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Ciclos de remoções em Belém (PA): a Bacia do Tucunduba e a reprodução da precariedade

Resumo

Este artigo apresenta evidências de que existe um ciclo de remoções em curso na Bacia do Tucunduba, em Belém (PA), onde obras de urbanização se prolongam há anos, implicando um número crescente de famílias deslocadas. Compreende-se que a falta de provisão habitacional para as famílias removidas a partir de casos judicializados colabora para que novas ocupações irregulares ocorram e para que a precariedade e a informalidade se perpetuem. Os fatores que contribuem para a construção desse quadro foram organizados em quatro grupos: operacionais/de planejamento; político/administrativos; ideológicos; e extralegais. Fontes empíricas e documentais, entrevistas com técnicos de órgãos públicos e com a população ameaçada de remoção e análises de processos judiciais mostram que as remoções, ao mesmo tempo que aprofundam a condição de vulnerabilidade das famílias, servem para manter estruturas funcionais para a periferia do capitalismo.

Palavras-chave:
Remoções; Ocupações Informais; Urbanização; Bacia do Tucunduba; Belém

Abstract

This article presents evidences that there is an ongoing cycle of evictions in the Tucunduba River basin, in the Brazilian city of Belém (PA), where urbanization work has been taken place over several years, which has caused an increasing number of displaced families. It is understood that the housing provision shortage has led to an increase in cases of judicialization, which thereby contributes to further irregular occupations and, thus, a continuation of precariousness and informality. The reasons that contribute to the situation have been classified into four groups: operational/planning; political/administrative; ideological; and extra-legal. Empirical and documentary sources, interviews with technicians from public bodies and with the population threatened by eviction, and an analysis of the judicial processes demonstrate that while evictions intensify the condition of vulnerability of the families, they also serve to maintain structures that support peripheral capitalism.

Keywords:
Evictions; Informal Settlements; Urbanization; Tucunduba River Basin; Belém

Introdução

Este artigo advém de uma pesquisa sobre remoções na Bacia do Tucunduba, em Belém (PA), e tem por objetivo revelar os fatores que colaboram para a constatação de que nela ocorre um fenômeno mais amplo e cíclico denominado ciclo de remoções. A área se localiza na periferia próxima da cidade1 1 Trata-se de área de várzea localizada na borda do centro metropolitano, e por isso chamada de periferia próxima, em oposição à periferia metropolitana, situada em outros municípios. e historicamente é caracterizada pela precariedade das condições de infraestrutura e habitabilidade, com a ocorrência de frequentes alagamentos. Em 2008, foi iniciado o Projeto de Saneamento Integrado para a Bacia do Tucunduba, contratado pelo Governo do Estado do Pará, com recursos do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), para a retomada2 2 A área em questão recebeu recursos do Programa Habitar Brasil BID na década de 2000, para ações que não foram concluídas pelo município após mudança da gestão municipal e por isso foi área prioritária do PAC. Este assunto será retomado na sessão 2 deste texto. de ações de melhoria das redes de saneamento do local. Essa intervenção implicou o deslocamento de centenas de famílias, para as quais foram oferecidas unidades habitacionais nos residenciais planejados para recebê-las, localizados próximos às antigas habitações. No entanto, uma série de problemas operacionais e administrativos gerou paralisação e atraso nas obras de macrodrenagem e de construção dos conjuntos habitacionais. Como consequência, os terrenos dos residenciais ficaram ociosos e a aparência de abandono propiciou a ocorrência de ocupações irregulares nas unidades habitacionais semifinalizadas.

O contexto descrito se repetiu nos três residenciais previstos para serem construídos na Bacia do Tucunduba, o que levou o Governo do Estado do Pará a ajuizar ações de reintegração de posse, visando à desocupação das áreas. A judicialização dos casos conduziu à inserção de um novo agente para a operacionalização da política pública: o Poder Judicial, aqui representado pelas procuradorias e pelos tribunais. Porém, esses agentes costumam apresentar uma leitura estritamente civilista dos casos, via de regra baseando suas arguições na defesa absoluta da propriedade privada da terra e na estigmatização das famílias ocupantes, comumente enquadradas como ameaças ao interesse público.

O caso do Residencial Liberdade apresentou algumas especificidades que agravaram a operacionalização da intervenção. Trata-se de um residencial de grandes dimensões, com previsão de construção de 2.336 unidades habitacionais, representando o maior financiamento habitacional do PAC no Pará (PEREIRA, 2013PEREIRA, G. Tem gente! Uma análise de projetos habitacionais do PAC em assentamentos informais no Pará. 2013. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Pará, Belém, 2013.). A execução da obra apresentou, desde seu início em 2009, diversas dificuldades relacionadas às condições do terreno alagadiço e a fatores políticos, que implicaram a paralisação da intervenção em um momento de mudança da gestão do Governo do Estado. O Residencial Liberdade foi ocupado irregularmente em diversas vezes nesse período, o que implicou, em 2012, a judicialização do processo de reintegração de posse, com deslocamento de 450 famílias. Em 2019, esse processo foi retomado, visando à remoção de uma nova ocupação e representando, assim, uma continuidade do imbróglio judicial. Nos processos de desocupação da área, não foram oferecidas medidas para garantir acesso à moradia com segurança de posse para a população removida do residencial. Dados empíricos mostram que essa forma de “resolução” de conflitos fundiários apenas agrava o problema habitacional, pois lança uma população já empobrecida em uma situação ainda mais vulnerável, já que ela precisa viabilizar seu acesso à moradia com recursos próprios, ocasionando, assim, mais ocupações irregulares e uma nova situação de fragilidade na posse da terra.

Pelo que foi retratado, a conjuntura segue um percurso que inclui as seguintes fases: a promoção de remoções (inicialmente para viabilizar as obras de macrodrenagem), a paralisação das obras, o estabelecimento do estado de ociosidade da terra e a ocupação irregular dos terrenos ociosos por uma população vulnerável do ponto de vista socioeconômico. Depois disso, são realizadas novas remoções da ocupação irregular, e a situação se repete em um processo cíclico, que chamamos aqui de ciclo de remoções (Figura 1). Os fatores envolvidos na criação do ciclo de remoções explorados ao longo do artigo são associados a diferentes agentes da esfera pública ou privada, envolvendo desde órgãos públicos até o crime organizado.

Figura 1
Ciclo de remoções

A pesquisa foi estruturada em duas etapas. A primeira ocorreu em 2019, antes da pandemia, quando foi possível acompanhar o trabalho técnico desenvolvido pela Defensoria Pública do Estado do Pará, com destaque para duas grandes reuniões in loco com toda a população ameaçada de remoção do residencial, e quatro reuniões de atendimento de lideranças realizadas na Defensoria Pública, para tratar das possibilidades de defesa no processo judicial. Uma entrevista semiestruturada foi conduzida com lideranças comunitárias no residencial, com apoio de um bolsista de iniciação científica morador do bairro.

A segunda etapa foi realizada durante os anos de pandemia (2020-2021), quando a crise sanitária vivida em Belém inviabilizou o trabalho direto com a comunidade. A partir de 2020, foi possível pesquisar a documentação acumulada no decorrer de 10 anos de existência do processo (Figura 2), paralelamente à revisão de literatura sobre a temática de remoções e da atuação da justiça em conflitos fundiários, perpassando autores da área da arquitetura e do urbanismo, do direito e da sociologia. A análise documental foi realizada em processos judiciais de reintegração de posse e de desapropriação; memoriais descritivos e desenhos técnicos do Projeto de Saneamento Integrado para a Bacia do Tucunduba e do projeto do Residencial Liberdade; contratos firmados entre a Companhia de Habitação do Pará (COHAB-PA) e a Caixa Econômica Federal (CAIXA) para repasse de recursos relativos ao Residencial Liberdade; Quadros de Composição de Investimentos (QCIs) para cada uma das etapas do residencial; e contrato firmado entre a COHAB-PA e uma das empreiteiras licitadas para executar as obras do residencial. Além disso, foram realizadas seis entrevistas semiestruturadas com pessoas que atuaram na contratação e/ou execução das obras paralisadas: três técnicos de órgão federal responsável pelas obras; um técnico da empresa executora estadual; um técnico do escritório que desenvolveu o projeto; um técnico de empresa que participou da execução da obra. Antes do início das entrevistas, a pesquisa obteve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Plataforma Brasil.

Figura 2
Linha do tempo da execução do Residencial Liberdade

A partir das evidências geradas nesse percurso, o artigo explica como a prática contínua de remoções é carregada de aspectos ideológicos, que se expressam tanto nos projetos urbanísticos de caráter remocionista quanto em peças jurídicas. Consequentemente, demonstram que o ciclo de remoções tem como efeito o fortalecimento de uma visão estigmatizada acerca dos ocupantes e o agravamento das condições de vulnerabilidade, ao mesmo tempo que viabiliza a manutenção do repasse de fundos públicos às empresas locais de engenharia. O cotejamento entre teoria e dados empíricos permitiu identificar quatro grupos de fatores atuantes no fenômeno do ciclo de remoções: operacionais/de planejamento; políticos/administrativos; ideológicos; extralegais. Esse resultado foi assumido como guia para a estruturação deste artigo, o qual, partindo da introdução apresenta o quadro teórico, a área de estudo e o histórico do processo, as evidências empíricas organizadas dentro dos quatro grupos referidos e as conclusões.

1. As remoções como prática ideológica

O direito e o planejamento urbano são áreas do conhecimento inter-relacionadas, não apenas porque é por meio das leis que os planos e normas urbanísticas passam a operar na institucionalidade, mas também porque ambas as áreas funcionam, historicamente, como dispositivos para a imposição de relações de poder encabeçadas por classes privilegiadas. A justiça foi disseminada como uma força supostamente neutra e idônea. Por essas características, ela seria a esfera adequada para a resolução de conflitos. No entanto, desde a sua criação, esteve ligada a disseminação de interesses e fortalecimento do poder exercido pelos mais ricos (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014.), mantendo essas raízes até os dias atuais. Como o planejamento urbano apresenta uma relação estreita com o aparato jurídico, ele também pode ser compreendido como instrumento para veiculação de poder, configurando-se como um jogo político por meio do qual certas frações de classe buscam efetivar seus interesses (ABELÉM, 2018ABELÉM, A. G. Urbanização e Remoção: Por que e para quem? 2 ed. Belém: NAEA, 2018.).

Nesse sentido, as remoções são práticas que vêm sendo atualizadas ao longo do tempo e justificadas a partir de novos discursos, mas em geral mantendo como consequência o agravamento da condição de pobreza e vulnerabilidade da população deslocada. Em um panorama global, as remoções frequentemente resultam de grandes projetos urbanísticos associados à exploração econômica, à criação de espaços favoráveis para investimentos e à viabilização de megaeventos (ROLNIK, 2016ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo (Edição Kindle), 2016.; SASSEN, 2016SASSEN, S. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro;São Paulo: Paz e Terra, 2016; DAVIS, 2011DAVIS, L. K. International events and mass evictions: A longer view. International Journal of Urban and Regional Research, v. 35, n. 3, p. 582-599, 2011.; SØRBØE; BRAATHEN, 2022SØRBØE, C. M.; BRAATHEN, E. Contentious politics of slums: Understanding different outcomes of community resistance against evictions in Rio de Janeiro. International Journal of Urban and Regional Research , v. 46, p. 405-423, 2022.). Em alguns casos, também se utiliza a condição de fragilidade ambiental para justificar a erradicação de favelas, embora as políticas de remoção não atinjam a população mais rica que também habita espaços ambientalmente sensíveis (DOSHI, 2019DOSHI, S. Greening displacements, displacing green: Environmental subjectivity, slum clearance, and the embodied political ecologies of dispossession in Mumbai. International Journal of Urban and Regional Research , v. 43, n. 1, p. 112-132, 2019.).

No contexto brasileiro, esse tipo de prática é reforçado pela utilização do planejamento urbano como maneira de produzir a cidade ideal, que seria alcançada por meio de normas e padrões muitas vezes descolados da realidade da cidade já existente. De acordo com essa ótica tecnicista, “o plano e o planejamento cumprem um papel de ordenadores e racionalizadores da ação pública sobre a cidade” (RIBEIRO; CARDOSO, 1994RIBEIRO, L. C. Q.; CARDOSO, A. L. Planejamento urbano no Brasil: paradigmas e experiências. Revista Espaço & Debates, n. 37, p. 77-89, 1994., p. 85), postos a serviço da eliminação de supostos focos de distorção urbana. Essa forma de intervir nas cidades brasileiras predominou durante grande parte do século XX, quando as estratégias para intervenções em assentamentos informais focavam-se na erradicação das favelas (REGINO, 2017REGINO, T. Direito à moradia, intervenção em favelas e deslocamento involuntário de famílias: conflitos e desafios para as políticas públicas. 2017. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Gestão do Território) - Universidade Federal do ABC, Santo André, 2017.). O higienismo foi adotado por gestões federais, por exemplo, as de Getúlio Vargas e de Eurico Gaspar Dutra, cujos planos para remoções compulsórias serviram como inspiração para políticas municipais. Durante a ditadura militar, as políticas remocionistas se tornaram mais estruturadas, pois foram disponibilizados recursos volumosos para a construção de conjuntos habitacionais periféricos.

Conforme estudos, as políticas de erradicação de favelas são carregadas de uma série de preconceitos em relação aos moradores desses espaços. Nas intervenções realizadas durante a ditadura militar no Rio de Janeiro, por exemplo, acreditava-se que, ao reassentar as famílias em moradias distantes das áreas centrais da cidade, estariam sendo oferecidas condições de vida que levariam à “recuperação humana” e à integração da população à sociedade formal (PERLMAN, 1977PERLMAN, J. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.). Erradicar favelas também era uma forma de liberar terras centrais para a atuação do mercado imobiliário, ao mesmo tempo que se fomentava o setor da construção civil por meio do incentivo à construção de conjuntos habitacionais, especialmente a partir do surgimento do Banco Nacional de Habitação (BNH). Dessa forma, as políticas remocionistas eram justificadas por um argumento determinista de que as comunidades alcançariam um modo de vida mais civilizado ao saírem das favelas. Essa premissa, no entanto, também servia para encobrir como o setor público estava empenhado em atender aos interesses de classes empresariais.

Com o passar das décadas, a forma de intervir em assentamentos informais se alterou, e isso repercutiu no tratamento dado às remoções. Os municípios passaram a compreender que era mais viável, do ponto de vista socioeconômico, praticar a urbanização das favelas, em vez de removê-las totalmente. Assim, seria possível aproveitar os investimentos feitos pelas famílias na construção de suas moradias e manter as relações de vizinhança consolidadas (MARICATO, 2003MARICATO, E. Conhecer para resolver a cidade ilegal. In: CASTRIOTA, L. B. (Org.). Urbanização Brasileira: redescobertas. Belo Horizonte: Ed. C/Arte, 2003, p. 78-96.). Conforme Regino (2017REGINO, T. Direito à moradia, intervenção em favelas e deslocamento involuntário de famílias: conflitos e desafios para as políticas públicas. 2017. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Gestão do Território) - Universidade Federal do ABC, Santo André, 2017., p. 17), entre as décadas de 1980 e 1990, predominou a estratégia de urbanização e “não-remoção” (quando as remoções eram evitadas ao máximo); já na década de 1990 até os dias atuais, a estratégia de “urbanização integrada com remoções e soluções de reposição” foi a predominante. A partir desse último momento, passou-se a entender que em alguns casos as remoções poderiam ser importantes para evitar situações de risco e precariedade, mas que elas deveriam ser acompanhadas de uma gestão participativa e de compensações para a moradia que privilegiassem a realocação dentro do próprio assentamento.

Essa forma de intervenção foi adotada nos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento - Urbanização de Assentamento Precário (PAC-UAP), que trazia em seu escopo uma abordagem mais compreensiva acerca dos assentamentos, buscando requalificá-los e criar condições mais adequadas de vida e de moradia (MARICATO, 2011MARICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2011.). O PAC tinha como um de seus objetivos primordiais disponibilizar recursos volumosos para obras de infraestrutura e, assim, gerar um ciclo de crescimento econômico no país (CARDOSO; DENALDI, 2018CARDOSO, A.; DENALDI, R. Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). In: CARDOSO, A.; DENALDI, R. (Orgs.). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. 1 ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018. p. 17-48.). Na prática, essa conjuntura permitiu a realização de intervenções urbanísticas de grande porte e de investimentos em extensos complexos de favela. Tais intervenções produziram, em diversos casos, o deslocamento de muitas famílias, com justificativas nem sempre baseadas em critérios técnicos, mas também no atendimento de interesses do mercado imobiliário (CARVALHO, 2019CARVALHO, P. H. Olhar favela, ver cidade: intervenções do PAC-UAP em Fortaleza. 2019. Dissertação (mestrado) - Centro de Tecnologia, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e Design, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019.; FERREIRA, 2017FERREIRA, P. E. O filé e a sobra: as favelas no caminho do capital imobiliário. 2017. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).

Optar por privilegiar intervenções maiores também tinha por objetivo tornar os contratos mais atraentes para as empresas da construção civil que passariam a atuar nas obras. Uma das estratégias utilizadas para alcançar essa finalidade foi unir a urbanização de mais de um assentamento em um único Termo de Compromisso (TC), criando, assim, licitações mais vantajosas (PETRAROLLI, 2015PETRAROLLI, J. O tempo nas urbanizações de favelas: contratação e execução de obras do PAC no Grande ABC. 2015. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território, Universidade Federal do ABC, Santo André, 2015.). A preferência dada às grandes obras é resultado de uma conjuntura na qual a licitabilidade dos contratos se torna critério prioritário, podendo-se falar em um predomínio do projeto sobre o planejamento (FERREIRA, 2017FERREIRA, P. E. O filé e a sobra: as favelas no caminho do capital imobiliário. 2017. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.; PEQUENO; HOLANDA, 2018PEQUENO, R.; HOLANDA, B. Trajetória de remoções em Fortaleza: análise de registros perversos da desigualdade. In: LINS, R. D.; ROLNIK, R. (Org.) Observatório de Remoções 2017-2018: relatório bianual. São Paulo: FAU USP , 2018. p. 63-82.).

As repercussões desse quadro são diversas: por um lado, muitos municípios passaram a apresentar dificuldades em gerir os contratos e fiscalizar as obras, uma vez que não dispunham de corpo técnico para tanto. Por outro, as empreiteiras contratadas não costumavam ter experiência para executar obras complexas, como as de urbanização de favelas, que exigem a execução de infraestruturas diversas. Em alguns casos, esse quadro foi agravado pelo fato de os contratos do PAC-UAP terem sido firmados com base em projetos incompletos e desatualizados, como forma de agilizar o repasse de verbas federais (PETRAROLLI, 2015PETRAROLLI, J. O tempo nas urbanizações de favelas: contratação e execução de obras do PAC no Grande ABC. 2015. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território, Universidade Federal do ABC, Santo André, 2015.; CARDOSO, 2011CARDOSO, A. C. Desarticulações entre políticas urbanas e investimentos em cidades: contratação do PAC paraense. Mercator - Revista de Geografia da UFC, v. 10, n. 22, p. 71-86, 2011.). Essa conjuntura gerou a necessidade de atualização dos projetos enquanto as obras já estavam sendo realizadas e também colaborou para que imprevistos relevantes ocorressem durante as intervenções, resultando em Reprogramações Contratuais, paralisações de obras e aumento no tempo necessário para a conclusão das obras (CARDOSO; DENALDI, 2018CARVALHO, P. H. Olhar favela, ver cidade: intervenções do PAC-UAP em Fortaleza. 2019. Dissertação (mestrado) - Centro de Tecnologia, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e Design, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019.).

Como mostra a literatura, o prolongamento do tempo das obras de urbanização e de produção habitacional colabora diretamente para o aumento no número de remoções. Isso acontece porque os assentamentos são muito dinâmicos, recebem novas ocupações e atravessam processos de adensamento em um curto espaço de tempo. Mesmo quando a área está sob intervenções e já teve espaços desocupados, pode ser muito difícil realizar o controle do território a fim de evitar novas ocupações, especialmente se o quadro técnico municipal disponível para o trabalho for insuficiente. Dessa forma, frequentemente, o cadastro social realizado ainda na fase de elaboração do projeto se desatualiza até o momento de execução das obras, o que é agravado quando a intervenção é paralisada por longos períodos. Nesses casos, é comum que as novas famílias ocupantes sejam deslocadas sem receberem medidas compensatórias para a moradia, sob a justificativa de terem ocupado a área após ter sido realizado o cadastro social, resultando assim em novos conflitos (REGINO, 2017REGINO, T. Direito à moradia, intervenção em favelas e deslocamento involuntário de famílias: conflitos e desafios para as políticas públicas. 2017. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Gestão do Território) - Universidade Federal do ABC, Santo André, 2017.).

No caso de obras de habitação, as paralisações podem levar a ocupação das unidades habitacionais semifinalizadas. Isso ocorreu em Belém, onde pelo menos quatro dos residenciais produzidos com recursos do PAC foram ocupados irregularmente após terem suas obras paralisadas. Esses conjuntos habitacionais são: Residencial Ive Portela, que integra a macrodrenagem na Bacia do Paracuri; Residencial Vila da Barca, que integra a urbanização do assentamento homônimo; Residencial Riacho Doce e Residencial Liberdade, ambos integrando a macrodrenagem da Bacia do Tucunduba (Figura 3). Todas essas intervenções se localizam nas baixadas de Belém - áreas com cota altimétrica de até 4 metros, entrecortadas por rios, inseridas no atual centro metropolitano, ocupadas por população de baixa renda (SUDAM; DNOS; PARÁ, 1976SUDAM; DNOS; PARÁ, Governo do Estado. Monografia das baixadas de Belém: subsídios para um projeto de recuperação. 2 ed. Belém: SUDAM, 1976. 2 v.).

Figura 3
Residenciais ocupados irregularmente em Belém

Após a ocupação irregular dos residenciais, a Prefeitura de Belém e o Governo do Estado do Pará (a depender de qual desses dois entes contratou as obras) ingressaram com ações de reintegração de posse por meio de suas procuradorias. A judicialização dos casos inaugurou uma nova etapa para a operacionalização das intervenções, uma vez que, para as obras serem retomadas, passou-se a depender da arguição das procuradorias e das decisões dos juízes. No entanto, como mostram estudos (MILANO, 2016MILANO, G. Conflitos fundiários urbanos e poder judiciário: decisões jurisdicionais na produção da segregação socioespacial. 2016. Tese (doutorado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.; AMADEO; ANSARI, 2021AMADEO, C.; ANSARI, M. R. O direito e as margens da cidade. In: UNGARETTI, D., et al. Propriedades em transformação: expandindo a agenda de pesquisa. São Paulo: Blucher, 2021. p. 29-53.), a forma que o Poder Judiciário atua na resolução de conflitos fundiários frequentemente se baseia na defesa absoluta do direito à propriedade privada e na estigmatização dos ocupantes.

Conforme demonstra Foucault (2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014.), o aparato legal utilizado pelas instituições (nesse caso, os três níveis de governo) pode ser caracterizado como um “dispositivo”, ou seja, um mecanismo que apresenta funções estratégicas para a reprodução de relações de poder e dominação, por meio do uso de práticas e discursos. Nesse sentido, o autor explica que o objetivo das penalidades não é de coibir as ilegalidades, mas sim hierarquizar os desvios às normas e traçar limites de tolerância. Logo a atuação da justiça seria uma forma de diferenciar e hierarquizar os próprios indivíduos, excluindo aqueles que não agem segundo a regra moral adotada pelas leis (FOUCAULT, 1987FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.). Partindo desse entendimento para a situação do Brasil, Milano (2016MILANO, G. Conflitos fundiários urbanos e poder judiciário: decisões jurisdicionais na produção da segregação socioespacial. 2016. Tese (doutorado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.) explica que, ao longo do tempo, foi construída a imagem do “invasor” como um sujeito à parte da lei, um inimigo social, não apenas porque ele ameaça a propriedade privada, mas também porque a “invasão” é considerada uma ação violenta que põe em perigo toda a sociedade. Isto ocorre porque, uma vez instituída a propriedade privada da terra no Brasil (a partir da Lei de Terras de 1850), qualquer forma de acesso à terra que não fosse a compra passou a ser considerada precária e clandestina e, da mesma forma, o proprietário passou a ser o seu dono incontestável. Logo, nos conflitos fundiários, quando a pessoa ou família é enquadrada como “invasor/a”, é autorizada a “intervenção jurisdicional para a extinção do conflito por meio dos despejos coletivos forçados” (MILANO, 2016MILANO, G. Conflitos fundiários urbanos e poder judiciário: decisões jurisdicionais na produção da segregação socioespacial. 2016. Tese (doutorado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016., p. 18). A remoção serve não apenas para reparar um ato considerado ilegal (a “invasão”), mas também para punir o “invasor”, que ousa ameaçar a norma jurídica (AMADEO; ANSARI, 2021AMADEO, C.; ANSARI, M. R. O direito e as margens da cidade. In: UNGARETTI, D., et al. Propriedades em transformação: expandindo a agenda de pesquisa. São Paulo: Blucher, 2021. p. 29-53.).

Colabora para esse quadro analítico o que Franzoni (2019FRANZONI, J. Geografia jurídica tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v.10, n.4, p. 2923-2967, 2019., p. 2.926) chama de “tendência de despacialização do direito”, que se refere à maneira como os agentes do direito têm uma visão muito estrita sobre o que é ditado pela lei e pela jurisprudência, em detrimento de aspectos fáticos da realidade vivida. Quando se trata de conflitos fundiários que envolvem ações possessórias, as discussões existentes nos processos judiciais costumam se ater à literalidade do código civil e à comprovação da propriedade por parte do autor do processo, desconsiderando aspectos como o desempenho da função social, por exemplo. Milano (2016MILANO, G. Conflitos fundiários urbanos e poder judiciário: decisões jurisdicionais na produção da segregação socioespacial. 2016. Tese (doutorado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016., p. 153) aponta que o entendimento predominante entre os magistrados é de que “a melhor posse é aquela que deriva do direito de propriedade, desvinculadamente de aferições focadas no uso ou na funcionalidade que o proprietário tenha ou não dado ao imóvel”.

Pesquisas que analisaram ações possessórias acompanhadas por Defensorias Públicas Estaduais (FRANZONI et al., 2020FRANZONI, J.; XIMENES, L.; RIBEIRO, B.; SOUZA, L. Cartografias jurídicas: debatendo o mapeamento jurídico-espacial de conflitos fundiários urbanos no Rio de Janeiro. In: MOREIRA, F.; ROLNIK, R.; SANTORO, P. (Orgs.). Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares. Observatório de remoções: relatório bianual 2019-2020. São Paulo: FAU USP, 2020. p. 83-113.) verificaram que, em grande parte dos casos, não havia qualquer menção acerca de aspectos espaciais das ocupações, como aqueles referentes ao grau de consolidação da ocupação, à incidência de zoneamento especial de interesse social e até mesmo à comprovação de que a posse vinha sido exercida pelos autores dos processos. Ou seja: predominava “o olhar estanque das narrativas processuais para fragmentos da cidade tomados como irregulares, com as escassas descrições das condições de moradia mascaradas pela alegação da precariedade” (FRANZONI et al., 2020FRANZONI, J.; XIMENES, L.; RIBEIRO, B.; SOUZA, L. Cartografias jurídicas: debatendo o mapeamento jurídico-espacial de conflitos fundiários urbanos no Rio de Janeiro. In: MOREIRA, F.; ROLNIK, R.; SANTORO, P. (Orgs.). Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares. Observatório de remoções: relatório bianual 2019-2020. São Paulo: FAU USP, 2020. p. 83-113., p. 96), argumento utilizado como subsídio para fundamentar as remoções.

Portanto, é possível perceber que a promoção de remoções é orientada por uma série de aspectos ideológicos. Nas intervenções urbanísticas realizadas pelo Executivo, as remoções de populações frequentemente funcionam como estratégia de forjar áreas (localizações) favoráveis para o mercado imobiliário. Já quando se trata de conflitos fundiários, as remoções promovidas pelo Judiciário são em grande parte baseadas em uma defesa irrestrita do direito à propriedade e têm por efeito o agravamento da estigmatização que recai sobre as famílias ocupantes. A seção a seguir analisa como esse contexto se reproduz na Bacia do Tucunduba.

2. A Bacia do Tucunduba e a judicialização de casos de remoções

O sítio físico de Belém foi um dos elementos que orientaram a ocupação da cidade: os terrenos mais baixos, com características de várzea e chamados localmente de baixadas, foram ao longo do tempo ocupados por uma população empobrecida. A Bacia Hidrográfica do rio Tucunduba, localizada ao sudeste de Belém, é uma área formada em grande parte por baixadas e entrecortada por 13 canais, sendo o principal deles o Rio Tucunduba. Ela é marcada pela precariedade nas condições de moradia e de infraestrutura e pelos frequentes alagamentos. Por essa razão, o poder público passou a realizar intervenções na área na década de 1990, visando a resolver tais problemas. Uma referência de magnitude dessas intervenções foi o Projeto Tucunduba, financiado pelo Programa Habitar Brasil BID, cujo objetivo foi a macrodrenagem do rio Tucunduba. As obras previstas no projeto foram executadas até 2005, quando houve mudança na gestão municipal e a intervenção foi paralisada. Já em 2008, foi formulada uma nova intervenção denominada Projeto de Saneamento Integrado para a Bacia do Tucunduba, contratado pelo Governo do Estado do Pará por meio SEIDURB (Secretaria de Integração Regional, Desenvolvimento Urbano e Metropolitano),3 3 Atual Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas (SEDOP). contando com recursos do PAC (modalidade saneamento).

Figura 4
Diferenças nas faixas de desapropriação previstas no projeto urbanístico da Bacia do Tucunduba e no Decreto nº 30/2019

O novo projeto englobou intervenções em uma extensão de 2.200 metros, ao longo dos quais centenas de famílias tiveram de ser deslocadas. Em 2013, foi prevista a retirada de cerca de 930 famílias (SILVA, 2016SILVA, A. L. Uso da Água na bacia urbana do Igarapé do Tucunduba-Belém-PA. 2016. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2016.). Todas receberiam auxílio moradia de R$ 300 enquanto os residenciais previstos para o remanejamento não fossem concluídos. Em 2019, no entanto, o número de famílias deslocadas já chegava a 1.511. Esse aumento considerável se associou, em parte, ao Decreto nº 30/2019, promulgado pelo Governo do Estado do Pará, por meio do qual foram definidas as áreas de utilidade pública para fins de desapropriação na Bacia do Tucunduba. Porém, a faixa de desapropriação incluída no decreto foi maior que a faixa prevista anteriormente no projeto urbanístico, passando a englobar a desapropriação de duas quadras inteiras (Figura 4), que, de início, serviriam como canteiro de obras e, posteriormente, seriam transformadas em praças. Ou seja, as famílias seriam removidas desses espaços por motivos puramente funcionalistas, que em nada se relacionam com a melhoria das condições ambientais na Bacia do Tucunduba.

O processo de remoção dos moradores envolveu a judicialização de alguns casos, uma vez que não houve acordo entre as famílias e a SEDOP, cuja oferta de compensação era o recebimento de uma unidade habitacional em um dos residenciais ou uma indenização no valor da benfeitoria avaliada pela secretaria. Algumas famílias consideraram as indenizações injustas, já que essas incluíam apenas o valor da construção, sem considerar o valor do terreno. O fato de se tratar de ocupações irregulares diminuía consideravelmente o valor compensatório oferecido pela desapropriação.

Nos casos citados acima, a Procuradoria Geral do Estado do Pará (PGE-PA) ingressou com ações de desapropriação de benfeitorias contra os moradores. Uma dessas ações4 4 Ação de desapropriação nº 0837332-10.2019.8.14.0301 no TJE-PA. foi movida contra quatro famílias moradoras de uma das quadras que seriam transformadas em canteiro de obras. As benfeitorias foram avaliadas pela SEDOP com valores entre R$ 17.000 e R$ 54.900, os quais a PGE-PA afirmava serem justos pois consistiam “em quantia equivalente ao preço que a coisa alcançaria caso tivesse sido objeto de contrato normal e não compulsório de compra e venda” (PARÁ, Petição Inicial, 2019PARÁ. Ação de desapropriação nº 0837332-10.2019.8.14.0301. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. 4ª Vara de Fazenda de Belém. 2019., p. 8). No entanto, no processo judicial, as famílias anexaram avaliações feitas por corretores de imóveis, que mostraram que os valores praticados nessa área da cidade eram bem mais elevados do que aqueles avaliados pela SEDOP. Durante o trâmite do processo judicial, não houve qualquer menção ao fato de as moradias estarem para além da faixa de desapropriação prevista no projeto urbanístico, mencionando-se apenas a faixa incluída no Decreto nº 30/2019. Por fim, o juiz decidiu pela remoção das famílias com o pagamento das indenizações de acordo com os valores avaliados pela SEDOP.

A forma como o processo judicial foi encaminhado sem discussão sobre aspectos espaciais revela o caráter “despacializado” do direito, conforme conceituado por Franzoni (2019FRANZONI, J. Geografia jurídica tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v.10, n.4, p. 2923-2967, 2019.). Nesse sentido, desconsiderar o valor da terra ao se avaliar as indenizações significa ignorar que foi a própria permanência das famílias no local que contribuiu, ao longo de décadas, para a valorização do espaço e para a geração de renda fundiária. Ao mesmo tempo, trata-se também de uma localização que, quando for transformada em praça, será valorizada às custas da negação do direito à moradia das famílias removidas. Assim, verifica-se que o processo judicial reforça, ainda que indiretamente, a ideologia em torno da propriedade privada da terra, pois é a própria irregularidade fundiária e ausência de propriedade que possibilita o pagamento de indenizações com valores reduzidos.

O Plano Diretor de Belém (Lei nº 8.655/2008), por sua vez, corrobora esse modus operandi no seu Art. 107, que define não serem passíveis de regularização fundiária as ocupações localizadas em áreas públicas “destinadas à realização de obras ou à implantação de planos urbanísticos de interesse coletivo” (BELÉM, 2008BELÉM. Lei nº 8.655, de 30 de julho de 2008. Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Belém, e dá outras providências. Câmara Municipal de Belém. Disponível em: http://www.belem.pa.gov.br/planodiretor/Plano_diretor_atual/Lei_N8655-08_plano_diretor.pdf. Acesso em: 6 ago. 2021.
http://www.belem.pa.gov.br/planodiretor/...
, p. 68). Dessa forma, a manutenção da irregularidade fundiária nas baixadas de Belém mostra-se funcional, pois torna todo o processo de remoção mais simplificado - mesmo que às custas do empobrecimento das famílias deslocadas. Com o valor da indenização paga, as pessoas são incapazes de acessar, no mercado formal, moradias com área equivalente à casa construída de modo incremental ao longo de décadas, perpetuando, assim, um ciclo de informalidade.

Para além do pagamento de indenizações, a outra medida compensatória oferecida para a população deslocada foi o recebimento de uma unidade habitacional em um dos três residenciais planejados - Residencial Riacho Doce, Residencial Vitória Régia e Residencial Liberdade. Todos os três empreendimentos tiveram suas obras paralisadas eventualmente; contudo, no caso do Residencial Liberdade, as paralisações foram recorrentes, ocasionando diversas ocupações irregulares no decorrer do tempo.

As paralisações no Residencial Liberdade foram motivadas por diversos fatores que revelaram problemas na elaboração dos projetos e na operacionalização das intervenções. Dentre os problemas que ocorreram logo no início das obras, um dos mais graves foram as intervenções de aterramento e compactação do terreno, tendo exigido valores bem mais elevados do que os previstos no QCI do projeto. Isso deveu-se a dois fatores: o terreno era bem mais alagadiço do que o esperado e a tipologia construtiva adotada (tijolo estrutural) se adaptava mal a esse tipo de terreno. Nesse sentido, é importante destacar que o projeto do Residencial Liberdade já estava “pré-pronto” quando foi contratado, sendo adaptado a partir de um outro projeto já executado em Belém, o Residencial Vila da Barca. Tal adaptação teve por objetivo reduzir o tempo necessário para elaboração do projeto e contratação das obras com restos de recursos federais - uma prática recorrente nos projetos do PAC, como mostram Petrarolli (2015PETRAROLLI, J. O tempo nas urbanizações de favelas: contratação e execução de obras do PAC no Grande ABC. 2015. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território, Universidade Federal do ABC, Santo André, 2015.) e Cardoso (2011CARDOSO, A. C. Desarticulações entre políticas urbanas e investimentos em cidades: contratação do PAC paraense. Mercator - Revista de Geografia da UFC, v. 10, n. 22, p. 71-86, 2011.). Todavia, como os valores do orçamento precisaram ser reajustados, a contrapartida paga pelo Estado do Pará aumentou consideravelmente, chegando quase ao mesmo valor pago pelo então Ministério das Cidades. Esse reajuste trouxe repercussões em 2010, quando houve mudança na gestão do Governo do Estado e os novos gestores decidiram paralisar as obras do Residencial Liberdade sob a alegação de que seria preciso realizar auditoria dos valores do contrato.

Em 2012, após a paralisação, foi iniciada a primeira ocupação irregular no conjunto habitacional - cerca de 450 famílias passaram a viver nas unidades habitacionais ainda em construção (PARÁ, 2012PARÁ. Ação de reintegração de posse nº 006357-82.2012.814.0301. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. 3ª Vara de Fazenda de Belém. 2012.). Esse evento resultou em uma ação de reintegração de posse5 5 Ação de desapropriação nº 006357-82.2012.814.0301 no TJE-PA. ajuizada pela PGE-PA, na qual a procuradoria utilizou uma série de argumentos baseados na defesa da propriedade privada e na estigmatização dos ocupantes. Ainda na petição inicial do processo, a PGE-PA afirmou que “a propriedade sempre faz presumir a posse do bem, ainda que não haja apreensão física efetiva sobre a coisa” (PARÁ, Petição Inicial, 2012PARÁ. Ação de reintegração de posse nº 006357-82.2012.814.0301. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. 3ª Vara de Fazenda de Belém. 2012., p. 8). Ou seja, reforçou-se a noção de que a posse decorre da propriedade. Ademais, a procuradoria também se referiu aos ocupantes com alcunhas como “invasores”, argumentando que

Os detentores/esbulhadores estão eivados do vício da má fé, uma vez que ocuparam ilicitamente o imóvel mesmo sabendo que o Estado do Pará está executando uma obra pública na área, que beneficiará centenas de famílias, entretanto, está sendo impossibilitado dessa concretização em decorrência dos invasores negarem-se a se retirar do imóvel, desafiando assim, o princípio da supremacia do interesse público. (PARÁ, Petição Inicial, 2012PARÁ. Ação de reintegração de posse nº 006357-82.2012.814.0301. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. 3ª Vara de Fazenda de Belém. 2012., p. 8)

A partir dessa argumentação, criou-se o entendimento de que o motivo para as obras estarem paralisadas seria a própria ocupação, quando, na realidade, foi a paralisação das obras e o abandono do canteiro que propiciou a ocupação, e não o contrário. Ao narrar os acontecimentos dessa maneira, a PGE-PA ocultou o fato de que o Governo do Estado não estava cumprindo a obrigação de seguir o cronograma previsto para as obras e também tentava criminalizar os ocupantes, na medida em que eles eram representados como os principais empecilhos para a conclusão da intervenção. Reforça-se, assim, a imagem do “invasor” como um indivíduo de alta periculosidade, como mostram Milano (2016MILANO, G. Conflitos fundiários urbanos e poder judiciário: decisões jurisdicionais na produção da segregação socioespacial. 2016. Tese (doutorado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.) e Amadeo e Ansari (2021AMADEO, C.; ANSARI, M. R. O direito e as margens da cidade. In: UNGARETTI, D., et al. Propriedades em transformação: expandindo a agenda de pesquisa. São Paulo: Blucher, 2021. p. 29-53.). A argumentação feita pela PGE-PA subsidiou a decisão favorável à reintegração de posse do Residencial Liberdade, que ocorreu em dezembro de 2013. Do total de famílias removidas, 73 dispunham de algum terreno e conseguiram receber o Cheque Moradia;6 6 Programa da COHAB-PA que consistia no oferecimento de valores monetários para a compra de material de construção e pagamento de mão-de-obra para obras residenciais de famílias de baixa renda. Em 2019, foi substituído pelo Programa Sua Casa. já as outras - cerca de 380 famílias - foram apenas cadastradas pela COHAB-PA para a lista de espera do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), isto é, mais de 80% das famílias não receberam uma alternativa imediata para a moradia, o que contribuiu para a reprodução da informalidade em outro local.

Após a área ter sido desocupada, as obras foram retomadas, mas novamente passaram por diversos problemas ao longo do tempo, como dificuldades para emitir o licenciamento ambiental (gerando paralisação das obras) e eventos de roubos e depredações no canteiro em 2017. No final desse ano, foram finalizadas e entregues as primeiras 288 UHs do Residencial Liberdade, de um total de 2.336, as únicas finalizadas até 2022 (Figura 5).

Figura 5
Foto aérea do Residencial Liberdade*

A partir dessa entrega, seguiu-se um longo período de paralisação no decorrer de 2018, devido ao não pagamento, por parte da COHAB-PA, de diversos boletins de medição de obra, culminando em um desequilíbrio financeiro para a empreiteira que atuava na execução do residencial. A companhia afirmou, em nota técnica, que o não pagamento das medições evidenciava “as dificuldades da administração da COHAB/PA à época quanto ao cumprimento da pontualidade dos pagamentos das faturas correspondentes dos Boletins de Medições” (COHAB-PA, 2020COHAB-PA. Plano de ação - visando reintegração de posse e retomada de obra. Nota técnica conjunto Residencial Liberdade, 2020., s.d.).

Com a paralisação das obras, no segundo semestre de 2018, foi iniciada nova ocupação irregular no Residencial Liberdade, a qual contou com grande volume de pessoas e se adensou ao longo de 2019, chegando a cerca de 1.500 famílias. A nova ocupação motivou a PGE-PA a retomar, em 2019, o antigo processo judicial (iniciado em 2012), solicitando o revigoramento da liminar de reintegração de posse. No entanto, foi decidido pelo juiz que a COHAB-PA deveria realizar o cadastramento das famílias ocupantes antes de proceder a reintegração de posse, a fim de encaixar os moradores em eventuais programas habitacionais.

O prazo de dois meses dados para o cumprimento dessa determinação não foi cumprido pela COHAB-PA, pois, segundo a Companhia, os seus agentes foram impedidos de adentrar no Residencial Liberdade pelos ocupantes. Evidências coletadas para esta pesquisa mostram que, de fato, a ocupação na área foi cooptada por diferentes agentes do crime organizado, que passaram a controlar diferentes porções de espaço no residencial, utilizando as lideranças comunitárias como canal de comunicação. Tal processo revela o esforço feito pelas organizações criminosas em territorializar suas relações de poder, tirando proveito da situação de hipossuficiência e vulnerabilidade das famílias ocupantes, o que é facilitado pela relativa ausência do Estado na periferia de Belém.

Em meados de 2022, o Residencial Liberdade permanecia ocupado e a reintegração de posse vinha sendo adiada devido às condições impostas pela pandemia de Covid-19. As alternativas paliativas oferecidas pela COHAB-PA para as famílias após a desocupação foram as seguintes: o recebimento do auxílio Sua Casa (para aqueles que disponham de algum terreno, ou seja, uma parcela ínfima das famílias) ou o recebimento de um auxílio eventual pago durante três meses pela SEASTER (Secretaria de Assistência Social, Trabalho, Emprego e Renda). Atualmente, não há nem mesmo a possibilidade de se inserir as famílias na fila de espera de algum programa habitacional, tendo em vista a extinção do PMCMV e a ausência de produção de moradia para famílias de baixa renda. A atuação de organizações criminosas na ocupação do Residencial Liberdade agrava a condição de vulnerabilidade dos ocupantes e chama a atenção para a necessidade de viabilizar acesso à moradia para essa população. Isto porque, ao realizar a desocupação da área, as famílias poderiam novamente encontrar na atuação do crime organizado uma maneira de garantir novas moradias. Mais uma vez, fica claro que, quando o poder público realiza remoções sem oferecer alternativas para a habitação das famílias removidas, perpetua-se um ciclo de precariedade e informalidade no acesso à terra, processo que é agravado com a inserção de agentes como o crime organizado.

3. Fatores de manutenção do ciclo de remoções

Como explicitado até aqui, há uma série de fatores que colaboram para que novas remoções sejam recorrentemente operadas na Bacia do Tucunduba, sendo possível sistematizá-los em quatro grupos: fatores operacionais/de planejamento; fatores políticos/administrativos; fatores ideológicos; fatores extralegais. A seguir, serão explicados cada um desses fatores e a forma como eles se relacionam com a promoção de remoções.

3.1. Fatores operacionais/de planejamento

Os fatores operacionais/de planejamento decorrem de problemas existentes no planejamento das intervenções e na operacionalização delas, principalmente durante a execução das obras. O planejamento se mostra problemático desde o início, quando o tempo disponibilizado para a elaboração do projeto é insuficiente, contribuindo para que se recorra a soluções projetuais pré-prontas. Esse foi o caso do Residencial Liberdade, onde o sistema construtivo adotado se mostrou pouco adaptado às condições do terreno, o que exigiu uma nova logística para a realização da obra. Além disso, a alteração da faixa de desapropriações, a partir do Decreto nº 30/2019, apresenta-se como outro aspecto para evidenciar como o planejamento das intervenções e das remoções foi problemático. A expansão da área de desapropriação foi uma decisão desarticulada em relação ao projeto urbanístico, passando a englobar quadras que foram desocupadas por motivações puramente funcionalistas, implicando aumento considerável no número de famílias removidas e afetando moradias de boa qualidade.

3.2 Fatores políticos/administrativos

Os fatores políticos/administrativos se referem a problemas resultantes das mudanças de gestão ocorridas. Essa situação é bastante comum Brasil afora, uma vez que a continuidade de projetos e intervenções depende diretamente da “vontade política” de cada período administrativo. Quando há mudança de gestão, as obras dos prefeitos e governadores anteriores são interrompidas, o que pode ser motivado por uma mudança de prioridades e/ou por uma intenção de “boicotar” as iniciativas de siglas políticas diferentes.

No caso da Bacia do Tucunduba, tanto as obras de macrodrenagem quanto as do Residencial Liberdade foram paralisadas em momentos de mudança da gestão municipal e estadual. As mudanças políticas também geraram problemas administrativos, como o caso dos atrasos no pagamento dos boletins de medição por parte da COHAB-PA. Esses atrasos contribuíram para a paralisação das obras do Residencial Liberdade e, consequentemente, para a ocorrência de ocupações irregulares e posteriores remoções.

3.3 Fatores ideológicos

Os fatores ideológicos se referem à atuação da justiça para a resolução de conflitos fundiários, a qual costuma ocorrer com base em uma visão puramente civilista dos casos. Desconsideram-se aspectos sociais e espaciais, fundamentando-se na defesa da propriedade privada e na estigmatização dos ocupantes. Como explorado, foram diversas as situações judicializadas na Bacia do Tucunduba, e os aspectos ideológicos aqui mencionados se expressam de diferentes maneiras em cada um desses casos. Nas ações de desapropriação de benfeitoria, o fato de os moradores não terem a propriedade dos terrenos resultou no pagamento de valores indenizatórios reduzidos, pois a indenização englobou apenas o valor das benfeitorias. Ao se indenizar a materialidade da construção, ignora-se a perda de diversas relações socioespaciais que são rompidas com a remoção e despreza-se o trabalho social realizado pelas famílias na melhoria daquele espaço ao longo de anos de ocupação, gerador do valor da terra.

Já no caso da ação de reintegração de posse do Residencial Liberdade, a arguição da PGE-PA foi em grande parte baseada na estigmatização dos ocupantes, que foram caracterizados como os grandes responsáveis pela paralisação das obras, mas, na realidade, elas já se encontravam paralisadas antes da ocupação. Essa narrativa fortalece a ideologia de que os ocupantes seriam inimigos sociais que ameaçam a ordem pública e, dessa forma, a remoção acaba funcionando como punição, pois os moradores são removidos sem receber nenhuma medida compensatória que garanta o acesso à moradia a longo prazo. Assim, o aparato legal é operado como dispositivo para a reprodução da dominação, conforme pontuado por Foucault (2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014.).

3.4 Fatores extralegais

Por fim, os fatores extralegais se referem à atuação do crime organizado para a ocorrência de novas ocupações informais na Bacia do Tucunduba, como aconteceu no Residencial Liberdade. A forma como o narcotráfico vem operando na área representa uma tentativa de territorializar relações de poder, aproveitando-se da relativa ausência do Estado na periferia e da condição de vulnerabilidade das famílias. É importante destacar que não se pode fazer uma relação simplista entre criminalidade e pobreza, mas reconhecer que, na verdade “as condições materiais, sob determinadas circunstâncias culturais e institucionais, podem atuar como fator de estímulo a estratégias de sobrevivência ilegais” (SOUZA, 1998SOUZA, M. L. Tráfico de Drogas e Fragmentação do Tecido Sociopolítico-Espacial no Rio de Janeiro. In: Encontro Anual da ANPOCS, 22, 1998, Caxambu. Anais do 22º Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu: ANPOCS, 1998., p. 4).

No processo de reintegração de posse do Residencial Liberdade, a PGE-PA e a COHAB-PA argumentaram que desocupar a área seria uma forma de combater o narcotráfico. No entanto, realizar a remoção sem medidas para compensação da moradia apenas contribuiria para aprofundar a condição de hipossuficiência das famílias e, consequentemente, para perpetuar o poder exercido pelo crime organizado, já que é justamente a vulnerabilidade das comunidades que possibilita consolidação dos grupos criminosos como provedores de serviços que o próprio Estado não provê (NOVELLINO; OLIVEIRA, 2019 NOVELLINO, M. S.; OLIVEIRA, L. A. Territórios-rede do crime organizado no Rio de Janeiro. In.: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR), 18, 2019, Natal. Anais [...]. Natal: ENANPUR, 2019. Disponível em: http://xviiienanpur.anpur.org.br/anaisadmin/capapdf.php?reqid=460. Acesso em: 26 dez. 2022.
http://xviiienanpur.anpur.org.br/anaisad...
).

4. Considerações finais

Apesar das melhores intenções por ocasião da retomada das obras por meio do PAC, o contexto existente na Bacia do Tucunduba revela uma série de problemas e descompassos na execução da política pública, os quais têm por efeito o aumento no número de famílias removidas e a constituição de um ciclo de remoções. Como foi analisado, os fatores que colaboram para a criação desse ciclo não dependem apenas das ações do Poder Executivo, mas também do Poder Judiciário, das empreiteiras e mesmo de grupos criminosos. Sabe-se, porém, que é obrigação do Estado (representado pelos seus três poderes) garantir acesso à habitação para as famílias de baixa renda; na medida em que o poder público ignora essa obrigação (principalmente nas ações de reintegração de posse), ele age para aprofundar o problema do acesso à moradia e contribui para a reprodução da informalidade em outros locais da cidade.

O ciclo de remoções depende e, ao mesmo tempo, fortalece a estigmatização das famílias ocupantes e a defesa da propriedade privada da terra, como fica claro no decorrer dos processos judiciais. A forma como os “invasores” são retratados nas peças jurídicas fortalece a noção de que tais indivíduos seriam inimigos sociais, que não apenas desafiam o sagrado direito à propriedade, mas que também impedem a continuidade das obras públicas. Assim, o fato de não serem oferecidas medidas para a compensação da moradia para as famílias removidas em reintegrações de posse deve ser entendido também como uma forma de punição àqueles sujeitos, o que, inserido em um contexto mais amplo, reforça a ideologia em torno da propriedade privada da terra.

Se, por um lado, o ciclo de remoções tem por efeito o aprofundamento das condições de vulnerabilidade das famílias, por outro, ele também possibilita o constante repasse de verbas públicas para as empresas da construção civil local. Isso ocorre porque, como as obras de habitação se estendem por anos a fio, novas licitações são realizadas periodicamente para que novas empreiteiras passem a atuar nessas obras. Dessa forma, promover a remoção da população ocupante do Residencial Liberdade de tempos em tempos além de ser necessário para retomar as obras, também é um procedimento que possibilita o acesso a fundos públicos por diferentes empresas por meio de novas licitações. Com o passar dos anos, a contrapartida paga pelo Governo do Estado aumenta, permitindo o constante repasse de verbas públicas a entes privados. Ao longo da pesquisa, pôde-se notar, ainda, que algumas das empresas atuantes na construção do Residencial Liberdade, ao deixarem esta obra, passaram a atuar em segmentos do mercado imobiliário voltados para a classe média alta. Assim, a obra pública acaba funcionando como um “trampolim”, pois, por meio dela, as empresas acumulam um certo capital e know-how que será futuramente empregado em outros nichos de mercado mais rentáveis, acompanhando os resultados descritos por Pescatori (2016PESCATORI, C. Alphaville e a (des)construção da cidade no Brasil. 2016. Tese (Doutorado) - Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.).

Por fim, é possível afirmar que o contexto existente na Bacia do Tucunduba reforça a ideia de que a cidade capitalista periférica sobrevive de relações não capitalistas e estas, por sua vez, sustentam setores nitidamente capitalistas, ratificando Oliveira (2003OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.). O ciclo de remoções expressa essas relações, pois mostra que é a partir do empobrecimento e da vulnerabilização das famílias removidas que se possibilita o fortalecimento de estruturas tão importantes para o capitalismo.

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  • 1
    Trata-se de área de várzea localizada na borda do centro metropolitano, e por isso chamada de periferia próxima, em oposição à periferia metropolitana, situada em outros municípios.
  • 2
    A área em questão recebeu recursos do Programa Habitar Brasil BID na década de 2000, para ações que não foram concluídas pelo município após mudança da gestão municipal e por isso foi área prioritária do PAC. Este assunto será retomado na sessão 2 deste texto.
  • 3
    Atual Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas (SEDOP).
  • 4
    Ação de desapropriação nº 0837332-10.2019.8.14.0301 no TJE-PA.
  • 5
    Ação de desapropriação nº 006357-82.2012.814.0301 no TJE-PA.
  • 6
    Programa da COHAB-PA que consistia no oferecimento de valores monetários para a compra de material de construção e pagamento de mão-de-obra para obras residenciais de famílias de baixa renda. Em 2019, foi substituído pelo Programa Sua Casa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2022
  • Aceito
    11 Nov 2022
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