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Vantagens comparativas reveladas e divisão inter-regional do trabalho na economia brasileira

Revealed comparative advantages and interregional division of labor in the Brazilian economy

Resumo

O objetivo deste trabalho é capturar possíveis mudanças no modo de inserção das economias regionais nas cadeias nacionais de valor por meio da utilização de indicadores de vantagens comparativas, desenvolvidos por Béla Balassa e aperfeiçoados por Gérard Lafay, e de indicadores de trocas intraindustriais, elaborados por Herbert Grubel e Peter Lloyd e aprimorados por Antonio Aquino. Com base no comércio inter-regional, desagregado por setores produtivos, extraem-se duas constatações. A primeira é que, em termos de valor agregado, a produção industrial continua fortemente concentrada. A outra aponta para a sedimentação de uma segunda divisão inter-regional do trabalho, que se segue ao processo de desconcentração da produção industrial iniciado nos anos 1970. Após esse período, as participações dos estados menos desenvolvidos nas cadeias nacionais de valor são reorientadas de forma paulatina para a oferta de bens semimanufaturados, de baixa intensidade tecnológica e intensivos tanto em mão de obra como em matérias-primas. Dessa maneira, mudanças significativamente importantes ocorrem na hierarquia do modo de inserção das economias regionais nas cadeias nacionais de valor, possíveis de serem reveladas somente com base na disponibilidade de Matrizes Interestaduais de Insumo-Produto.

Palavras-chave:
Desigualdade Regional; Concentração Espacial Produtiva; Desenvolvimento Econômico

Abstract

The objective of this work is to capture possible changes in the insertion mode of regional economies in national value chains using comparative advantage indicators, developed by Béla Balassa and improved by Gérard Lafay, and intra-industry trade indicators developed by Herbert Grubel and Peter Lloyd and improved by Antonio Aquino. Based on inter-regional trade, disaggregated by productive sectors, two findings are extracted. The first is that in terms of aggregate value, industrial production continues to be highly concentrated. The second points to the sedimentation of a second inter-regional division of labor that follows the de-concentration process of industrial production that began in the 1970s. After this period, the participation of the less developed states in the national value chains are gradually reoriented toward the supply of semi-manufactured goods, of low technological intensity and intensive in manpower and raw materials. Thus, there are significantly important changes in the hierarchy of the insertion mode of the regional economies in the national value chains, only possible to be revealed through the availability of the Interstate Input-Output Matrices.

Keywords:
Regional Inequality; Spatial Concentration of Production; Economic Development

Introdução

A lógica de fragmentação internacional dos processos produtivos, entendida como uma divisão das etapas de produção e distribuição entre diferentes países, tende a se reproduzir nos subespaços nacionais, sobretudo em economias de dimensões territoriais, como a brasileira. Em outras palavras, a especialização vertical, materializada pelo aumento do comércio de bens intermediários, em proporção ao total do comércio de bens e serviços, tende também a se reproduzir entre regiões de uma mesma economia. Ao mesmo tempo em que se estruturam as cadeias globais de valor, as regiões menos desenvolvidas das economias nacionais tendem igualmente a se especializar na produção ou em etapas da produção de bens intermediários ou de bens de consumo final de menor valor agregado. Por essa razão, argumenta-se que a distribuição espacial da estrutura produtiva da economia brasileira pode ser representada por um sistema fragmentado e hierarquizado, definido em função das participações e das posições que cada estado ocupa nas cadeias nacionais de valor.

As Cadeias de Valor compreendem o conjunto de etapas dos processos de produção de bens e serviços, desde a pesquisa e desenvolvimento para suas concepções, fabricação e comercialização. Isso envolve redes complexas de fornecedores de insumos e bens intermediários, assim como extensas redes de distribuição dos bens finais. Conforme salientam Pol Antràs e Alonso de Gortari (2020ANTRÀS, P.; GORTARI, A. de. On the geography of Global Value Chains. Econometrica, 84(4):1553-1598, 2020.), as Cadeias de Valor, até os anos 1970, eram predominantemente locais, de modo que a estrutura das vantagens comparativas e a dinâmica de especialização internacional das economias nacionais podiam ser caracterizadas pelo comércio de bens e serviços de diferentes setores. Em geral, fala-se de uma primeira divisão internacional do trabalho entre economias de diferentes níveis de desenvolvimento. As economias desenvolvidas se especializam na produção de manufaturados, enquanto as subdesenvolvidas são fornecedoras de produtos primários, minerais ou agrícolas.

A partir do início dos anos 1980, em função de mudanças no paradigma tecnoprodutivo conduzidas pelas tecnologias da informação e comunicações, assim como por mudanças nos processos do trabalho e diante de significativa redução dos custos de transportes, as empresas tendem a organizar a produção em escala global. Em busca de reduzir os custos de produção, os processos produtivos das grandes empresas são segmentados, decompostos ou fragmentados entre diferentes países e/ou regiões. De forma bastante precoce, Bernard Lassudrie-Duchêne (1982)LASSUDRIE-DUCHENE, B. Décomposition internationale des processus productifs et autonomie nationale. In: BOURGUINAT, H. (ed.). Internationalisation et autonomie de décision. Paris: Economica, 1982. pp. 45-56. descreve a dinâmica entre fragmentação internacional dos processos produtivos e divisão internacional do trabalho. Nessa mesma linha, Gary Gereffi e Miguel e Roberto Korzeniewicz (1994 GEREFFI, G.; KORZENIEWICZ, M.; KORZENIEWICZ, R. Introduction: global commodity chains. In: GEREFFI, G.; KORZENIEWICZ, M. (ed.). Commodity chains and global capitalism. Westport, CT: Praeger, 1994. p. 1-14.) ressaltam as relações entre cadeias globais de commodities e divisão internacional de trabalho. O conceito dessas cadeias não parecia ser suficientemente abrangente para descrever a lógica da fragmentação internacional dos processos produtivos, restrita não só ao comércio de commodities; além disso, deixava de fora o princípio organizador das cadeias globais de produção, que consistia na agregação de valor em cada um dos elos produtivos. Assim, depois de realizar alguns aperfeiçoamentos, Gary Gereffi, John Humphrey e Timothy Sturgeon (2005)GEREFFI, G.; HUMPHREY, J.; STURGEON, T. The Governance of Global Value Chains. Review of International Political Economy, 12(1), p. 78-104, 2005. forjam o conceito de Cadeias Globais de Valor1 1 Para os interessados na genealogia do conceito de Cadeias Globais de Valor, em suas formas de mensuração e nos métodos para avaliação das formas de participação das economias nacionais, sugere-se a leitura do texto de Gary Gereffi (2018) e do trabalho organizado por Stefano Ponte, Gary Gereffi e Gale Raj-Reichert (2019). GEREFFI, G. Global Value Chains and development: redefining the contours of 21st century capitalism. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2018. PONTE, S.; GEREFFI, G.; RAJ-REICHERT, G. (ed.). Handbook on Global Value Chains. Cheltenham, UK: Edward Elgar Publishing, 2019. .

Sob a égide das Cadeias Globais de Valor, observa-se o crescimento do comércio de bens intermediários em relação ao total do comércio entre diferentes países e/ou regiões. Em cada etapa da produção, empresas localizadas em diferentes países agregam valor ao bem final que será montado em um país diferente dos anteriores ou retornará a um dos pontos da cadeia de valor para sua montagem e preparação a fim de ser distribuída e comercializada em mercados diversos. Conforme assinalam Richard Baldwin e Anthony Venables (2013BALDWIN, R.; VENABLES, A. J. Spiders and snakes: offshoring and agglomeration in the global economy. Journal of International Economics, 90.2, p. 245-254, 2013.) ou ainda Pol Antràs e Alonso de Gortari (2020ANTRÀS, P.; GORTARI, A. de. On the geography of Global Value Chains. Econometrica, 84(4):1553-1598, 2020.), as cadeias de valor podem assumir inúmeras formas, tendo como ponto comum as formas de agregação de valor em cada um de seus elos. Nesse contexto, a estrutura das vantagens comparativas, a dinâmica de especialização internacional e os ganhos resultantes do comércio internacional são determinados mediante a participação e a posição das economias nacionais nas Cadeias Globais de Valor. De acordo com as participações e posições de cada economia em tais cadeias, fala-se em uma segunda divisão internacional do trabalho, na qual as economias mais desenvolvidas se especializam nas etapas de produção de maior valor agregado ou de maior intensidade tecnológica, e as economias periféricas se especializam nas etapas intermediárias de produção, com menor valor agregado, ou simplesmente participam das etapas de montagem dos bens finais.

Segundo o que se afirmou no primeiro parágrafo desta introdução, a lógica da fragmentação espacial dos processos produtivos, com a organização da produção em cadeias globais de valor e o surgimento de uma nova hierarquia entre as economias nacionais na economia do mundo, que culmina em uma segunda divisão internacional do trabalho, tende a se reproduzir nos subespaços nacionais, sobretudo em economias de dimensões territoriais, como é o caso da brasileira. Dessa forma, os movimentos de desconcentração espacial do crescimento econômico do país, iniciado nos anos 1970, podem ser compreendidos dentro dessa lógica. Mais ainda, ao contrário das teses predominantes, argumenta-se aqui que não há contratendências suficientemente fortes, capazes de promover uma reconcentração espacial da produção industrial no Brasil. O processo de desconcentração produtiva continua.

O processo de desconcentração da produção industrial entre os estados brasileiros, observado no início da década de 1970, embora possa parecer mais lento que o desejado pelas regiões menos desenvolvidas, tende a ser persistente, sem riscos iminentes de um processo de reconcentração produtiva. Por fim, com base no comércio inter-regional, desagregado por setores produtivos, constata-se que se encontra em curso a sedimentação de uma segunda divisão inter-regional do trabalho, quebrando o padrão de divisão inter-regional forjado durante o processo de industrialização da economia brasileira. Observa-se uma mudança na forma hierárquica do modo de inserção das economias regionais, definida em função das participações e das posições que cada estado ocupa nas cadeias nacionais de valor. Nesse sentido, os trabalhos clássicos sobre desigualdades regionais, processo de concentração produtiva, desconcentração produtiva a partir dos anos 1970 e reconcentração a partir dos anos 1990 precisam ser revisitados.

Admite-se que a fotografia das desigualdades regionais é fruto de um longo processo histórico. Como se pode inferir das teses de Celso Furtado ([1959] 1977)FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 15. ed. São Paulo: Editora Nacional, [1959] 1977. e Wilson Cano ([1977] 2007CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, [1977] 2007.; 1985CANO, W. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil 1930-1970 - 1970-1995. 2. ed. rev. e aum. Campinas: Ed. da Unicamp, 1985.), por quaisquer critérios pelos quais se possa definir região2 2 Como existem vários “Brasis”, existem também vários nordestes, sudestes etc. Aqui, em face da disponibilidade de dados comparativos, com todas as implicações conhecidas, as desigualdades regionais serão tratadas tomando por base a configuração político-administrativa dos estados nacionais vigente no ano de 2020. , durante o período do Brasil Colônia, as economias regionais se ligavam diretamente às metrópoles, apresentando baixa integração comercial. Nesse contexto, não se podia falar ainda de divisão inter-regional do trabalho. Entretanto, a gênese das desigualdades regionais já se encontrava explícita na estrutura dos nexos de cada região com o exterior. Assim, as diferenças econômicas entre as regiões do país eram forjadas principalmente pelos ciclos dos produtos que as conectavam com o exterior. Com o desencadear do processo de industrialização, conforme assinala Francisco de Oliveira ([1972] 1981OLIVEIRA, F. Economia brasileira: crítica à razão dualista. 4. ed. Petrópolis: Vozes, [1972] 1981.; 1977aOLIVEIRA, F. de. Elegia para uma re(li)gião: Sudene. Planejamento e conflito de classes. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a.; 1977bOLIVEIRA, F. de. A economia da dependência imperfeita. Rio de Janeiro: Graal, 1977b.), acentuam-se as desigualdades e desenha-se uma primeira divisão inter-regional do trabalho entre as regiões brasileiras.

Ainda durante a fase incipiente do processo de industrialização, entre 1850 e 1929, conforme retrata Wilson Cano ([1977] 2007CANO, W. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, [1977] 2007.; 1985CANO, W. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil 1930-1970 - 1970-1995. 2. ed. rev. e aum. Campinas: Ed. da Unicamp, 1985.), uma confluência de fatores, históricos, políticos, econômicos e institucionais, contribuiu para que houvesse maior concentração da produção na região Sudeste, em particular no estado de São Paulo. Desse modo, subordinada ao capital cafeeiro, ao fim da primeira fase do processo de industrialização da economia brasileira, por volta de 1929, São Paulo contava com uma indústria e uma agricultura diversificadas e mais competitivas que aquelas localizadas em todas as demais regiões do país. Enfim, em virtude de economias de escalas crescentes, a concentração da produção no estado de São Paulo garantiu que, após a grande depressão dos anos 1930, a retomada do crescimento econômico culminasse no aprofundamento da concentração da produção, sobretudo da industrial.

Entre 1930 e 1970, a produção industrial não só se concentrou em São Paulo, como o estado se tornou o centro produtivo catalizador, a partir do qual se articulava a produção dos demais estados brasileiros. Nesse período começa se consolidar uma divisão inter-regional do trabalho, e São Paulo se posiciona no centro da dinâmica da acumulação nacional. Em função dos tipos de bem que produzem, as demais economias estaduais se integram em zonas periféricas concêntricas, de forma complementar à indústria paulista. Durante toda a fase do processo de substituição de importações, economias de escala reforçaram a concentração produtiva, ainda que todas as regiões do país, todos os estados brasileiros, pudessem beneficiar-se do crescimento do estado de São Paulo, que ditava a dinâmica da acumulação do capital no Brasil. Ademais, durante todo esse período, como São Paulo continuava a crescer mais que a média nacional, os desequilíbrios regionais se acentuavam, atingindo o ápice da concentração industrial por volta de 1970.

Após o cume da concentração industrial no estado de São Paulo, sob a batuta dos Planos Nacionais de Desenvolvimento, de investimentos públicos e de incentivos fiscais e financeiros para o desenvolvimento regional, observou-se um processo de desconcentração produtiva entre as regiões brasileiras. As nuanças desses movimentos podem ser apreendidas por meio dos ensinamentos de Wilson Cano (2008CANO, W. Desconcentração produtiva regional no Brasil 1970-2010. 3. ed. São Paulo: Ed. da Unesp, 2008.), Carlos Roberto Azzoni (1986AZZONI, C. R. Indústria e reversão da polarização no Brasil. São Paulo: IPE-USP, 1986.), Clélio Campolina Diniz (1993DINIZ, C. C. Desenvolvimento poligonal no Brasil: nem desconcentração, nem contínua polarização. Nova Economia, v. 3, n. 1, p. 35-64, 1993.), Leonardo Guimarães Neto (1995GUIMARÃES, L. NETO . Dinâmica recente das economias regionais brasileiras. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 86, p. 123-152, 1995.; 1997GUIMARÃES, L. NETO . Desigualdades e políticas regionais no Brasil: caminhos e descaminhos. Planejamento e Políticas Públicas, IPEA, Brasília, n. 15, p. 41-95, 1997.) ou ainda de Carlos Américo Pacheco (1996PACHECO, C. A. A questão regional brasileira pós-1980: desconcentração econômica e fragmentação da economia nacional. 1996. Tese (Doutorado) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.; 1998PACHECO, C. A. A fragmentação da nação. Campinas: Ed. da Unicamp, 1998. 292 p.). Os três pontos comuns dos estudos desses autores podem ser assim resumidos: i) a desconcentração produtiva sempre esteve longe de reduzir os problemas causados pelas disparidades dos desenvolvimentos regionais; ii) os riscos de um processo de reconcentração industrial não são desprezíveis; e iii) o padrão de divisão inter-regional do trabalho forjado durante o processo de industrialização da economia brasileira tende a ser reforçado pela dinâmica de acumulação do capital no espaço nacional.

Sobre os pontos comuns entre as teses clássicas a respeito da dinâmica de desconcentração da produção industrial entre os estados brasileiros, observada no início da década de 1970, não restam dúvidas de que se trata de uma evidência incontestável. No entanto, como afirmado anteriormente, deve-se chamar atenção para três pontos: i) não parece haver riscos de um processo de reconcentração da produção industrial; ii) o padrão de divisão inter-regional do trabalho forjado durante o processo de industrialização da economia brasileira não tende a ser reforçado pelas transformações na dinâmica de acumulação do capital no espaço nacional iniciada no começo dos anos 1970; iii) embora persistam grandes desigualdades do desenvolvimento regional, as economias periféricas não só podem aproveitar o crescimento das economias estaduais mais desenvolvidas, como podem, igualmente, crescer mais do que elas. O que vem acontecendo, desde os primeiros anos da desconcentração produtiva, é uma mudança na forma hierárquica do modo de inserção das economias regionais nas cadeias nacionais de valor.

Tais mudanças não foram antes reveladas por falta de dados no formato adequado para esse tipo de análise. Por exemplo, os dados do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) sobre o comércio interestadual fornecem informação sobre o local em que os bens são transacionados, mas não oferecem pistas sobre os estados que contribuíram direta e/ou indiretamente para a definição do seu valor. Esses dados também não informam como o bem será utilizado pelos estados. Seguindo Robert Koopman, Zhi Wang e Shang-Jin Wei (2014KOOPMAN, R.; WANG, Z.; WEI, S.-J. Tracing value-added and double counting in gross exports. The American Economic Review, v. 104, n. 2, p. 459-94, 2014.), cada economia (países ou regiões) pode exportar bens genuinamente locais com destinação ao consumo final ou ao consumo intermediário de outras economias. Os bens intermediários podem servir à composição de um bem final na economia exportadora ou à composição de outro bem intermediário que será reexportado para outro estado qualquer, inclusive para aquele que deu origem ao processo de trocas. As exportações de produtos de cada economia (países ou regiões) também podem resultar de produtos importados pelo estado para adição local de valor e posterior comercialização com outros estados, sob a forma de bens finais ou bens intermediários de produção. Cada um desses processos pode cruzar as fronteiras de cada economia mais de uma vez para agregação de valor.

Com vistas a rastrear o valor agregado dos fluxos comerciais de países, é preciso organizar informações comerciais em Matrizes Mundiais de Insumo-Produto. Para cumprir esse objetivo, destacam-se três iniciativas: i) Multi-Region Input-Output (MRIO); ii) World Input-Output Database (WIOD) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); e iii) Trade in Value-Added (TiVA) da Organização Mundial do Comércio (OMC). Dessas bases de dados, que oferecem matrizes anuais com início em 1990, deriva-se uma série de indicadores para mapear e avaliar as Cadeias Globais de Valor. Da mesma forma, para rastrear o valor agregado dos fluxos comerciais entre os estados brasileiros, é necessário dispor de Matrizes Interestaduais de Insumo-Produto. No Brasil, esse tipo de trabalho está apenas começando, na medida em que existe, até o presente, apenas uma matriz de insumo-produto que estima as inter-relações técnico-produtivas e comerciais para os 26 estados brasileiros e o Distrito Federal, produzida pelo Núcleo de Economia Regional e Urbana da Universidade de São Paulo (Nereus).

Somente após a disponibilização de Matrizes Interestaduais de Insumo-Produto é que se podem revelar aspectos ainda ocultos das relações técnico-produtivas e comerciais entre estados brasileiros e repensar o papel de cada uma das economias estaduais nas cadeias nacionais de valor. Em particular, o trabalho ora apresentado mostra, por meio de indicadores de vantagens comparativas reveladas e de indicadores de trocas intraindustriais, aspectos não capturados pela literatura clássica da economia regional. As economias estaduais menos desenvolvidas podem continuar aproveitando os ciclos de crescimento das economias estaduais mais avançadas. A desconcentração da produção industrial pode não sofrer um revés, como apontam os trabalhos clássicos. Contudo, denota-se uma concentração em termos de valor agregado. Por exemplo, economias periféricas da região Nordeste podem ser exportadoras de automóveis para outras regiões. Mas, o conteúdo de produtos importados na produção desses bens não lhes garante vantagens comparativas. Dessa maneira, há uma mudança do modo de inserção das economias regionais nas cadeias nacionais de valor.

Com o propósito de capturar possíveis mudanças no modo de inserção das economias regionais nas cadeias nacionais de valor, serão utilizados os indicadores de vantagens comparativas, desenvolvidos por Béla Balassa (1965BALASSA, B. Trade liberalisation and revealed comparative advantage. Manchester School of Economic and Social Studies, v. 33, p. 99-123, 1965.; 1966BALASSA, B. Tariff reductions and trade in manufactures among industrial countries. American Economic Review, v. 56, p. 466-473, 1966.) e aperfeiçoados por Gérard Lafay (1989LAFAY, G.; HERZOG, C. Commerce international: la fin des avantages acquis. Economica, 1989. ), assim como os indicadores de trocas intraindustriais de Herbert Grubel e Peter Lloyd (1975GRUBEL, H.; LLOYD, P. Intra-Industry trade. The theory and measurement of international trade in differentiated products. London: Macmillan Press, 1975. 205 p.), aprimorados por Antonio Aquino (1978AQUINO, A. Intra-industry trade and inter-industry specialization as concurrent sources of international trade in manufactures. Weltwirtschaftliches Archiv, v. 114, p. 275-296, 1978.). Com esse intuito, além desta introdução e das conclusões gerais, o trabalho está estruturado em três seções. A primeira traz uma revisão dos fundamentos teóricos que apoiam os argumentos apresentados neste texto. A segunda é dedicada à apresentação da base de dados e dos procedimentos metodológicos utilizados para o cálculo dos indicadores propostos. Na terceira, analisam-se os resultados encontrados e se agrupam as principais conclusões e considerações finais.

Fragmentação inter-regional dos processos produtivos

A fragmentação inter-regional dos processos produtivos modula os modos de inserção das economias regionais nas cadeias nacionais de valor. De acordo com as teorias do comércio em concorrência imperfeita e com a nova geografia econômica3 3 Sobre as origens das teorias do comércio em concorrência imperfeita e economias de escala, pode-se consultar o trabalho de Elhanan Helpman e Paul Krugman (1986). Para desenvolvimentos posteriores dessa abordagem, sugere-se o trabalho de Elhanan Helpman (2013). HELPMAN E.; KRUGMAN, P. Market structure and foreign trade (increasing returns, imperfect competition, and the international economy). 2nd ed. Cambridge, Massachusetts: MIT, 1986. HELPMAN, E. Foreign trade and investment: Firm-level perspectives. Cambridge, Massachusetts: NBER, 2013. (Texto para discussão, n° 19.057). , os mecanismos são tais que um aumento da produção ligada à dinâmica de especialização, definida pela fragmentação inter-regional dos processos produtivos, reforça a escala de produção dos setores concernentes. A produtividade do conjunto desses fatores cresce. Os preços dos produtos correspondentes se reduzem. A qualidade, tanto a intrínseca quanto a extrínseca, do que é produzido melhora em função dos efeitos de aprendizagem dinâmica (pela prática, pelo uso ou por interações). Transformações nas relações preço/qualidade aumentam a capacidade de os produtores venderem seus produtos nos mercados internos e externos. A produção à especialização aumenta e novos ganhos de escala se juntam aos primeiros.

Em termos dinâmicos, a especialização técnico-produtiva pode gerar círculos viciosos ou virtuosos em termos de crescimento e resultados comerciais. O conceito de competitividade transforma-se: ele perde suas características microeconômicas para se fixar no nível macroeconômico, mais próximo do conceito de competitividade sistêmica, em que se destaca a semelhança dos termos definidos por Luciano Coutinho e João Carlos Ferraz (1995COUTINHO, L. G.; FERRAZ, J. C. (coord.). Estudo da competitividade da indústria brasileira. Campinas: Papirus, 1995. ). Nesse contexto, a avaliação do modo de inserção das economias regionais nas cadeias nacionais de valor deve ser mensurada pela contribuição da especialização produtiva ao crescimento econômico de longo prazo. Em termos multissetoriais, seria necessário saber se a dinâmica de especialização contribui para reforçar ou enfraquecer a coerência do sistema produtivo da economia em questão.

Ora, se os modos de inserção nas cadeias de valor provocam efeitos incertos sobre as estruturas de produção, será preciso avaliar a qualidade da especialização produtiva. Para isso, pode-se tomar como ponto de partida a análise das externalidades dos setores sobre os quais as economias constroem suas vantagens competitivas. É preciso, portanto, mensurar os efeitos de encadeamentos, diretos e indiretos, a montante e a jusante, dos setores relativos à especialização sobre as estruturas produtivas nacionais ou regionais. Isso compreende mensurar os efeitos da especialização produtiva sobre i) as taxas e a composição setorial do crescimento econômico; ii) a estrutura de repartição das rendas; e iii) as trajetórias de absorção e de difusão de inovações tecnológicas.

O ponto de partida para apreender as questões sintetizadas no parágrafo anterior é estudar a especialização das economias regionais. Para isso, toma-se como fundamento a estrutura das vantagens comparativas reveladas com base nas trocas industriais inter-regionais entre os estados brasileiros. A realização dessa tarefa só é possível por conta da disponibilidade de matrizes inter-regionais de insumo-produto, que descrevem as inter-relações produtivas e comerciais entre regiões de um país no nível de setores produtivos. Dito isso, a próxima seção dedica-se à apresentação da metodologia para identificar as vantagens comparativas reveladas para os 26 estados brasileiros e o Distrito Federal.

Indicadores de vantagens comparativas reveladas

No quadro do Nereus, Eduardo Haddad, Carlos Alberto Gonçalves Júnior e Thiago Oliveira Nascimento (2017HADDAD, E.; GONÇALVES, C. A. JÚNIOR ; NASCIMENTO, T. O. Matriz Interestadual de Insumo-Produto para o Brasil: uma aplicação do Método IIOAS. Revista Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos, v. 11, n. 4, p. 424-446, 2017.) produziram uma matriz de insumo-produto que estima as inter-relações técnico-produtivas e comerciais para 68 setores produtivos dos 26 estados brasileiros, mais o Distrito Federal. Para o desenvolvimento dos indicadores utilizados nesse trabalho, foram retidas as transações industriais interestaduais, descritas por duas matrizes básicas: i) a Matriz T, de Transações Intermediárias de Produção; e ii) a Matriz D, de Demanda Final.

A Matriz T, de dimensão igual a 1.836 linhas e 1.836 colunas, revela as compras e vendas de insumos produtivos (bens intermediários de produção) realizadas entre os estados brasileiros. As linhas dessa matriz mostram o destino da produção de cada setor para o consumo intermediário no próprio estado e os itens exportados para o consumo intermediário nos demais estados da federação. As colunas da Matriz T mostram as compras de insumos intermediários da produção empregados pelos setores em cada estado para gerar o total da produção de cada setor nos estados.

A Matriz D, de dimensão igual a 1.836 linhas por 81 colunas, evidencia as compras e vendas de bens finais, segmentadas por consumo das famílias, investimentos e gastos do governo, transacionadas entre os estados brasileiros. As linhas dessa matriz mostram, para cada estado, o destino da produção de cada setor para o consumo final das famílias, empresas e governo, inclusive no estado produtor. Suas colunas exibem, para todos os estados, a origem dos produtos consumidos sob a forma de bens finais pelas famílias, empresas e governo em cada estado.

Tendo em vista que os objetivos deste trabalho é estudar as relações interindustriais interestaduais, foram retidas apenas as relações comerciais de exportações e importações de 36 setores industriais representados na matriz do Nereus. Com o aporte dessas relações, construíram-se os indicadores de vantagens comparativas reveladas e os indicadores do comércio intraindustrial, conforme se descreve nas linhas que se seguem.

Vale assinalar que os indicadores de vantagens comparativas reveladas e comércio interindustrial foram inicialmente desenvolvidos para tratar da competitividade entre países. Entretanto, as pesquisas sobre competitividade têm se voltado crescentemente para os espaços subnacionais, uma vez que a produtividade dos fatores pode diferir de maneira significativa entre as fronteiras de um país. Neste trabalho, a comutação entre o internacional e o inter-regional faz ainda mais sentido, pois se supõe que a lógica da fragmentação internacional dos processos produtivos tende a se reproduzir nos subespaços nacionais, sobretudo em economias de dimensões territoriais, como a brasileira.

Para o indicador de vantagens comparativas reveladas, tomou-se como ponto de partida o clássico indicador proposto por Béla Balassa (1965BALASSA, B. Trade liberalisation and revealed comparative advantage. Manchester School of Economic and Social Studies, v. 33, p. 99-123, 1965.), que associa vantagens comparativas reveladas ao desempenho exportador de países ou regiões para determinados produtos, grupos de produtos ou setores. Para um setor i de um país j, Béla Balassa compara a razão entre as exportações do setor i pelo total das exportações do país j com a razão entre o total das exportações do setor i de uma zona de referência pelo total das exportações da zona de referência. Em termos formais, o indicador de vantagens comparativas reveladas de Béla Balassa (1965)BALASSA, B. Trade liberalisation and revealed comparative advantage. Manchester School of Economic and Social Studies, v. 33, p. 99-123, 1965. pode ser expresso por meio da Equação (1).

B B 65 = X i , j i X i , j Σ i Σ j X i , j Σ j X i , j (1)

Tal indicador assume valores iguais ou maiores que 1. Se, para o setor i, o indicador é maior que 1, o país ou região j apresenta vantagens comparativas reveladas, dado que suas exportações são proporcionalmente maiores que as exportações da zona de referência. Ao contrário, quanto menor que 1, ou mais próximo de 0, maiores são as desvantagens competitivas do país ou região para o setor em análise.

Um dos principais problemas desse indicador de Béla Balassa é que só leva em consideração as exportações e, portanto, não é capaz de expressar as trocas intraindustriais. Se um país exporta e importa do mesmo setor, mesmo exportando em um montante superior à zona de referência, não se pode afirmar, a priori, que tenha vantagens competitivas. Ou seja, um país ou uma região pode exportar mais que a média da zona de referência e ainda assim incorrer em um déficit na sua balança comercial. Nesse caso, talvez fosse correto intuir que tal região ou país apresenta desvantagens competitivas. Com o intuito de sanar esse problema, o próprio Béla Balassa (1966)BALASSA, B. Tariff reductions and trade in manufactures among industrial countries. American Economic Review, v. 56, p. 466-473, 1966. propôs um segundo indicador simples de contribuição de cada um dos setores produtivos aos saldos comerciais de zonas de comércio, que pode ser representado por meio da Equação (2).

B B 66 = X i - M i X i + M i (2)

Esse segundo indicador de Béla Balassa é simplesmente o resultado dos saldos comerciais do setor i (Xi - Mi) ponderado pelo peso que representa o comércio do setor i no total do comércio do país (X + M). Se BB66 é maior que 0 (BB66 > 0), diz-se que o país apresenta vantagens comparativas reveladas na produção do setor concernente. Ao contrário, se BB66 for menor que 0 (BB66 < 0), conclui-se que o país apresenta desvantagens competitivas. Para a economia como um todo (país ou região), esse indicador também pode ser aplicado, bastando considerar o saldo comercial agregado sobre o total do comércio do país ou da região.

No quadro do Centre d’Études Prospectives et d’Informations Internationales (CEPII), Gérard Lafay e Colette Herzog (1989LAFAY, G.; HERZOG, C. Commerce international: la fin des avantages acquis. Economica, 1989. ) demostram que o indicador de Béla Balassa pode ter vieses de vantagens competitivas quando a balança comercial se encontra desequilibrada. No limite, se uma economia apresenta déficit em todos os setores, o indicador de Balassa revela desvantagens comparativas para todos eles. Ao contrário, se todos os setores têm saldos positivos, o indicador de Balassa evidencia vantagens competitivas para os setores em sua totalidade. Nesses casos, o país ou região acumularia vantagens absolutas em todos os setores. Portanto, não haveria a possibilidade de existirem vantagens comparativas. Tal como descreve a Equação (3), o indicador do CEPII procura corrigir esse problema, ponderando o indicador de Béla Balassa por meio da normalização dos saldos comerciais.

C E P I I = 100 . X i - M i i ( X i + M i ) - X i + M i i ( X i + M i ) . i ( X i - M i ) i ( X i + M i ) (3)

A leitura do indicador do CEPII é a mesma do indicador de Béla Balassa. Valores positivos indicam a presença de vantagens comparativas, enquanto valores negativos indicam desvantagens comparativas. É fácil verificar que, para os casos em que a balança comercial de um país ou região se encontra equilibrada, o indicador do CEPII oferece os mesmos resultados do indicador de Balassa. Entretanto, para os casos de desequilíbrios da balança comercial (déficit ou superávit) não se pode concluir a priori pela existência de vantagens ou desvantagens comparativas. Não existe igualmente a possibilidade de um país ou região acumular vantagens ou desvantagens absolutas em todos os setores, como é possível acontecer com o segundo indicador de vantagens comparativas de Béla Balassa.

Para apreender a importância do comércio intraindustrial - correspondente às trocas (exportações e importações) de bens e serviços similares ou de um mesmo setor produtivo -, recorreu-se ao indicador GL, proposto por Herbert Grubel e Peter Lloyd (1975GRUBEL, H.; LLOYD, P. Intra-Industry trade. The theory and measurement of international trade in differentiated products. London: Macmillan Press, 1975. 205 p.), derivado diretamente do indicador de Balassa (1966BALASSA, B. Tariff reductions and trade in manufactures among industrial countries. American Economic Review, v. 56, p. 466-473, 1966.), conforme se vê na Equação (4).

G L = 1 - X i - M i X i + M i (4)

O indicador GL assume valores entre 0 e 1. Para GL igual a 0, todo comércio do setor i ocorre entre indústrias. Portanto, não existe comércio intraindustrial. Ao contrário, para GL igual a 1, todo comércio do setor i ocorre dentro da própria indústria. Para aplicar o indicador de Grubel e Lloyd à economia como um todo, considera-se o complemento do agregado do módulo do saldo comercial do país ou região sobre seu total de comércio. O resultado informa, para um país ou região, o percentual do total das trocas que ocorrem entre diferentes setores e o percentual das trocas intraindustriais.

Uma vez que são aceitas as críticas de Lafay e Herzog (1989LAFAY, G.; HERZOG, C. Commerce international: la fin des avantages acquis. Economica, 1989. ) ao indicador de Béla Balassa (1966BALASSA, B. Tariff reductions and trade in manufactures among industrial countries. American Economic Review, v. 56, p. 466-473, 1966.), deve-se também corrigir o indicador de Grubel e Lloyd (1975GRUBEL, H.; LLOYD, P. Intra-Industry trade. The theory and measurement of international trade in differentiated products. London: Macmillan Press, 1975. 205 p.). Para isso, inúmeras possiblidades surgiram depois da proposição de Antonio Aquino (1978AQUINO, A. Intra-industry trade and inter-industry specialization as concurrent sources of international trade in manufactures. Weltwirtschaftliches Archiv, v. 114, p. 275-296, 1978.)4 4 Para os interessados nas críticas das correções introduzidas por Aquino (1978) e em alguns desdobramentos posteriores, sugere-se consultar o trabalho de David Greenaway e Chris Milner (1986). GREENAWAY, D.; MILNER, C. The economics of intra-industry trade. New York: Basil Blackwell, 1986. . Porém, as alternativas metodológicas não parecem alterar a hierarquia do comércio intraindustrial entre as economias. Assim, por simplicidade, para efetuar o seu cálculo, e pelo fato de ser um complemento do indicador de vantagens comparativas do CEPII, foi retido o indicador de Aquino, cuja expressão algébrica pode ser representada pela Equação (5), em que Xi e Mi são as exportações do setor i, ponderadas pela soma das exportações e importações de cada país ou região.

A A = 1 - i X i M - M i X 2 M X (5)

Apesar da força teórica do conceito de trocas intraindustriais, os estudos empíricos em que esse indicador foi empregado apresentam algumas restrições. Um dos problemas para tornar operacional o conceito de trocas intraindustriais refere-se ao elevado nível de agregação dos dados de exportações e importações. Em geral, o elevado nível de agregação das estatísticas disponíveis tende a superestimar o volume do comércio intraindustrial. Tais trocas refletem principalmente uma demanda por diferenciação. Os dados agregados, contudo, não conseguem estabelecer as diferenças entre uma demanda por diferenciação vertical (produtos com a mesma utilidade, mas contando com diferentes níveis de qualidade) e uma demanda por diferenciação horizontal (produtos de qualidade comparável, mas avaliados pelos consumidores de formas distintas em face da reputação de marcas etc.)5 5 David Greenaway, Robert Hine e Chris Milner (1994) propõem um indicador que busca distinguir do total do comércio intraindustrial parcela correspondente ao comércio intraindustrial vertical do comércio intraindustrial horizontal. GREENAWAY, D.; HINE, R.; MILNER, C. Country-specific factors and the pattern of horizontal and vertical intra-industry trade in UK. Weltwirtschaftliches Archiv, v. 130, n. 2, p. 418-427, 1994. .

Mesmo considerando os limites teóricos e empíricos dos indicadores de vantagens comparativas e dos indicadores de trocas interindustriais, estes ainda podem oferecer uma ideia do lugar das economias nas cadeias de valor. Eles são os melhores indicadores de especialização industrial. Quando aplicados à economia regional, podem ajudar a estabelecer uma hierarquia dos seus modos de inserção nas cadeias nacionais de valor.

Uma nova hierarquia dos modos de inserção das economias estaduais nas cadeias nacionais de valor

Nesta seção, busca-se estabelecer uma hierarquia das economias estaduais nas cadeias nacionais de valor pautados nos indicadores de vantagens comparativas reveladas apresentados na seção anterior. Para isso, avaliam-se: a estrutura das vantagens comparativas reveladas, a estrutura das vantagens comparativas pela contribuição aos saldos comerciais e o perfil das trocas interestaduais intraindustriais.

Estrutura das vantagens comparativas reveladas.

Para a produção agregada, constata-se grande disparidade entre os tamanhos das economias estaduais. O estado de São Paulo destaca-se das demais economias, uma vez que responde por 34,04% de tudo o que é produzido no país. Os sete estados mais ricos da federação (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia e Santa Catarina) agrupam 75,60% do PIB da economia brasileira. Considerando apenas o PIB industrial, foco deste trabalho, a concentração produtiva é ainda mais forte. As sete maiores economias do país são responsáveis por 79,02% da produção industrial. O estado de São Paulo mantém a liderança, com 33,87% de toda a produção industrial do país.

Os estados mais ricos apresentam igualmente maior diversificação da produção industrial e domínio sobre a produção de setores com maior valor agregado. Essas duas características permitem que a produção industrial de cada estado se ligue às cadeias produtivas nacionais por meio de um número maior de elos produtivos e aumente suas influências sobre a dinâmica produtiva da economia brasileira como um todo. Sobre esse aspecto, ressalta-se o papel aglutinador do estado de São Paulo, que, além de concentrar mais de um terço da produção industrial brasileira, é também o que apresenta maior diversificação da produção industrial e vantagens competitivas em setores de maior valor agregado. A estrutura produtiva da economia paulista contrasta com a especialização da segunda economia estadual brasileira, a do estado do Rio de Janeiro, que concentra diretamente cerca de 72% de sua produção industrial nas atividades de extração e refino do petróleo e na petroquímica. Com efeito, supõe-se que o desempenho da economia fluminense esteja fortemente ligado ao comportamento dessas atividades.

Não apenas o tamanho das economias estaduais, mas principalmente suas estruturas produtivas condicionam seus modos de inserção nas cadeias nacionais de valor. Em geral, tem-se que, em média, 66,38% da produção industrial de cada estado é exportada para outros estados sob a forma de insumos intermediários de produção ou de bens de consumo final. Mais ainda, do total da produção em cada estado, nenhum deles consome internamente mais que exporta para os demais estados. Contudo, há uma restruturação marcante da hierarquia no que se refere ao modo de inserção de cada uma das economias regionais nas cadeias nacionais de valor. Por exemplo, estados como Bahia, Goiás e Ceará passam a produzir e a exportar automóveis para outros estados. Entretanto, o mais importante a observar é o conteúdo de insumos importados para compor a produção desses bens. Por outro lado, a economia do Rio de Janeiro, segunda maior do país, apresenta a sua produção fortemente concentrada nas atividades de extração e refino do petróleo.

Em termos absolutos, as grandes economias são responsáveis por 78% do total das exportações para outros estados. A liderança mais uma vez fica com São Paulo, seguido do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, do Paraná, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e da Bahia. Se São Paulo lidera a diversificação das exportações de bens industriais para outros estados, a economia do Rio de Janeiro, dentre as sete maiores do país, é aquela cuja pauta de exportações para os demais estados é a mais concentrada. No que concerne à estrutura das vantagens comparativas reveladas, São Paulo é a economia estadual com maior diversificação. Também por esse ângulo, a primeira e a segunda maiores economias estaduais contam com estruturas de vantagens comparativas bastante desiguais. De um lado, São Paulo exporta mais que a média da economia em 18 dos 36 setores produtivos, destacando-se os setores de maior valor agregado. De outro, o Rio de Janeiro concentra suas vantagens comparativas em extração e refino do petróleo, bem como em impressões e reprodução de gravações e siderurgia. Mais uma vez, apesar do peso das atividades de petróleo e gás para a economia brasileira como um todo, o estado fluminense depende densamente de poucos setores para ligar-se às cadeias nacionais de valor. Dentre as sete principais economias do Brasil, o Rio de Janeiro é a que concentra suas vantagens competitivas em um número menor de setores. Isso aponta para uma forte vulnerabilidade do estado para enfrentar flutuações econômicas.

Seguindo com a análise das vantagens comparativas reveladas das demais economias, tem-se que Minas Gerais, a terceira do país, apresenta seus principais pontos fortes nas indústrias extrativas (extração de minério de ferro, extração de minerais não ferrosos, extração de carvão mineral e de minerais não metálicos) e na pecuária. Acumula outros pontos fortes na transformação direta da indústria extrativa (siderurgia e metalurgia de metais não ferrosos). Apresenta vantagens comparativas na produção de automóveis, assim como de peças e acessórios para veículos automotores, além de pontos fortes em produtos de carne. Com isso, parece haver integração entre o primeiro e o segundo estágio da produção industrial nesse estado. Como contraponto ao modo de inserção da economia mineira nas cadeias nacionais de valor, pode-se tomar a economia do Pará, por ser igualmente competitiva nas indústrias extrativas. Contudo, ao contrário do estado em foco, o grau de integração a jusante e a montante da produção desses setores é relativamente baixo na economia paraense, o que limita suas contribuições para o crescimento econômico de Minas Gerais.

As três economias da região Sul, embora apresentem diferentes estruturas de vantagens competitivas, possuem um ponto em comum: a combinação de atividades de capital intensivo com atividades de mão de obra intensiva. Vejamos alguns traços da estrutura competitiva dessas economias. Os principais pontos fortes de Santa Catarina consistem em dois setores de mão de obra intensiva, vestuário e produtos têxteis, além de um setor de capital intensivo: fabricação de máquinas e equipamentos elétricos. O Rio Grande do Sul tem vantagens competitivas na indústria petroquímica, na fabricação de máquinas e de equipamentos mecânicos, aliadas a uma forte indústria agropecuária (fumo, produtos alimentares e carnes), à indústria de calçados e artefatos de couro e à indústria moveleira. Por fim, entre as economias dessa região, o Paraná dispõe de vantagens competitivas na indústria de fabricação de automóveis; na de máquinas e equipamentos elétricos e na de agropecuária. Esse estado apresenta vantagens competitivas nas indústrias de celulose, papel e papelão, bastante integradas às indústrias de produtos da madeira e de móveis.

Em tese, a combinação da especialização produtiva dos estados da região Sul, embora em setores diversos, permite maior equilíbrio entre crescimento, criação de empregos médios e melhor estrutura de distribuição de renda.

Dentre as sete economias mais importantes do país, a Bahia só não tem vantagens comparativas mais concentradas que a economia do Rio de Janeiro. Esse estado apresenta vantagens comparativas reveladas na petroquímica (fabricação de químicos orgânicos e inorgânicos e refino do petróleo); na extração de minerais metálicos não ferrosos integrada ao setor de metalurgia dos não ferrosos e fundição de metais; na produção florestal, na pesca e na aquicultura; na agricultura; na pecuária; na fabricação de automóveis e na fabricação de calçados e artefatos de couro. Vale ressaltar, porém, que, a despeito de a Bahia ter vantagens comparativas nesses oito segmentos produtivos, exportando mais que a média nacional, outros estados contam com vantagens comparativas maiores. A Bahia só aparece à frente dos demais competidores nas atividades de refino de petróleo, como tradicional ofertadora de produtos petroquímicos primários para agregação de valor em outros estados.

Para as demais economias com menor grau de desenvolvimento, há, em geral, forte concentração das vantagens comparativas em setores de baixa intensidade tecnológica. Apesar disso, as atividades de menor valor agregado ligadas às atividades agrícolas, pecuária e produção florestal ainda são dominadas por grandes economias. O que acontece é que as economias do Norte e do Nordeste são mais dependentes delas. Em menor medida, o mesmo acontece com as atividades das indústrias de extração mineral. No que tange àquelas de origem extrativa, exceto a extração de petróleo e gás, destacam-se as economias de Minas Gerais, Pará e Espírito Santo. Todavia, os estados do Amapá e de Roraima, e a economia do Pará como único grande exportador, são mais dependentes da extração mineral que Minas Gerais. Rio de Janeiro, Espírito Santo Sergipe e Rio Grande do Norte são fortemente dependentes das atividades de extração de petróleo para o funcionamento de suas economias.

Contribuição aos saldos comerciais

Com base no indicador de vantagens comparativas de contribuição aos saldos comerciais, no tocante ao conjunto dos estados brasileiros, verifica-se que São Paulo e Santa Catarina apresentam as maiores diversificações das vantagens comparativas. Cada um deles conta com dezessete setores que contribuem positivamente para os saldos comerciais. As maiores vantagens comparativas do estado de São Paulo localizam-se nos setores de farmoquímicos e farmacêuticos e na fabricação de químicos orgânicos e inorgânicos. As principais desvantagens competitivas localizam-se nos setores de abate e produtos de carne e atividades do refino do petróleo. O estado de Santa Catarina apresenta as maiores vantagens competitivas na confecção de artefatos de vestuário e na fabricação de produtos têxteis. As maiores desvantagens, por seu turno, estão nas atividades de fabricação de automóveis e refino de petróleo.

Paraná e Minas Gerais ocupam o segundo lugar no ranking da diversificação das vantagens competitivas, sendo relevante enfatizar que dezesseis setores contribuem positivamente para os saldos comerciais dessas economias. Os principais pontos fortes da economia paranaense situam-se nos setores da agricultura e da fabricação de automóveis. Minas Gerais tem dentre seus principais pontos fortes a indústria de produção de ferro-gusa e de ligas de ferro, a siderurgia e a pecuária. O principal ponto fraco dessas duas economias reside no refino de petróleo.

A indústria do Rio Grande do Sul conta com quinze atividades produtivas, contribuindo positivamente para seus saldos comerciais. Como pontos fortes, sobressaem a fabricação de calçados e artefatos de couro, a fabricação de máquinas e equipamentos mecânicos e a agricultura. As desvantagens são detectadas nos setores de confecção de artefatos do vestuário e no setor de refino de petróleo.

A Bahia tem como principais pontos fortes a fabricação de químicos orgânicos e inorgânicos e a agricultura. Os pontos fracos estão na indústria de abate de produtos da carne e no refino de petróleo. Dentre as sete maiores economias do país, a Bahia é aquela com a maior dependência dos setores da agricultura e da pecuária para a geração dos saldos comerciais. É mais dependente dessas atividades para a dinâmica da sua economia e menos competitiva que as economias dos estados do Paraná, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Essa posição fragiliza o modo de inserção da economia baiana nas cadeias nacionais de valor.

A economia do Rio de Janeiro, dentre as sete mais importantes do Brasil, é aquela cujas vantagens competitivas, medidas pelas contribuições aos saldos comerciais, são as mais concentradas do país. A atividade de extração de petróleo e gás contribui, sozinha, com 21,96 pontos para os saldos comerciais fluminenses. Esse número só não é maior que o da contribuição da atividade de extração de petróleo para o Espírito Santo (24,52). Tais números mostram a forte dependência dessa atividade para as economias desses estados. Um ponto comum entre seis das sete grandes economias brasileiras são as desvantagens competitivas localizadas na atividade de refino de petróleo. Ressalta-se que apenas o estado do Rio de Janeiro apresenta vantagens competitivas nessa atividade produtiva.

Considerando as atividades de agricultura e pecuária, verifica-se que a contribuição aos saldos comerciais dessas atividades é maior nas pequenas economias das regiões Norte e Nordeste. É interessante notar que os maiores competidores e produtores nacionais de tais atividades são as economias do Centro-Oeste (Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás). Contudo, as pequenas economias dessas duas regiões são mais dependentes dessas atividades para o funcionamento das suas economias.

Para as atividades extrativas, exceto extração de petróleo, verifica-se que a contribuição aos saldos comerciais é maior nas pequenas economias do Norte (Amapá, Pará, Roraima e Rondônia) e em um único estado do Nordeste (Rio Grande do Norte). Dentre as grandes economias, Minas Gerais é o único estado a apresentar uma taxa de dependência das atividades extrativas destinada a contribuir para saldos comerciais acima da média da economia brasileira.

No que concerne à indústria de extração de petróleo, destacam-se os estados do Espírito Santo, do Rio de Janeiro, do Sergipe e do Rio Grande do Norte. Tais atividades têm uma contribuição marginal para os saldos comerciais relativos a Alagoas, Bahia e Amazonas. Para todos os demais estados da federação, as atividades de extração de petróleo contribuem negativamente para os saldos comerciais. Em outras palavras, todas as demais economias apresentam desvantagens competitivas no que diz respeito a esse setor.

Em síntese, as vantagens comparativas, medidas pelo indicador de contribuição aos saldos comerciais, da produção da agricultura e da pecuária, estão localizadas principalmente nas economias do Norte e do Nordeste. Para as indústrias extrativas, com exceção do estado de Minas Gerais, verifica-se forte concentração das vantagens comparativas dessas atividades nos estados da região Norte e no Rio Grande do Norte, no Nordeste. Em geral, pode-se afirmar que existe uma dependência expressiva das economias menos avançadas com relação às atividades de menor valor agregado. Os estados menos industrializados se especializam na produção de setores menos intensivos em tecnologia e apresentam uma estrutura produtiva menos diversificada, restringindo os elos de articulação com as cadeias produtivas nacionais.

Comércio interestadual intraindustrial

O comércio intraindustrial corresponde, no nível de agregação produtiva adotado neste trabalho, à troca de produtos de um mesmo setor industrial. Portanto, estamos interessados em revelar o grau de especialização intrasetorial das economias dos estados brasileiros, decorrentes supostamente da exploração de economias de escala e de estratégias de localização das empresas em concorrência monopolística, nos termos de Paul Krugman (1979KRUGMAN, P. Increasing returns, monopolistic competition, and international trade. Journal of International Economics, 9, p. 469-479, 1979.; 1980KRUGMAN, P. Scale economies, product differentiation, and the pattern of trade. The American Economic Review, 70, n. 5, p. 950-59, 1980.; 1981KRUGMAN, P. Intraindustry specialization and the gains from trade. Journal of Political Economy, 89, p. 959-973, 1981.)6 6 Para os interessados em uma revisão sobre as teorias do comércio internacional e suas relações com as estratégias de investimentos diretos estrangeiros, sugere-se a leitura do seguinte texto: HELPMAN, E. Foreign trade and investment: Firm-level perspectives. Cambridge, Massachusetts: NBER, 2013. (Texto para discussão, n° 19.057). . Entre os estados brasileiros, 52,88% - portanto, mais da metade das trocas interestaduais - são resultantes do comércio intraindustrial.

Pode-se notar que pequenas economias, sobretudo as das regiões Norte e Nordeste, concentram suas trocas entre diferentes indústrias. Em geral, as economias dessas regiões exportam produtos primários (agrícolas e extração mineral) e importam produtos da indústria de transformação. Isso revela menor integração e uma posição em produtos de menor valor agregado nas cadeias nacionais de valor. Da região Nordeste, Bahia e Pernambuco são os únicos estados em cujas economias as trocas intraindustriais superam a marca de 60% do total do comércio.

Quanto às economias do Sudeste, o Espírito Santo é o único estado em que as trocas entre indústrias superam as trocas intraindustriais. As vantagens competitivas da economia capixaba concentram-se fortemente nas atividades de extração de petróleo. Em menor medida é o que acontece com a economia do Rio de Janeiro, que também concentra a maior parte das suas vantagens competitivas nesse setor. A contribuição para os saldos comerciais de tais atividades para as economias desses dois estados é, respectivamente, de 24,52% e 21,96%. Vale ressaltar que o setor de extração de petróleo é o de menor índice de trocas intraindustriais. Por fim, dentre as sete grandes economias, os destaques vão para as economias do Paraná, de São Paulo, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Elas são as mais integradas às cadeias nacionais de valor, por meio das trocas intraindustriais.

Considerações finais

Junto ao processo de desconcentração da produção industrial surge um novo traço, característico de uma segunda divisão inter-regional do trabalho, que marcar as características das desigualdades do desenvolvimento regional do país, manifestadas entre estados e regiões, bem como entre os estados dentro de cada região. A produção industrial continua ainda muito concentrada. Mas, quando desagregada por setores produtivos, os estados mais pobres, principalmente os das regiões Norte e Nordeste, concentram suas produções em poucos setores produtivos de baixo valor agregado. Assim, em que pese a desconcentração produtiva, as relações comerciais entre os estados brasileiros são assinaladas por uma divisão do trabalho de trocas desiguais.

Vamos começar registrando o acentuado contraste entre as economias de São Paulo e do Rio de Janeiro, primeira e segunda do Brasil. Embora São Paulo tenha reduzido a sua participação no valor da transformação industrial entre os anos de 1989 e 2017, o estado ainda lidera com folga a produção agregada (indústria e serviços). O mais importante, no entanto, é verificar a liderança do estado na acumulação de vantagens comparativas nos setores de maior valor agregado, além de apresentar maior diversificação industrial e de vantagens comparativas. Destaca-se sua liderança na oferta e na demanda de insumos industriais e de produtos destinados à demanda final. Em contrapartida, enquanto São Paulo tem forte diversificação produtiva e de vantagens comparativas, a estrutura industrial da economia do Rio de Janeiro se mostra intensamente concentrada e dependente das atividades de extração e refino de petróleo.

No que diz respeito às cadeias produtivas nacionais, há expressiva conexão das economias estaduais, o que pode ser aferido pelas relações comerciais entre os estados brasileiros. Em média, cerca de dois terços da produção de cada estado são exportados sob a forma de bens intermediários ou de bens finais para os demais estados da federação. Em geral, as economias do Norte e do Nordeste exportam mais intensamente produtos agrícolas e outros característicos da indústria extrativa e são pouco integradas às demais indústrias dos respectivos estados. Porém, a despeito da forte dependência dessas atividades para a dinâmica da produção em cada estado, as pequenas economias das regiões Norte e Nordeste perdem em competitividade para produtores tradicionais dos estados da região Centro-Oeste e mesmo para as grandes economias industriais.

Para as indústrias extrativas, exceto petróleo, Minas Gerais e Pará são os grandes exportadores dos produtos dessas indústrias para outros estados da federação. A economia de Minas Gerais, por ser mais diversificada, é menos dependente dessas indústrias que a do Pará. Mais uma vez, as pequenas economias do Norte são as mais dependentes dessas atividades para sua própria dinâmica interna. Para a indústria de extração de petróleo, Rio de Janeiro e Espírito Santo são os grandes exportadores para os demais estados e fortemente dependentes dessas atividades.

No que concerne à estrutura das vantagens competitivas, com exceção do Rio de Janeiro, as economias mais industrializadas são as que apresentam o maior grau de diversificação produtiva. Essas economias, além de dominarem maior número de setores, têm suas vantagens comparativas situadas em setores de maior valor agregado. Em tais aspectos, São Paulo distingue-se de todas as demais economias, ao acumular vantagens comparativas em um número maior de setores.

Para as outras seis grandes economias, mencionam-se na sequência alguns destaques da estrutura de vantagens comparativas. Primeiro: diferentemente da indústria do Pará, o estado de Minas Gerais integra as indústrias extrativas e agropecuárias a estágios mais avançados da cadeia de valor. Segundo: as economias da região Sul (Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina), não obstante acumulem vantagens comparativas em diferentes setores, combinam indústrias de capital-intensivo com indústrias de mão de obra intensiva. Em tese, essa característica permite que essas economias trafeguem por uma trajetória de crescimento com a criação de empregos médios e uma estrutura melhor de distribuição de renda. Por fim, dentre as sete grandes economias, a Bahia possui uma estrutura de vantagens comparativas não tão concentrada quanto a do estado do Rio de Janeiro, mas não suficientemente diversificada como as cinco outras grandes economias.

No que se refere à contribuição dos setores para os saldos comerciais, São Paulo e Santa Catarina se consolidam com os maiores índices de diversificação de vantagens comparativas. Com exceção do Rio de Janeiro, todas as demais seis maiores economias apresentam desvantagens competitivas na indústria do refino de petróleo. As grandes economias são mais competitivas na agricultura e na pecuária que as pequenas, mas são menos dependentes que estas no que tange à geração de saldos comerciais. Para as indústrias extrativas, exceto a do petróleo, verifica-se fenômeno semelhante. Por exemplo, Pará e Minas Gerais são grandes exportadores de produtos resultantes de atividades extrativas minerais. No entanto, com relação à economia mineira, a economia paraense é muito mais dependente dessas atividades para a estruturação da própria economia.

O último traço das relações comerciais entre os estados brasileiros decorre do indicador de comércio intraindustrial. Cerca de 53% do comércio interestadual é intraindustrial. Para as economias menos desenvolvidas do Norte e do Nordeste, ainda prevalece o comércio entre diferentes indústrias. Na divisão inter-regional do trabalho, salvo Bahia e Pernambuco, nas demais economias das regiões Norte e Nordeste prevalecem as trocas entre diferentes indústrias. A maior parte das economias dessas regiões exporta produtos primários (agrícolas, pecuária e extração mineral) e importa produtos da indústria de transformação com maiores índices de valor agregado.

Cabe agora revelar alguns limites deste estudo e apontar seus possíveis desdobramentos. Quanto aos limites, os dados utilizados poderiam ser mais atuais e desagregados para gerar uma visão mais precisa da estrutura das vantagens comparativas e das trocas intraindustriais entre os estados brasileiros. Trata-se de um grande desafio, uma vez que sua realização depende da construção de matrizes de insumo de produtos ainda maiores. No tocante aos desdobramentos, poder-se-ia testar uma possível relação, teoricamente bem estabelecida, entre a estrutura da produção das economias regionais e suas trajetórias de crescimento e distribuição de renda. Com isso, abrem-se perspectivas para estudar como os modos de inserção das economias regionais nas cadeias nacionais de valor podem favorecer ou frear o desencadeamento de um círculo virtuoso de crescimento e distribuição em cada estado.

Outro possível desdobramento do trabalho é mensurar os efeitos diretos e indiretos, a montante e a jusante, dos setores à especialização, sobre as estruturas produtivas regionais, as taxas e a composição setorial do crescimento econômico. A especialização periférica que define a segunda divisão inter-regional do trabalho não impede que as economias de regiões menos desenvolvidas cresçam mais que as economias das regiões mais desenvolvidas, consolidando o processo de desconcentração produtiva. De todo modo, é preciso deixar claro que a forma de especialização produtiva das economias periféricas regionais pode não eliminar, em futuro próximo, o fosso que as separa das grandes economias estaduais no que diz respeito à distribuição de renda e bem-estar de suas populações.

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  • PACHECO, C. A. A fragmentação da nação Campinas: Ed. da Unicamp, 1998. 292 p.
  • 1
    Para os interessados na genealogia do conceito de Cadeias Globais de Valor, em suas formas de mensuração e nos métodos para avaliação das formas de participação das economias nacionais, sugere-se a leitura do texto de Gary Gereffi (2018) e do trabalho organizado por Stefano Ponte, Gary Gereffi e Gale Raj-Reichert (2019). GEREFFI, G. Global Value Chains and development: redefining the contours of 21st century capitalism. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2018. PONTE, S.; GEREFFI, G.; RAJ-REICHERT, G. (ed.). Handbook on Global Value Chains. Cheltenham, UK: Edward Elgar Publishing, 2019.
  • 2
    Como existem vários “Brasis”, existem também vários nordestes, sudestes etc. Aqui, em face da disponibilidade de dados comparativos, com todas as implicações conhecidas, as desigualdades regionais serão tratadas tomando por base a configuração político-administrativa dos estados nacionais vigente no ano de 2020.
  • 3
    Sobre as origens das teorias do comércio em concorrência imperfeita e economias de escala, pode-se consultar o trabalho de Elhanan Helpman e Paul Krugman (1986). Para desenvolvimentos posteriores dessa abordagem, sugere-se o trabalho de Elhanan Helpman (2013). HELPMAN E.; KRUGMAN, P. Market structure and foreign trade (increasing returns, imperfect competition, and the international economy). 2nd ed. Cambridge, Massachusetts: MIT, 1986. HELPMAN, E. Foreign trade and investment: Firm-level perspectives. Cambridge, Massachusetts: NBER, 2013. (Texto para discussão, n° 19.057).
  • 4
    Para os interessados nas críticas das correções introduzidas por Aquino (1978) e em alguns desdobramentos posteriores, sugere-se consultar o trabalho de David Greenaway e Chris Milner (1986). GREENAWAY, D.; MILNER, C. The economics of intra-industry trade. New York: Basil Blackwell, 1986.
  • 5
    David Greenaway, Robert Hine e Chris Milner (1994) propõem um indicador que busca distinguir do total do comércio intraindustrial parcela correspondente ao comércio intraindustrial vertical do comércio intraindustrial horizontal. GREENAWAY, D.; HINE, R.; MILNER, C. Country-specific factors and the pattern of horizontal and vertical intra-industry trade in UK. Weltwirtschaftliches Archiv, v. 130, n. 2, p. 418-427, 1994.
  • 6
    Para os interessados em uma revisão sobre as teorias do comércio internacional e suas relações com as estratégias de investimentos diretos estrangeiros, sugere-se a leitura do seguinte texto: HELPMAN, E. Foreign trade and investment: Firm-level perspectives. Cambridge, Massachusetts: NBER, 2013. (Texto para discussão, n° 19.057).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2021
  • Aceito
    09 Dez 2021
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