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Assessoria e Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social: do discurso à construção da prática profissional1 1 Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelo financiamento desta pesquisa realizado através do processo 2018/19656-7.

Resumo

Neste artigo, é proposto um diálogo entre as noções de Assessoria e Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), partindo de um ponto em comum: a atividade de arquitetos e urbanistas. São comentados o histórico de ações voltadas a essa área e as recentes discussões e atividades realizadas após a aprovação da Lei nº 11.888/2008, promovidas sobretudo por entidades representativas desses profissionais. Tal diálogo, acreditamos, poderia fomentar a construção de um novo ideário profissional e uma agenda capaz de delimitar mais claramente o que poderia se constituir como campo de atuação dos profissionais dedicados à ATHIS. Desde a sanção da referida lei, há certa efervescência de debates entre arquitetos e urbanistas sobre o assunto, mas sem um consenso sedimentado sobre qual deve ser o formato técnico e político das ações. Enquanto seguem as disputas em torno do tema, a falta de clareza abre brechas para o surgimento de propostas controversas e discussões que não contribuem para introduzir mudanças estruturais na forma de assessorar ou mesmo de produzir a moradia popular.

Palavras-chave:
Assistência Técnica; Assessoria Técnica; Habitação de Interesse Social; Políticas Públicas de Habitação; Prática Profissional

Abstract

In this article, we propose a dialogue between the concepts of Technical Assistance and Support for Social Housing (ATHIS), starting from a common point: the professional activity of architects and urban planners. We discuss the history of actions taken in this area, together with the recent discussions and activities that have been undertaken after the approval of Law 11,888/2008, mainly by the entities that represent these professional groups. It is our belief that this dialogue may foster the construction of a new professional ideology and an agenda that defines more clearly what could constitute the field of action for professionals dedicated to ATHIS. Since the enactment of the above-mentioned law, while there has been an effervescence of debates among architects and urban planners regarding the subject, a strong consensus has never been reached on how to structure the technical and political format of actions. While the disputes continue, the lack of clarity has enabled the appearance of controversial proposals and discussions that do not contribute to introducing structural changes regarding the way of supporting or even producing social housing.

Keywords:
Technical Support; Technical Assistance; Social Housing; Social Housing Policies; Professional Practice

Introdução

Sancionada no ano de 2008, a Lei Federal nº 11.888 (BRASIL, 2008BRASIL. Lei nº 11.888/2008, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 dez. 2008.) assegura o serviço gratuito de arquitetura, urbanismo e engenharia para habitação de interesse social. Conhecida como Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), foi considerada por diversos arquitetos e urbanistas como uma grande conquista, ao possibilitar o amplo envolvimento desses profissionais na busca por soluções para os problemas de moradia vivenciados pela população mais pobre.

No entanto, passada mais de uma década da promulgação da lei, poucas são as experiências consolidadas na área. Arquitetos e urbanistas vêm debatendo formas de implementar ações tendo como base a Lei de ATHIS - ou, pelo menos, elementos de seu escopo -, por meio da promoção de encontros, seminários, grupos de trabalho e publicações, muitos deles fomentados por suas entidades representativas e regulamentadoras, a saber, os sindicatos, a Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU). Ainda sem introduzir mudanças estruturais na forma de assessorar ou mesmo de produzir a moradia popular, o conteúdo dessas discussões demonstra que, entre arquitetos e urbanistas, permanecem profundas divergências quanto ao caráter das atividades de ATHIS e ao modo como essa prática deve se consolidar.

Em meio a certa efervescência de debates sobre o assunto2 2 São diversas as atividades realizadas por todo o país. Entre algumas mais recentes, podem-se citar o seminário nacional promovido pelo CAU, pela FNA e pelo BrCidades no Rio de Janeiro, em novembro de 2019, e o I Fórum de Assessoria Técnica Popular do Nordeste, realizado em Recife, em fevereiro de 2020. , toma corpo a discussão sobre os sentidos dados pelos termos que pretendem designar essa atividade: a disponibilização de um serviço técnico especializado para o apoio de ações determinadas para a produção e a provisão de moradia, bem como para a promoção de melhorias habitacionais. Essa discussão, em chave semântica, coloca em questão os termos “assistência” e “assessoria técnica”: “assistir” tem o mesmo sentido de “assessorar”? Qual é a posição relativa do “assistido” em relação ao “assessorado”? É relevante afinarmos ou ajustarmos esses sentidos? Até que ponto algum “deslizamento semântico”3 3 Tomamos emprestado o termo empregado por Vera Telles (2001), ao tratar dos diversos deslocamentos de significados relacionados às questões sociais, no contexto do cenário público nacional. (TELLES, 2001TELLES, V. da S. A “nova questão social” brasileira: ou como as figuras de nosso atraso viraram símbolo de nossa modernidade. In: TELLES, V. da S. Pobreza e cidadania. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 139-166., p. 105) compromete aquilo que efetivamente se realiza como prática, mergulhada no movimento irritantemente contraditório da vida real?

O problema que aqui levantamos é que ainda não há um consenso sedimentado sobre qual deve ser o formato técnico e político das ações da ATHIS. Identificar os oportunismos relativos ao termo “assistência” e a prática virtuosa no que se refere ao vocábulo “assessoria” apenas elide o que aqui defendemos como central: a dimensão técnica e política dessa atividade.

Diante dessas questões, as práticas de ATHIS encontram-se imersas em um contexto de profundas contradições, como veremos adiante. Se, em parte, essas contradições resultam de um processo atravessado por inúmeras contingências (locais, temporais, práticas etc.), impedindo-nos de efetivar uma apropriação mais ampla de todo o conjunto de relações que essa atividade envolve, por outro lado não haveria, ainda, de forma consolidada, um corpo teórico que desse conta de compor algum amálgama analítico que nos permitisse abarcar o conjunto de tais contradições. Não por enquanto.

Por ora, alguns autores contornam a discussão que aqui queremos levantar, como é o caso de Thiesen (2015THIESEN, J. R. P. Trabalho, estética, arquitetura: a contribuição de György Lukács para um estudo crítico sobre a responsabilidade social do arquiteto. 2015. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2015.), que investiga a responsabilidade social do arquiteto e urbanista com base na contribuição da obra do filósofo György Lukács. Sob outra perspectiva, Tonsig (2020TONSIG, L. M. Os Escritórios Modelo de Arquitetura e Urbanismo (EMAU) e a formação do arquiteto e urbanista. 2020. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2020.) aborda a atuação dos Escritórios Modelo de Arquitetura e Urbanismo (EMAUs) no Brasil, levantando referências para uma discussão sobre a formação do arquiteto e urbanista e a prática da extensão universitária.

Isso posto, o artigo pretende estabelecer um diálogo entre as noções de “assessoria” e “assistência”, partindo de um ponto em comum - a atividade do profissional arquiteto e urbanista - e contribuindo para o adensamento de informações, fatos, referências, trajetórias, contextos, entre outros, de modo a situar os principais debates sobre assessoria e assistência técnica. Dessa forma, objetiva-se colaborar para a construção de um novo ideário profissional e de uma agenda que delimite mais claramente o que poderia se constituir como campo de atuação dos profissionais dedicados à ATHIS, mediante o traçado de possíveis estratégias para a implementação de políticas públicas na área. O esforço teórico para apreensão de todas as dimensões envolvidas numa prática que contempla interações sociais e políticas complexas deve advir justamente desse processo de adensamento para o qual nos propusemos contribuir.

1. Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social

A proposta de institucionalizar a assistência técnica no âmbito legislativo está diretamente ligada à atuação das entidades representativas dos arquitetos e urbanistas, iniciada nos anos 1970, no contexto do Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul (SAERGS). Foi por intermédio do sindicato que uma equipe de arquitetos e urbanistas ligados à entidade formulou o Programa de Assistência Técnica para Moradia Econômica (ATME). A proposta, que teve apoio do Conselho Regional de Engenharia, Agronomia e Arquitetura do Rio Grande do Sul (CREA-RS), foi apresentada no ano de 1977. Conforme se observa na Figura 1, o Programa ATME foi posteriormente publicado em forma de livro pelo SAERGS.

Figura 1
Capa do livro Programa ATME (SAERGS, 1977-1978)

Na época, os dirigentes do sindicato puseram em pauta a discussão de questões ligadas aos problemas habitacionais brasileiros, e, motivados por experiências profissionais, constataram a necessidade de aproximar sua atuação das demandas de habitação das famílias mais pobres, a fim de promover melhorias nas condições de moradia daqueles que não eram contemplados pelas políticas habitacionais. Dessa maneira, seria possível reduzir a quantidade de habitações autoconstruídas por meio do serviço gratuito de arquitetos e urbanistas. Essa motivação foi a base para a constituição de uma comissão dentro do SAERGS para debater o assunto - e esse foi o primeiro passo para a construção do Programa ATME. Os dirigentes do sindicato também eram ligados ao CREA, o que facilitou o apoio do Conselho, que patrocinou a construção de um projeto mais elaborado (FNA, 2008FNA. Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas. Programa ATME. Campo Grande: Gibim, 2008.).

Clovis Ilgenfritz, presidente do sindicato na época, foi um dos membros dessa comissão. O arquiteto relata ter presenciado em sua atuação profissional algumas experiências que o deixaram inquieto. Como agente de fiscalização do CREA/RS, ele mediou diversas situações relacionadas à regularização de obras, em contato direto com setores das prefeituras do estado do Rio Grande do Sul. Nessas instâncias, foi possível observar como os moradores de habitações irregulares eram submetidos a um processo em que eram explorados pelos próprios técnicos da administração municipal. A regularização dessas situações era resultante de um processo meramente burocrático, em que se exigia um projeto assinado por um profissional, mas sem nenhuma preocupação com a qualidade do serviço, com o acompanhamento das famílias no processo ou até mesmo nas obras (Entrevista de Clovis Ilgenfritz publicada em CARDOSO, 2021CARDOSO, F. S. Entre o discurso e a construção da prática profissional do arquiteto e urbanista: experiências contemporâneas em assessoria e assistência técnica para Habitação de Interesse Social no Brasil. 2021. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2021.).

A proposta do Programa ATME ressaltava que a maioria das construções de pequeno porte era executada por leigos. Era necessária a assistência de um profissional habilitado, porém, dadas as condições financeiras de seus moradores, isso se tornava inviável. Além disso, em outras áreas, como a da saúde e a judiciária, já existia a prestação de serviços de forma pública.

Queríamos o SUS da arquitetura. Uma família, um arquiteto, uma casa. Quando o arquiteto entra na jogada, ele transforma a habitação em moradia. Porque ela já está naquele ambiente. Então ela passa a se igualar às conquistas que já tinham sido feitas. Água, luz, esgoto, escola próxima, creche, calçamento, tudo que foi conquistado pelas vilas.4 4 No Rio Grande do Sul, os assentamentos informais são comumente denominados “vilas”. O que Clovis relata nessa fala é que muitos assentamentos já haviam conquistado melhorias com a implantação de infraestrutura e urbanização, porém as moradias ainda eram muito precárias. (Entrevista de Clovis Ilgenfritz publicada em CARDOSO, 2021CARDOSO, F. S. Entre o discurso e a construção da prática profissional do arquiteto e urbanista: experiências contemporâneas em assessoria e assistência técnica para Habitação de Interesse Social no Brasil. 2021. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2021.)

Após a apresentação da proposta ao CREA, Ilgenfritz seguiu divulgando-a, com o propósito de torná-la realidade. Além do envolvimento com o sindicalismo, o arquiteto manteve-se na política - em 1988, foi eleito vereador pelo Partido dos Trabalhadores, no município de Porto Alegre, cargo que exerceu durante três mandatos. Foi quando propôs transformar o Programa ATME em lei. Em 1999, foi aprovada a Lei Complementar n° 428 (PORTO ALEGRE, 1999PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 428. Regulamenta o art. 233, inciso IV, da lei orgânica do município de Porto Alegre, instituindo o programa de assistência técnica ao projeto e construção de moradia econômica a pessoas de baixa renda, e dá outras providências. Diário Oficial de Porto Alegre: Porto Alegre, 23 abr. 1999.), que se tornou a primeira lei municipal a regulamentar a assistência técnica no país (CUNHA; ARRUDA; MEDEIROS, 2007CUNHA, E. M. P.; ARRUDA, Â. M. V. de; MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil. Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, 2007.). No entanto, a normativa ficou apenas no papel, ou seja, não resultou em concretizações práticas.

No âmbito nacional, foi no ano de 2001, no Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 11 jul. 2001, ret. 17 jul. 2001.), que a assistência técnica apareceu pela primeira vez numa normativa federal. Além de regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição, ligados à política urbana, a normativa apresentou a assistência técnica como um instrumento jurídico e político, prevendo sua implementação de forma gratuita para grupos menos favorecidos.

No mesmo ano, Ilgenfritz foi convocado para substituir o deputado Federal Ary Vanazzi (PT-RS) na Câmara no período de 2001 a 2002. Foi então que se abriu a possibilidade de transformar o Programa ATME em lei federal. Como Ilgenfritz não continuou seu mandato no ano seguinte, quem deu prosseguimento ao processo foi Zezéu Ribeiro, arquiteto e deputado federal eleito pelo PT-BA em 2002.

Antes de o projeto ser apresentado novamente à Câmara, a iniciativa foi amplamente divulgada e, na sequência, instaurou-se um processo participativo para a construção do texto da lei, mediante a realização de uma série de seminários regionais, que antecederam o I Seminário Assistência Técnica Um Direito de Todos: Construindo uma Política Nacional, realizado em Campo Grande (MS), de 3 a 5 de outubro de 2005. O evento nacional foi organizado por uma parceria entre a FNA, o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea), o CREA/MS, o Ministério das Cidades e a Caixa Econômica Federal (CEF), com a participação de arquitetos e urbanistas e suas entidades representativas, movimentos sociais, gestores públicos e estudantes (CUNHA; ARRUDA; MEDEIROS, 2007CUNHA, E. M. P.; ARRUDA, Â. M. V. de; MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil. Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, 2007.).

Dentre os temas abordados, foram discutidas questões relacionadas à interdisciplinaridade, modelos institucionais, financiamento e participação popular na prestação de serviços de assistência técnica. A multidisciplinaridade também foi ressaltada por diversos participantes, que propuseram a inclusão do trabalho de outros profissionais nos serviços. No entanto, a sugestão não foi acatada, em razão de se considerar que a lei pretendia regulamentar as atividades de arquitetos e engenheiros, o que não excluía, no momento do desenho de políticas públicas, a possibilidade de incluir a atuação de outros profissionais (CUNHA; ARRUDA; MEDEIROS, 2007CUNHA, E. M. P.; ARRUDA, Â. M. V. de; MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil. Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, 2007.). A questão fica clara na fala de Zezéu Ribeiro:

Nós entendemos que já existiam leis garantindo a assistência social, defensoria pública, o Ministério Público para defensoria jurídica, mas para o direito à assistência técnica não tinha, então deveria ter uma lei específica. Essa foi uma questão construída e debatida com o próprio Ministério das Cidades. A necessidade da lei ser em relação à assistência técnica, ao projeto, à construção, reforma e ampliação. (Entrevista de Zezéu Ribeiro publicada em CUNHA; ARRUDA; MEDEIROS, 2007CUNHA, E. M. P.; ARRUDA, Â. M. V. de; MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil. Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, 2007., p.140).

Para Zezéu Ribeiro (Entrevista publicada em CUNHA; ARRUDA; MEDEIROS, 2007CUNHA, E. M. P.; ARRUDA, Â. M. V. de; MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil. Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, 2007.), esse processo participativo enriqueceu a discussão, por mostrar a possibilidade de associação entre o direito à assistência técnica e o direito à moradia. Segundo o arquiteto, a assistência técnica foi, nos anos 1970, uma luta somente da categoria dos arquitetos e urbanistas; com o passar dos anos, ela se tornou também uma bandeira da sociedade, dos movimentos sociais e de outros profissionais. Isso se deu por uma série de processos, iniciados com as reivindicações populares da Constituinte e a luta pela reforma urbana. Posteriormente, essa construção se complementou com as vivências do governo de Luiza Erundina na cidade de São Paulo, fundamentadas na produção de moradia com os mutirões autogeridos e as assessorias técnicas em São Paulo, fato que levou os movimentos sociais a reivindicar o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, instituído no ano de 2005.

Quando retomo a discussão iniciada e levada por Clóvis ao Congresso, a gente tem uma base social já muito mais ampla. O projeto deixa de ser da categoria profissional e passa a ser um projeto da sociedade, incorporando outras profissões e o movimento social, a luta pela moradia como sua reivindicação. (Entrevista de Zezéu Ribeiro publicada em CUNHA; ARRUDA; MEDEIROS, 2007CUNHA, E. M. P.; ARRUDA, Â. M. V. de; MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil. Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, 2007., p.139)

Após dois anos do projeto em tramitação, a Lei nº 11.888 (BRASIL, 2008BRASIL. Lei nº 11.888/2008, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 dez. 2008.) foi sancionada, e esse fato foi altamente comemorado pelos arquitetos e urbanistas. Além de instituir a assistência técnica para habitação de interesse social, a normativa alterou a Lei nº 11.124/2005 (BRASIL, 2005BRASIL. Lei nº 11.124, de 16 de junho de 2005. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social - FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 17 jun. 2005.), que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). Assim, os programas do FNHIS passariam a englobar a assistência técnica.

O vínculo da assistência técnica com o FNHIS foi considerado um passo importante, dado que este era ligado ao Ministério das Cidades. Zezéu Ribeiro se mostrava otimista com a possibilidade de incorporação da assistência técnica pelos programas do Ministério das Cidades, envolvendo, além do trabalho dos arquitetos, a assistência social e a assistência jurídica, tudo isso dentro do recém-criado Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (Entrevista de Zezéu Ribeiro publicada em CUNHA; ARRUDA; MEDEIROS, 2007CUNHA, E. M. P.; ARRUDA, Â. M. V. de; MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil. Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação, 2007.). O momento era oportuno e gerava um clima de otimismo em parte da categoria: tratava-se de um período de grande investimento em políticas urbanas e de criação de diversas instâncias participativas, congregando sociedade, profissionais, movimentos sociais e outras organizações na gestão pública das políticas e recursos.

Com efeito, houve uma ação no âmbito do FNHIS voltada para ATHIS, na qual municípios, estados e entidades sem fins lucrativos puderam acessar recursos do Fundo por meio de seleção por editais. Denominado “Habitação de Interesse Social”, o programa teve vigência de 2007 a 2011 e englobava uma ação de “Prestação de Serviços de Assistência Técnica”. Os recursos eram direcionados pelos proponentes para a contratação de profissionais que desenvolviam projetos ou obras para melhorias habitacionais e produção de novas unidades, regularização fundiária e ainda o trabalho social para mobilização da população envolvida. No entanto, a iniciativa teve pouca representatividade - segundo dados fornecidos pelo Ministério do Desenvolvimento Regional em 20195 5 Dados fornecidos pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, via e-SIC. , foram contratadas nesse período 978 propostas, somando um investimento de R$ 89,33 milhões. Destas, apenas 18% foram concluídas. De fato, apesar de todo o arcabouço legal e institucional estar voltado para a política habitacional, poucas ações de ATHIS se consolidaram na prática.

Outras iniciativas vêm sendo promovidas atualmente pelo CAU, que destina 2% de sua receita de arrecadação para o fomento da assistência técnica. Por intermédio de editais, o Conselho seleciona propostas de organizações da sociedade civil (como ONGs, sindicatos, associações e cooperativas), patrocinando ações que envolvem práticas de projeto, elaboração de planos populares de urbanização, planos de regularização fundiária, além de cursos de formação e eventos. Entretanto, as ações patrocinadas pelo CAU são muito pontuais - ainda que os editais abram possibilidade para que mais arquitetos e urbanistas trabalhem com ATHIS, essas iniciativas não se configuram como uma política que garanta às famílias de baixa renda o amplo acesso à moradia digna, dada a limitação da atuação do Conselho, em face de sua própria configuração.6 6 O CAU é uma autarquia federal que orienta, disciplina e fiscaliza a profissão dos arquitetos e urbanistas, além de buscar a valorização do exercício profissional. Não exerce, portanto, a função de criar políticas públicas.

Mesmo que poucas sejam as experiências concretizadas com a sanção da lei, arquitetos e urbanistas seguem em busca de alternativas para implementação da assistência técnica, muitas vezes de forma pontual e por iniciativas autônomas. As entidades representativas se mantêm ativamente envolvidas na divulgação do tema, na promoção de debates, eventos, publicações e grupos de trabalho, por meio dos quais se pretende concretizar efetivamente a assistência técnica na prática.

2. Arquitetos e movimentos sociais por moradia: a atuação das assessorias técnicas

Diferentemente da assistência técnica, que se constituiu com base em um texto de lei e se difundiu com o engajamento de arquitetos e urbanistas no caudal de práticas ainda sem muita sedimentação ou maiores conformações críticas, as práticas de assessoria surgiram com um caráter distinto, envolvendo forte articulação com os movimentos sociais de luta por moradia. O contexto foi a cidade de São Paulo, entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980. Diversas experiências7 7 É o caso da experiência na Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo, incentivada pelo engenheiro Guilherme Coelho; do projeto da Vila Comunitária, em São Bernardo do Campo; e das ações promovidas pelo Laboratório de Habitação da Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Para mais informações, ver LOPES, J. M. de A. Sobre arquitetos e sem-tetos: técnica e arquitetura como prática política. 2011. Tese (Livre-docência) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2011. na época acabaram por consolidar uma forma de atuação dos arquitetos e urbanistas em parceria com os movimentos de luta por moradia, fundamentada nos princípios de autogestão e ajuda mútua, em que os futuros moradores participavam ativamente do processo de projeto, da obra e das decisões. Mais tarde, essas práticas inspiraram a criação do programa Funaps Comunitário (Funacom), vigente ao longo da gestão de Luiza Erundina na prefeitura da capital paulista, de 1989 a 1992. No programa, profissionais e movimentos sociais estavam lado a lado, como agentes protagonistas da política pública, com apoio e recursos do Estado para a produção de moradia popular mais adaptada às necessidades da população e com qualidade superior àquela produzida pelo mercado, o que fez com que tais experiências8 8 O trabalho de Martins (2019) traz um inventário da produção das assessorias paulistas. Destacamos aqui os projetos do Conjunto Paulo Freire, realizado pela USINA em parceria com a Associação de Moradores Paulo Freire; e o conjunto no Jardim Brasília, realizado pela Associação Pôr do sol e Recanto das Estrelas com as assessorias Oficina de Habitação e Peabiru. se tornassem referências importantes para arquitetos e urbanistas (MARTINS, 2019MARTINS, L. M. Direito à arquitetura: inventário da produção das assessorias técnicas paulistas. 2019. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

O Funacom impulsionou a criação de novos grupos de assessores e difundiu essa forma de atuação,9 9 Para saber mais sobre a atuação profissional das assessorias técnicas, ver Santo Amore (2004). que se tornou particular do estado de São Paulo e recebeu reconhecimento nacional posteriormente. No entanto, o fim da gestão de Luiza Erundina também resultou no término do programa, isto é, no fechamento de portas de diversas assessorias, diante da ausência de recursos para manter seu funcionamento. Ainda assim, diversos grupos seguiram atuantes apoiados em outros programas, como os mutirões do Governo do Estado de São Paulo (anos 1990), o Programa Crédito Solidário (PCS) e a modalidade Entidades do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), ambos vigentes nos anos 2000.

O desenho do Funacom, que foi construído com base na parceria entre assessores e movimentos sociais, permitia a autonomia e a gestão por parte dos movimentos, levando ao fortalecimento de sua base de atuação, como ocorreu com a União dos Movimentos de Moradia (SANTO AMORE, 2004SANTO AMORE, C. Lupa e telescópio: o mutirão em foco - São Paulo, anos 90 e atualidade. 2004. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.). As experiências de autogestão incentivaram esses movimentos a se organizarem em uma intensa articulação nacional, em prol da aprovação da primeira lei de iniciativa popular, que pleiteava a instituição do Fundo Nacional de Moradia Popular.10 10 Arrecadou-se um milhão de assinaturas para levar o projeto de lei a Brasília, em 1991. O momento foi emblemático, pois o volume de pacotes com assinaturas era tamanho que vários representantes, carregando carrinhos de mão, subiram a rampa do Congresso para entregá-los ao presidente da Câmara. O projeto foi concretizado somente catorze anos depois, com a instituição do FNHIS em 2005. Poucos anos mais tarde, com o lançamento do PMCMV, em 2009, as políticas habitacionais do país foram centralizadas nesse programa, relegando o FNHIS a um papel secundário.

Ao lançar o MCMV, o Governo acabou com o FNHIS, passou por cima do sistema e deixou o Movimento de fora. No dia do lançamento em Brasília, ninguém do Movimento foi chamado para falar e nós protestamos. Somente empresários e empreiteiros tinham sido chamados. Aí o Movimento se organizou mais uma vez e pressionou o Governo[,] que, finalmente, criou o Entidades com o qual a Associação ou movimento pode acessar diretamente esse financiamento e ser o gestor do Projeto. (EDMUNDO, 2014 EDMUNDO, M. Contextualização da luta pela reforma urbana. In: SALAZAR, J.; STROHER, L.; GRAZIA, G. de. (org.). Assistência técnica e direito à cidade. Rio de Janeiro: CAU/RJ: FNA, 2014., p. 37).

Pautando-se nas experiências anteriores, os movimentos sociais pleitearam a modalidade Entidades do PMCMV, em que a figura das assessorias técnicas reaparece, ainda que com certas contradições. O desenho do Programa fez com que as entidades assumissem várias funções antes compartilhadas com as assessorias. Por sua vez, estas foram reduzidas a meras prestadoras de serviços, diminuindo a perspectiva do ideário da autogestão (CAMARGO, 2016CAMARGO, C. M. Minha Casa Minha Vida Entidades: Entre os direitos, as urgências e os negócios. 2016. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2016.). Em suma, os programas não priorizaram o trabalho desses grupos, apesar das experiências bem-sucedidas dos anos 1990.

[...] o PMCMV, assim como o PCS, poderiam representar uma tentativa de continuidade e resgate - na esfera federal e com recursos significativos - das experiências iniciadas durante as décadas de 1970, 1980 e 1990, mas o que se observa é que a estrutura desses programas fez com que essa rede diminuísse. Muitos profissionais que atuaram nas décadas citadas deslocaram seu trabalho para outras áreas (iniciativa privada, docência, etc.) e são poucos os escritórios de Assessorias Técnicas que mantêm ativa essa prática. (BARROS, 2019BARROS, M. C. Experiências de assessorias técnicas em programas habitacionais. O Programa Minha Casa Minha Vida Entidades. 2019. Tese (Doutorado em Planejamento e Gestão do Território) - Universidade Federal do ABC, Santo André, 2019., p. 189-190).

A atuação das assessorias, que têm como um de seus objetivos democratizar a arquitetura mediante uma atuação autônoma, independente do Estado e do mercado, se encontra perante uma série de contradições. Na prática, sabe-se que é praticamente impossível desassociar-se do Estado no que diz respeito à produção de moradia popular, uma vez que os programas públicos acabam por condicionar a atuação desses profissionais.

Ao mesmo tempo, essas contradições revelam crises de identidade em relação ao que se constitui como assessoria, situação validada por uma espécie de limbo que presenciam enquanto atuam como escritório comercial ou ONG. Ao acumular experiências na operação de programas, esses grupos se conformam como prestadores de serviços ao poder público. Já nas relações diretas com os movimentos, guardam traços de assessoria, mas se transformam aos poucos em assistência. “Podem até desempenhar o papel de assessoramento à administração, mas junto à comunidade fazem mesmo um tipo específico de assistência social de caráter físico (projeto e obra de habitação e urbanização)” (SANTO AMORE, 2004SANTO AMORE, C. Lupa e telescópio: o mutirão em foco - São Paulo, anos 90 e atualidade. 2004. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004., p. 75).

Essa reflexão se torna mais evidente com a sanção da Lei nº 11.888/2008 (BRASIL, 2008BRASIL. Lei nº 11.888/2008, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 dez. 2008.), que instituiu o termo assistência técnica no âmbito legislativo. Ainda que os oito artigos da lei englobem a forma de atuação das assessorias técnicas, no modo como se desenvolvem em São Paulo, é frequente a discussão que busca diferenciar esses dois termos. Além de suas origens terem raiz distinta, é possível observar que os discursos daqueles que defendem a assistência se diferenciam dos que pregam a assessoria como forma de atuação.

3. Assistência técnica como lei e assessoria técnica como prática

Em diversos momentos, o texto da Lei nº 11.888 (BRASIL, 2008BRASIL. Lei nº 11.888/2008, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 dez. 2008.) levou os profissionais de arquitetura e urbanismo a uma disputa pelos sentidos dos termos “assessoria” e “assistência”. O âmbito legislativo no qual se insere a “assistência técnica” acabou por consolidar essa expressão em nível nacional - apesar dos grupos de “assessoria técnica” que têm seu trabalho consagrado neste campo, em especial na cidade e no estado de São Paulo. De acordo com esses profissionais, entende-se assessoria como um trabalho coletivo, com participação da população e incentivo à formação de movimentos populares, enquanto a assistência teria um caráter meramente técnico - de projeto e construção da edificação - e até mesmo assistencialista. Essa questão fica clara nas palavras de Silke Kapp:

[...] assistência conota uma adesão acrítica ao pressuposto da inferioridade social dos assistidos, esbarrando no assistencialismo e na filantropia, enquanto assessoria condiz mais com uma perspectiva crítica dessas relações de dominação. A razão é histórica, não teórica ou etimológica: se o Estado prefere o termo assistência, os movimentos populares que em alguma medida realizam ou almejam a autogestão têm preferido o termo assessoria. (KAPP, 2018KAPP, S. Grupos socioespaciais ou a quem serve a assessoria técnica. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 221-236, 2018., p. 222, grifo da autora).

Nesse raciocínio, também existem críticas à redação da Lei nº 11.888/2008, em função de se considerar que esta possui caráter puramente técnico, deixando de englobar questões participativas e a organização popular (DEMARTINI, 2016 DEMARTINI, J. Assessoria Técnica Continuada: desafios e possibilidades para a implementação de um programa público para as expressões do morar. 2016. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Por outro lado, há ainda grande parcela da população que não está devidamente organizada em movimentos sociais, que é o público com o qual trabalham os assessores técnicos. Aqueles que defendem a assistência técnica entendem que essa condição não deve limitar os atendimentos. Desse modo, os serviços, considerados parte do direito à moradia, também devem compreender o atendimento individual às famílias (SANTO AMORE, 2016SANTO AMORE, C. Assessoria e Assistência Técnica: arquitetura e comunidade na política pública de habitação de interesse social. Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas, 2., 2016, Rio de Janeiro. Anais do II URBFAVELAS. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.).

De fato, o trabalho das assessorias consolidou-se no atendimento a grupos formados por movimentos sociais organizados, e nesse ponto pode-se identificar uma diferença em relação aos discursos dos que pregam a “assistência” - em termos latos. Em manual para implantação da ATHIS, desenvolvido pelo IAB, sugere-se um formato de programa baseado na relação “uma família - um profissional - um projeto - uma obra” (IAB, 2010IAB. Instituto de Arquitetos do Brasil. Manual para a implantação da assistência técnica pública e gratuita a famílias de baixa renda para projeto e construção de Habitação de Interesse Social. Porto Alegre: Tecnodata Educacional, 2010.). Dessa forma, as famílias que tivessem interesse nos serviços poderiam encontrar arquitetos em escritórios implantados nas proximidades das áreas em que residem. Ou seja, de modo semelhante ao que vinha sendo preconizado pelo Programa ATME na década de 1970. Esse tipo de relação já ocorre na prestação desses serviços às classes de maior poder aquisitivo, com a diferença de que, nesse caso, haveria subsídio do Poder Público para custear o serviço de arquitetura. Há aí uma diferença fundamental entre assistência e assessoria. No papel de assessores, os arquitetos buscam uma forma diferenciada de atuação profissional, com o uso de um espírito crítico que incorpora a população em todo o processo relacionado à produção habitacional. Por outro lado, a assistência não se trata de outra forma de atuação, mas sim de abranger outro mercado, um que engloba a moradia popular. Na assistência, o arquiteto é o agente que auxilia uma população desassistida, que não é capaz de resolver seus problemas habitacionais com autonomia. Em outras palavras, os assistidos nunca se conformam como agentes políticos.

Ainda que possa haver diferenças na forma como os termos surgiram, em certos momentos assistência e assessoria estão lado a lado, configurando-se como práticas das assessorias tomadas como exemplos daquilo que poderia se consolidar como ATHIS. Retomando o debate sobre assistência técnica iniciado uma década antes na capital sul-mato-grossense, a FNA organizou em 2015 o evento “Campo Grande +10: Seminário Nacional sobre Assistência Técnica Pública e Gratuita - Evolução, Experiências e Perspectivas Futuras”. No evento, apresentaram-se perspectivas de programas públicos, incluindo assistência técnica e experiências das assessorias, com a presença da USINA - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado. Em evento promovido pelo IAB Santa Catarina em setembro do mesmo ano, foi a assessoria técnica Peabiru - Trabalhos Comunitários e Ambientais que contribuiu com o debate, ao compartilhar exemplos de seu trabalho. No ano seguinte, a Peabiru organizou, em correalização com o Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo (SASP) e patrocínio do CAU/SP, as Oficinas de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social, que se sucederam em diversas cidades do estado de São Paulo. A iniciativa, ancorada na experiência adquirida pelo grupo ao longo de mais de vinte anos de atuação, buscou incentivar a troca de experiências, a construção de leituras e proposições, assim como o protagonismo dos participantes, com o objetivo de debater a prática e aproximar arquitetos e urbanistas do contexto das precariedades urbanas, incluindo visitas a locais onde experiências de ATHIS se efetivaram. Os organizadores ressaltaram que a assistência técnica não deve ser uma pauta corporativa dos arquitetos: em vez disso, ela deve ser entendida como um direito da população de baixa renda e pauta de toda a sociedade.11 11 O evento gerou uma cartilha com o resumo das atividades. Ela pode ser acessada em: http://www.peabirutca.org.br/?painel_projetos=oficinas-athis.

Por outro lado, várias discussões que tratam da assistência técnica desconsideram as experiências das assessorias, como se o atendimento de arquitetos e urbanistas à população de baixa renda para produção habitacional fosse uma prática nova, surgida com o advento da lei. Tal situação ficou evidente no Seminário de ATHIS, promovido pelo CAU/SP ao final de 2017, quando se ignorou explicitamente a contribuição do trabalho das assessorias técnicas, ainda que o evento tenha se realizado em São Paulo. O seminário foi um bom exemplo de quão controverso tem sido o papel do Conselho em designar o que deveria se configurar como prática de ATHIS, além de demonstrar o distanciamento dos arquitetos e urbanistas dos problemas enfrentados pela população mais pobre. Nesse evento, expôs-se uma proposta do Ministério das Cidades que envolvia o Cartão Reforma (Lei Federal nº 13.439/2017) e na qual a população de baixa renda receberia um valor para a compra de material destinado a pequenas reformas em sua moradia. A atuação da assistência técnica, nesse caso, se restringiria a um serviço de fiscalização que buscava comprovar se o valor ofertado às famílias estaria sendo empregado na reforma da residência. Ou seja, não se considerava a existência de um projeto anterior à execução da reforma - o que se constitui em um contrassenso, se considerarmos que o evento era promovido por uma instância que, supostamente, deveria atuar na valorização da profissão pela sociedade. No mesmo evento, ainda foi possível observar, a cada exemplo de “assistência técnica” apresentado, a centralidade da discussão na questão do Registro de Responsabilidade Técnica (RRT). Questionava-se a todo momento quem assinaria a responsabilidade de uma reforma em uma residência autoconstruída, quando nem sequer se havia definido a prática em si ou nem mesmo proposto formas para atender à população.12 12 É evidente que a questão relacionada ao RRT deve ser pensada. O que questionamos aqui é o fato de esse tema ter se tornado central no debate. A esse respeito, o CAU/BR aprovou, em junho de 2019, uma nova resolução que cria o RRT Social. É uma espécie de registro voltado apenas a projetos de HIS, com custo mais baixo.

Outro ponto controverso é relativo à valorização de certas propostas envolvendo a iniciativa privada, rapidamente apresentadas para o público como assistência técnica. Na visão do CAU, a assistência técnica poderia ser implantada com facilidade por meio de ações de empreendedorismo. Tem se tornado comum nesses eventos propostos pelo Conselho a apresentação de iniciativas do setor privado, como é o caso do Programa Vivenda. Trata-se de uma startup que promove reformas de rápida execução e baixo custo, com foco no público de baixa renda. Fundada em 2013, a empresa firmou parceria com uma securitizadora, viabilizando assim a primeira debênture de impacto social no país, com o objetivo de obter recursos para proporcionar créditos a juros mais baixos às famílias que recebem os serviços.

Além do Vivenda, outros empreendimentos surgiram no setor privado, com desenhos diversos.13 13 Juliana Linhares mostra um breve apanhado de outras iniciativas na área, analisando suas formas de atuação. LINHARES, J. de F. Atuação do arquiteto na produção do espaço urbano autoconstruído pela população de baixa renda. 2018. Dissertação (Mestrado) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. É o caso do Grupo Mangalô, que promove projetos empreendedores de impacto social. Entre eles, está a Ecolar, iniciativa que possibilita a construção de casas ecológicas para famílias de baixa renda, viabilizadas a baixo custo, resultante de parcerias com empresas, trabalho voluntário e recursos de investidores. Outro exemplo é o Inova Urbis, que se autodenomina “escritório popular de arquitetura”, com o desenvolvimento de projetos para famílias de baixa renda, em parceria com a loja Leroy Merlin, que financia os custos do trabalho dos arquitetos. O Inova Urbis não trabalha com a execução e o acompanhamento de obras, apenas oferece aos clientes o projeto e indica a Leroy Merlin para a compra de materiais.

Na ausência de investimento e de políticas públicas que englobem a ATHIS, o setor privado tem se apresentado como alternativa para viabilizar os serviços, influenciando arquitetos que aspiram a trabalhar com habitação de interesse social. O CAU/BR, por intermédio da Comissão de Política Profissional, segue fomentando essas iniciativas “negociais” com a promoção do Seminário de Empreendedorismo e Novas Tecnologias em Arquitetura e Urbanismo. O evento já teve edições em diversos estados, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Rondônia, Amapá, Maranhão, Pará e Tocantins (REVISTA PROJETO, 2018REVISTA PROJETO. Especial HIS/ATHIS. São Paulo, Arco, ed. 4461, 2018.).

No contexto das ações do CAU voltadas à assistência técnica, as assessorias técnicas também se envolveram na discussão, ao propor diretrizes para o desenho dos editais no estado de São Paulo. Algumas assessorias, como Peabiru, Usina e Brasil Habitat, junto a outras instituições, a grupos de pesquisa e ao IAB/SP, elaboraram uma carta aos conselheiros do CAU/SP, na qual são propostos pontos fundamentais na escolha das iniciativas contempladas pelos editais do CAU. O documento ressalta a importância do Conselho na difusão e na construção das práticas de ATHIS, bem como a necessidade de promover ações de divulgação e discussão sobre elas. Para o fomento das ações, sugeriu-se que o Conselho priorize ações de caráter coletivo, evitando o atendimento individual e varejista das famílias. Evidencia-se, além disso, a importância do envolvimento e da participação das famílias e da comunidade, “por meio de oficinas, consultas diretas, visitas guiadas, grupos de trabalho, assembleias, plenárias ou outras atividades que visem à participação ampla de membros e representantes das famílias, para além das lideranças e coordenações de grupos” (IAB et al., 2017IAB. Instituto de Arquitetos do Brasil. et al. Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social - ATHIS: construção de um CAU/SP ativo. Carta aos conselheiros eleitos para a gestão do CAU/SP 2018-2020. São Paulo: IAB, 2017. Disponível em: http://www.iabsp.org.br/wp-content/uploads/2017/11/CARTA-COMPROMISSO-CAU_ATHIS-conselheiros.pdf . Acesso em: 20 nov. 2018.
http://www.iabsp.org.br/wp-content/uploa...
, p. 3).

A questão do atendimento coletivo e da participação das famílias no processo é igualmente um campo de disputa entre arquitetos e urbanistas. É comum que se associe “assistência” ao atendimento individual, e “assessoria” ao atendimento coletivo e participativo, pela própria forma como essas propostas se desenvolveram ao longo da história. A esse respeito, Silke Kapp (2018KAPP, S. Grupos socioespaciais ou a quem serve a assessoria técnica. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 221-236, 2018.) defende o atendimento coletivo e afirma que arquitetos devem ter uma atuação crítica, superando circunstâncias de caráter assistencialista. No atendimento aos grupos, importam mais os espaços coletivos do que os individuais, assim como a assessoria tem sua importância nas decisões tomadas coletivamente. Dessa forma, deve-se fomentar a autonomia dos grupos assessorados, tendo em vista que são sujeitos políticos, com liberdade de decisão e ação no próprio espaço.

Ainda que se trate dessa visão social dos serviços dos arquitetos, em outros momentos a ATHIS é vista como “oportunidade” ou “nicho de mercado” para arquitetos. Atualmente, é comum defender essa área como oportunidade para os jovens arquitetos, cuja atuação em assistência técnica poderia viabilizar uma forma de inserção profissional. Seria por que os jovens são naturalmente um grupo mais disposto a se “aventurar” em situações complexas, como é o caso do enfrentamento às precariedades habitacionais, ou por que se considera que os serviços de arquitetura para as pessoas de baixa renda são “mais baratos”, e, justamente pelas más condições de trabalho, esses profissionais se disporiam a receber menos?

O trabalho para população de baixa renda não aparece publicamente exatamente como um trabalho... É quase uma “boa ação”, já que é o trabalho “autoral” ainda é a referência de sucesso profissional. É preciso, enfim, construir e disputar o trabalho voltado a esse público, não apenas como um “mercado viável”, mas como parte estruturante da formação e atuação do profissional. (SANTO AMORE, 2016SANTO AMORE, C. Assessoria e Assistência Técnica: arquitetura e comunidade na política pública de habitação de interesse social. Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas, 2., 2016, Rio de Janeiro. Anais do II URBFAVELAS. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016., p.16).

Outro ponto importante se relaciona à formação de arquitetos e urbanistas, em geral de caráter elitista. Nos cursos de graduação, o conteúdo social costuma ser pouco abordado; programas de grandes equipamentos, como hospitais, centros culturais e galerias de arte, prevalecem como objetos das disciplinas de projeto, levando a uma prática que “alimenta uma visão mítica do ‘arquiteto autoral’, que pode fazer boa figura nas revistas, sítios eletrônicos ou programas da TV paga especializados” (SANTO AMORE, 2016SANTO AMORE, C. Assessoria e Assistência Técnica: arquitetura e comunidade na política pública de habitação de interesse social. Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas, 2., 2016, Rio de Janeiro. Anais do II URBFAVELAS. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016., p. 7). Como consequência, no mercado de trabalho dá-se destaque aos grandes projetos de escritórios de arquitetura, e estes parecem ser referência para os demais arquitetos.

Nas revistas especializadas, sobressaem projetos produzidos por arquitetos de renome. Provavelmente por incentivo do tema que tanto tem sido discutido por arquitetos e urbanistas, a Revista Projeto publicou em 2018 uma edição especial voltada especialmente a Habitações de Interesse Social (HIS), uma exceção no universo das revistas de arquitetura. Mesmo que se apresente esse lado social da arquitetura, a revista baseia a análise de suas reportagens nas mesmas linguagens com que trata dos grandes projetos autorais. São expostos projetos de HIS produzidos por escritórios de renome, ilustrados por imagens que valorizam a forma e o desenho das edificações e nas quais a arquitetura é elevada à categoria de protagonista, dada a ausência de pessoas utilizando tais espaços. As reportagens destacam projetos que contêm “desenhos e expressividade que representam exceção na arquitetura de habitações de interesse social” (REVISTA PROJETO, 2018REVISTA PROJETO. Especial HIS/ATHIS. São Paulo, Arco, ed. 4461, 2018., p. 65), ou a presença de cores vibrantes que “rompem com a ideia da ausência de identidade em moradias destinadas à população de baixa renda” (id., p. 76). Por outro lado, dá-se pouca relevância ao financiamento para a viabilização das obras e projetos, às formas de atendimento à população e até mesmo à opinião dos moradores sobre essa produção habitacional. A linguagem da revista nada mais é do que reflexo da maneira habitual com que arquitetos exercem sua profissão, o que por sua vez reflete a formação voltada para a elite.

Com base nessa discussão, Lopes (2018LOPES, J. M. de A. Nós, os arquitetos dos sem-teto. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 237-253, 2018.) sugere uma revisão do ofício do arquiteto. Para esse autor, as atividades de extensão, assim como as realizadas pelos estudantes em escritórios-modelo, poderiam nos auxiliar na destituição desse modelo universal prefigurado pelo arquiteto personagem das revistas especializadas. Ele também faz menção a uma aproximação mais intensa entre estudantes e grupos de assessoria técnica.

Nesse sentido, a Residência Profissional em Arquitetura, Urbanismo e Engenharia, implantada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) busca trabalhar a formação de profissionais em ATHIS. O projeto, que teve início em 2013, tem a finalidade de colocar em prática a Lei nº 11.888/2008 (BRASIL, 2008BRASIL. Lei nº 11.888/2008, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 dez. 2008.), capacitando profissionais e cidadãos para viabilizar projetos de inclusão social (GORDILHO SOUZA, 2013GORDILHO SOUZA, A. Assistência Técnica em Arquitetura, Urbanismo e Engenharia: avanços institucionais. 2013. In: 6º. Projetar - O Projeto como Instrumento para a Materialização da Arquitetura: ensino, pesquisa e prática. Salvador: UFBA, 2013.). Outra iniciativa recente foi a instituição de um curso profissionalizante em assessoria e assistência técnica para habitação de interesse social, promovido pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, no início de 2019. O curso abordou temáticas relacionadas a campos de atuação e políticas públicas e proporcionou atividades práticas em uma ocupação organizada por um movimento de luta por moradia.

Para a categoria, é frequente o debate não só sobre a função social da profissão, como também sobre a valorização do profissional pela sociedade, tendo como pressuposto um trabalho com caráter social, atualmente mais do que necessário em um país onde apenas 15% dos brasileiros que já construíram ou reformaram contrataram os serviços de arquitetos e/ou engenheiros, conforme demonstrado na famosa pesquisa promovida pelo CAU/BR em parceria com o Instituto Datafolha (CAU/BR, 2015CAU/BR. Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil. Pesquisa CAU/BR Datafolha. Brasília, DF, São Paulo: CAU/BR; Instituto Datafolha, 2015. Disponível em: http://www.caubr.gov.br/pesquisa2015 /. Acesso em: 23 jun. 2017.
http://www.caubr.gov.br/pesquisa2015...
). Grande parte desses 15% é representada por indivíduos de classes mais altas; também ficou demonstrado que 85% da população nunca utilizou esses serviços, sobretudo por conta de questões financeiras; por isso, boa parte optou pela contratação de pedreiros ou mestres de obras (id., ibid.). A realidade brasileira se reflete nessa pesquisa, que demonstra a ausência de profissionais que atendam à demanda habitacional de baixa renda.

Ainda assim, são poucas as práticas de ATHIS consolidadas até o momento. Em termos de políticas públicas, aparentemente, o programa mais bem estruturado se encontra no Distrito Federal, em uma ação local proposta pela Companhia Habitacional do Distrito Federal (CODHAB). O programa “Habita Brasília” conta com dez postos de assistência técnica para atendimento das famílias que vivem em situação precária, com projetos de melhorias habitacionais e em espaços públicos, como parques e ruas, além de mediação de conflitos em áreas de regularização fundiária. Essas ações foram difundidas pelo país pelo arquiteto e urbanista Gilson Paranhos, ex-presidente da CODHAB, por meio de sua participação em diversos seminários e debates entre arquitetos. Não por acaso, Paranhos é membro do Conselho Superior do IAB, entidade da qual já foi presidente. Sua presença e ações reforçam que a difusão da assistência técnica, mais uma vez, tem como centralidade a figura de um profissional da área de arquitetura e urbanismo.

Considerações finais

Vimos brevemente como se originaram práticas com objetivos muito semelhantes, mas com discursos distintos. A assistência técnica estabeleceu-se no âmbito legislativo federal, mas com pouca consolidação de proposições práticas; a assessoria técnica, por sua vez, manteve-se em escala local, apesar de ter se consolidado na efetivação de ações desde a década de 1970. Mesmo com gêneses distintas, pode-se afirmar que ambas apresentam traços em comum, em especial ao se tratar de uma área em que a atuação de arquitetos e urbanistas se faz mais do que necessária.

As assessorias avançaram em diversos aspectos - na aproximação com a população e os movimentos sociais, no trabalho multidisciplinar, na construção coletiva e inclusive em aspectos técnicos e projetuais. Inovaram ao propor soluções que dialogavam com as necessidades dos usuários, produzindo habitações diferentes das padronizadas pelos programas públicos, altamente criticadas por arquitetos e urbanistas. Com espírito crítico, aproximaram-se da população mais pobre e auxiliaram diversos grupos na conquista de uma moradia mais digna.

Quanto à assistência técnica, apesar das disputas, não há dúvida de que a sanção da Lei nº 11.888 (BRASIL, 2008BRASIL. Lei nº 11.888/2008, de 24 de dezembro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 26 dez. 2008.) é um passo à frente. Por ser uma lei federal, a questão se torna de abrangência nacional, podendo contar com recursos da União e de fundos como o FNHIS. Com um texto sucinto, a lei não é autoaplicável e sua regulamentação é necessária. Portanto, ainda é falha para articular um sistema nacional que vise à prática da assistência técnica. Mesmo assim, isso pode vir a ser uma vantagem, pois se abrem maiores possibilidades para amadurecimento do tema e apresentação de propostas com atuações distintas.

A questão não está em pormenorizar os termos “assistência” ou “assessoria”, em uma definição de atividades distintas. Tampouco se trata de “inventar a roda”, como se a assistência técnica e o atendimento pelos arquitetos à população de baixa renda fossem algo inédito; nem de buscar construir algo novo baseado em discursos descontextualizados e corporativistas, com termos como “cliente”, “nicho de mercado” e “oportunidade”.

O papel do CAU e de outras entidades de classe tem sua importância, visto que esses órgãos podem atuar como articuladores para futuras ações de ATHIS, com a criação de redes entre os profissionais - tanto os que desejam atuar na área como aqueles que já detêm alguma experiência no tema -, assim como as instituições de ensino, cujo papel é o de formar profissionais críticos e devidamente capacitados, a sociedade e o Poder Público. Apesar das contradições presentes na atuação do Conselho, algumas ações mais recentes vêm apresentando possibilidades. São casos como as iniciativas do CAU/RS e do CAU/AL, que firmaram parcerias com o Poder Público para a criação de programas com ATHIS.14 14 Para mais detalhes, ver seminário O papel dos conselhos profissionais no fomento à ATHIS, disponível no canal do CAU/SC no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=e8W_hHCpBrU&list=PLOouYfCVi65Yf8hupG2hn0mMcLWkUn16j.

Importa ressaltar também a necessidade de o Conselho e de entidades de classe se aproximarem da realidade e dos problemas sociais vivenciados pela população de mais baixa renda, mediante o diálogo com movimentos sociais e outras instâncias de representação da sociedade civil e o entendimento da população como detentora de direitos. É necessário, portanto, pensar na ATHIS como um direito que deve ser garantido e considerar essa atuação como componente de uma política pública habitacional mais ampla.

Além disso, é preciso que o próprio campo de atuação se articule, tratando de contribuir para a construção do formato da prática num reflexo de uma noção própria do que é essa modalidade de trabalho. Assim, aqueles que já atuam na área - os arquitetos dos sem-teto - devem também ocupar os espaços de discussão, em busca de construir redes e estabelecer, em conjunto com as entidades de classe, o formato e a concepção dessa atuação profissional.

Referências

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  • LOPES, J. M. de A. Nós, os arquitetos dos sem-teto. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 237-253, 2018.
  • MARTINS, L. M. Direito à arquitetura: inventário da produção das assessorias técnicas paulistas. 2019. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
  • PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 428. Regulamenta o art. 233, inciso IV, da lei orgânica do município de Porto Alegre, instituindo o programa de assistência técnica ao projeto e construção de moradia econômica a pessoas de baixa renda, e dá outras providências. Diário Oficial de Porto Alegre: Porto Alegre, 23 abr. 1999.
  • REVISTA PROJETO. Especial HIS/ATHIS São Paulo, Arco, ed. 4461, 2018.
  • RIBEIRO, J. E. V. O direito à habitação está inserido num direito de afirmação e soberania do povo. Entrevista cedida a [Yara Medeiros]. In: CUNHA, E. M. P.; ARRUDA, Â. M. V. de; MEDEIROS, Y. (org.). Experiências em Habitação de Interesse Social no Brasil Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação , 2007.
  • SANTO AMORE, C. Lupa e telescópio: o mutirão em foco - São Paulo, anos 90 e atualidade. 2004. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
  • SANTO AMORE, C. Assessoria e Assistência Técnica: arquitetura e comunidade na política pública de habitação de interesse social. Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas, 2., 2016, Rio de Janeiro. Anais do II URBFAVELAS Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.
  • TELLES, V. da S. A “nova questão social” brasileira: ou como as figuras de nosso atraso viraram símbolo de nossa modernidade. In: TELLES, V. da S. Pobreza e cidadania São Paulo: Editora 34, 2001. p. 139-166.
  • THIESEN, J. R. P. Trabalho, estética, arquitetura: a contribuição de György Lukács para um estudo crítico sobre a responsabilidade social do arquiteto. 2015. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2015.
  • TONSIG, L. M. Os Escritórios Modelo de Arquitetura e Urbanismo (EMAU) e a formação do arquiteto e urbanista 2020. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2020.
  • 1
    Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelo financiamento desta pesquisa realizado através do processo 2018/19656-7.
  • 2
    São diversas as atividades realizadas por todo o país. Entre algumas mais recentes, podem-se citar o seminário nacional promovido pelo CAU, pela FNA e pelo BrCidades no Rio de Janeiro, em novembro de 2019, e o I Fórum de Assessoria Técnica Popular do Nordeste, realizado em Recife, em fevereiro de 2020.
  • 3
    Tomamos emprestado o termo empregado por Vera Telles (2001)TELLES, V. da S. A “nova questão social” brasileira: ou como as figuras de nosso atraso viraram símbolo de nossa modernidade. In: TELLES, V. da S. Pobreza e cidadania. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 139-166., ao tratar dos diversos deslocamentos de significados relacionados às questões sociais, no contexto do cenário público nacional.
  • 4
    No Rio Grande do Sul, os assentamentos informais são comumente denominados “vilas”. O que Clovis relata nessa fala é que muitos assentamentos já haviam conquistado melhorias com a implantação de infraestrutura e urbanização, porém as moradias ainda eram muito precárias.
  • 5
    Dados fornecidos pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, via e-SIC.
  • 6
    O CAU é uma autarquia federal que orienta, disciplina e fiscaliza a profissão dos arquitetos e urbanistas, além de buscar a valorização do exercício profissional. Não exerce, portanto, a função de criar políticas públicas.
  • 7
    É o caso da experiência na Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo, incentivada pelo engenheiro Guilherme Coelho; do projeto da Vila Comunitária, em São Bernardo do Campo; e das ações promovidas pelo Laboratório de Habitação da Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Para mais informações, ver LOPES, J. M. de A. Sobre arquitetos e sem-tetos: técnica e arquitetura como prática política. 2011. Tese (Livre-docência) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2011.
  • 8
    O trabalho de Martins (2019)MARTINS, L. M. Direito à arquitetura: inventário da produção das assessorias técnicas paulistas. 2019. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. traz um inventário da produção das assessorias paulistas. Destacamos aqui os projetos do Conjunto Paulo Freire, realizado pela USINA em parceria com a Associação de Moradores Paulo Freire; e o conjunto no Jardim Brasília, realizado pela Associação Pôr do sol e Recanto das Estrelas com as assessorias Oficina de Habitação e Peabiru.
  • 9
    Para saber mais sobre a atuação profissional das assessorias técnicas, ver Santo Amore (2004)SANTO AMORE, C. Lupa e telescópio: o mutirão em foco - São Paulo, anos 90 e atualidade. 2004. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004..
  • 10
    Arrecadou-se um milhão de assinaturas para levar o projeto de lei a Brasília, em 1991. O momento foi emblemático, pois o volume de pacotes com assinaturas era tamanho que vários representantes, carregando carrinhos de mão, subiram a rampa do Congresso para entregá-los ao presidente da Câmara.
  • 11
    O evento gerou uma cartilha com o resumo das atividades. Ela pode ser acessada em: http://www.peabirutca.org.br/?painel_projetos=oficinas-athis.
  • 12
    É evidente que a questão relacionada ao RRT deve ser pensada. O que questionamos aqui é o fato de esse tema ter se tornado central no debate. A esse respeito, o CAU/BR aprovou, em junho de 2019, uma nova resolução que cria o RRT Social. É uma espécie de registro voltado apenas a projetos de HIS, com custo mais baixo.
  • 13
    Juliana Linhares mostra um breve apanhado de outras iniciativas na área, analisando suas formas de atuação. LINHARES, J. de F. Atuação do arquiteto na produção do espaço urbano autoconstruído pela população de baixa renda. 2018. Dissertação (Mestrado) - Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.
  • 14
    Para mais detalhes, ver seminário O papel dos conselhos profissionais no fomento à ATHIS, disponível no canal do CAU/SC no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=e8W_hHCpBrU&list=PLOouYfCVi65Yf8hupG2hn0mMcLWkUn16j.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2021
  • Aceito
    10 Out 2021
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