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Scarlett Marton e os horizontes da recepção de Nietzsche (um "bom europeu") na Alemanha, Itália e França* * Tradução de Márcio José Silveira Lima.

Resenha: MARTON, Scarlett. .Nietzsche, “o bom europeu”. A recepção na Alemanha, na França e na Itália.São Paulo, Editora Unifesp, 2022, 192 pp.

Como bem destaca Scarlett Marton, Nietzsche pensou de maneira insistente a problemática da Europa, para além de seu desprezo pela Alemanha (a “terra plana” da Europa), e de seu amor pela Itália, pela França e pelo Mediterrâneo em geral (sua ideia de “filosofia mediterrânea” assim o testemunha). O trabalho de Marton procura “delinear horizontes”: deixando de lado a possibilidade de um registro exaustivo da recepção de Nietzsche nesses três países, a autora levanta uma série de linhas de força para poder chegar a diversos aspectos dessa recepção. Nesse sentido, mostra de que maneira a obra de Nietzsche é um tipo de “espaço de conflito” para as mais variadas apropriações, desde as posições intelectuais e ideológicas mais diversas. O livro se estrutura com um primeiro capítulo dedicado à questão do europeu em Nietzsche, enquanto os capítulos seguintes focam no problema da recepção de Nietzsche na Alemanha, na França e na Itália. Esses três últimos capítulos já haviam sido publicados como introduções aos livros de Marton, Nietzsche na Alemanha (Marton, 2005MARTON, Scarlett. Nietzsche na Alemanha. São Paulo/Ijuí: Discurso/Ed. da Unijuí, 2005. ), Nietzsche, um “francês” entre franceses (Marton, 2009MARTON, Scarlett. Nietzsche, um “francês” entre franceses. São Paulo: Discurso/Barcarolla, 2009.) e Nietzsche pensador Mediterrâneo (Marton, 2007MARTON, Scarlett. Nietzsche pensador Mediterrâneo. São Paulo/Ijuí: Discurso/Ed. da Unijuí, 2007. ), razão pela qual me deterei, sobretudo, no primeiro capítulo do livro.

Nietzsche aborda o tema da Europa em sua multiplicidade (apesar de “querer ser una”, como já anunciava em Para além de bem e mal): a tese interpretativa de Marton consiste em assinalar que o pensador alemão desenvolve um conceito de cultura próximo do neohumanismo, e, nesse sentido, próximo ao pensamento de Friedrich Niethammer, autor de Der Streit des Philanthropinismus und Humanismus in der Theorie des Erziehungsunterrichts unserer Zeit (A disputa entre filantropinismo e humanismo na teoria educacional de nosso tempo), que propõe uma reforma do ensino no início do século XIX. A posição dos neohumanistas considera, em primeiro lugar, o valor da perfeição da cultura grega (daí seu caráter universal) e, em segundo lugar, aproxima a referida cultura à alemã. Os neohumanistas afirmam que a cultura deve ser “pura”, desvinculada dos aspectos utilitários que levam em conta a técnica ou os temas inconstantes da organização social ou política: o que interessa é a condição humana (pensada como “universal”).

A crítica de Nietzsche aos tempos modernos refere-se à tendência à uniformização: na medida em que o estado aponta para essa uniformidade, é um inimigo da cultura. Por isso, em Crepúsculo dos ídolos, declara-se “antipolítico”, porque é justamente a partir da decadência política que se torna possível o florescimento da atividade cultural. Scarlett Marton concorda com os intérpretes que consideram não existir na obra nietzschiana uma teoria política acabada, já que vê em íntima ligação a política, a religião e a ordem social (então, a filosofia crítica de Nietzsche os abarca em conjunto). Essa filosofia crítica se desenvolve a partir de uma perspectiva fisiopsicológica: diante das diferenças que marcam as forças da vontade de potência, o moderno europeu insiste nos impulsos niveladores. Esses impulsos se unem ao instinto gregário, impedindo a aparição dos grandes homens; nesse sentido, Marton considera que Nietzsche é partidário da “aristocracia espiritual”, aquela que Georges Brandes interpretou como “radicalismo aristocrático”. E isso se vincula também com a crítica de Nietzsche ao aspecto quantitativo da cultura que, submetida a cálculo, transforma também o ensino em uma questão quantitativa. É nesse contexto crítico que o filósofo cria o termo “filisteu da cultura” (Bildungsphilister), cuja paternidade reivindica mais de uma vez em suas obras, dado o uso comum do termo em diversos âmbitos para referir-se àqueles “filisteus” que no âmbito educativo exigiam o cumprimento de deveres e normas, e anulavam a criatividade. Assim, a cultura se converte para o Nietzsche crítico em um assunto de negócios e em comércio de “bens culturais”.

Nesse contexto se situa seu repúdio ao nacionalismo alemão, pois, como bem nos recorda Marton, para Nietzsche o bom alemão é aquele que “se des-germaniza”, isto é, o que despreza o filisteísmo cultural e o nacionalismo prussiano. É em Humano, demasiado Humano I, 475 (MA I/HH I, 475, KSA 2.309) que Nietzsche desenvolve a ideia de “bom europeu”, referindo-se àquele que busca a fusão das nações, e em um póstumo de 1885 associa aos bons europeus os judeus alemães (o que deveria desautorizar toda aproximação, muito comum em alguns contextos interpretativos, de Nietzsche ao antissemitismo, de que era um grande inimigo). Nessa direção, os bons europeus são pensados por Nietzsche como homens “fortes, indivíduos bem logrados. Enquanto tais, eles poderiam superar a enfermidade dos tempos modernos” (Marton, 2002MARTON, Scarlett. Nietzsche, “o bom europeu”. A recepção na Alemanha, na França e na Itália, São Paulo: Ed. Unifesp, 2022., p. 52), afirma Marton. São conquistadores, então, de uma nova saúde, a saúde de “amanhã e depois de amanhã”, como afirma o “Prefácio” a Humano demasiado humano II (MA II/HH II, Prefácio, 6, KSA 2.376).

Esse desenvolvimento, que Scarlett Marton realiza, do modo com que Nietzsche aborda a ideia de bom europeu permite compreender, em parte, diversos aspectos da recepção de Nietzsche na Alemanha, na França e na Itália, temas dos capítulos seguintes do livro, que foram, noutra ocasião, como antes assinalei, introdução a três livros da filósofa brasileira dedicados à recepção de Nietzsche naqueles países, a partir de algumas de suas referências principais. Como em todos os seus livros e artigos, Scarlett Marton, uma das principais referências internacionais da obra de Nietzsche, e sem lugar para dúvidas, a mais relevante e reconhecida da América do Sul, criadora de um Grupo de Estudos no Brasil (GEN) que tem publicado diversos escritos em torno do pensamento nietzschiano (um viveiro de investigadores do mais alto nível), nos oferece um trabalho de erudição que faz um excelente uso de fontes e de bibliografia secundária, com um sempre muito adequado (e útil para os estudiosos nietzschianos) estado da questão

Para finalizar, quero fazer uma breve referência à maneira pela qual na Argentina, na primeira metade do século XX, no contexto de uma recepção da obra de Nietzsche preponderantemente em linha literária, um de nossos grandes escritores se referia ao pensador alemão como “bom europeu”. Em um artigo de 11 de fevereiro de 1940 intitulado “Algunos pareceres de Nietzsche”, publicado no jornal La Nación de Buenos Aires, Jorge Luis Borges diferencia a obra do pensador alemão das apropriações ideológicas por parte dos racismos e dos nacionalismos (Borges, 2001BORGES, J. L. Textos recobrados (1931-1955). Buenos Aires: Emecé, 2001, p. 180-184). Para desvinculá-lo daqueles que liam sua obra como um “evangelho para agressores”, e comentando, precisamente, a edição realizada em 1931 de alguns de seus fragmentos póstumos por parte de Alfred Bäumler (um dos ideólogos do nazismo), Borges assinala que em um texto de 1880 Nietzsche desdenha os nacionalismos, tanto franceses como alemães, e enfatiza que, nesse sentido era “um bom europeu, enfim”.

Referências

  • BORGES, J. L. Textos recobrados (1931-1955). Buenos Aires: Emecé, 2001, p. 180-184
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche na Alemanha São Paulo/Ijuí: Discurso/Ed. da Unijuí, 2005.
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche pensador Mediterrâneo São Paulo/Ijuí: Discurso/Ed. da Unijuí, 2007.
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche, um “francês” entre franceses São Paulo: Discurso/Barcarolla, 2009.
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche, “o bom europeu”. A recepção na Alemanha, na França e na Itália, São Paulo: Ed. Unifesp, 2022.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke Kritische Studienausgabe (KSA), 15 vols. (Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari), Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1988.
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    Tradução de Márcio José Silveira Lima.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2022
  • Aceito
    15 Dez 2022
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