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O campo e a práxis transformadora do Planejamento: reflexões para uma agenda brasileira

The field and the transformative praxis of Planning: reflections for a brazilian agenda

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar, a partir dos conceitos bourdieusianos de campo, habitus e capital, como processos de reestruturação na economia, na política e na própria sociedade geraram uma série de desafios e oportunidades para a formação e atuação no planejamento do espaço e dos territórios no Brasil. Argumenta-se que as transformações no período pós-1970 produziram novas competências e habilidades para o planejamento que transbordaram a formação tradicional. Ao mesmo tempo, observa- se que o complexo brasileiro de instituições responsáveis pela formação e atuação profissional ainda está desarticulado e com alcance limitado para absorver as novas demandas que cercam o planejamento do país. É apresentada, sinteticamente, uma experiência em andamento na Universidade Federal do ABC (UFABC): um bacharelado interdisciplinar em planejamento territorial a partir da implantação da pós-graduação em planejamento e gestão dos territórios. Conclui-se com uma reflexão sobre a necessidade de uma agenda nacional pautada nesse tema.

Palavras-chave:
atuação profissional; bacharelado interdisciplinar; campo do planejamento; formação em planejamento; planejamento territorial; planejamento no Brasil

Abstract

The objective of the article is to analyze, based on Bourdieu’s concepts of the field, habitus and capital, how restructuring processes in the economy, in politics and society itself have generated a number of challenges and opportunities for the formation and professional practice of Brazilian spatial planning. We argue that changes in the post-1970 period have generated new skills and abilities for planning that have crossed the boundaries of traditional formation. At the same time, it may be observed that the Brazilian set of institutions, responsible for formation and professional practice, is still relatively disconnected, and with a limited scope to absorb the new demands faced by planning within the country. We briefly discuss an ongoing experience within the Universidade Federal do ABC (UFABC) regarding an interdisciplinary bachelor’s degree in territorial planning created on the basis of its graduate program in territorial planning and management. The paper concludes with a reflection on the need to set up a national agenda structured around this theme.

Keywords:
professional practice; interdisciplinary bachelor degree; planning field; formation in planning; spatial planning; territorial planning; planning in Brazil

Introdução: conhecimento, aprendizagem e o mundo profissional no século XXI

Nas últimas décadas, especialmente a partir do período pós-1980, é possível identificar rápidas transformações socioeconômicas, tecnológicas, políticas e culturais que desencadearam rupturas nos modelos de formação e atuação profissional. Essas transformações questionaram o paradigma de ensino, aprendizado e inovação que, até então, tinha acompanhado um modelo de desenvolvimento relativamente estável nos países centrais. Mais especificamente, a globalização e a compressão do tempo-espaço fizeram com que o conhecimento especializado e enraizado nas disciplinas tradicionais, um dos pilares desse paradigma, fosse posto em questão.

Apesar da variedade de abordagens que visam a “reinventar” a universidade do século XX, identifica-se um eixo comum entre elas. Novos projetos político-pedagógicos rejeitam a especialização precoce; eles procuram uma formação interdisciplinar que permita ao aluno articular as diversas áreas do conhecimento e que lhe proporcione capacidade e autonomia para a aprendizagem contínua ao longo da vida profissional. A abordagem se reflete no ingresso na universidade em grandes áreas do conhecimento, em vez de cursos especializados, numa matriz curricular interdisciplinar flexível, com a oferta de disciplinas obrigatórias e eletivas, cujo objetivo é fomentar a autonomia, o espirito crítico e o aprendizado.

Essa tendência não passou despercebida no Brasil. Numa trajetória já desencadeada desde os anos 1990, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) elaborou, em 2004, recomendações para a reforma da educação superior alinhadas com tal tendência1 1 Academia Brasileira de Ciências (2004). . Nos últimos anos, no escopo das mudanças do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)2 2 O REUNI, programa do Ministério da Educação iniciado em 2003, é uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que tem a promoção de inovações pedagógicas entre suas metas. Foram criados, em seu âmbito, bacharelados interdisciplinares em diversas universidades federais brasileiras. , surgiram propostas de bacharelados interdisciplinares que adotavam um projeto político-pedagógico ancorado nos princípios de autonomia intelectual, formação holística e estímulo à educação continuada.

As transformações também afetaram o mercado de trabalho e o mundo profissional. Os modelos de industrialização, urbanização e desenvolvimento que marcaram o século XX ancoraram-se grandemente em categorias profissionais delimitadas e em conselhos com amplas atribuições para regulamentar, certificar e garantir a qualidade do exercício da profissão. No entanto, o cenário contemporâneo gera desafios para esse sistema enraizado em profissões moldadas de acordo com as tradições disciplinares, no qual os conselhos articulam as demandas previsíveis do mundo profissional, tensionados pela dinâmica da ciência e do mercado expressa nas Instituições de Ensino Superior (IES). Por sua vez, novas configurações interdisciplinares articulam campos de conhecimento e habilidades, forjando novas profissionalidades.

O objetivo deste artigo, organizado em quatro seções, é analisar, a partir dos conceitos bourdieusianos de campo, habitus e capital aplicados ao planejamento, como processos de reestruturação na economia, na política e na própria sociedade geraram uma série de desafios e oportunidades para a formação e atuação de quadros profissionais responsáveis pelo planejamento urbano e regional no Brasil. Na segunda seção, são abordados o conceito de campo e a construção da ciência e das profissões. Na seção seguinte, argumenta-se que as transformações no período pós-1970 produziram novas competências e habilidades para o planejamento do espaço e dos territórios que transbordam a formação tradicional. Ao mesmo tempo, diferentemente da tendência internacional, o complexo brasileiro de instituições responsáveis pela formação e atuação profissional ainda está desarticulado e com alcance limitado para absorver as novas demandas que cercam o planejamento urbano e regional do país. É apresentada, sinteticamente, uma experiência em andamento na Universidade Federal do ABC (UFABC): um bacharelado interdisciplinar em planejamento territorial, a partir da implantação da pós-graduação em planejamento e gestão dos territórios. Na última seção, conclui-se com uma reflexão sobre a desarticulação na formação e na atuação no campo do planejamento urbano e regional no Brasil e sobre a necessidade de uma agenda nacional pautada nesse tema.

O conceito de campo e a construção da ciência e do mundo profissional aplicados ao planejamento

Nas décadas recentes, as exigências sociais sobre as formas de uso do espaço vêm requerendo novos enfoques no campo dos estudos territoriais, com repercussões no estado das teorias e dos instrumentos analíticos. Aliás, são os novos enfoques que possibilitam que sejam entendidos os atritos e as justaposições, no interior desse campo de estudos, entre a perspectiva emergente do planejamento e as perspectivas teóricas já estabelecidas. Todavia, na tradição da história da ciência3 3 Thomas Kuhn (2011) critica a concepção de ciência evolutiva, cumulativa e linear de Karl Popper (1998; 2011), admitindo a coexistência de diferentes paradigmas num dado momento histórico, isto é, a coexistência, mais ou menos conflitiva, de diferentes visões partilhadas sobre um mesmo objeto ou domínio da realidade. , a explicação para as mudanças científicas ainda se restringe às disputas entre paradigmas. Embora sejam admitidas as influências sociais sobre a ciência, não há, em sua abordagem, conceitos que permitam explicar as injunções entre o mundo da ciência e as outras esferas do mundo social.

Essa perspectiva surge somente na terceira onda de estudos da ciência, sucedendo as perspectivas epistemológica e histórica; ela se constitui a partir das contribuições de sociólogos como Bruno Latour (2000LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Ed. UNESP , 2000.) e Pierre Bourdieu (2001BOURDIEU, P. Science de la science et reflexivité. Paris: Raisons d´Agir, 2001. ; 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.). No caso deste último, em especial, a pedra de toque de seu pensamento está, justa- mente, numa explicação em dois tempos: por um lado, volta-se para o entendimento das formas de articulação interna do campo científico, por outro, e de forma complementar, direciona-se à compreensão das formas de articulação entre o domínio específico da ciência e outras esferas do mundo social, como economia, Estado etc. Para tanto, o sociólogo francês estrutura sua abordagem em torno de um conjunto de conceitos-chave como campo, habitus, formas de capital e doxa, apresentados a seguir, mas já endereçados à análise do campo de estudos do planejamento do espaço e dos territórios.

Campo, na concepção bourdieusiana, é uma unidade do mundo social dotada de relativa autonomia e que funciona a partir de regras próprias. O campo da ciência - assim como o das artes, o jurídico, o econômico, entre tantos outros - tem uma estrutura e uma dinâmica. A estrutura de um campo se organiza de acordo com os mecanismos de distribuição, em seu interior, das diferentes formas de capital utilizadas por seus membros nas disputas pelas melhores posições da hierarquia. A dinâmica de um campo é, pois, a dinâmica da luta pelas melhores posições. Cada campo guarda em seu interior unidades menores, subcampos. Assim, o campo científico é formado por um conjunto de agentes, como pesquisadores, burocracias universitárias, agências científicas, editores de revistas especializadas. E é formado também por subcampos, como os campos disciplinares (BOURDIEU, 2001BOURDIEU, P. Science de la science et reflexivité. Paris: Raisons d´Agir, 2001. ; 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.).

Para Frank et al. (2014FRANK, A. I. et al. Educating planners in Europe: A review of 21st century study programmes. Progress in Planning, v. 91, p. 30-94, jul. 2014. 10.1016/j.progress.2013.05.001
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, p. 36), apesar de secular, o campo de estudo do planejamento é relativamente novo na academia, e, semelhante a outras disciplinas acadêmicas modernas (por exemplo, a biotecnologia), o planejamento é, por natureza, interdisciplinar e “focused on problem-solving”. Tradicionalmente conduzido por engenheiros e arquitetos, surgiu como uma especialização no início do século XX e, aos poucos, adquiriu formação e profissionalização, especialmente na América do Norte e Europa. O reconhecimento do planejamento como um campo independente de estudo (e também profissional) difere consideravelmente entre países, assim como a interpretação do que o planejamento acarreta e o quê e como os planejadores deveriam fazê-lo (FAINSTAIN; CAMPBELL, 2012FAINSTAIN, S.; CAMPBELL, S. (Ed.). Readings in Planning Theory (Studies in Urban & Social Change). Chichester: Wiley-Blackwell, 2012). A diversidade é refletida na variedade de concepções profissionais e de modelos educacionais utilizados em vários países.

Vigar (2012VIGAR, G. Planning and professionalism: Knowledge, judgment and expertise in English planning. Planning Theory, v. 11, n. 4, p. 361-378, nov. 2012. 10.1177/1473095212439993
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) identifica os conteúdos comuns ao campo, citando, para tanto, Healy e Thomas (1991), quando estes dividem as áreas de conhecimento em: capacidade para manejar informação e dados; habilidade para entender organizações, redes e relações de poder; e, por fim, habilidade para avaliar, expor e deliberar sobre consequências das dinâmicas espaciais. Vigar (2012)VIGAR, G. Planning and professionalism: Knowledge, judgment and expertise in English planning. Planning Theory, v. 11, n. 4, p. 361-378, nov. 2012. 10.1177/1473095212439993
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argumenta também que a ascensão das questões ecológicas no planejamento no início dos anos 1990 introduziu uma gama de assuntos adicionais aos itens da racionalidade-técnica. Finalmente, Rydin (2007 apudVIGAR, 2012VIGAR, G. Planning and professionalism: Knowledge, judgment and expertise in English planning. Planning Theory, v. 11, n. 4, p. 361-378, nov. 2012. 10.1177/1473095212439993
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, p. 366) sugere quatro tipos de conhecimento: “Empirical: can be lay or expert knowledge with the planner as commissioner, mediator, and/ or analyst; Process: the use of models, action research; Predictive: mostly expert theoretically framed investigation of future trends; Normative: outlining possible goals for the future”. No caso brasileiro, o campo - ou subcampo - do planejamento, como foi aqui concebido, surge de outros dois campos, notadamente: o campo do planeja- mento regional e o campo do planejamento urbano. Ambos têm forte tradição no campo científico brasileiro, o que pode ser reconhecido pelas várias especialidades constituídas e institucionalizadas, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR), a Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (RBEUR) e a delimitação de uma subárea dentro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) denominada Planejamento Urbano e Regional.

Sob o ângulo das exigências externas ao campo do planejamento, das esferas das políticas públicas ou da economia, um conjunto de novos temas e questões vêm crescentemente apresentando-se: emergência da questão ambiental, interdependências entre espaços rurais e urbanos, formas de governança territorial.

Sob o ângulo das acomodações internas do campo científico, os locais tradicionais de formação dos profissionais e das teorias e instrumentos analíticos veem-se pressionados diante dessa complexificação. No caso das escolas de economia, onde tradicionalmente se formavam os planejadores regionais, por uma série de aspectos, houve um declínio no lugar ocupado por essa especialidade frente a outras, hoje mais valorizadas, como a economia financeira ou internacional. Como resultado, em muitos cursos, tal disciplina deixou inclusive de ser obrigatória. No caso das escolas de arquitetura e urbanismo, há um limite em assimilar um conjunto de especialidades que extrapolam a prática projetual e uma predominância da escala urbana no sentido estrito. A geografia, fortemente calcada na teoria e análise da estrutura social e espacial, tem no planejamento uma de suas disciplinas de formação.

A constituição de um campo específico, isto é, o do planejamento, resulta, portanto, da identificação de uma zona de convergência entre profissionais de distintos campos, como ciência política, ciência ambiental, sociologia e economia rural, e de profissionais do planejamento urbano e regional - campo já estabelecido que buscam novos espaços de interação capazes de arejar e complementar os instrumentos que suas áreas específicas lhes propiciam. Introduzem-se, assim, inovações coerentes com as formas de injunção entre o campo da formação científica e profissional e os demais campos da realidade social.

A afirmação desse campo específico do planejamento esbarra, contudo, nos mecanismos de distribuição e acumulação de capital, que estão organizados sempre em consonância com a velha ordem hierárquica, à semelhança do que ocorre no campo científico, como mostra Bourdieu (2001BOURDIEU, P. Science de la science et reflexivité. Paris: Raisons d´Agir, 2001. ; 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.). Daí ser tão difícil produzir mudanças. Há várias formas de capital que contam na afirmação de um campo científico. A principal delas é o capital científico, medido pelas publicações, financia- mentos, títulos e demais indicadores de desempenho consagrados. O que ocorre é que as especialidades anteriores - revistas, congressos e agências de financiamento demoram a reconhecer a validade dos novos enfoques e, com isso, tendem a ser relativamente refratárias a posturas, teorias, recortes de objetos e formas de delimitação do campo de atuação profissional que não se encaixem exatamente no padrão constituído. A emergência dessas novas perspectivas abala a estabilidade do lugar estabelecido pelas tradições anteriores - tanto na produção do conhecimento quanto na prática profissional. Assim, um planejador que trabalhe com temas não explicitamente urbanos ou regionais terá dificuldade de ter seus projetos aceitos quando disputar um financiamento ou algo similar com alguém devidamente enquadrado na tradição anterior. Da mesma forma, o planejador que trabalha com temas urbanos também vai deparar-se com as tradições estabelecidas nos campos da engenharia e da arquitetura. É por isso que associações profissionais, deliberadamente ou não, relutam em abrir-se para as novas perspectivas. E é pela mesma razão que a acumulação de capitais em outros domínios - como os campos específicos dos estudos ambientais, as experiências em trabalhos aplicados junto a governos e outras organizações etc. - conta como forma de acumulação de poder, a qual pressiona as fronteiras internas do campo científico, obrigando-o a revisar sua morfologia.

Finalmente, a emergência de um novo campo implica a constituição do que Bourdieu chama de um habitus específico e de uma doxa. Por habitus, entende-se um conjunto de disposições adquiridas que funcionam como um organizador de práticas. Enquanto a ideia de hábito remete a repetição, o conceito de habitus define- se como uma disposição não formalmente estabelecida, mas forte o suficiente para ser uma espécie de modo de agir coerente com as necessidades e requisitos do novo campo. Não há um novo campo sem um novo habitus que lhe corresponda. Um habitus territorial, se é que pode ser assim chamado, implica a disposição em olhar sempre para as interdependências entre escalas e dimensões da formação espacial. Isto requer uma abertura para mobilizar instâncias empíricas que põem essas escalas e dimensões em contato e para, nisso, encontrar complementaridades e diálogos entre os corpos teóricos constituídos para dar conta desse intuito - dessa forma pode-se alcançar a especificidade dos tecidos territoriais na moldagem do real. Disso advém a doxa, definida por Bourdieu como a crença fundamental que organiza cada campo. Tal como para os membros das carreiras jurídicas, que precisam acreditar no valor da justiça, ou para os médicos, que necessitam crer que a ciência promove a saúde, o planejador precisa crer e reforçar a crença de que os territórios importam para o entendimento dos demais processos econômicos, sociais e políticos. Há, pois, uma dimensão ontológica dos territórios, para além da mera escala de ocorrência de fenômenos. Nesses termos, usar a denominação territorial para nominar o campo emergente implica reconhecer que tal definição é mais abrangente e, sobretudo, mais aderente aos vetores de mudança da realidade contemporânea que a utilização das expressões e definições consagradas.

Planejamento: competências, habilidades e novos desafios

Para Frank et al. (2014FRANK, A. I. et al. Educating planners in Europe: A review of 21st century study programmes. Progress in Planning, v. 91, p. 30-94, jul. 2014. 10.1016/j.progress.2013.05.001
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), o papel do planejamento deriva de situações críticas e de crises, por exemplo, a proliferação dos novos programas acadêmicos na Europa como parte dos esforços de reconstrução após a Segunda Guerra. Para esses autores, mais recentemente, a questão do planejamento é um elemento-chave na construção de comunidades e cidades sustentáveis (Agenda Habitat) ou na prevenção e mitigação das mudanças climáticas. Especificamente na agenda europeia, as noções de planejamento espacial transnacional, coesão e integração vêm criando novas demandas.

Tal como no Brasil, os países localizados no Hemisfério Sul têm na sua trajetória de desenvolvimento contradições socioespaciais e ambientais que comprometem os territórios em suas múltiplas escalas. Por essa razão, a agenda de planejamento urbano-regional da região assume uma complexidade ainda maior que a dos países centrais. De certa forma, a geografia e a história do planejamento nos países do Hemisfério Sul não podem ser dissociadas de questões como desigualdade, informalidade, escala e proliferação de assentamentos precários e atuação clientelista e patrimonialista dos principais agentes e do Estado - aspecto destacado por Ribeiro (2002RIBEIRO, A. C. T. O ensino do planejamento urbano e regional - propostas a ANPUR. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , v. 4, n. 1/2, p. 63-73, maio/nov. 2002. 10.22296/2317-1529.2002v4n1-2p63
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) ao tratar do ensino de planejamento urbano e regional no Brasil.

Para tornar o cenário ainda mais intrincado, o planejamento também se depara com novas dinâmicas complexas e frequentemente contraditórias, entre as quais podem ser elencadas:

  • as sinergias e os conflitos entre a questão ambiental e urbana e as múltiplas agendas, projetos e estratégias articuladas em torno do tema da sustentabilidade no rural e no urbano (modernização ecológica, justiça ambiental etc.);

  • a transformação, no período pós-2015, da agenda das Metas do Milênio nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável;

  • a necessidade de superar a herança do modelo tecnoburocrático de planejamento (marcado pela racionalidade instrumental) e de aperfeiçoar as diversas formas de participação popular e de planejamento colaborativo, incluindo a experimentação de novas racionalidades comunicativas (no sentido de Habermas);

  • as possibilidades e desafios de evoluir de uma agenda estruturada em torno do direito à cidade para uma perspectiva pautada no direito de transformar a cidade (articulada com as novas insurgências e subjetividades que estão proliferando, particularmente nas cidades do Hemisfério Sul);

  • o entrelaçamento, no pós-1970, das diversas escalas de planejamento, a variedade dos processos de reescalonamento e reestruturação territorial do Estado (desenvolvimentista) e as consequências disso para o planejamento urbano e regional. No caso brasileiro, os territórios urbanos e regionais sempre representaram uma arena privilegiada (e contraditória) do nacional desenvolvimentismo. Além disso, o planejamento não pode ser dissociado da variedade de processos de neoliberalização e de mercantilização dos espaços. A reestruturação do projeto nacional-desenvolvimentista cria oportunidades para refletir e agir sobre uma agenda progressista e radicalmente democrática, estruturada em torno de uma práxis alternativa para as cidades e regiões. Essa agenda vem sendo objeto de reflexão e discussão de Piquet e Ribeiro (2008PIQUET, R., RIBEIRO, A. C. T. Tempos, ideias e lugares. O ensino do planejamento urbano e regional no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 10, n. 1, p. 49-60, maio 2008. 10.22296/2317-1529.2008v10n1p49
    https://doi.org/10.22296/2317-1529.2008v...
    ) e Randolph (2013RANDOLPH, R. O Campo do Planejamento Urbano e Regional. Em busca de uma agenda para o Planejamento Urbano e Regional: uma homenagem a Ana Clara Torres Ribeiro. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , v. 15, n. 1, p. 11-32, maio 2013. 10.22296/2317-1529.2013v15n1p11
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    ).

Considerando, nesse contexto, o papel central das ações relativas ao planeja- mento, é necessário analisar por que, no Brasil, ainda não se deu a conformação dos campos relativos ao desenvolvimento territorial e como essa ausência gera evidentes perdas de oportunidades estratégicas de desenvolvimento. Um breve levantamento do campo do planejamento no cenário internacional mostra as diferenças dele em relação ao Brasil.

Nos EUA, essa área já existe desde o início do século XX, quando várias universidades não apenas consolidaram programas de pós-graduação, mas também constituíram bacharelados em planejamento urbano e regional. A Associação Norte-Americana de Planejadores (APA) emergiu da fusão entre o Instituto dos Planejadores Norte-americanos (criado em 1917) e a Associação Norte-Americana de Planejadores Certificados (1934). A APA é uma organização não governamental independente que atua na formação de quadros, em articulação com o mundo profissional. A instituição reúne uma entidade específica para a certificação e o desenvolvimento de normas para o bom exercício (ético) da profissão. A pesquisa de Dalton (2007DALTON, L.C. Preparing planners for the breadth of practice. Journal of the American Planning Association, v. 73, n. 1, p. 35-48, 2007. 10.1080/01944360708976135
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), elaborada com base em um levantamento feito com ex-alunos, governos e com a própria APA, mostra que o perfil do planejador profissional nos EUA é abrangente, pois inclui atividades relacionadas com planejamento do uso e da ocupação do solo, desenvolvimento integrado de comunidades e bairros, planejamento e gestão de redes de infraestrutura e transporte, desenho urbano, elaboração de normas e parâmetros urbanísticos, planejamento e gestão ambiental, planejamento rural, reconversão de áreas, preservação histórica e planejamento e conservação de parques e área verdes, entre outros.

No caso norte-americano, percebe-se que o campo profissional de planejamento, marcado pela presença de competências e habilidades generalistas, entrelaça-se e complementa outras profissões estabelecidas. Dalton (2007DALTON, L.C. Preparing planners for the breadth of practice. Journal of the American Planning Association, v. 73, n. 1, p. 35-48, 2007. 10.1080/01944360708976135
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) aponta que 30% dos profissionais entrevistados que se declararam “planejador” não pertencem ao conselho profissional4 4 American Institute of Certified Planners (AICP), braço de certificação profissional da APA. ; a maioria deles se formou em áreas como geografia, administração pública, arquitetura, desenho urbano e paisagismo, engenharia e ciências ambientais.

Na Europa, a profissão de planejador também se consolidou há muito tempo. O processo de unificação do mercado europeu implicou a liberalização das restrições referentes à circulação de mão de obra e harmonização dos sistemas nacionais de formação e atuação profissional. Apesar de a Comissão Europeia não constituir diretrizes específicas para a regulamentação da profissão no mercado comum, foi o Conselho Europeu de Planejadores Espaciais (European Council of Spatial PlannersEUROPEAN COUNCIL OF SPATIAL PLANNERS. Complete Charter. International Agreement and Declaration by the National Institutes and Associations of Professional Town Planners within the European Economic Community. [Online] City: Publisher. Disponível em: http://www.ectp-ceu.eu/index.php/en/about-us-2/founding-charter?id=89 . Acesso em: 19 set. 2016.
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), uma associação internacional sem fins lucrativos criada em 1988, sendo composta pelos institutos e redes nacionais de planejamento, que se encarregou dessa responsabilidade. A instituição proporciona diretrizes e normas para harmonizar os sistemas nacionais de regulamentação, os critérios para a educação e formação, assim como o exercício da profissão. No seu estatuto, consta o amplo escopo de atuação do planejador, que, ao mesmo tempo, “é pesquisador, gestor, proponente e/ou executor de políticas ou programas de ação”5 5 European Council of Spatial Planners. Complete Charter. Disponível em: http://www.ectpceu.eu/index.php/en/about-us-2/foundingcharter?id=89 . Acesso em: 28 set. 2016. . Isso se reflete na longa listagem de atribuições e objetos, entre os quais constam o desenvolvimento econômico de áreas urbanas e rurais, a elaboração de planos para o desenvolvimento integrado, a habitação, a renovação urbana, o planejamento espacial de sistemas de transporte e energia, a paisagem, os planos de conservação, a recreação, o turismo e o acompanhamento das dimensões jurídicas do planejamento.

Nos países localizados no Hemisfério Sul, encontram-se também movimentos em prol da consolidação de um campo do planejamento. O Indian Institute for Human Settlements (IIHS), por exemplo, é uma nova universidade interdisciplinar, criada na Índia em 2006. A instituição busca avançar na formação de uma nova geração de planejadores “reflexivos”, isto é, profissionais com capacidade de articular uma reflexão crítica sobre a trajetória contraditória das cidades e áreas rurais indianas com propostas de intervenção e transformação6 6 http://iihs.co.in. Acesso em: 19 set. 2016. . O projeto político-pedagógico da instituição procura ampliar a escala e o escopo da formação profissional, até hoje concentrada no urbanismo e arquitetura, na engenharia e, num grau menor, na administração.

No Brasil, até recentemente, não existiam cursos de graduação com foco no planejamento, sendo essa formação e habilitação profissional abordada em diferentes cursos, como arquitetura e urbanismo, geografia, engenharias, economia, administração, sociologia e políticas públicas. A demanda por formação profissional na área do planejamento urbano e regional no país vem sendo suprida, em grande parte, pelos cursos de pós-graduação existentes, que se consolidaram ao longo das últimas décadas, buscando complementar a formação dos quadros profissionais de outras tradições disciplinares (RANDOLPH, 2013RANDOLPH, R. O Campo do Planejamento Urbano e Regional. Em busca de uma agenda para o Planejamento Urbano e Regional: uma homenagem a Ana Clara Torres Ribeiro. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais , v. 15, n. 1, p. 11-32, maio 2013. 10.22296/2317-1529.2013v15n1p11
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). Se a existência do grande número desses cursos mostra, por um lado, uma forte demanda na área, por outro, por serem de pós-graduação, os cursos impõem a esses profissionais um maior período de formação. Além disso, a maioria dos programas de pós-graduação prioriza a formação acadêmica e de pesquisa, não necessariamente formando quadros para a atuação nos processos de planejamento e gestão7 7 A demanda reprimida por gestores capazes de articular uma reflexão crítica e de propor transformações da práxis nos territórios pode explicar o crescimento dos mestrados profissionais reconhecidos pela CAPES na área de Planejamento Urbano e Regional. Recentemente, essa área contava com 42 cursos, dos quais oito eram de mestrados profissionais. .

Entretanto, algumas iniciativas estão em curso. A Universidade do Estado da Bahia (UNEB) implantou uma graduação em Urbanismo em 1995, com duração de quatro anos, tendo como perspectiva uma formação interdisciplinar voltada para a compreensão e ação nas dinâmicas espaciais8 8 http://www.uneb.br/salvador/dcet/urbanismo. Acesso em: 19 set. 2016. . Outra experiência, com um recorte temático direcionado ao desenvolvimento, é a da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que criou, em 2009, um curso de graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES)9 9 http://gpdes.ufrj.br/?page_id=2 . Acesso em: 19 set. 2016. . A iniciativa articula várias unidades do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) da UFRJ, como a Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (FACC), a Faculdade Nacional de Direito (FND), o Instituto de Economia (IE), o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) e a Defesa e Gestão Estratégica Internacional (DGEI). Com uma abordagem multidisciplinar, foram criados outros dois cursos de graduação: o curso com foco na Gestão Pública e Desenvolvimento Regional, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)10 10 http://www.ufopa.edu.br/academico/graduacao/cursos/ics-cursos/bacharelado-em-planejamento-de-desenvolvimento--regional . Acesso em: 28 set. 2016. ; e o curso de Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)11 11 https://www.unila.edu.br/cursos/desenvolvimento-rural-eseguranca-alimentar . Acesso em: 19 set. 2016. .

Por fim, a UFABC, constituída em 2005, implantou, em 2012, um bacharelado interdisciplinar em planejamento territorial, objeto de análise da próxima seção.

O Bacharelado em Planejamento Territorial na UFABC: uma experiência em curso

A UFABCUNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC. Projeto pedagógico. Santo André: UFABC, 2006. Disponível em: http://www.ufabc.edu.br/images/stories/pdfs/institucional/projetopedagogico.pdf . Acesso em: 19 set. 2016.
http://www.ufabc.edu.br/images/stories/p...
foi fruto de uma reinvindicação histórica de lideranças públicas e privadas surgida na década de 1980. O movimento visava à criação de uma universidade pública numa região marcada por um modelo de desenvolvimento e industrialização que, desde então, passava por rápidas transformações. A nova universidade não apenas atenderia a uma demanda regional reprimida por Ensino Superior, considerando a oferta insuficiente de vagas nas instituições existentes (a grande maioria privada), mas também contribuiria para a geração e disseminação de conhecimentos acerca dos grandes desafios da região e da própria sociedade brasileira. O resultado foi um projeto alinhado com as tendências internacionais e com as recomendações da ABC referentes à reforma do Ensino Superior brasileiro. O eixo central do projeto foi a interdisciplinaridade e o estímulo à autonomia e reflexão crítica.

A construção do Bacharelado em Planejamento Territorial (BPT) foi desencadeada a partir de uma decisão estratégica do Bacharelado em Ciências e Humanidades (BC&H) sobre cursos de formação específica que dessem continuidade à formação básica oferecida por aquele bacharelado inicial e interdisciplinar (BI), e da existência de um corpo docente permanente e colaborador já atuando nos programas de Mestrado e Doutorado em Planejamento e Gestão do Território12 12 https://sites.google.com/site/pospgt/ . Acesso em: 19 set. 2016. . A formação interdisciplinar proposta para o BPT teve como pressuposto a inserção de conteúdos obrigatórios, a partir da matriz do BC&H, e a inclusão, sempre que possível, de disciplinas existentes, compartilhando conteúdo com os cursos de Ciências Econômicas e Políticas Públicas13 13 Além das disciplinas do BC&H e do Bacharelado em Ciência e Tecnologia (BC&T), o BPT compartilha disciplinas com os cursos de Ciências Econômicas, Políticas Públicas, Engenharia Ambiental e Urbana, Relações Internacionais e Engenharia de Gestão. , principalmente. Também como pressuposto, as disciplinas foram organizadas e concebidas em diálogo com a subárea de Planejamento Urbano e Regional, com as especialidades relacionadas (definidas pelo CNPq e a CAPES) e com a Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território.

Dessa forma, o projeto pedagógico do BPT14 14 O projeto pedagógico do curso está disponível em: http://prograd.ufabc.edu.br/bpt . Acesso em: 19 set. 2016. estruturou-se em três planos de conhecimento, compreensão e habilidades: o das dinâmicas territoriais brasileiras, sendo o principal âmbito de atuação; o das redes técnicas, seus territórios e processos de organização; e o das diferentes escalas espaciais em que se dão as práticas do planejamento e gestão. Essa estrutura por eixos, como especificado abaixo, organizou conteúdos e disciplinas:

  • Leituras das dinâmicas territoriais: o objetivo desse eixo é habilitar o aluno para a compreensão de processos territoriais, com base nas contribuições disciplinares da sociologia, economia, ecologia, urbanismo, geografia, entre outras. Ele se divide em disciplinas de fundamentação e dinâmicas territoriais, permitindo uma reflexão crítico-propositiva. Concentra a maior parte das disciplinas obrigatórias, incluindo grande parte das disciplinas do BC&H e daquelas que são compartilhadas com outros cursos vinculados ao bacharelado interdisciplinar citado, especialmente das Ciências Econômicas, Políticas Públicas e Relações Internacionais.

  • Instrumentos e bases complementares: tem por objetivo abordar áreas setoriais e de conhecimento específico e de fundamentos técnicos e metodológicos para o planejamento territorial. O eixo está dividido em métodos e técnicas e políticas setoriais. Nele, concentram-se as disciplinas de opção limitada, algumas compartilhadas com os cursos de Políticas Públicas, Engenharia de Gestão e Engenharia Ambiental Urbana.

  • Integração e síntese: visa a desenvolver método/abordagem/prática a partir das disciplinas de fundamentação e instrumentais sobre temáticas e recortes específicos voltados para o planejamento territorial. Esse eixo se divide em teorias e práticas do planejamento. Concentra as disciplinas obrigatórias com carga horária prática, como as disciplinas no formato de oficinas, estruturadas conforme as modalidades de planejamento macro, meso e microrregional, rural, de áreas periurbanas, interioranas, urbano e governança metropolitana.

A matriz curricular sugerida para o BPT é distribuída em 12 quadrimestres (ou 4 anos), sendo os dois primeiros desenvolvidos no BC&H. A partir do quinto quadrimestre, considerando a organização por eixos, a matriz sugerida segue com disciplinas obrigatórias e de opção limitada do BPT e também as que são disponibilizadas em outros cursos da UFABC. O BPT coaduna com a proposta da UFABC de oferecer cursos, especialmente de graduação, consonantes com as necessidades da ciência, da sociedade e do mercado de trabalho na contemporaneidade.

Uma reflexão em torno de uma agenda no campo do planejamento no Brasil

Pelo exposto, é evidente e, ao mesmo tempo, paradoxal certa desarticulação em um campo estratégico para o desenvolvimento do país, isto é, o planejamento do espaço e dos territórios. De um lado, presencia-se, em algumas IES, a movimentação em prol de uma formação interdisciplinar alinhada com as novas tendências de ensino e aprendizagem em geral e, em particular, com os desafios que cercam o planejamento urbano e regional no Brasil. Ao discutir brevemente a experiência específica da UFABC, que vem consolidando um bacharelado em Planejamento Territorial, é possível perceber inúmeras interfaces e alinhamentos com a perspectiva de formação para os desafios do século XXI, inclusive com experiências internacionais. De outro, nota-se que os conselhos profissionais ainda não elaboraram estratégias para dialogar com os campos em formação, especialmente na área em questão. No sentido oposto, esses mesmos conselhos vêm ampliando a lista de atribuições das categorias profissionais que compõem a sua base corporativa, desconsiderando que a maioria das IES ainda não é capaz de articular as novas habilidades e competências associadas ao emergente campo do planejamento do espaço e dos territórios.

Pautadas nos princípios da liberdade de aprendizagem, ensino, pesquisa e divulgação do pensamento, assim como aliadas ao pluralismo de ideais e concepções pedagógicas, as universidades têm autonomia para criar seus cursos de graduação, com o propósito de formar diplomados nas diferentes áreas do conhecimento, de ter a capacidade de se inserir na vida profissional e de contribuir para o desenvolvimento da sociedade brasileira. A autonomia didático-científica, prevista pela Constituição Federal e reafirmada na Lei Nacional de Diretrizes e Bases da Educação15 15 Constituição Federal (Art. 206, incisos II, III e 207), Lei Federal 9394/1996 de Diretrizes e Bases (Artigos 3 II e III, 28, art. 43, incisos III) e Decreto 5773/2006. , garante o lugar das instituições acadêmicas nas reformulações de projetos pedagógicos para acompanhar os avanços da ciência e das novas dinâmicas do mercado de trabalho. É preciso destacar também que, dadas as dinâmicas sociais e da ciência em curso, diversas áreas do conhecimento e da atuação profissional não estão cobertas por sistemas de regulamentação e fiscalização, como é o caso das emergentes habilitações surgidas com a sociedade da informação (por exemplo, os bacharelados na área da computação e da informática).

Em razão das imbricações das relações entre planejamento e reprodução da vida individual e coletiva no espaço urbano, rural e regional, o exercício profissional se depara com um grande desafio, pautado no próprio caráter interdisciplinar da sua atuação. Grande parte de suas atuações já foram regulamentadas por vários tipos de categoriais profissionais, de forma compartimentada, específica, como as dos economistas, engenheiros, agrônomos, geógrafos, operadores do direito, arquitetos e urbanistas. No entanto, diversas áreas, algumas ainda em formação, não são regulamentadas. Em outras palavras, apesar de a formação do planejador articular várias áreas do conhecimento, a legislação brasileira que regulamenta as outras profissões trata das categorias que afetam a atuação do planejador de forma isolada e fragmentada.

Dentre as possibilidades, a regulamentação do profissional multidisciplinar, como o planejador, demandaria a articulação de vários conselhos profissionais. Assim, para os vários campos de contato entre as atuações de economistas, agrônomos, geógrafos, engenheiros, arquitetos e urbanistas, biólogos - contatos estes que norteiam a formação e atuação no campo do planejamento -, seria necessário estabelecer pontos de conexão entre os sistemas de regulamentação profissional, que ainda atuam de forma compartimentada.

Emerge, portanto, um cenário de rápidas transformações, incertezas e perguntas referentes à formação e atuação profissional no campo do planejamento urbano e regional. As contradições socioespaciais e ambientais que marcam as cidades e regiões brasileiras exigem que se paute urgentemente uma agenda que mobilize a sociedade brasileira em torno da busca de respostas e impulsione um “novo planejamento para um novo Brasil” (LIMONAD; CASTRO, 2014LIMONAD, E.; CASTRO, E. (Org.). Um novo planejamento para um novo Brasil? Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.). Ao mesmo tempo, abrem-se as possibilidades de criar novas formas de produção de conhecimento sobre o território, novas concepções e práticas de planejamento que não se limitem ao conhecimento fragmentado, ao contrário, que busquem a totalidade. Para isso, é necessária a realização de uma crítica transformadora sobre a própria produção de conhecimento e suas implicações práticas. Mais do que isso, é necessário que se abram possibilidades para espaços de diferença no campo do planejamento.

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    » https://doi.org/10.1177/1473095212439993
  • 1
    Academia Brasileira de Ciências (2004)ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS. Subsídios para a Reforma da Educação Superior. Rio de Janeiro: ABC, 2004..
  • 2
    O REUNI, programa do Ministério da Educação iniciado em 2003, é uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que tem a promoção de inovações pedagógicas entre suas metas. Foram criados, em seu âmbito, bacharelados interdisciplinares em diversas universidades federais brasileiras.
  • 3
    Thomas Kuhn (2011)KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2011. critica a concepção de ciência evolutiva, cumulativa e linear de Karl Popper (1998POPPER, K. R. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. ; 2011POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2011.), admitindo a coexistência de diferentes paradigmas num dado momento histórico, isto é, a coexistência, mais ou menos conflitiva, de diferentes visões partilhadas sobre um mesmo objeto ou domínio da realidade.
  • 4
    American Institute of Certified Planners (AICP), braço de certificação profissional da APA.
  • 5
    European Council of Spatial Planners. Complete Charter. Disponível em: http://www.ectpceu.eu/index.php/en/about-us-2/foundingcharter?id=89 . Acesso em: 28 set. 2016.
  • 6
    http://iihs.co.in. Acesso em: 19 set. 2016.
  • 7
    A demanda reprimida por gestores capazes de articular uma reflexão crítica e de propor transformações da práxis nos territórios pode explicar o crescimento dos mestrados profissionais reconhecidos pela CAPES na área de Planejamento Urbano e Regional. Recentemente, essa área contava com 42 cursos, dos quais oito eram de mestrados profissionais.
  • 8
  • 9
    http://gpdes.ufrj.br/?page_id=2 . Acesso em: 19 set. 2016.
  • 10
  • 11
  • 12
    https://sites.google.com/site/pospgt/ . Acesso em: 19 set. 2016.
  • 13
    Além das disciplinas do BC&H e do Bacharelado em Ciência e Tecnologia (BC&T), o BPT compartilha disciplinas com os cursos de Ciências Econômicas, Políticas Públicas, Engenharia Ambiental e Urbana, Relações Internacionais e Engenharia de Gestão.
  • 14
    O projeto pedagógico do curso está disponível em: http://prograd.ufabc.edu.br/bpt . Acesso em: 19 set. 2016.
  • 15
    Constituição Federal (Art. 206, incisos II, III e 207), Lei Federal 9394/1996 de Diretrizes e Bases (Artigos 3 II e III, 28, art. 43, incisos III) e Decreto 5773/2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2016
  • Aceito
    21 Set 2016
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