Alemão” (Deutsche Fortschrittspartei) que, em seu programa, pretendia reduzir a influência moral e cultural da Igreja de Roma. Tratava-se, portanto, de um programa liberal, progressista e anticlerical que pretendia reagir à Encíclica Syllabus errorum, promulgada por Pio IX em 1864, bem como à doutrina da Igreja, caracterizada em sentido antimodernista e antiliberal, sancionada pelo Concílio Vaticano I (1868-70). Bismarck apropriou-se dela após a fundação do Reich, transformando sua inspiração em sentido nacional. Entre as medidas adotadas como resultado da Kulturkampf estava também a instituição do casamento civil.
  • 39
    No aforismo 358 (A rebelião camponesa no âmbito do espírito) de A gaia ciência, Nietzsche destaca as características negativas aqui atribuídas de modo genérico à Reforma diretamente à figura de Lutero, um homem “desastrosamente limitado, superficial e imprevidente nas questões cardinais do poder, como homem do povo que era, a quem faltava toda herança de uma casta dominante” (FW/GC 358, KSA 3.603). Por esta razão, acrescenta em O anticristo “Lutero viu a corrupção do Papado, enquanto era precisamente o contrário que se podia pegar com as mãos: a velha corrupção, o peccatum originale, o cristianismo não estava mais sentado na cadeira do Papa! Mas sim a vida! Mas sim o triunfo da vida! Mas sim o grande Sim a todas as altas, belas, temerárias coisas!...” (AC/AC 61, KSA 6.251). Para outras considerações sobre estes temas, cf. Gentili, 2017GENTILI, C. Il «monaco impossibile». Nietzsche pro e contra Lutero, in «Dianoia», 25 (2017), pp. 509-34., pp. 509-34.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2022
  • Aceito
    14 Out 2022
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