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Verificação do processo terapêutico em pacientes fissurados

Resumos

OBJETIVO:

Verificar a origem de um processo terapêutico mais longo ou até com insucesso de pacientes com fissura labiopalatina quanto à sua dificuldade de fala.

MÉTODOS:

Foram observadas 18 crianças em processo terapêutico há pelo menos seis meses, divididas em dois grupos: com fissura labiopalatina isolada (grupo I), e com diagnóstico fonoaudiológico de transtorno de leitura e escrita com manifestação de déficit da consciência fonológica (grupo II). Aplicaram-se dois testes para avaliação de fala e linguagem: ABFW - Teste de Linguagem Infantil (área de Fonologia) e Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial (CONFIAS).

RESULTADOS:

No ABFW, o grupo I apresentou porcentagens maiores do que o grupo II, menos nas variáveis "simplificação de encontro consonantal" e "ensurdecimento de plosiva". Também observou-se que, para o processo de omissão, grupo I dificilmente omite as vibrantes como ocorreu no grupo II. No CONFIAS nível sílaba as porcentagens do grupo I tendem a ser maiores que as do grupo II, com exceção das tarefas "sílaba medial", "produção de rima" e "exclusão". No nível do fonema, as porcentagens do grupo II tendem a ser maiores do que no grupo I, com exceção das tarefas: "inicia com som dado", "exclusão", "síntese" e "segmentação", mesmo sem diferença significativa entre as distribuições da porcentagem nos grupos I e II (p>0,118).

CONCLUSÕES:

As diferenças encontradas entre os grupos I e II, apesar de não significativas estatisticamente, podem sugerir que a presença da malformação dificulte a aquisição e o desenvolvimento da fala e linguagem, e prolongue o processo terapêutico se não realizadas intervenções diretivas, como incluir terapia de consciência fonológica.


PURPOSE:

This study was conducted to verify the origin of a longer or even failed therapeutic process in patients with cleft lip and palate as to its difficulty.

METHODS:

Eighteen children undergoing therapeutic process were observed for at least 6 months and divided into two groups: presenting isolated cleft lip and palate (group I) and having been diagnosed by a Speech-Language Pathologist with reading and writing disorders, with manifestation of phonological awareness deficit (group II). Two tests were applied for the evaluation of speech and language: ABFW Language Test for Young Children (phonology) and Phonological Awareness: Instrument of Sequential Assessment (CONFIAS).

RESULTS:

Group I presented higher percentages in ABFW test than group II, except in the "simplification of consonant cluster" and "plosive devoicing" variables. It was also observed that, in the process of omission, group I hardly omits the vibrant consonant, as observed in group II. At the syllable level of CONFIAS, the percentages observed in group I tended to be higher than in group II, with the exception of the following tasks: "medial syllable," "production of rhyme," and "exclusion." At the phoneme level, the percentages observed in group II tended to be higher than in group I, with the exception of the following tasks: "starts with given sound," "exclusion," "synthesis," and "segmentation." No significant difference was observed between percentage distributions in groups I and II (p>0.118).

CONCLUSIONS:

The differences found between groups I and II, although not statistically significant, may suggest that the presence of malformation hinders speech and language acquisition and development and prolongs the therapeutic process if directive interventions are not carried out, including phonological awareness therapy.


INTRODUÇÃO

Toda criança inicia cedo seu processo de aprendizagem da fala e linguagem e qualquer fator ambiental, anatômico e/ou fisiológico pode afetá-lo. Os primeiros anos de vida e as experiências com o mundo sonoro são primordiais para o desenvolvimento e aquisição da fala e linguagem, portanto as desordens congênitas intraútero apresentam efeito deletério no aprendizado da linguagem simbólica e no desenvolvimento do padrão de fala( 11. Bzoch KR. Communicative disorders related to cleft lip and palate. Austin: Pro-ed; 2004. ).

Este processo está baseado em estruturas anatômicas particulares e na capacidade do controle motor oral da fala, desfavorecendo as crianças que possuem comprometimentos anatomofisiológicos( 22. Kemp-Fincham SI, Kuehn DP, Trost-Cardamone JE. Speech development and timing of primary veloplasty. In: Bardach J, Morris HL, editors. Multidisciplinary Management of Cleft Lip and Palate. Philadelphia: WB Saunders, 1990. p. 736-45. ).

De acordo com estudos recentes, cerca de 50% das crianças nascidas com fissura palatina apresentam dificuldades de fala por volta dos três anos de idade, mesmo após palatoplastia( 33. Chapman KL, Hardin-Jones MA, Goldstein JA, Halter KA, Havlik RJ, Schulte J. Timing of palatal surgery and speech outcome. Cleft Palate Craniofac J, 2008;45(3):297-308.

4. Lohmander A, Persson C. A longitudinal study of speech production in Swedish children with unilateral cleft lip and palate and two-stage palatal repair. Cleft Palate Craniofac J. 2008;45(1):32-41.
- 55. Willadsen E. Influence of timing of hard palate repair in a two-stage procedure on early speech development in danish children with cleft palate. Cleft Palate Craniofac J. 2012;49(5):574-95. ). Diversas pesquisas em outras línguas, principalmente na inglesa, garantem que crianças com fissura palatina apresentam tanto déficits nos processos fonológicos quanto alterações fonéticas e de ressonância( 66. Henningsson G, Willadsen E. Cross linguistic perspectives on speech assessment in cleft palate. In: Howard S, Lohmander A, editors. Cleft Palate Speech: Assessment and Intervention. Chichester: Wiley-Blackwell, 2011. p. 167-79.

7. Hagberg C, Larson O, Milerad J. Incidence of cleft lip and palate and risks of additional malformations. Cleft Palate Craniofac J. 1998;35(1):40-5.

8. Lohmander A, Friede H, Elander A, Persson C, Lilja J. Speech development in patients with unilateral cleft lip and palate treated with different delays in closure of the hard palate after early velar repair: a longitudinal perspective. Scand J Plast Reconstr Surg Hand Surg. 2006;40(5):267-74.
- 99. Lohmander A, Persson C. A longitudinal study of speech production in Swedish children with unilateral cleft lip and palate and two-stage palatal repair. Cleft Palate Craniofac J. 2008;45(1):32-41. ).

Sabendo que toda a experiência de linguagem precoce influencia no desenvolvimento das habilidades de percepção e aquisição dos processos fonológicos, crianças com fissura palatina por si só podem apresentar alteração fonética devido às alterações da estrutura anatômica, influenciando na aprendizagem e aquisição de fala e linguagem e tornando-se um risco para déficits da consciência fonológica.

Outros fatores que podem prejudicar a aprendizagem e aquisição de fala e linguagem são os problemas otológicos, como a otite média e perda auditiva, muito comuns nessas crianças( 1010. Lopes Filho O, Campos CAH. Otite media crônica secretória. Tratado de Otorrinolaringologia. São Paulo: Roca (1994). p. 677-94.

11. Sheahan P, Blayney AW. Cleft palate and otitis media with effusion: a review. Rev Laryngol Otol Rhinol. 2003;124(3):171-7.

12. Moraes TFD, Maximino LP, Feniman MR. A habilidade de atenção auditiva sustentada em crianças com fissura labiopalatina e transtorno fonológico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2011;16(4):436-40.

13. Chapman K.L. Phonologic processes in children with cleft palate. Cleft Palate Craniofac J. 1993;30(1):64-72.
- 1414. Young SE, Ballard K.J, Heard R, Purcell AA. Communication and cognition profiles in parents of children with nonsyndromic cleft lip and/or palate..J Clin Exp Neuropsychol. 2011;33(6):658-71. ). Existem estudos que referem que os problemas otológicos dificultam a realização de tarefas que envolvam memória verbal e compreensão de sentenças( 1515. Nittrouer S, Burton LT. The role of early language experience in the development of speech perception and phonological processing abilities: evidence from 5-year-olds with histories of otitis media with effusion and low socioeconomic status. J Commun Disord. 2005;38(1):29-63. ). Além disso, o modo e o tempo do início da intervenção também podem modificar o quadro. Estudos mais recentes chamam a atenção de que quanto mais tarde ocorrer a intervenção, seja nas escolas ou com especialistas, maior será o risco das dificuldades na comunicação e na cognição. E quanto mais cedo e rigorosa forem as estratégias de intervenção, melhor será o resultado em crianças com fissura labial ou palatina( 1414. Young SE, Ballard K.J, Heard R, Purcell AA. Communication and cognition profiles in parents of children with nonsyndromic cleft lip and/or palate..J Clin Exp Neuropsychol. 2011;33(6):658-71. ).

É muito comum a referência de que o processo terapêutico em crianças com fissura labiopalatina tenda a ser a longo prazo. Tendo conhecimento da ocorrência de compensações e das possíveis alterações que podem estar presentes nas crianças com esta malformação, e a constatação de alterações de fala e linguagem em artigos internacionais, este estudo pretende verificar a origem de um processo terapêutico mais longo ou até o seu insucesso e como modificar ou redirecionar o enfoque terapêutico, além de avaliar e comparar pacientes com fissura labiopalatina quanto à sua dificuldade de fala.

MÉTODOS

Em relação ao aspecto ético, neste estudo todos os participantes concordaram com o termo de assentimento que foi assinado por todas as crianças alfabetizadas. Seus representantes legais também o fizeram no documento referente ao Consentimento Livre e Esclarecido para que seus filhos pudessem ser submetidos a qualquer tipo de avaliação. O estudo foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética Institucional pelo número 0170/11 e o desenho de pesquisa tem o caráter descritivo e observacional como característica principal, com estudo comparativo transversal.

Foram observadas e avaliadas crianças alfabetizadas matriculadas do quarto ao sétimo ano do ensino fundamental atendidas no ambulatório de Fonoaudiologia de um hospital público, com intervenção mínima terapêutica de seis meses e média de idade de nove anos.

As descrições dos grupos analisados são:

  • • Grupo I:

    11 crianças, sendo oito do sexo masculino e três do sexo feminino, matriculadas no ensino fundamental de escolas municipais e estaduais, com fissura labiopalatina ou fissura palatina congênita e isoladas com média de idade de oito anos atendidas no ambulatório de Fonoaudiologia - Malformação craniofaciais e Síndromes Associadas de um hospital público;

  • • Grupo II ou controle:

    sete crianças, sendo três do sexo masculino e quatro do feminino, matriculadas no ensino fundamental de escolas municipais e estaduais, sem malformação craniofacial ou síndrome genética, com média de idade de dez anos, atendidas no ambulatório de Terapia de Fala e Linguagem da mesma instituição.

As variáveis de escolaridade, idade e condições sociodemográficas para os dois grupos não foram controladas. Os dados referentes à avaliação audiológica e do processamento auditivo central nas crianças dos grupos não foram consideradas na análise geral dos resultados.

Definiu-se como critério de inclusão para o grupo I a presença da fissura congênita isolada e processo terapêutico maior a seis meses, e para o grupo II, o processo terapêutico maior que seis meses e ausência de malformação craniofacial.

Os critérios de exclusão para os dois grupos foram: alterações motoras, perda auditiva de grau moderado a grave, alterações neurológicas graves e faltas consecutivas durante os testes. Para o grupo I, o critério de exclusão foi o de qualquer criança que tivesse chegado para atendimento antes dos quatro anos de idade, e para o II, qualquer criança que apresentasse alteração do processamento auditivo central. Houve perda amostral de dez crianças no total dos dois grupos.

A coleta de dados foi realizada nos ambulatórios de Fonoaudiologia de Fenda Palatina e Síndromes Associadas e de Terapia de Linguagem de um hospital público. Foram aplicados dois testes para avaliação de fala e linguagem, e não foi utilizado nenhum teste de escrita, apenas a análise da realização das provas orais: ABFW, Teste de Linguagem Infantil na área de Fonologia; e Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial (Confias). Os testes foram aplicados pela pesquisadora sem auxílio de filmagem, mas com gravação da voz das crianças durante os procedimentos( 1616. Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF. ABFW -Teste de linguagem infantil nas áreas de Fonologia, Vocabulário, Fluência e Pragmática. São Paulo: Pró-Fono, 2000. , 1717. Moojen S, Lamprecht R, Santos RM, Freitas GM, Brodacz R, Siqueira M, et al. CONFIAS - Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial. 2a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008. ).

O teste ABFW, de linguagem infantil na área de Fonologia, é composto por duas provas: nomeação e imitação. Para este estudo foi utilizada apenas a de nomeação, que permite avaliar quanti e qualitativamente o inventário fonético e 14 processos fonológicos: redução de sílaba, harmonia consonantal, plosivação de fricativas, posteriorização para velar, posteriorização para palatal, frontalização de velar, frontalização de palatal, simplificação de líquida, simplificação de encontro consonantal, simplificação da consoante final, sonorização de plosiva, sonorização de fricativa, ensurdecimento de plosiva e ensurdecimento de fricativa.

O objetivo da avaliação do sistema fonológico é verificar o inventário fonético da criança bem como analisar os processos fonológicos que teriam se desenvolvido. Também se verificou a presença de simplificações fonológicas e distúrbios compensatórios como golpe de glote, fricativa faríngea e sigmatismo nasal. O golpe de glote pode ser interpretado como a substituição do ponto articulatório dos fonemas plosivos na glote, enquanto a fricativa faríngea é produzida por fricção na região faríngea e o sigmatismo nasal ocorre com o direcionamento do ar para a cavidade nasal durante a emissão dos fonemas fricativos.

A aplicação do teste ABFW foi realizada em uma sala no ambulatório de um hospital público durante a sua rotina clínica. Um trecho da fala espontânea da criança e a aplicação da prova de nomeação foram gravados em aparelho de MP3 e, posteriormente, fizeram-se as análises fonética e dos processos fonológicos. Na prova de nomeação pediu-se para a criança dizer o nome das 34 figuras mostradas em forma de prancha que medem 20 cm por 23 cm. Caso ela não conseguisse, o examinador a nomeava e a retomava após cinco figuras subsequentes, pedindo novamente que a falasse de acordo com as instruções determinadas pelas autoras. Todas as respostas foram registradas em dois formulários: o de transcrição fonética e o de nomeação.

Em seguida foi feita a aplicação do teste Confias, um instrumento de avaliação sequencial dividido em dois níveis: da sílaba e do fonema. No primeiro são analisados nove aspectos: síntese, segmentação, identificação de sílaba inicial, identificação de rima, produção da palavra com sílaba dada, identificação de sílaba medial, produção de rima, exclusão e transposição. No do fonema verificam-se produção de palavra que inicia com som dado, identificação de fonema inicial, identificação de fonema final, exclusão, síntese, segmentação e transposição. A criança deveria responder às 16 tarefas apresentadas oralmente pelo avaliador para que fossem verificados os aspectos fonológicos da criança no nível da sílaba e do fonema. Todas as respostas foram registradas em um formulário de acertos e erros, por meio do qual foram realizados a análise da porcentagem de acertos em cada aspecto e o cálculo da porcentagem de acerto em relação ao total possível do teste, de acordo com as instruções determinadas. Não houve qualquer prova para a coleta de leitura e/ou escrita.

Neste estudo foi fixado nível de significância de 5% (p<0,05). Para o cálculo deste índice, utilizou-se o programa PASW Statistics. O valor de p foi calculado em função do n amostral coletado (n=15).

Foi aplicado o Teste do χ2 nos valores observados das distribuições do inventário fonético, da presença ou ausência dos processos fonológicos, da porcentagem da ausência de omissão, golpe de glote, fricativa faríngea e sigmatismo nasal da aplicação do teste ABFW nos dois grupos.

Para comparar as distribuições das respostas nos aspectos no Confias nos dois grupos foi aplicado o teste de Kruskal-Wallis. Adotou-se o mesmo procedimento para comparar as distribuições das respostas no ABFW em ambos os grupos. Quando necessário, o procedimento de Bonferroni foi considerado para localizar as diferenças entre eles( 1818. Fisher LD, van Belle G. Biostatistics. New York: John Wiley & Sons, 1993. ).

Na elaboração das figuras descritas a seguir estabeleceu-se uma cor para cada paciente, facilitando, assim, a análise das dificuldades de forma individual e em grupo.

RESULTADOS

Teste ABFW

Na Tabela 1 as médias das variáveis do inventário fonético de palavras são muito próximas. Pode-se, então, concluir que os grupos estudados apresentaram erros semelhantes e não existem erros específicos para cada um deles.

Tabela 1.
Quantidade de acertos do inventário fonético realizada pelas crianças dos dois grupos.

Na análise da Figura 1 foram verificados os valores individuais do teste ABFW em uma concentração da porcentagem semelhante de acertos fonéticos e da ausência dos processos fonológicos.

Figura 1.
Processos fonológicos no teste ABFW

Na continuidade da análise do teste ABFW, a Tabela 2 indica que para o processo fonológico de frontalização palatal foi encontrado valor de p com nível de significância 5% (p=0,013). Em outros aspectos, o grupo I apresentou porcentagens maiores que o grupo II, com exceção nas variáveis "simplificação de encontro consonantal" e "ensurdecimento de plosiva".

Tabela 2.
Demonstração da porcentagem de acertos nos processos fonológicos do ABFW em cada grupo

Na Figura 2 encontraram-se os valores das porcentagens da não ocorrência de omissão dos fonemas e a presença dos distúrbios articulatórios compensatórios (golpe de glote, fricativa faríngea e sigmatismo nasal) nos dois grupos. Foi verificado valor de p com nível de significância de 5% (p<0,05) para a variável omissão e fricativa faríngea. O grupo I apresentou menor porcentagem em todas as variáveis devido à sua patologia de base, com exceção da variável "omissão". Já o grupo II não apresentou a ocorrência de distúrbios articulatórios compensatórios, mantendo as expectativas, pois não mostrava fissura labiopalatina ou palatina e não era esperada a ocorrência destas.

Figura 2.
Distribuição dos distúrbios articulatórios compensatórios de fala

Na Tabela 3 observou-se que, para o processo de omissão, a criança com fissura palatina dificilmente omite as vibrantes como ocorreu no grupo II. As crianças com fissura realizaram mais trocas do que omissões, preservando o "espaço" do fonema.

Tabela 3.
Descrição da não ocorrência de omissão e presença dos mecanismos compensatórios (golpe de glote, fricativa faríngea e sigmatismo nasal) nos dois grupos

Confias

A análise do teste Confias no nível de sílaba (Tabela 4) teve como objetivo localizar as diferenças entre os grupos. As distribuições de porcentagem nos grupos I e II (p>0,088) não apresentaram nível de significância.

Tabela 4.
Descrição das porcentagens de acertos nos aspectos do Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial no nível de sílaba em cada grupo

As porcentagens do grupo I (Figura 3) tendem a ser maiores que as do grupo II, com exceção das tarefas "sílaba medial", "produção de rima" e "exclusão".

Figura 3.
Distribuição de porcentagens Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial em nível da sílaba

Na análise do teste Confias, o nível do fonema, de acordo com a Tabela 5, indica que não há diferença significativa entre as distribuições das porcentagens de acertos nos dois grupos. As dificuldades na execução de tarefas voltam a ser semelhantes.

Tabela 5.
Descrição das porcentagens de acertos nos aspectos do Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial no nível de fonema em cada grupo

No prosseguimento da análise, observado na Figura 4, verificou-se que os valores da porcentagem de acertos no fonema no grupo II tendem a ser maior do que no grupo I, porém, nas tarefas específicas de iniciar com som dado, exclusão, síntese e segmentação, o grupo I apresenta porcentagem de acerto maior que o grupo II. Contudo, não há diferença significativa entre as distribuições da porcentagem nos grupos I e II (p>0,118).

Figura 4.
Distribuição de porcentagens Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial no nível do fonema

DISCUSSÃO

Pelo fato de os grupos estudados apresentarem erros semelhantes no aspecto fonético, e não haver diferença significante, conclui-se que não existe erro padrão ou específico para cada grupo, o que corrobora estudos anteriores( 1515. Nittrouer S, Burton LT. The role of early language experience in the development of speech perception and phonological processing abilities: evidence from 5-year-olds with histories of otitis media with effusion and low socioeconomic status. J Commun Disord. 2005;38(1):29-63.

16. Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF. ABFW -Teste de linguagem infantil nas áreas de Fonologia, Vocabulário, Fluência e Pragmática. São Paulo: Pró-Fono, 2000.
- 1717. Moojen S, Lamprecht R, Santos RM, Freitas GM, Brodacz R, Siqueira M, et al. CONFIAS - Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial. 2a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008. ).

Todas as crianças passaram por intervenção terapêutica de no mínimo seis meses, e um dos aspectos trabalhados em terapia para a produção fonética com crianças com fissura labiopalatina foi a realização do fluxo aéreo associado a estímulos sensoriais como sensações tátil, visual e auditiva. Desta forma, acredita-se que para a produção de uma consoante fricativa palatal, a criança com fissura se beneficia na introdução e aquisição do fonema mais do que a criança sem malformação do grupo II, em que geralmente se usa apenas a técnica de demonstração do ponto e modo articulatório, favorecendo a realização de fricativa alveolar no lugar da fricativa palatal.

Estudos anteriores relatam que crianças com fissura realizam mais trocas do que omissões, o que também foi observado neste estudo, levando a pensar que a criança com fissura ouve o fonema, porém tem dificuldade para discriminá-lo e produzi-lo( 1919. Gombert JE. Metalinguistc development. New York, London: Harverster-Wheatsheaf, 1992.

20. Gombert JE. Metacognition, metalanguage and metapragmatics. International Journal of Psychology. 1993;28(5):571-80.
- 2121. Medeiros TG, Oliveira ERC. A influência da consciência fonológica em crianças alfabetizadas pelos métodos fônico e silábico. Rev. CEFAC. 2008;10(1):45-50. ).

Desde a década de 1960 já se especulava, por meio de evidências, que as crianças nascidas com malformação poderiam ser afetadas na execução de tarefas verbais e não verbais, que modificariam as modalidades expressivas. Nos estudos também há relatos de que estas crianças apresentavam atrasos nos aspectos de comportamento verbal antes da idade escolar( 2222. Souza TNU, De Avila CRB. Gravidade do transtorno fonológico, consciência fonológica e praxia articulatória em pré-escolares. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2011;16(2):182-8. , 2323. Dias RF, Mota HB, Mezzomo CL. A consciência fonológica e a consciência do próprio desvio de fala nas diferentes gravidades do desvio fonológico. Rev CEFAC. 2009;11(4):561-70. ). Naquela época essas diferenças poderiam ser consideradas dificuldade nas discriminações auditivas, afetando, assim, as tarefas verbais e o comportamento verbal.

Sabendo que a discriminação auditiva é uma capacidade de percepção distinta da de apenas receber os estímulos auditivos, e também por ser considerada a habilidade de diferenciar um som do outro e distinguir pequenas diferenças neles, cogita-se que a criança aprende a associar um som com a fonte que o produziu, e que uma criança com alteração na discriminação confunde e troca os fonemas no momento de sua enunciação( 1111. Sheahan P, Blayney AW. Cleft palate and otitis media with effusion: a review. Rev Laryngol Otol Rhinol. 2003;124(3):171-7. , 1212. Moraes TFD, Maximino LP, Feniman MR. A habilidade de atenção auditiva sustentada em crianças com fissura labiopalatina e transtorno fonológico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2011;16(4):436-40. ).

Os processos de atenção e escuta atuam em conjunto ao desenvolvimento da capacidade das crianças em conseguir lidar com os sons recebidos (input). Crianças com esta alteração podem variar o desenvolvimento das habilidades auditivas e de fala e, consequentemente, apresentar atraso no desenvolvimento, o que pode levar ao surgimento de um transtorno fonológico( 77. Hagberg C, Larson O, Milerad J. Incidence of cleft lip and palate and risks of additional malformations. Cleft Palate Craniofac J. 1998;35(1):40-5. , 1010. Lopes Filho O, Campos CAH. Otite media crônica secretória. Tratado de Otorrinolaringologia. São Paulo: Roca (1994). p. 677-94. , 1212. Moraes TFD, Maximino LP, Feniman MR. A habilidade de atenção auditiva sustentada em crianças com fissura labiopalatina e transtorno fonológico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2011;16(4):436-40. ).

Nossa hipótese inicial era que o grupo I apresentaria mais dificuldades nas aquisições de fala e linguagem, como perceber o som sem identificá-lo ou conseguir construir palavras que iniciem com o este. A alteração que ocorre nestas crianças, aparentemente fica no descompasso do processamento fonológico.

Acredita-se na hipótese de que a criança nascida com malformação identifica corretamente o fonema (input correto), mas devido às alterações anatômicas, histórico de otite, capacidade inferior de controle motor oral da fala e alteração na aquisição e desenvolvimento da fala e linguagem, acaba produzindo o output em local incorreto com compensação, e o próprio feedback reforça esta produção, em que a criança imagina estar realizando a produção do fonema corretamente( 66. Henningsson G, Willadsen E. Cross linguistic perspectives on speech assessment in cleft palate. In: Howard S, Lohmander A, editors. Cleft Palate Speech: Assessment and Intervention. Chichester: Wiley-Blackwell, 2011. p. 167-79. , 77. Hagberg C, Larson O, Milerad J. Incidence of cleft lip and palate and risks of additional malformations. Cleft Palate Craniofac J. 1998;35(1):40-5. ). Quando se é exigida uma tarefa de construção de palavras a partir de um fonema ou sílaba, ela não possui o registro deste som, que soa como um novo som( 1313. Chapman K.L. Phonologic processes in children with cleft palate. Cleft Palate Craniofac J. 1993;30(1):64-72. ).

Os resultados do teste Confias indicam que não há diferença significativa entre as distribuições das porcentagens de acertos nos dois grupos, porém o grupo I apresenta, nos aspectos relacionados ao fonema, dificuldades em tarefas fonológicas. Como o paciente com fissura labiopalatina respeita o espaço do fonema, porém não o identifica, nas tarefas em que é exigida a discriminação, ele apresenta mais dificuldades.

Nos aspectos que não foram os objetivos trabalhados em terapia, o grupo com malformação apresentou dificuldades na sua execução, confirmando a suspeita de que nos aspectos em que apresenta porcentagens melhores a conduta terapêutica pode ter auxiliado, já que a concentração de porcentagem é muito semelhante à do grupo II.

Estudos realizados entre os anos de 2005 e 2010 relataram que a linguagem precoce influencia no desenvolvimento das habilidades de percepção e processos fonológicos, que crianças com histórico de otite média se diferem nas tarefas de memória e compreensão de sentenças, e que crianças nascidas com fissura são significantemente piores na leitura, memória fonológica e fluência da leitura( 1313. Chapman K.L. Phonologic processes in children with cleft palate. Cleft Palate Craniofac J. 1993;30(1):64-72. , 1414. Young SE, Ballard K.J, Heard R, Purcell AA. Communication and cognition profiles in parents of children with nonsyndromic cleft lip and/or palate..J Clin Exp Neuropsychol. 2011;33(6):658-71. ).

Sabendo que condições físicas ou de inabilidades e incompetências interferem nos déficits funcionais, verificou-se que a criança com malformação também apresentou manifestação de déficit de consciência fonológica não maiores que o grupo controle.

Tal constatação explica os fatos que ocorrem na experiência terapêutica, em que a criança com fissura palatina e/ou fissura labiopalatina, independente da idade, apresenta, na fase de automatização, um período maior e mais trabalhoso, caso não sejam trabalhados aspectos fonológicos. Entretanto, nas fases de conscientização, produção e correção do fonema, período em que são utilizadas técnicas terapêuticas sensoriais para facilitar a sua percepção, as crianças não demonstram grandes dificuldades.

Com o relato de vários autores, sabe-se que a linguagem falada e o reconhecimento do código são precursores da leitura, que o conhecimento ortográfico influencia nas tarefas de consciência fonológica, as alterações de fala estão correlacionadas com a consciência fonológica e que esta afeta no reconhecimento da palavra e na fala( 1515. Nittrouer S, Burton LT. The role of early language experience in the development of speech perception and phonological processing abilities: evidence from 5-year-olds with histories of otitis media with effusion and low socioeconomic status. J Commun Disord. 2005;38(1):29-63.

16. Andrade CRF, Befi-Lopes DM, Fernandes FDM, Wertzner HF. ABFW -Teste de linguagem infantil nas áreas de Fonologia, Vocabulário, Fluência e Pragmática. São Paulo: Pró-Fono, 2000.
- 1717. Moojen S, Lamprecht R, Santos RM, Freitas GM, Brodacz R, Siqueira M, et al. CONFIAS - Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial. 2a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008. ). Provavelmente o grupo I apresentará maiores riscos para a ocorrência dos transtornos de leitura e escrita.

Acredita-se, portanto, que seria interessante o aspecto fonológico sempre ser levado em consideração na intervenção fonoaudiológica em todas as crianças com fissura. Pelo fato dessas crianças não terem em seus planos de intervenção terapêutica a preocupação da análise e tratamento dos aspectos fonológicos, acredita-se que estes são um dos motivos do processo mais prolongado.

Neste estudo não foram avaliados os transtornos de leitura e escrita dos grupos I e II. Uma pesquisa futura dessas alterações poderá definir o quanto as manifestações de déficits da consciência fonológica vão interferir nesta função.

CONCLUSÕES

Com as revelações de déficits da consciência fonológica a partir da análise dos resultados obtidos no presente estudo, principalmente ao nível do fonema, conclui-se que as crianças nascidas com fissura isoladas (grupo I) terão risco para adquirir a habilidade de analisar palavras em relação a fonemas e sílabas, explicando o motivo da dificuldade de fala nesses pacientes.

Como não eram conhecidos déficits anteriormente, o enfoque terapêutico foi incompleto. Portanto, o processo terapêutico acabou sendo mais longo que o necessário.

As diferenças encontradas entre os grupos I e II, apesar de não significativas estatisticamente, podem sugerir que a presença da malformação dificulte a aquisição e o desenvolvimento da fala e linguagem, e, como dissemos anteriormente, prolongue o processo terapêutico se não realizadas intervenções diretivas, como a inclusão da terapia de consciência fonológica na intervenção fonoaudiológica.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Instituição Financeira Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio sem o qual este estudo não poderia ter sido realizado.

REFERENCES

  • 1
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  • *APDB foi responsável pela coleta, tabulação e análise dos dados e elaboração do manuscrito; ZCFG acompanhou supervisionando a coleta, delineamento do estudo, etapas de execução e correção final do manuscrito. Trabalho realizado no Departamento de Fonoaudiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2014
  • Aceito
    09 Out 2014
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