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Etnografia e mapas mentais: memórias e pertencimento de uma rua em processo de tombamento

Ethnography and mental maps: memories and belonging of a street in the process of being listed as a heritage site

Resumo

Etnografia e mapas mentais mostram-se importantes metodologias para apresentar vestígios urbanos e (re)configurações espaciais ou marcas que indicam o pertencimento e a memória de uma rua. Para tanto, utilizamos algumas técnicas ligadas a essas metodologias com um recorte específico que busca apresentar a rua General Osório, na cidade de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, instituída como Corredor Cultural de Hamburgo Velho, assim como os valores a ela associados e seu reconhecimento e interesse em preservar. O artigo relaciona os conceitos de memória, pertencimento, patrimônio individual e coletivo, analisados à luz de teorias relacionadas ao território e a valores culturais, dentre outros conceitos que ajudam a evidenciar como esse lugar referenciado é significativo.

Palavras-chave:
Corredor Cultural; Hamburgo Velho; Etnografia de rua; Mapas Mentais; Pertencimento; Preservação

Abstract

Ethnography and mental maps are important methodologies to present urban remains and spatial (re)configurations or marks that access the memory and belonging of a street. Therefore, we use some techniques related to these methodologies with a specific approach that seeks to present rua General Osório and its associated values, in the city of Novo Hamburgo, established as the Cultural Corridor of Hamburgo Velho and its recognition as an interest in preserving it. The article lists the concepts of memory, belonging, individual and collective heritage that are analyzed in the light of theories related to the territory, cultural values, among other concepts that help to reinforce how significant this referenced place is.

Keywords:
Cultural Corridor; Hamburgo Velho; Street Ethnography; Mental Maps; Belonging; Preservation

Introdução

A Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, realizada em Paris, em 1972, considera como Patrimônio Cultural obras arquitetônicas e os conjuntos urbanos ou grupos de construções (isoladas ou reunidas) que, em virtude de sua unidade, arquitetura e integração na paisagem, têm valor excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, além de se constituírem em locais de interesse ou obras do ser humano. Nessa perspectiva, o reconhecimento por meio de tombamento nacional ou estadual para um conjunto de bens, ou conjunto urbano edificado, legados de determinada sociedade, contempla e valoriza o patrimônio material e imaterial, ou seja, leva em conta o conceito abrangente proposto na convenção mencionada (CONVENÇÃO, 1972CONVENÇÃO do Patrimônio Mundial Cultural e Natural. Paris: Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, 1972. Disponível em: https://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf. Acesso em: abr. 2019.
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).

Como um recorte das investigações teóricas que realizamos como antropóloga, historiadora, arquiteta e docentes, este artigo propõe um diálogo entre alguns conceitos relacionados a lugar1 1 Como conceito de lugar, utilizamos o locus geográfico de acordo com Milton Santos (SANTOS, 2002), ou seja, como “a sede da sociedade”, conforme os conceitos da geografia crítica abordada na obra em questão. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2002. e a memórias. A proposta é trazer à reflexão questões que envolvem memória e preservação, mediante a interpretação de mapas mentais produzidos por alguns moradores da rua General Osório, na cidade de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, instituída como Corredor Cultural de Hamburgo Velho2 2 O bairro de Hamburgo Velho, núcleo inicial da formação da cidade de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, é um dos sítios urbanos reconhecidos como de interesse em preservação em face das características das edificações do final do século XIX e início do século XX, parte delas tombadas emergencialmente em 2015 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). e cujo tombamento é, no momento, objeto de discussão.

Apesar de ser reconhecido em legislação municipal3 3 Plano Diretor de 2004. Lei Municipal nº 1.216/2004 (NOVO HAMBURGO, 2004), e Lei Complementar nº 2.150/2010 (NOVO HAMBURGO, 2010), no momento em revisão. como importante local de preservação, o Corredor é objeto de destombamento em nível estadual, o que culminou em uma audiência pública para definir a manutenção de indicação para o tombamento. As reações vivenciadas por uma das autoras deste artigo, em observação participante nessa audiência, bem como a falta de respaldo político e de interesse da parte da própria comunidade de moradores, são questões que nos fazem refletir sobre o sentido de lugar do ponto de vista de quem o usa. Cabe ressaltar que as reações da população, manifestas na audiência pública, presenciada no início do ano de 2020, quando foi ratificada a preservação da rua General Osório,4 4 A manutenção da preservação de acordo como estava prevista pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul (Iphae) foi definida pela municipalidade até a revisão do Plano Diretor, iniciada em 2022. geraram o interesse na investigação que aqui se propõe na forma de artigo, recorte de uma pesquisa em andamento.

Assim, a prática etnográfica, que relaciona a noção de pertencimento e a observação participante na referida audiência pública e no diálogo com interlocutores, moradores citadinos, foi o ponto de partida para pensar em outras formas de leitura da cidade, a saber, o recurso do desenho. Os trabalhos de antropologia, tradicionalmente, buscam “o ponto de vista do nativo” e, para isso, fazem uso de procedimentos e técnicas diversos, como observação participante, registros fotográficos, diário de campo, documentários etnográficos, desenhos, mapas etc., que permitem maior abrangência do método. Aqui, utilizamos os próprios desenhos da etnógrafa arquiteta e dos seus interlocutores, que formam os mapas mentais e compõem a etnografia em conjunto com a observação participante. Os registros desenhados, obtidos junto aos interlocutores da pesquisa, aproximam ainda mais o trabalho da etnógrafa da realidade do lugar, e, assim, ao observar o familiar (VELHO, 2012VELHO, G. Observando o familiar. In: NUNES, E. de O. A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 2012 [1978]. [1978]), olhar, ouvir, escrever (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 39, n. 1, 1996. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111579/109656. Acesso em: maio 2021.
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), ao desenhar, compartilhar, conversar com eles (GEERTZ, 1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.), objetiva-se compreender os significados estabelecidos no contexto estudado.

Os desenhos que compõem os mapas mentais aqui reproduzidos são recursos que apontam para valores e lembranças evocados pela rua em estudo. Alguns dos interlocutores que apresentam suas visões nesses mapas também estavam na audiência pública em que se debateu a permanência do tombamento de sua rua. Outros tantos, por sua vez, apenas foram interlocutores da pesquisa e não têm relação nenhuma com esse fato.

Fazer o uso de desenhos produzidos livremente por ex-moradores é uma prática que foi bem explorada por alguns etnógrafos, como Arno Vogel e Marco Antonio da Silva Mello (2017VOGEL, A.; MELLO, M. A. da S.; MOLLICA, O. Quando a rua vira casa. 4. ed. Niterói: Eduff, 2017.). Em Quando a rua vira casa, esses autores buscaram, em associação com a observação participante de um território5 5 Bairro Catumbi, Rio de Janeiro. Usa-se aqui o conceito de território previsto por Milton Santos (SANTOS; SILVEIRA, 2001; SANTOS, 2002) e Marcos Aurélio Saquet (SAQUET, 1996), que consideram território a natureza e a ação humana: o trabalho e a política e um jogo permanente de dominação, submissão e controle econômico, político e social. SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil - território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Re-cord, 2001. SAQUET, M. A. Paisagem. Território. Região. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 103-114. , dito degradado, na cidade do Rio de Janeiro, o significado desse lugar para quem vive nele. Além do método empregado, os autores citados lançaram mão de desenhos autorais, mesclando-os com fotografias e mapas. Eles também contaram com a colaboração de desenhos feitos por crianças, cuja visão de espaço pode ser mais sensível e reveladora.

Aqui, não se trata exatamente disso; utilizamos mapas mentais produzidos por idosos, em geral moradores por longas décadas na rua estudada. Esse recurso ajuda a entender o que motivou certos recuos e avanços nas questões de políticas públicas relacionadas à preservação do patrimônio, em particular no lugar do estudo. Os mapas mentais foram empregados com o objetivo de provocar a fruição da memória, transformando, por meio do desenho, o tempo vivido em tempo narrado (ROCHA; ECKERT, 2000ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. Os jogos da memória. Ilha Revista de Antropologia , v. 2, n. 1, p. 71-84, 2000.). O ato de narrar concede sentido às histórias vividas pelos sujeitos; é o meio pelo qual o narrador busca reintegrar e reencontrar um tempo perdido, reconciliando vida e matéria (id., ibid.). Para a realização dos mapas mentais, sugerimos aos sujeitos da pesquisa que desenhassem suas lembranças da rua General Osório e, dentro do possível, acrescentassem palavras, mas salientamos que a prioridade era o desenho. Para Halbwachs (2006), a memória é um fenômeno social, pois tanto o esquecimento quanto a lembrança têm dimensão coletiva, isto é, tempo e espaço estruturam os quadros sociais da memória.

Conforme o entendimento de Rocha e Eckert (2000ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. Os jogos da memória. Ilha Revista de Antropologia , v. 2, n. 1, p. 71-84, 2000.), tempo e espaço são categorias fundamentais para os jogos da memória e, nesse exercício de vibração do tempo, confrontamo-nos com as memórias individuais, coletivas e sociais. Assim, por meio do estudo da memória, aproximamo-nos dos “sentidos da cidade”. Para essas autoras, as cidades apresentam modos distintos de domesticação do tempo: enquanto algumas trilham o caminho da conservação das antigas edificações, outras preferem a destruição/reconstrução (ROCHA; ECKERT, 2008ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. A cidade como sede de sentidos. Iluminuras . v. 9, n. 20, p. 1-15, 2008.).

O tombamento em caráter emergencial em nível nacional do Centro Histórico de Hamburgo Velho (Processo nº 1.582-T-09) e o tombamento provisório pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul (Iphae-RS) para o Corredor Cultural, que abrange a extensão da rua General Osório, são ambos objeto de questionamento. A proteção e o reconhecimento com interesse em preservação abrangem uma área significativa, em torno de setenta imóveis, incluindo parte do bairro de Hamburgo Velho e o Corredor Cultural de Hamburgo Velho, que tem pouco mais de um quilômetro de extensão. Ainda que muitos aceitem e percebam sua importância, o fato de morar ou investir em um local com interesse a ser preservado carece de mais sentido e de valores mais explícitos, pois muitos moradores ainda se sentem prejudicados no que diz respeito à conservação de suas antigas casas.

O mesmo local, de acordo com Oliveira (2009OLIVEIRA, S. V. de. Os Planos Diretores e as ações de preservação do patrimônio edificado em Novo Hamburgo. 2009. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) - Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/27781. Acesso em: mar. 2020.
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), apresentou possibilidades de aprofundamento no tocante a recorrências em tipologias ou implantações e, especialmente, nos usos singulares e repetidos da questão residencial e industrial. Também interessa desvelar o significado de processo cultural ou “a maneira como determinados sujeitos ocupam esse solo, utilizam e valorizam os recursos existentes, como constroem sua história como produzem edificações e objetos, conhecimentos, usos e costumes” (FONSECA, 2000, p. 89).

Hamburgo Velho, nesse contexto, por meio da conservação de suas casas e edificações, materializa a força mítica fundacional da cidade de Novo Hamburgo, ligada à imigração alemã e à fixação das primeiras famílias nesse território. Do mesmo modo, algumas edificações reverberam a memória da indústria coureiro-calçadista de outrora. Trata-se, pois, de um lugar de ancoragem da memória social de Novo Hamburgo, que se constitui enquanto um território-mito que abarca as memórias individuais, coletivas e sociais (ROCHA; ECKERT, 2008ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. A cidade como sede de sentidos. Iluminuras . v. 9, n. 20, p. 1-15, 2008.).

1. O caso do Corredor Cultural

Em março de 2020, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e a Secretaria de Cultura de Novo Hamburgo realizaram uma audiência pública para dar resposta à comunidade sobre pendências relativas ao tombamento/retombamento do Corredor Cultural de Hamburgo Velho. Nesse encontro, extraído do diário de campo, observou-se que:

[...] houve muitas interpretações sobre o assunto e, em especial, chamava a atenção os aplausos efusivos de moradores e investidores da rua General Osório, sempre que alguém falava de forma negativa, desfazendo ou minimizando a importância do lugar e desconsiderando o tombamento estadual e o inventário municipal que o reconhecem como local de interesse em preservação (OLIVEIRA, 2020OLIVEIRA, S. V. de. Diário 1: audiência pública. Novo Hamburgo: Casa das Artes, 2020.).

De fato, um recente destombamento e o posterior “retombamento” do Corredor Cultural de Hamburgo Velho/Novo Hamburgo trouxeram reflexões importantes sobre esse espaço, reconhecido por ações públicas anteriores, como o Plano Diretor de 2004 - Lei Municipal nº 1.216/2004 (NOVO HAMBURGO, 2004NOVO HAMBURGO. Lei Municipal nº 1.216/2004, de 20 de dezembro de 2004. Institui o Plano Diretor Urbanístico e Ambiental - PDUA do município e dá outras providências. Diário Oficial Novo Hamburgo, 2004. Disponível em: https://bit.ly/3LkWxKf. Acesso em: ago. 2020.
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), revisado em 2010 (NOVO HAMBURGO, 2010NOVO HAMBURGO. Lei Complementar nº 2.150/2010, de 7 de junho de 2010. Altera a Lei Municipal nº 1.216/2004, de 20/12/2004, e dá outras providências. Diário Oficial Novo Hamburgo , 2010. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3LjXkuV . Acesso em: ago. 2020.
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). Hoje já se considera esse espaço territorial de interesse cultural e apresentam-se diretrizes específicas, índices construtivos restritivos, além de altura e taxa de ocupação para edificar.

Em 2015, um decreto nacional em caráter emergencial reconheceu o Centro Histórico de Hamburgo Velho como Patrimônio Cultural Nacional e apresentou um tombamento significativo de um conjunto urbano, relacionado a uma possível proposta conjunta entre estado e União com o referido Corredor Cultural, por intermédio de estudo realizado pelo Iphae-RS, em projeto coordenado pela arquiteta Marilia de Lavra Pinto.6 6 Marília de Lavra Pinto, arquiteta e urbanista do Iphae-RS, liderou importantes trabalhos pelo interior do estado do Rio Grande do Sul. Ela se exonerou por motivo de doença, em decorrência da qual veio a falecer. Esse foi um de seus últimos trabalhos no referido instituto. Já no ano de 2019, a notícia do arquivamento do Processo de Tombamento Estadual do Corredor Cultural de Hamburgo Velho causou grande controvérsia no meio preservacionista, que entrou com recurso judicial para fomentar a proteção desse lugar. Desde então, muitas discussões ocorreram e poucas decisões foram tomadas. Com o decorrer do tempo, continuam sendo tomadas decisões não favoráveis à manutenção dessa tutela por parte do estado do Rio Grande do Sul, de modo que a decisão retornou para o município de Novo Hamburgo.

Esses movimentos provocam muitos questionamentos, a saber: se o município considera no seu Plano Diretor um corredor cultural protegido desde 2004, por que não assume a tutela desse bem? Por que o interesse em deixar que o estado do Rio Grande do Sul, por intermédio do Iphae-RS, assuma esse papel, quando o lugar deveria ter valor para quem mora nele ou usufrui dele, ou seja, quando o interesse é local? Onde ficam ou onde estão as referências culturais que justificam o tombamento ou o reconhecimento do Corredor Cultural, bem como a conscientização da comunidade interessada? Quais são as relações de poder que se estabelecem para a definição de preservação ou não dos bens patrimoniais?

O município fez a sua parte, ao insistir em manter o lugar como um corredor protegido, assumindo para si (mesmo que temporariamente) o projeto proposto pelo Iphae-RS, até que fosse concluída a revisão do Plano Diretor que estava em contratação. Assim, apesar da decisão mantida e imposta na forma de audiência pública, a maioria expressiva dos presentes - representantes de conselhos municipais, de órgãos de classe, da associação de moradores, proprietários e investidores - aplaudiu as manifestações contrárias ao tombamento e repudiou as manifestações pró-preservação. Qual foi, afinal, a intenção desse aplauso? Houve falta de diálogo ou o sentido de pertencimento? Foi para esquecer a memória do Corredor Cultural? Ou os aplausos demonstram a insatisfação, a falta de sentido do patrimônio coletivo, a falta de políticas públicas mais amplas que justifiquem preservar o privado para o coletivo?

Nunes, Rocha e Figueiredo (2019NUNES, M. F.; ROCHA, A. L. C. da; FIGUEIREDO, J. A. S. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, 2019.), ao abordarem a memória do trabalho e a memória ambiental no Vale do Rio dos Sinos, informam quanto a cidade negligencia o patrimônio industrial. Ainda que, ao longo do século XX, Novo Hamburgo tenha sido conhecida nacional e internacionalmente como cluster do calçado e que o trabalho industrial tenha se constituído como marca identitária da cidade e da região, neste momento, pós-crise da indústria coureiro-calçadista, os autores não identificaram na pesquisa realizada nenhuma mobilização da comunidade com vistas a preservar esse patrimônio industrial. A paisagem de Hamburgo Velho, em especial o Corredor Cultural, é um lugar onde reverberam as lembranças das fábricas e do movimento em função da atividade coureiro-calçadista.

Para a efetivação deste estudo, posterior à audiência e com saída a campo, nosso intuito foi conquistar moradores para que, de forma espontânea, colaborassem com suas imagens do lugar. As fichas foram distribuídas aleatoriamente e os moradores foram incentivados a se engajar na pesquisa e produzir um desenho ou escrever palavras que, de alguma maneira, traduzissem o significado da rua General Osório para eles.

Com os mapas mentais recebidos (algo em torno de vinte deles), foi possível constatar alguns entendimentos em relação às memórias e percepções de acordo com o lugar coletivo que é evocado nos desenhos. Assim, não usamos aqui o desenho com a mesma intenção de Kuschnir (2016KUSCHNIR, K. Antropologia pelo desenho: experiências visuais e etnográficas. Cadernos de Arte e Antropologia, v. 5 n. 2, p. 5-13, 2016.) ou de Vogel, Mello e Molica (2017VOGEL, A.; MELLO, M. A. da S.; MOLLICA, O. Quando a rua vira casa. 4. ed. Niterói: Eduff, 2017.) no caso de Catumbi, no Rio de Janeiro, em que se explorou a observação participante, com o desenho do espaço urbano baseado em fotografias capturadas também à guisa do método. Os mesmos autores reforçaram alguns conceitos em sua pesquisa com desenhos produzidos por crianças que representassem o lugar idealizado, desejado e suas referências.

Neste estudo, o recurso foi utilizado com o intuito de desvelar o não dito pelo olhar de idosos, moradores antigos do lugar, encorajados a apresentar o que viram, o que veem, o que lembraram, o que gostariam de lembrar ou esquecer. Os mapas são ricos de mensagens e revelam muitos sentimentos relativos ao lugar, representados por chaminés, fábricas e trem.

A paisagem urbana do Vale do Sinos liga-se “à memória das fábricas de calçados e dos curtumes, que foram edificados, na sua maioria, à beira dos arroios” (NUNES; ROCHA; FIGUEIREDO, 2019NUNES, M. F.; ROCHA, A. L. C. da; FIGUEIREDO, J. A. S. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, 2019., p. 182). A paisagem-território do Corredor Cultural foi o lugar escolhido para a implantação inicial dos curtumes, em função da topografia, da abundância de veios d’água, em especial na encosta do morro de Hamburgo Velho, exatamente entre suas cotas mais altas em direção à rua General Osório. O escoamento dessas águas poluídas para o arroio Nicolau Becker, afluente do arroio Luiz Rau, era facilitado pela topografia, assim como a via férrea, que auxiliava na distribuição dos produtos. Essa conjuntura contribuiu para que, antes mesmo de os curtumes se alojarem junto ao arroio Luiz Rau, no início do século XX, como mencionam Nunes, Rocha, Figueiredo (2019NUNES, M. F.; ROCHA, A. L. C. da; FIGUEIREDO, J. A. S. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, 2019.), os curtumes Scheffel, Därr, Engel, Ludwig, entre outras fábricas importantes de calçados, buscassem o território em questão para sediar suas empresas. Esse lugar, portanto, representa a memória e o patrimônio daqueles que ali realizaram no passado grandes investimentos de capital e trabalho, mas que foram igualmente coparticipantes em muitos conflitos socioambientais - o que restou daquele lugar foram algumas poucas edificações, o que possibilita inferir que, com o remanescente edificado, haja também algum ressentimento por parte da população moradora, assim como vontade de esquecer um passado recente de amplas mudanças econômicas e sociais.

2. Os mapas mentais e os valores da cultura: o sentido de pertencer

Françoise Choay, em A alegoria do patrimônio, de 2006CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Unesp, 2006., faz uma analogia entre espaços históricos preservados e espelhos, que, ao criarem o efeito de distância e afastamento, “proporcionam uma imagem desconhecida de si mesmo, como alteridade” (CHOAY, 2006CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Unesp, 2006., p. 205). As construções, nessa perspectiva, “permitem às sociedades ocidentais prosseguir seu duplo trabalho original: construção do tempo histórico e de uma imagem de si mesma enriquecida de modo progressivo por dados genealógicos” (id., ibid., p. 206). Desse modo, os membros de uma sociedade podem lembrar suas tradições, suas origens, seus feitos e, por que não, sua decadência ou sua reinvenção.

A questão do pertencimento, abordada por Gonçalves (2005GONÇALVES, J. R. S. Ressonância, materialidade e subjetividade, as culturas como patrimônios. Revista Horizontes Antropológicos, PPGAS/UFRGS, v. 11, n. 23, p.15-36, 2005.), em “Ressonância, materialidade e subjetividade, as culturas como patrimônios”, aponta justificativas e reforça a noção de patrimônio autêntico amparando-se em três aspectos: (i) ressonância, (ii) materialidade e (iii) subjetividade. Quanto à primeira delas, para se consolidarem as proteções e tutelas ao Patrimônio Cultural e para que as políticas públicas sejam implementadas, é necessário que encontrem ressonância junto ao seu público. O autor lembra que muitas situações não são respaldadas nem reconhecidas pelos setores da população, e isso reforça o fato de que “a experiência da rejeição é menor em relação às concepções de patrimônio, e mais o fato de que um patrimônio não depende apenas da vontade e decisões políticas de uma agência de Estado” (GONÇALVES, 2005GONÇALVES, J. R. S. Ressonância, materialidade e subjetividade, as culturas como patrimônios. Revista Horizontes Antropológicos, PPGAS/UFRGS, v. 11, n. 23, p.15-36, 2005., p. 19).

Como já explicitado, vivenciamos recentemente a curiosa situação de uma audiência pública (NOVO HAMBURGO, 2020NOVO HAMBURGO. Audiência Pública na Casa das Artes debateu a inclusão do Corredor Cultural no Plano Diretor de Novo Hamburgo, 6 mar. 2020. Disponível em: https://novohamburgo.rs.gov.br/noticia/audiencia-publica-casa-artes-debateu-inclusao-corredor-cultural-plano-diretor-novo-hamburgo. Acesso em: mar. 2020.
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) referente à manutenção da preservação do Corredor Cultural, em que foram discutidos o território enquanto bem privado e patrimônio cultural e os conflitos estabelecidos em decorrência de um tombamento estadual. Entre os presentes, deparamos com muitos proprietários e investidores contrários à manutenção das políticas de preservação desse espaço, o que suscita a pergunta: com que grupo o estado vai encontrar ressonância? Apenas com o grupo de técnicos da cidade ou, ainda, por ironia, com poucos membros do conselho de Patrimônio Cultural? Por outro lado, a maioria dos presentes, formada por empresários e moradores, também não encontra ressonância no assunto e, em função da existência de conflito de interesses, tem dificuldade de perceber os valores culturais do local e não alcança o entendimento de que possa haver algo que reforce ou que justifique o tombamento desse conjunto urbano.

A percepção de valores culturais que emana desse grupo é de não ressonância, como se verifica no jogo de espelhos de Choay (2006CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Unesp, 2006.), que proporciona uma imagem desconhecida de si mesmo. Evidencia-se igualmente que o trabalho de construção de identidades e memórias coletivas “não está condenado ao sucesso e assim de vários modos pode não se concretizar” (GONÇALVES, 2005GONÇALVES, J. R. S. Ressonância, materialidade e subjetividade, as culturas como patrimônios. Revista Horizontes Antropológicos, PPGAS/UFRGS, v. 11, n. 23, p.15-36, 2005., p. 20).

Considerando o lugar foco deste estudo e a importância dos registros nos mapas mentais, referendamos, mais uma vez, Nunes, Rocha e Figueiredo (2019NUNES, M. F.; ROCHA, A. L. C. da; FIGUEIREDO, J. A. S. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, 2019., p. 185), em sua afirmação de que o mito de fundação das cidades das regiões, ainda que embalados pelos ideais de progresso, foram ritmados mais pelo “tempo descontínuo dos encontros, confrontos e desencontros entre civilizações”.

Entendemos, pois, que preservar uma rua em Hamburgo Velho confere um sentido de pertencimento que ainda está sendo construído. Estudos como o que está sendo proposto aqui, ao lado daqueles elaborados pelos autores supracitados, identificam, por intermédio de lembranças, memórias e registros, alguns dos valores esquecidos e podem efetivamente contribuir para a construção desse sentido. Ademais, preservar esse território, apesar dos interesses financeiros envolvidos, pode resultar em um tributo às memórias coletivas do lugar, reforçando a relevância do território e da paisagem urbana, assim como devolvendo sua importância como lugar de investimentos compatíveis com a cultura e a preservação.

3. Etnografando território e memória: os mapas mentais

Os estudos da memória individual e coletiva são um bom caminho para se chegar ao conteúdo simbólico da cidade, uma vez que o valor de um lugar emerge das diferentes memó-rias e da sobreposição de tempos. Assim, através das narrativas dos seus habitantes, a cida-de se revela como um arranjo poético de suas vidas vividas (ROCHA; ECKERT, 2010ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. Cidade narrada, tempo vivido: estudos de etnografias da duração. Revista Rua, v. 16, n. 1, p. 121-145, 2010.). Aqui, neste artigo, o desenho é a forma estética por meio da qual os moradores compartilham as imagens da sua experiência de vida citadina, que se entrelaçam às memórias das pesquisa-doras. Assim, a cidade, na sua pluralidade de memórias, se oferece como leitura e interpretação (ROCHA; ECKERT, 2010ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. Cidade narrada, tempo vivido: estudos de etnografias da duração. Revista Rua, v. 16, n. 1, p. 121-145, 2010.).

A questão conceitual de território ou de lugar, cabe considerar, não é apenas de natureza geográfica ou política. Conforme Trajano Filho (2010)TRAJANO FILHO, W. Introdução. In: TRAJANO FILHO, W. (org.). Lugares, pessoas e grupos: as lógicas do pertencimento em perspectiva internacional. Brasília, DF: Athalaia, 2010. , há uma relação de mútua constituição entre lugares, história, pessoas, grupos e instituições, de modo que os espaços, por ele classificados como estruturais, “emergem da relação entre os grupos expressada em termos de valores” (TRAJANO FILHO, 2010TRAJANO FILHO, W. Introdução. In: TRAJANO FILHO, W. (org.). Lugares, pessoas e grupos: as lógicas do pertencimento em perspectiva internacional. Brasília, DF: Athalaia, 2010. , p. 10), ou seja, um lugar significativo para a cidade deve evocar um sentido de valor como patrimônio imaterial.

O patrimônio cultural, citado e reconhecido como Corredor Cultural de Hamburgo Velho, pode ou deveria estar impregnado de valores nostálgicos, os quais, se não existem, significam “perdas dos laços primordiais que ligam as pessoas ao território em que vivem” (TRAJANO FILHO, 2010TRAJANO FILHO, W. Introdução. In: TRAJANO FILHO, W. (org.). Lugares, pessoas e grupos: as lógicas do pertencimento em perspectiva internacional. Brasília, DF: Athalaia, 2010. , p. 12). O patrimônio imaterial que se quer recuperar dá sentido ao patrimônio urbano de conjunto tombado, mediante o entendimento de que a imagem do lugar pode recuperar esses valores.

Kevin LynchLYNCH, K. A imagem da cidade. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011 [1960]., em 1960, também apresentou o recurso de mapas mentais. Relatados em sua obra A imagem da cidade (2011 [1960]), foram aplicados entre alguns moradores de três cidades estadunidenses. No caso desse estudo, as pessoas eram questionadas sobre sua percepção da cidade, como estruturavam a imagem que tinham dela e como se localizavam. Utilizamos um recurso similar e, no trabalho de campo, solicitamos a algumas pessoas que vivem no bairro Hamburgo Velho, ou que conhecem o Corredor Cultural, que elaborassem também um mapa mental do lugar.

Obtivemos vinte retornos desses mapas e foi possível, por meio desse imaginário, montar algumas hipóteses que corroboram esta revisão teórica. Para este artigo, apresentaremos dez mapas.

A Figura 1, reproduzida a seguir, compõe-se do mapa mental elaborado por SVO, moradora da rua até os 12 anos de idade, e remete ao período de sua infância. O desenho inicia-se com as fábricas e as chaminés, os ônibus da Empresa Hamburguesa, lembranças do apito das fábricas ao meio-dia. As memórias registradas apontam o ir e vir dos operários, a pé, rumo às suas casas, e os sinos das duas igrejas - a católica e a luterana -, que ficavam no entorno anunciando missas, mortes, festejos. A interlocutora foi lembrando e desenhando: “veio a escola Santa Catarina”, onde sua mãe estudou, “onde eu fiz dois anos do primário”; do posto de gasolina do “seu Waldemar Engel”, provavelmente o primeiro posto de abastecimento de Novo Hamburgo. Retrata, igualmente, o intenso movimento de carros e ônibus e do seu atropelamento, que aconteceu em frente ao posto do Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência (SAMDU), equivalente aos postos de saúde atuais, quando tentava atravessar a rua na volta da escola para se encontrar com a mãe, que assistia a tudo do outro lado da rua. E, ainda, as colegas, os passeios na calçada de bicicleta e o trem que passava na rua dos fundos, apitando e soltando fumaça, a mesma fumaça que via sair das chaminés das fábricas, que eram muitas naquela rua.

Figura 1
Mapa mental SVO (lembranças de 1957 a 1970)

A Figura 2 traz o mapa elaborado por MIH, que morou no lugar durante quarenta anos e deixa outra mensagem. A interlocutora viveu na rua General Osório (Corredor Cultural) de 1980 a 2020, e seu mapa é carregado de afeto. Ao longo dela, mostram-se muitas casas, porém o seu desenho tem lágrimas - ou seria chuva? Um sol que representa o pintor sul-rio-grandense Ernesto Frederico Scheffel, muitas lembranças transmitidas por palavras e pelo coração duplamente desenhado: um pequeno, vermelho, sobre a sua casa, onde criou seus filhos e onde viveu com seu marido até pouco tempo, e outro maior, que abraça os demais sentimentos, dentro do qual as casinhas, lado a lado, expressam ou emanam perdas, heranças, cultura, família, ausências prejuízo.

Figura 2
Mapa mental MIH (lembranças de 1980 a 2020)

O participante relacionado à Figura 3, identificado por PS, apresenta-se como usuário do local, pois lá trabalhou por cinco anos, entre 1953 e 1958. Porém, essa pessoa também transitou, e ainda transita, por essa rua durante toda a sua vida, uma vez que foi aluno do antigo Colégio São Jacó e morador de um bairro vizinho. O mapa evidencia antigos usos, ou seja, em destaque está a empresa onde sua carreira profissional foi iniciada - um depósito de venda de couros, atualmente uma loja de material hidráulico, além do antigo posto de gasolina, que hoje abriga um escritório, e do Café Germano, ponto de referência, onde mais tarde funcionou um posto de saúde. Os espaços desenhados permanecem no lugar, um pouco diferentes, no entanto possíveis de serem reconhecidos.

Figura 3
Mapa mental PS (lembranças de 1953 a 1958)

O mapa da Figura 4 tem outro contexto: um momento atualizado da mesma rua, em que as cores e a alegria de um futuro morador estão representadas. Nesse caso, as memórias são recentes, de uma jovem de 36 anos que ainda não registra momentos do passado, mas sim do que virá com o restauro de uma casa.

Figura 4
Mapa mental M (lembranças de 2020)

Podemos acrescentar outros tantos relatos significativos, mais relevantes quando desenhados. Em especial chamamos atenção para o edifício da Sociedade Frohsinn, que se vê na Figura 5, em que se apresenta o prédio centenário com muitas pessoas em frente, acompanhado da indagação: “Mãe! Por que os homens conversam, gritam e riem tão alto?”. Esse desenho foi realizado por uma pessoa que morou na rua General Osório por 23 anos, de 1947 até 1970, desde que nasceu até seu casamento. A mesma pessoa fez outros desenhos contendo imagens muito significativas, as quais convergem para os lugares apresentados por outros interlocutores, indicando que ali estão os marcos no sentido determinado por Lynch (2011LYNCH, K. A imagem da cidade. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011 [1960]. [1960]). De acordo com esse autor, “os marcos ou pontos de referência” (id., ibid., p. 88) são assim denominados em função de suas características físicas e singularidades, memoráveis no que se refere ao contexto e ao lugar. Lynch afirma: “Os marcos se tornam mais fáceis de identificar e mais passíveis de ser escolhidos por sua importância, quando possuem uma forma clara, isto é, se contrastam com seu plano de fundo […]” (id., ibid., p. 88). Neste estudo, isso se aplica ao edifício do Frohsinn, que ainda existe, como também às chaminés das fábricas que há muito tempo foram demolidas e à Escola Santa Catarina.

Figura 5
Mapa mental CM (lembranças de 1947 a 1970)

As representações vivas de memória apresentadas na Figura 5 fazem contraponto com o mapa da Figura 6, em que a interlocutora MLA desenha e explica, em texto, lembranças que remetem à casa dos avós maternos, onde, por volta dos anos 1940, ela frequentava festas e almoços de final de semana com toda a família e, eventualmente, dormia, pois, sua mãe fora “hospitalizada várias vezes para ganhar nenê” ou para tratar da saúde. A casa das lembranças de MLA era vizinha da casa onde morou CM (Figuras 5, 7, 8 e 9). Ambas foram demolidas e substituídas por outras edificações nas décadas de 1970 e 1990, porém, estavam localizadas em frente ao já referido Clube Frohsinn, onde hoje se localiza o Grêmio dos Funcionários Municipais, prédio tombado pelo município de Novo Hamburgo.

Figura 6
Mapa mental MLA (lembranças de 1940)

Figura 7
Mapa mental CM (lembranças de 1947 a 1970)

Figura 8
Mapa mental CM (lembranças de 1947 a 1970)

Figura 9
Mapa mental CM (lembranças de 1947 a 1970)

Destacamos, ainda, nas figuras 7 e 8, os dois meios de transporte recorrentes no século passado: a carroça do entregador de leite e pão e o trem. Contudo, há, também, representações que trazem o automóvel, apertado na via estreita, conformada por edificações junto ao alinhamento da rua. Trata-se de uma lembrança recente, e, ao ser confrontada com o mapa mental da pessoa mais jovem, verifica-se que não há correlação, apesar de ambas terem conhecido o local apenas nas últimas duas décadas.

Os mapas mentais apresentados mostram que alguns registros remetem a um tempo de memória viva e recente e outros apenas a lembranças; eles sugerem uma riqueza de in-formações que podem ser aprofundadas em entrevistas, em busca de maior aproximação com algumas dessas pessoas. Vale ressaltar, nesse sentido, que o resultado do método etnográfi-co, quando associado a desenhos, corrobora a investigação dos significados desse lugar para a memória coletiva, pois, como defende Halbwachs (1990HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.), é a história vivida que constrói a memória e produz, igualmente, a unidade na contradição entre o indivíduo e a sociedade em que ele vive.

Nos mapas analisados, o apito e o trajeto do trem foram recorrentes nos registros de ex-moradores, alguns com breves referências e outros com mais força. Citamos como exemplo a Figura 8, que traz a passagem da via férrea que ligava Porto Alegre a Canela e passava nos fundos dos lotes da rua General Osório.

A visão idealizada do lugar também pode ser comprovada pelas Figuras 9 e 10, produzidas por pessoas diferentes e referentes a diferentes décadas de lembranças. O mapa da Figura 9 apresenta lembranças remotas e bem fundamentadas em um lugar específico - novamente o Clube Frohsinn.

Figura 10
Mapa mental JACS (lembranças de 1964 a 2020)

Já o mapa da Figura 10 recorda o Colégio Santa Catarina, onde a maioria dos interlocutores estudou (ou seus filhos). A casa representada nessa figura pertence à família da entrevistada e o desenho transita com setas e linhas sinuosas, cercadas de corações e flores, do tempo de menina estudiosa ao tempo atual. Por outro lado, o desenho da Figura 9 mostra outro tempo e lugar: os jogos de bolão, as festas com atores, os banquetes que necessitavam de baixelas especiais emprestadas, os ensaios do canto coral.

A rua General Osório também é lugar da “pluralidade de memórias” e da sobreposição de tempos, como mencionam Rocha e Eckert (2003ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. Etnografia de rua: estudo de antropologia urbana. Revista Rua, n. 9, p.101-127, 2003. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8640752/8292. Acesso em: nov. 2020.
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). A pluralidade de memórias pode ajudar a entender o que resta da cultura desse território mapeado para preservação - porém, se as lembranças do lugar não forem partilhadas, o território não será reconhecido, isto é, não have-rá identidade nem legitimidade, como anuncia Tedesco (2009TEDESCO, J. C. Conflitos de memória e de identidade no cenário rural: ritualizações e representações de colonos assentados no norte do RS. Estudos Históricos, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, FGV, Rio de Janeiro, v. 22, n. 43, p. 105-124, 2009. ).

Dessa forma, são pertinentes os mapas mentais acerca do lugar para subsidiar o entendimento da memória coletiva para esse território e, com o compartilhamento dos aspectos simbólicos apresentados, produzir sentido e valorizar aquela rua. Os mapas mentais reproduzidos mostram que alguns remetem a um tempo de memória viva e recente, enquanto outros se concentram em lembranças e pouca sensação de pertencimento. Portanto, o resultado do método etnográfico, quando associado a narrativas biográficas, colabora na investigação dos significados do lugar para a memória coletiva.

A utilização desse recurso também vai ao encontro das ideias de Halbwachs (1990HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.), para quem os testemunhos reforçam e completam o que sabemos de determinado período histórico, sobre o qual dispomos de alguma informação, ainda que permaneça obscuro em muitos aspectos. Para o autor, a memória resultante desses testemunhos, dados por inter-médio de mapas mentais, decorre da interação social; quanto a isso, ele propõe analisar os “quadros sociais” na perspectiva de que a lembrança individual passe a se relacionar com os grupos e instituições das quais os interlocutores fazem parte.

4. Valores da cultura: o sentido de possuir

Valores históricos e artísticos, tipologias das edificações e traçado urbano são alguns elementos considerados patrimônio material para reconhecimento e tombamento de relevância nacional e, dessa forma, representam o patrimônio cultural. Por outro lado, os saberes e as práticas de um povo ou comunidade, que constituem memória viva, não tangível, ou seja, patrimônio imaterial - um patrimônio cultural único e significativo -, estão cada vez mais ameaçados de falta de reconhecimento, situação agravada pelos fenômenos de alteração.

Assim, entendemos que “depende dos valores da sociedade, presentes em cada momento da sua trajetória, a definição do que vai se constituir em patrimônio cultural, [...] e que servem de referência ao seu desenvolvimento” (MEIRA, 2004MEIRA, A. L. G. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação dos cidadãos na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004. , p. 13). No entanto, como a sociedade está em constante mudança, também os critérios de valores, que consideram o que é patrimônio cultural, podem mudar e, em razão disso, precisam ser construídos e reconstruídos permanentemente. Para Fonseca (2006FONSECA, C. L. Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio. In: Registro do Patrimônio Imaterial. Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. 4. ed. Brasília, DF: Ministério da Cultura: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2006. 140p. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/PatImaDiv_ORegistroPatrimonioImaterial_1Edicao_m.pdf . Acesso em: abr. 2019.
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, p. 94), “preservar traços da sua cultura é também demonstração de poder”. Historicamente é possível constatar a destruição ou a apropriação, por povos antigos, de referências pertencentes a outros grupos como demonstração de força e poder. A atividade de identificar referências e proteger bens culturais, portanto, não se constitui apenas em saber - é também poder.

Segundo Gonçalves (2005GONÇALVES, J. R. S. Ressonância, materialidade e subjetividade, as culturas como patrimônios. Revista Horizontes Antropológicos, PPGAS/UFRGS, v. 11, n. 23, p.15-36, 2005., p. 21), “É curioso, no entanto, o uso dessa noção [de patrimônio imaterial] para classificar bens tão tangíveis e materiais quanto lugares, festas, espetáculos e alimentos”. A disputa entre o comércio ou a indústria cultural e os interesses pessoais também é um dos sentidos de posse ao qual se refere Amorim (2006AMORIM, L. S. O registro de manifestações culturais tradicionais ou uma aventura pelos novos caminhos das políticas públicas brasileiras. Revista Habitus, Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Goiânia, v. 4, n. 1, p. 493-512, 2006.). Cabe lembrar que, muitas vezes, o reconhecimento do capital simbólico está bem justificado para os técnicos no que tange a valores, mas nem sempre isso se estende para a comunidade envolvida. O mesmo autor ressalta também a importância do bem de interesse a ser preservado como capital cultural, possibilitando formas de conhecimento. Entretanto, o capital simbólico e o capital cultural estão constantemente em disputa com o econômico, representado pelos investidores, que não encontram valores específicos na cultura da preservação, e sim no desenvolvimento do novo.

Georg Simmel (2020SIMMEL, G. A tragédia da cultura. São Paulo: Itaú Cultural: Iluminuras, 2020. p. 9-41. Disponível em: https://comissura/itaucultural/docs/a_tragedia_da_cultura_issuu-af_v2. Acesso em: nov. 2021.
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, p. 9) corrobora essa visão quando discute, em A tragédia da cultura, o sentido e a forma como o ser humano se apropria da sua cultura, aceitando os conceitos, mas também refletindo sobre as próprias ambivalências e contradições: “ora atraído, ora repelido pelo conteúdo que lhe é oferecido, às vezes fundindo-se com essas formas como se fossem parte de seu próprio Eu, outras vezes delas distanciado e evitando intencionalmente o contato com elas”.

Por conseguinte, o sentido de possuir um bem de caráter material estaria revestido de materialidade e do sentido de poder. Para Gonçalves (2005GONÇALVES, J. R. S. Ressonância, materialidade e subjetividade, as culturas como patrimônios. Revista Horizontes Antropológicos, PPGAS/UFRGS, v. 11, n. 23, p.15-36, 2005., p. 26), “[...] o objeto em sua materialidade, sua forma e em seus usos sociais e simbólicos” em alguma medida representa a sociedade que possui o poder. Assim, o que pertence à cultura clássica, apesar de também estar subordinado ao campo de poder, mantém relativa autonomia em relação às determinações políticas e econômicas do campo dominante, por basear-se em interesses específicos, mais ligados ao capital simbólico, acadêmico ou cultural de seu campo (BOURDIEU, 1993 apud AMORIM, 2006AMORIM, L. S. O registro de manifestações culturais tradicionais ou uma aventura pelos novos caminhos das políticas públicas brasileiras. Revista Habitus, Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Goiânia, v. 4, n. 1, p. 493-512, 2006., p. 500-551). Por outro lado, e ainda fazendo uso da visão de Simmel, a “constatação da profunda estranheza ou hostilidade que existe entre a vida e o processo criativo da alma, por um lado, e seus conteúdos e produtos por outro” (SIMMEL, 2020SIMMEL, G. A tragédia da cultura. São Paulo: Itaú Cultural: Iluminuras, 2020. p. 9-41. Disponível em: https://comissura/itaucultural/docs/a_tragedia_da_cultura_issuu-af_v2. Acesso em: nov. 2021.
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, p. 15) auxilia no entendimento entre o sujeito e o objeto, sentimentos ambíguos e antagônicos, cuja complexidade pode estar igualmente relacionada ao valor que se dá ao objeto. O mesmo autor reforça o sentido de valor que pode ser atribuído ao bem (id., ibid., p. 16):

[...] o valor nem sempre precisa ser positivo no sentido do bem, daquilo que é bom, da coisa certa, antes o mero fato formal de que o sujeito pôs-se a considerar algo objetivo, de que sua vida assumiu corpo fora dele mesmo, é percebido como significativo porque somente a autonomia do objeto moldado pelo espírito libera tensão básica entre o processo e o conteúdo da consciência.

No caso específico de Novo Hamburgo, e, em especial, em relação à polêmica do tombamento de um Corredor Cultural, apresentam-se dois momentos bem claros: o primeiro, reconhecido como histórico, simboliza o que se poderia constituir como a cultura clássica daqueles que detêm o poder; o segundo, a materialidade semiconservada ao longo de uma rua que abrigou dezenas de indústrias coureiro-calçadistas e residências de empresários industriais, aponta para a decadência desse setor e denuncia um pertencimento não desejado e a vontade de mudar. Nesse caso, o poder de mudar também emana desses sujeitos que antes poderiam se orgulhar de suas posses. Agora, talvez, seja de interesse invertê-las, ou seja, vender, edificar o novo, não permanecer estagnado no tempo, uma vez que a ruína, o antigo, simboliza a decadência, a materialização do fracasso dos mitos histórico e progressista que uniram à cidade as representações do progresso e do desenvolvimento sob a égide do imigrante alemão (NUNES; ROCHA; FIGUEIREDO, 2019NUNES, M. F.; ROCHA, A. L. C. da; FIGUEIREDO, J. A. S. Memória do trabalho e memória ambiental: as indústrias de curtume do Vale do Rio dos Sinos/RS. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 21, n. 1, 2019.).

Tedesco (2009TEDESCO, J. C. Conflitos de memória e de identidade no cenário rural: ritualizações e representações de colonos assentados no norte do RS. Estudos Históricos, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, FGV, Rio de Janeiro, v. 22, n. 43, p. 105-124, 2009. , p. 273) afirma, nesse sentido, que “há necessidade de demonstração pública e doméstica do pertencimento”, pois ele ritualiza uma comunidade que se constrói pela identificação. Brandi (2004BRANDI, C. Teoria da restauração. Cotia: Atelier, 2004. p. 54.) relaciona a questão temporal ao reconhecimento e ao momento da fulguração do bem, que, por intermédio das representações recebidas nos mapas mentais, parece já ter ocorrido em um passado de memórias vividas individualmente, mas que querem ser esquecidas. Dessa forma, o tempo não ajuda o reconhecimento: ele favoreceu o esquecimento e as memórias individuais não fortalecem o coletivo de Hamburgo Velho, se não forem refiguradas.

Todavia, não será possível dissociar tudo isso do ponto de partida, ou seja, do elo formador desse núcleo urbano, as primeiras levas de imigrantes alemães. Estes, de acordo com Woortmann (2000 WOORTMANN, E. Identidades e memória entre teuto-brasileiros: os dois lados do Atlântico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, UFRGS, ano 6, n. 14, p. 205-238, 2000.), não cuidaram para que a memória de seus antepassados germânicos fosse perpetuada e, ao chegarem a terras brasileiras, iniciaram um processo de esquecimento, como se o tempo anterior não existisse. Para essa autora (2000, p. 213-214):

[...] se a comunidade de memória é constituída pelo compartilhamento do que foi vivido, ela é também formada pelo compartilhamento do que foi esquecido, pois dar presença a certos acontecimentos do passado (o que equivale a transformá-los em eventos, já que lembrar é significar) pode até mesmo, em casos extremos conduzir à destruição da comunidade.

Dessa forma, para o Corredor Cultural de Hamburgo Velho, pode ter havido o distanciamento desses acontecimentos do passado que não foram compartilhados. De acordo com Oliveira (2009OLIVEIRA, S. V. de. Os Planos Diretores e as ações de preservação do patrimônio edificado em Novo Hamburgo. 2009. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) - Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/27781. Acesso em: mar. 2020.
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, p. 165-166), as relações de parentesco entre moradores, fábricas e fabricantes, vivendo lado a lado, foram recorrências que se sucederam em um curto espaço, ou melhor, no território delimitado como o Corredor Cultural. Essas recorrências não são mais verificadas porque as indústrias fecharam, os antigos moradores, assim como trabalhadores, operários e construtores do local, se mudaram, ou faleceram, seus descendentes também já são idosos, o traçado do trem não tem mais significado - substituído por uma avenida que recebe o nome de Victor Hugo Kunz, empresário que teve, durante longo tempo, um depósito de couros na rua General Osório. Não seria o caso, então, de essa rua se chamar Victor Hugo Kunz e a avenida por onde passou o trem receber outro nome?

Considerações finais

Com base em uma pesquisa etnográfica, em que foram questionados os aspectos subjetivos que remetem ao sentido de ser e pertencer, e que nem sempre são usados para a preservação de conjuntos urbanos, foi possível perceber como os mapas mentais se mostram ferramentas efetivas para evocar memórias e sentimentos de pertencimento, muitos de natureza imaterial. As manifestações, os modos de fazer, as festas e celebrações, enfim, os saberes locais, assim como os modos de criar, fazer e viver, carregam uma mensagem subjetiva importante: se não forem urgentemente ressignificados, podem não ser mais reconhecidos em breve.

A crise na cultura e na sociedade, por sua vez, como comenta Trajano Filho (2010), pode ser atestada pela perda nostálgica dos laços que ligam as pessoas ao território em que vivem. Essa premissa nos remete a Simmel (2020SIMMEL, G. A tragédia da cultura. São Paulo: Itaú Cultural: Iluminuras, 2020. p. 9-41. Disponível em: https://comissura/itaucultural/docs/a_tragedia_da_cultura_issuu-af_v2. Acesso em: nov. 2021.
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, p. 19), para quem “o que quer que uma pessoa faça, para ser considerado como algo de valor[,] deve contribuir para o universo ideal, histórico e materializado do espírito”. Nessa perspectiva, “a cultura formata sua unidade comparando e contrastando essas avaliações de ordem do espírito subjetivo e objetivo: é que a cultura significa esse tipo de perfeição individual que só pode ser alcançada por meio da incorporação de uma forma suprapessoal que de algum modo situa-se fora do sujeito” (id., ibid, p. 20). Portanto, para que o Corredor Cultural se legitime, a fim de retomar o sentimento de apropriação e pertencimento, faz-se necessário buscar o que se quer revelar e o que se quer esquecer.

Conforme Nunes e Rocha (2009NUNES, M. F.; ROCHA, A. L. C. da. Etnografando narrativas étnicas no espaço da cidade: os negros e as ações afirmativas na sociedade brasileira contemporânea. Iluminuras, Porto Alegre, v. 10, n. 23, 2009.), não seria importante perguntar se essas políticas contemporâneas (reconhecimentos, inventários, tombamentos, planos diretores) garantem de fato os direitos dos diferentes grupos que habitam a cidade e, dessa forma, valorizar os bens culturais de todos, e não apenas de uma parcela da população? Será que, como defende Nora (1993NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 10, p. 7-28, 1993.), esse espaço não deveria ser entendido como um “lugar de memória”, que possui um valor simbólico para a sociedade na qual está inserido, exercendo um papel importante na preservação do passado e na constituição de uma identidade local? Para esse autor (1993, p. 13), os lugares de memória precisam ser criados, pois não há memória espontânea e “é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais”.

Ao mesmo tempo que a audiência pública que debateu a permanência do tombamento da rua General Osório não encontrou respaldo entre a plateia de moradores e investidores e os aplausos foram uma forma de desdenhar de algo que a comunidade não queria acatar ou não estava entendendo, os mapas mentais produzidos foram bastante enfáticos ao apresentar memórias significativas e demonstrar a existência de valores para o lugar e o sentido de per-tencimento. Cabe elucidar que a plateia da audiência pública não se constituía exclusivamente dos mesmos autores dos mapas mentais, embora alguns de nossos interlocutores tenham estado no evento público. O resultado parcial aponta para a importância de ouvir o nativo, de modo a construir melhor o objeto a ser investigado.

A memória dos proprietários, dos usuários do local e dos investidores, enfim, dos diferentes atores, pode auxiliar nessas questões que ainda são objeto de pouca reflexão, como o sentido de pertencer a esse conjunto urbano edificado e reconhecido como Corredor Cultural de Hamburgo Velho ou de possuir um bem nele localizado. Mas o que também pode estar em jogo é o sentido de ser. A riqueza apresentada nos mapas mentais indica que, além dos bens materiais a serem preservados, há nesse lugar riquezas culturais de valor imaterial!

Referências

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  • 1
    Como conceito de lugar, utilizamos o locus geográfico de acordo com Milton Santos (SANTOS, 2002), ou seja, como “a sede da sociedade”, conforme os conceitos da geografia crítica abordada na obra em questão. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2002.
  • 2
    O bairro de Hamburgo Velho, núcleo inicial da formação da cidade de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, é um dos sítios urbanos reconhecidos como de interesse em preservação em face das características das edificações do final do século XIX e início do século XX, parte delas tombadas emergencialmente em 2015 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
  • 3
    Plano Diretor de 2004. Lei Municipal nº 1.216/2004 (NOVO HAMBURGO, 2004NOVO HAMBURGO. Lei Municipal nº 1.216/2004, de 20 de dezembro de 2004. Institui o Plano Diretor Urbanístico e Ambiental - PDUA do município e dá outras providências. Diário Oficial Novo Hamburgo, 2004. Disponível em: https://bit.ly/3LkWxKf. Acesso em: ago. 2020.
    https://bit.ly/3LkWxKf...
    ), e Lei Complementar nº 2.150/2010 (NOVO HAMBURGO, 2010NOVO HAMBURGO. Lei Complementar nº 2.150/2010, de 7 de junho de 2010. Altera a Lei Municipal nº 1.216/2004, de 20/12/2004, e dá outras providências. Diário Oficial Novo Hamburgo , 2010. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3LjXkuV . Acesso em: ago. 2020.
    https://bit.ly/3LjXkuV...
    ), no momento em revisão.
  • 4
    A manutenção da preservação de acordo como estava prevista pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul (Iphae) foi definida pela municipalidade até a revisão do Plano Diretor, iniciada em 2022.
  • 5
    Bairro Catumbi, Rio de Janeiro. Usa-se aqui o conceito de território previsto por Milton Santos (SANTOS; SILVEIRA, 2001; SANTOS, 2002) e Marcos Aurélio Saquet (SAQUET, 1996), que consideram território a natureza e a ação humana: o trabalho e a política e um jogo permanente de dominação, submissão e controle econômico, político e social. SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil - território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Re-cord, 2001. SAQUET, M. A. Paisagem. Território. Região. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 103-114.
  • 6
    Marília de Lavra Pinto, arquiteta e urbanista do Iphae-RS, liderou importantes trabalhos pelo interior do estado do Rio Grande do Sul. Ela se exonerou por motivo de doença, em decorrência da qual veio a falecer. Esse foi um de seus últimos trabalhos no referido instituto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2021
  • Aceito
    26 Dez 2022
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