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Autopercepção da pessoa que gagueja quanto à avaliação de suas experiências e dos resultados de seu(s) tratamento(s) para a gagueira

Resumos

Objetivo:

Conhecer a opinião das pessoas que gaguejam sobre os tratamentos da gagueira, a partir de resposta a duas questões abertas.

Métodos:

Participaram do estudo 40 adultos, autoavaliados como gagos, sem distinção de gênero. Na primeira fase da pesquisa, foram feitos contatos com duas Organizações Não Governamentais brasileiras de apoio às pessoas com gagueira: Associação Brasileira de Gagueira (ABRAGAGUEIRA) e Instituto Brasileiro de Fluência (IBF), que se dispuseram a participar do estudo divulgando a proposta para seus membros via correio eletrônico. O primeiro contato com os participantes esclareceu o objetivo e método da pesquisa e, após obtenção da concordância na participação da mesma, foi enviada nova correspondência contendo duas questões a serem respondidas, que envolviam opiniões sobre cura, tratamentos realizados e seus resultados.

Resultados:

As respostas obtidas indicaram que pessoas que gaguejam acreditam na cura da gagueira; a terapia ideal seria a que levasse ao desaparecimento do sintoma e que o tratamento mais indicado é o fonoaudiológico. Os resultados indicaram ainda que, para a maioria dos participantes, embora já tenham realizado tratamento fonoaudiológico, não foi observada melhora significativa do quadro e nem satisfação positiva com o tratamento realizado.

Conclusão:

Os resultados indicaram que os participantes, ao emitirem suas respostas, não se basearam no conhecimento científico do distúrbio e sim no desejo de que "algo possa acontecer" e a gagueira venha a "desaparecer". Embora a pesquisa não tenha focado no tipo de terapia realizada, os resultados indicaram que a determinação dos componentes que contribuem para um tratamento eficaz para gagueira são controversos.

Fonoaudiologia; Gagueira; Adulto; Autoimagem; Terapêutica


Purpose:

To investigate the opinion about stuttering treatments in people who stutter, based on their answers to two open questions.

Methods:

The participants were 40 adults of both genders, with self-reported stuttering. During the first phase of the research, we contacted two Brazilian nongovernmental organizations: the Brazilian Stuttering Association (ABRAGAGUEIRA) and the Brazilian Fluency Institute (IBF). These associations agreed to participate and were responsible for sending the research questions to their members via electronic mail. The first contact with the participants elucidated the purpose and method of our research and, after obtaining informed consent from participants, the two questions were sent. The research questions involved their opinion about cure, treatments to which the participants had been submitted, and their outcome.

Results:

After analysis, the answers obtained indicated that people who stutter believe in a cure for stuttering; that the ideal therapy would be the one that led to the disappearance of the symptoms; and the most frequently reported professional to treat the disorder is the speech-language pathologist. The results also indicated that although most of the participants had undergone speech-language treatment for stuttering, neither significant improvements were observed nor satisfaction was positive.

Conclusion:

The results indicate that the answers presented by the participants were not based on scientific knowledge about the disorder but on their wish that "something could happen" to make stuttering "disappear." Although in this study we did not investigate the type of treatment to which the patients were submitted, the results suggest that the factors that contribute to an effective treatment are contentious.

Speech Language and Hearing Sciences; Stuttering; Adult; Self-image; Therapeutics


INTRODUÇÃO

A gagueira não possui características de uma entidade nosológica única, sua característica é multidimensional. Se, por um lado, seus atributos necessários são uma taxa elevada de determinados tipos de rupturas, por outro, envolve mais que os comportamentos observados. A gagueira envolve a experiência do falante com as reações negativas — afetivas, comportamentais e cognitivas (a partir dele mesmo e do ambiente) —, assim como uma significativa limitação em sua habilidade para participar das atividades da vida diária e o impacto sobre a qualidade de vida de um modo geral(11. Andrade CRF. Abordagem neurolinguística e motora da gagueira. In: Fernandes FDM, Mendes BCA, Navas ALPGP, editores. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Roca; 2009. p. 423-33.).

Em relação aos atributos necessários, a gagueira pode ser definida pelas rupturas involuntárias do fluxo da fala, caracterizadas por repetições de sons e de sílabas, prolongamentos de sons, bloqueios (posições pré-articulatórias ou articulatórias fixas), pausas extensas e intrusões nas palavras (sons ou segmentos fonológicos não pertinentes); essas alterações diminuem a velocidade da fala e provocam um grau de rompimento acima da taxa pertinente à idade do falante(11. Andrade CRF. Abordagem neurolinguística e motora da gagueira. In: Fernandes FDM, Mendes BCA, Navas ALPGP, editores. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Roca; 2009. p. 423-33.,22. Juste FS, Sassi FC, Andrade CRF. Exchange of disfluency with age from function to content words in Brazilian Portuguese speakers who do and do not stutter. Clin Linguist Phon. 2012;26:946-61.).

Estudo específico sobre a distribuição epidemiológica da gagueira indica uma taxa populacional de 0,72%. A faixa etária com a maior prevalência é a das crianças, com variação populacional de 1,4 a 1,44%. A distribuição entre os gêneros é de 2,3 para o gênero masculino e 1,0 para o feminino(33. Craig A, Hancock K, Tran Y, Craig M, Peters K. Epidemiology of stuttering in the community across the entire lifespan. J Speech Lang Hear Res. 2002;45(6):1097-105.).

Parece existir um consenso indicando que as rupturas involuntárias da fala não passíveis de recuperação espontânea produzem no falante com gagueira a sensação de que a comunicação oral é difícil (ao invés de fisiológica) e frustrante, acarretando impacto social, cognitivo e afetivo(44. Perkins WH, Rudas J, Johnson L, Michael WB, Curlee RF. Replacement of stuttering with normal speech: III. Clinical effectiveness. J Speech Hear Disord. 1974;39:416-28.). Alguns estudos recentes apresentam resultados indicando que a gagueira pode comprometer a saúde mental das pessoas que gaguejam, levando-as às fobias, ansiedade generalizada, redução de oportunidades de convívio social e ocupacional(55. Ginsberg AP. Shame, self-consciousness, and locus of control in people who stutter. J Genet Psychol. 2000;161(4):389-400.

6. Craig A, Blumgart E, Tran Y. The impact of stuttering on the quality of life in adult people who stutter. J Fluency Disord. 2009;34(2):61-71.
-77. Blumgart E, Tran Y, Craig A. Social anxiety disorder in adults who stutter. Depress Anxiety. 2010;27(7):687-92.).

Um trabalho de revisão sobre os tratamentos de gagueira(88. Conture EG, Guitar BE. Evaluating efficacy of treatment of stuttering: School-age children. J Fluency Disord. 1993;18(2-3):253-87.) indica que os tratamentos fonoaudiológicos para essa patologia beneficiam os indivíduos com gagueira em qualquer momento da vida. Foram considerados os tratamentos de base intensiva (populares nos EUA) e estendida (semanais ao longo de um período de tempo). Pelo estudo, as técnicas mais eficazes são aquelas que incluem a temporalização da fala (lentificação, prolongamento etc.), seguidas das abordagens de redução da tensão e ansiedade para falar; abordagens de promoção das atitudes de comunicação visando minimizar o impacto da gagueira na vida do indivíduo. Essa revisão concluiu que existe entre 60 e 80% de redução da gagueira em todos os pacientes que receberam tratamento, segundo as técnicas mais eficazes.

Os dados apresentados no projeto ASHA's National Outcomes Measurement System (NOMS)(99. American Speech-Language-Hearing Association. National outcomes measurement system (NOMS): Adult speech-language pathology user's guide. Rockville, MD: ASHA; 2003.) indicam que 79% das pessoas que gaguejam e são submetidas aos tratamentos fonoaudiológicos, nos EUA, mostram ganhos funcionais em um ou mais níveis (Fluency Functional Communication Measure – FCM), cuja escala varia do menos funcional (nível 1) ao mais funcional (nível 7). Pelos achados da American Speech-Language-Hearing Association (ASHA), metade dos indivíduos tratados crescem em diversos níveis funcionais, resultando no incremento da competência comunicativa.

Dentro dos princípios da prática baseada em evidências, a avaliação da evolução do caso clínico não deve estar exclusivamente baseadas na percepção do terapeuta. O conceito de significância clínica (eficácia, eficiência, efeito) deve considerar o ganho real do indivíduo (funcionalidade, adequação do tratamento às características e necessidades de cada pessoa e de que forma e em qual grau de satisfação contemplou as expectativas do paciente/família e do terapeuta(1010. Andrade CRF. A fonoaudiologia baseada em evidências. Einstein. 2004;2(1):59-60.)).

Diante das considerações apresentadas, o presente estudo, dentro do paradigma da construção de um mapa de evidências que possa fornecer aos clínicos, pesquisadores e pacientes, visou conhecer a perspectiva da pessoa que gagueja quanto à avaliação de suas experiências e dos resultados de seu(s) tratamento(s) para a gagueira. O objetivo específico desta pesquisa interinstitucional foi conhecer a opinião das pessoas que gaguejam sobre os tratamentos da gagueira, a partir de resposta pessoal a duas questões abertas.

MÉTODOS

Os processos de seleção e avaliação seguiram procedimentos éticos pertinentes: Parecer da Comissão de Ética (CAPPesq no. 726/04) e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por todos os participantes.

O estudo caracteriza-se como uma pesquisa prospectiva, observacional descritiva, transversal, com base em resposta aberta à questão formulada. A pesquisa é considerada de risco nulo.

Participantes

Os participantes do estudo foram adultos (acima de 18 anos); autoavaliados como gagos; sem distinção de gênero e nível de escolaridade de médio completo a superior. O nível socioeconômico e o estado brasileiro de origem não constituíram variáveis pesquisadas. Os critérios de inclusão na pesquisa foram:
  • participar de grupo de apoio para pessoas com gagueira em instituição não governamental;

  • considerar-se gago;

  • ter disponibilidade para responder a duas perguntas, via e-mail, sobre sua opinião particular em relação aos tratamentos de gagueira.

Embora a prevalência da gagueira na população adulta seja internacionalmente reconhecida como de 1%, no estudo aqui apresentado não houve determinação de tamanho mínimo para a amostra, já que a adesão ao estudo foi espontânea, a partir de convite aberto a todos os participantes das duas instituições de apoio às pessoas com gagueira. Pela natureza do estudo também não houve qualquer pré-seleção dos participantes ou processos de avaliação ou triagem fonoaudiológica para determinação de diagnóstico fonoaudiológico de gagueira.

Material

Para a execução da pesquisa, foi elaborado um questionário contendo duas perguntas abertas. O material foi enviado via correio eletrônico. As perguntas do questionário foram:
  • Pergunta 1 – Na sua opinião, qual seria a terapia fonoaudiológica "dos seus sonhos" para curar a sua gagueira?

  • Pergunta 2 – Quais os tratamentos que você já fez até hoje para curar a sua gagueira? Esses tratamentos podem ter sido fonoaudiológicos, psicológicos, alternativos etc.

Procedimento

O estudo foi composto por três fases para coleta dos dados.

Fase I – consulta às instituições de apoio aos indivíduos com gagueira

Nessa primeira fase, foram feitos os contatos com as duas Organizações Não Governamentais brasileiras de apoio às pessoas com gagueira: Associação Brasileira de Gagueira (ABRAGAGUEIRA) e Instituto Brasileiro de Fluência (IBF), quando foi apresentado o projeto da pesquisa. Ambas as instituições dispuseram-se a participar do estudo e divulgaram a proposta para seus membros via correio eletrônico. As organizações possuem, entre seus membros, fonoaudiólogos e membros da sociedade em geral. A orientação foi que só as pessoas com gagueira participassem do projeto.

Fase II – apresentação da pesquisa

Nessa fase, foi disponibilizado para os membros das instituições de apoio um endereço eletrônico para troca de correspondência, via eletrônica, entre os pesquisadores e os interessados na participação na pesquisa. O primeiro contato esclareceu o objetivo e método do estudo e solicitou aos interessados que enviassem um e-mail de concordância na participação. Uma vez aceita a participação, com a assinatura digitalizada do termo de consentimento, foi então enviada nova correspondência contendo as questões a serem respondidas.

Fase III – resposta às questões

Nessa fase, os participantes enviaram suas respostas, formuladas de maneira livre e sem qualquer tipo de constrangimento, num espaço de dez linhas para cada resposta, via eletrônica, de volta para os pesquisadores.

Análise dos dados

Foram considerados como participantes do estudo as pessoas com gagueira (PCG) que apresentaram documentação completa: dados demográficos e respostas completas em ambas as questões (Figura 1).

Figura 1
Diagrama de distribuição dos participantes e seus dados demográficos

O delineamento para análise dos dados da pesquisa — qualitativa de análise de resposta à pergunta estruturada — implicou que as respostas dadas pelos participantes fossem categorizadas pelo método de Conteúdo de Análise. O método baseia-se no estabelecimento de domínios que constituem categorias de significação obtidas a partir de unidades de resposta. Cada unidade é obtida a partir da frequência de aparecimento de conteúdos referenciados na mensagem (por exemplo: quantas vezes uma ideia, sentimento ou emoção particular foi referido no texto). Os conteúdos, domínios e unidades de resposta foram submetidos à avaliação de quatro juízes, independentes, para compatibilização. Foram compatibilizadas as respostas dos juízes com índice de acordo de 0,86, razão considerada de alta concordância(1111. Maxwell DL, Satake E. Research and statistical methods in communication sciences and disorders. Clifton: Thompson; 2006.).

Na análise inferencial do presente estudo, foi utilizado o teste não paramétrico Cochran's Q. Esse teste é uma extensão do teste de McNemar para duas amostras e se aplica na verificação de diferença entre três ou mais grupos de frequências. Trata-se de uma versão binomial da ANOVA de medidas repetidas ou teste de Friedman. Quando uma diferença é encontrada, é necessário realizar testes post hoc. No presente estudo, testes de McNemar foram utilizados em múltiplas comparações par a par e os valores de p foram ajustados com correções de Bonferroni.

RESULTADOS

Para a Pergunta 1 (Qual seria a terapia fonoaudiológica dos seus sonhos?), foram categorizados três domínios:
  • Cura da Gagueira;

  • Terapia Ideal;

  • Tipos de Tratamento da Gagueira.

No domínio Cura da Gagueira, havia três unidades de resposta: acredita; não acredita; sem resposta. O teste Cochran's Q revelou diferença nas respostas dos participantes com relação à variável "Cura da Gagueira" (χ2(2)=19,400, p<0,001). Comparações par a par por meio do teste de McNemar com correções de Bonferroni revelaram que um maior número de participantes "acredita" na cura da gagueira se comparado a "não acredita" (p=0,011) e "sem resposta" (p<0,001).

No domínio Terapia Ideal, havia três unidades de resposta: terapia que tratasse a causa da gagueira; terapia que levasse ao desaparecimento da gagueira; sem resposta. O teste Cochran's Q revelou diferença nas respostas dos participantes com relação à terapia ideal (χ2(2)=16,550, p<0,001). Comparações par a par utilizando o teste de McNemar com correções de Bonferroni revelaram que um maior número de participantes considera terapia ideal aquela que foca no "desaparecimento da gagueira" se comparada com aquela que foca na "causa" da mesma (p<0,001). Entretanto, não há diferença entre o número de participantes que considera terapia ideal aquela que foca no "desaparecimento da gagueira" e o número de participantes que não apresentou resposta (sem resposta) (p=0,143).

No domínio Tipos de Tratamento da Gagueira, havia sete unidades de resposta: tratamento fonoaudiológico; tratamento psicológico; tratamento médico; tratamento multidisciplinar; terapia que tratasse a causa da gagueira; terapia que levasse ao desaparecimento da gagueira; sem resposta. O teste Cochran's Q revelou diferença nas respostas dos participantes com relação ao tipo de tratamento utilizado na gagueira (χ2(5)=58,442, p<0,001). Comparações par a par utilizando o teste de McNemar com correções de Bonferroni revelaram que o tratamento mais frequente é o fonoaudiológico (todos os valores de p<0,001). Em segundo lugar, os tratamentos mais frequentes são o médico e o psicológico, não havendo diferença entre eles (p=0,219).

Para a Pergunta 2 (Quais os tratamentos que você já fez até hoje para curar a sua gagueira?), foram categorizados três domínios:
  • Tratamentos já Realizados;

  • Avaliação dos Resultados;

  • Satisfação com o(s) Tratamento(s).

No domínio Tratamentos já Realizados, havia dez unidades de resposta: nunca fez nenhum tratamento; fez tratamento fonoaudiológico uma vez; fez tratamento fonoaudiológico mais de uma vez; fez tratamento psicológico; fez tratamento médico; fez autoterapia; participa de grupos de apoio; fez tratamento de natureza espiritual (vinculado às religiões); fez tratamentos alternativos (hipnose, acupuntura, ioga, exercícios físicos, cromoterapia, homeopatia, florais, regressão); fez ou foi submetido às simpatias (tomar susto, bater na cabeça com colher de pau, tomar água na casca do ovo, etc.). O teste Cochran's Q revelou diferença significativa nas respostas dos participantes com relação aos tratamentos já realizados (χ2(9)=94,238, p<0,001). Comparações par a par utilizando o teste de McNemar com cor-reções de Bonferroni revelaram que o tratamento já realizado com maior frequência foi o fonoaudiológico (todos os valores de p<0,001). Em segundo lugar, observa-se o tratamento psicológico; entretanto, não há diferença significativa entre a frequência de tratamentos fonoaudiológicos realizados "mais de uma vez" e o psicológico (p=0,503).

No domínio Avaliação dos Resultados, havia três unidades de resposta: melhorou, não melhorou e sem resposta. Por meio do teste Cochran's Q, não foi observada diferença nas respostas (melhorou, não melhorou e sem resposta) dos participantes com relação à variável avaliação dos resultados (χ2(2)=3,950, p=0,139).

No domínio Satisfação com o(s) Tratamento(s), havia três unidades possíveis: positiva, negativa e sem resposta. O teste Cochran's Q revelou diferença nas respostas dos participantes com relação à variável "Satisfação" (χ2(2)=6,350, p=0,042). Comparações par a par utilizando o teste de McNemar com correções de Bonferroni revelaram não haver diferença entre o número de participantes que apresenta satisfação "positiva" e "negativa" (p=0,296), assim como entre satisfação e "positiva" e "sem resposta" (p=296). A única diferença significativa observada foi entre as respostas referentes à satisfação "negativa" e "sem resposta" (p=0,019).

DISCUSSÃO

A gagueira é um distúrbio de causa desconhecida, caracterizada por repetições, prolongamentos e interrupções do fluxo da fala. Os fatores genéticos estão implícitos nesse distúrbio, apontando para a identificação de marcadores no cromossomo 12. A suscetibilidade genética está associada às variações dos genes que governam o metabolismo lisossômico(1212. Kang C, Riazuddin S, Mundorff J, Krasnewich D, Friedman P, Mullikin JC, et al. Mutations in the lysosomal enzyme-targeting pathway and persistent stuttering. N Engl J Med. 2012;362(8):677-85.).

A gagueira, entendida como um distúrbio metabólico hereditário, apresenta características crônicas e fases variáveis de gravidade. A sintomatologia da gagueira (rupturas involuntárias do fluxo da fala) modifica a naturalidade da fala, tornando a comunicação tensa, desafiadora e frustrante. Além da variabilidade da fala, assim como outros distúrbios crônicos, a gagueira elicita penalidades sociais, tais como: reações negativas do ouvinte, estereótipos, bullying, provocações, rejeição, danos sociais e ocupacionais. Em decorrência da gravidade da gagueira, das penalidades sociais e da resiliência individual (processo dinâmico no qual o indivíduo se ajusta e lida de maneira adaptada frente a uma adversidade significativa e ameaçadora), a PCG poderá apresentar comprometimento na saúde mental (ansiedade, fobia social e outros) e na sua qualidade de vida(66. Craig A, Blumgart E, Tran Y. The impact of stuttering on the quality of life in adult people who stutter. J Fluency Disord. 2009;34(2):61-71.,1313. Boyle MP. Psychological characteristics and perceptions of stuttering of adults who stutter with and without support group experience. J Fluency Disord. 2013;38(4):368-81.).

Os resultados encontrados em nosso estudo para a primeira pergunta — Na sua opinião, qual seria a terapia fonoaudiológica "dos seus sonhos" para curar a sua gagueira? — indicam que os participantes, ao emitirem suas respostas, não se basearam no conhecimento científico do distúrbio e sim no desejo de que "algo possa acontecer" e a gagueira venha a "desaparecer". Tais resultados remetem à noção de pensamento mágico, a saber: a crença, tipicamente infantil, de que certos pensamentos levariam à realização de desejos, ou mesmo à prevenção de eventos indesejáveis. Contudo, nos adultos, a persistência desse tipo de pensamento sugere imaturidade ou desequilíbrio psíquico(1414. Lindenmeyer C, Ceccarelli PR. O pensamento mágico na constituição do psiquismo. Reverso. 2012;34(63):45-52.).

Em pesquisa de revisão sistemática e meta-análise sobre os tratamentos da gagueira, os resultados indicam um efeito geral positivo, sem que tenha sido demonstrado que uma determinada abordagem de tratamento apresente efeito maior sobre as demais(1515. Herder C, Howard C, Nye C, Vanryckeghem M. Effectiveness of behavioral stuttering treatment: a systematic review and meta-analysis. Contemp Issues Commun Sci Disord. 2006;33:61-73.).

Em pesquisas já realizadas que tiveram como objetivo avaliar o grau de satisfação pessoal com o tratamento de gagueira realizado, a maior parte das PCGs relata a experiência como negativa, mas, paradoxalmente, como tendo tido um impacto positivo na qualidade de vida. Para a maioria das PCGs, a gagueira afeta a autoestima e a autoimagem, aspectos pouco abordados nas terapias tradicionais da gagueira. As próprias PCGs analisam seu envolvimento na terapia feita como tendo sido responsável, em maior ou menor grau, pelo não sucesso da experiência. As PCGs identificam o não envolvimento pela consciência restrita do problema (em termos biopsicossociais); a permanência das reações negativas dos ouvintes externos ao longo do tratamento; as emoções pessimistas em atingir o sucesso no tratamento; as restrições no estilo natural de vida com o uso das técnicas; a relação não positiva entre o paciente e o terapeuta; terapeuta inseguro ou inconstante, entre outros(1616. Klompas M, Ross E. Life experiences of people who stutter, and the perceived impact of stuttering on quality of life: personal accounts of South African individuals. J Fluency Disord. 2004;29:275-305.

17. Plexico L, Manning WH, DiLollo A. A phenomenological understanding of successful stuttering management. J Fluency Disord. 2005;30:1-22.

18. Plexico L, Manning WH, DiLollo A. Client perceptions of effective and ineffective therapeutic alliances during treatment for stuttering. J Fluency Disord. 2010;35(4):333-54.
-1919. Yaruss JS. Assessing quality of life in stuttering treatment outcomes research. J Fluency Disord. 2010;35(3):190-202.).

Os resultados encontrados em nosso estudo para a segunda pergunta — Quais os tratamentos você já fez até hoje para curar a sua gagueira? Esses tratamentos podem ter sido fonoaudiológicos, psicológicos, alternativos, etc. — indicam que a rea-ção dos participantes do estudo aqui apresentado é similar às apontadas na literatura. Embora a pesquisa não tenha focado o tipo de terapia feita, os dados indicam que a determinação dos componentes que contribuem para um tratamento eficaz para gagueira são controversos.

Existem algumas limitações a serem consideradas em nosso estudo. As perguntas feitas podem ter induzido as respostas quando apresentam a palavra "cura" em seus postulados. Esse direcionamento pode ter direcionado, de alguma forma, as respostas apresentadas, mesmo sendo essas respostas através de redação livre. Outra limitação foi não haver questionamento sobre o tipo de terapia fonoaudiológica recebida e a qualificação e especialização do terapeuta fonoaudiólogo com a gagueira.

O estudo contribui para ampliar o conhecimento do fonoaudiólogo sobre a gagueira, pois apresenta um panorama sobre a experiência de 40 pessoas (é uma amostra muito importante, numericamente estudos internacionais desse tipo variam entre sete e 18 participantes) com a sua gagueira; indica a necessidade de desenvolvermos indicadores de avaliação da eficácia e qualidade dos tratamentos fonoaudiológicos da gagueira.

Conforme considerado por Herder et al.(1515. Herder C, Howard C, Nye C, Vanryckeghem M. Effectiveness of behavioral stuttering treatment: a systematic review and meta-analysis. Contemp Issues Commun Sci Disord. 2006;33:61-73.), embora a intervenção terapêutica na gagueira traga efeitos gerais positivos, são necessárias novas pesquisas que indiquem a influência das variáveis de subgrupo pelos efeitos de idade, gênero, condição socioeconomica-cultural, tempo de intervenção, etc. Segundo os autores, também são necessários ensaios clínicos randomi-zados para identificar os efeitos dos tratamentos e possíveis comparações entre eles.

Finalizando, conforme publicação da ASHA(99. American Speech-Language-Hearing Association. National outcomes measurement system (NOMS): Adult speech-language pathology user's guide. Rockville, MD: ASHA; 2003.), é urgente que sejam desenvolvidos indicadores de qualidade em Fonoaudiologia abrangendo: auxiliar a criação de programas de autoavaliação; promover um guia para o desenvolvimento de políticas e procedimentos para a provisão de serviços profissionais qualificados e a consolidação de base para a acreditação de programas de serviços. Os indicadores de qualidade têm como função:
  • promover ajuda para que o profissional preste serviço de qualidade;

  • informar outros profissionais e agências regulatórias sobre os elementos essenciais para a constituição de serviços fonoaudiológicos de ponta;

  • guiar a proposição de novos programas de avaliação e tratamento;

  • facilitar a avaliação e controle para administradores e agências governamentais sobre as metas a serem atingidas e a implantação e operacionalização de novos serviços de Fonoaudiologia;

  • conscientizar os usuários sobre a importância de receber tratamentos de qualidade gerados a partir de indicadores clínicos.

CONCLUSÃO

O objetivo desta pesquisa interinstitucional foi conhecer a opinião das pessoas que gaguejam (PCG) sobre suas crenças e experiências em relação aos seus tratamentos da gagueira, já realizados. Os resultados do estudo indicam que as PCGs acreditam na cura da gagueira; a terapia ideal seria a que levasse ao desaparecimento do sintoma e que o tratamento mais indicado é o fonoaudiológico. Os resultados do estudo também indicam que, para a maioria dos participantes, embora já tenham realizado tratamento fonoaudiológico, não foi observada uma melhora significativa do quadro e nem uma satisfação positiva com o tratamento realizado.

AGRADECIMENTOS

A todos os indivíduos que participaram do estudo, à ABRAGAGUEIRA e ao IBF, pela divulgação da pesquisa, auxiliando no recrutamento dos participantes.

  • Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.
  • *
    CRFA foi responsável pela concepção e delineamento do estudo, pela interpretação dos dados, pela orientação das etapas de execução da pesquisa e elaboração do artigo; MCC foi responsável pela interpretação dos dados, elaboração e revisão final do artigo; FSJ foi responsável pela da coleta, tabulação e análise dos dados e colaborou com a revisão final do artigo; APR colaborou na coleta e tabulação dos dados da pesquisa; BPBA colaborou na análise qualitativa do conteúdo dos depoimentos dos participantes.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2014

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2014
  • Aceito
    16 Jul 2014
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