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Características acústicas da qualidade vocal metálica

Resumos

OBJETIVO:

Caracterizar a frequência fundamental (F0) e frequência de formantes F1, F2, F3 e F4 das emissões vocais de cantoras amadoras com qualidade vocal metálica.

MÉTODOS:

Participaram da pesquisa 60 cantoras amadoras, com idades entre 18 e 60 anos, sendo 30 mulheres de qualidade vocal metálica integrando o grupo estudo (GE) e 30 mulheres sem essa qualidade vocal compondo o grupo controle (GC). A amostra foi selecionada através de triagem vocal confirmada por avaliadores, em consenso. Para a coleta de dados, foram gravadas e analisadas emissões de vogal sustentada em tom habitual e em duas frequências pré-determinadas, pelas quais extraíram-se os valores de F0 e frequência de formantes F1, F2, F3 e F4.

RESULTADOS:

Quanto à comparação das emissões em tom habitual, não houve diferença para F0, mas os valores dos formantes F2, F3 e F4 foram maiores no GE. Nas tonalidades pré-estabelecidas, verificou-se diferença entre os dois grupos nos formantes F3 e F4, em ambos os tons.

CONCLUSÃO:

Foi possível caracterizar a qualidade de voz metálica como de voz de frequência fundamental normal, com frequência de formante F2 aumentado, e valores de frequências de formantes F2, F3 e F4 maiores quando comparados ao GC.

Voz; Qualidade da Voz; Acústica; Acústica da Fala; Canto


PURPOSE:

To characterize the fundamental frequency and the frequency of the formants F1, F2, F3, and F4 from vocal emissions of amateur singers with metallic voice quality.

METHODS:

There were 60 amateur female singers aged between 18 and 60 years old; 30 women with metallic voice quality forming the study group (SG) and 30 women without such a vocal quality forming control group (CG). The sample was selected through voice screening confirmed by reviewers after reaching a consensus. Regarding data collection, sustained vowel emissions in usual tone and at two predetermined frequencies, by which the values of F0 and frequency of the formants F1, F2, F3, and F4 were obtained, were recorded and analyzed.

RESULTS:

Comparing the emissions in usual tone, no difference for F0 was found, but the values of the formants F2, F3, and F4 were higher in the SG. In the preestablished tones, there was a difference between the two groups in the formants F3 and F4 for both tones.

CONCLUSION:

It is possible to characterize metallic voice quality as a normal fundamental frequency, with increasing frequency of the F2 formant, and values of frequencies of formants F2, F3, and F4 higher when compared to the CG.

Voice; Voice Quality; Acoustics; Speech Acoustics; Singing


INTRODUÇÃO

A qualidade vocal metálica é descrita pela literatura como uma voz estridente, fina e desagradável( 11. Boone DlR, McFarlane SC. A voz e a terapia vocal. 5ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994. ), sendo também associada ao padrão de ressonância vocal de foco faríngeo( 22. Hanayama EM, Camargo ZA, Tsuji DH, Pinho SMR. Metallic voice: physiological and acoustic features. J Voice. 2009;23(1):62-70. ). Sua emissão está relacionada à contração do trato vocal por meio de ajustes de constrição faríngea e de articuladores, elevação da laringe, tensão adutora( 33. Pinho SMR. Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1998. ), abaixamento velar, constrição ariepiglótica e constrição lateral( 22. Hanayama EM, Camargo ZA, Tsuji DH, Pinho SMR. Metallic voice: physiological and acoustic features. J Voice. 2009;23(1):62-70. ).

A metalização da voz é vista por cantores e atores como um eficiente recurso de projeção vocal, sendo comumente utilizado em determinados estilos de canto, como o sertanejo e country americano( 33. Pinho SMR. Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1998. ). No entanto, por se tratar de uma produção vocal que envolve ajustes hiperfuncionais de trato vocal(2) e por ser considerada aguda e irritante( 33. Pinho SMR. Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1998. ), também é considerada como uma desordem de ressonância vocal fora do contexto artístico( 11. Boone DlR, McFarlane SC. A voz e a terapia vocal. 5ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994. ).

Os ajustes glóticos e supraglóticos combinados às características anatômicas do indivíduo são responsáveis pela caracterização de uma qualidade vocal( 44. Laver J. Principles of phonetics. New York: Cambridge University Press; 1994. , 55. Camardo ZA, Madureira S. Dimensões perceptivas das alterações de qualidade vocal e suas correlações aos planos da acústica e da fisiologia. DELTA. 2009;25(2):285-317. ). Tal combinação opera diretamente sobre as medidas da frequência dos formantes, nos quais F1 e F2 (formantes inferiores) são sensíveis quanto ao posicionamento dos lábios e da língua na cavidade oral e os formantes superiores (F3 e F4) estão relacionados ao comprimento total do trato vocal( 66. Kent RD. Vocal tract acoustics. J Voice. 1993;7(2):97-117. , 77. Lindblom BE, Sundberg JE. Acoustical consequences of lip, tongue, jaw, and larynx movement. J Acoust Soc Am. 1971;50(4):1166-79. ).

A importância desse tipo de abordagem ao professor de canto se dá pelo conhecimento mais fundamentado dos fenômenos acústicos ocorridos no trato vocal, permitindo a ele um raciocínio técnico mais objetivo e um respaldo científico na sua prática pedagógica.

O objetivo deste estudo foi caracterizar a frequência fundamental e frequência de formantes F1, F2, F3 e F4 das emissões vocais de cantoras amadoras com qualidade vocal metálica.

MÉTODOS

Trata-se de estudo observacional, analítico e transversal. Participaram da amostra 60 cantoras amadoras, com idades entre 18 e 60 anos, sendo 30 mulheres de qualidade vocal metálica, integrantes do grupo estudo (GE), com média de idade de 32,6 anos, e 30 mulheres sem essa qualidade vocal que compuseram o grupo controle (GC), com média de idade de 34,2 anos. Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sob o número 154.350.

A amostra foi selecionada por uma triagem vocal perceptivo-auditiva (que inclui amostras vocais da emissão sustentada da vogal /ε/, fala encadeada e canto) realizada pela pesquisadora, por sua experiência prévia de 13 anos como professora de canto, na qual identificou 30 vozes metálicas e 30 não metálicas. As amostras vocais foram confirmadas por três juízes - dois professores de canto de mesma formação acadêmica em música e um fonoaudiólogo especialista em voz - com média de oito anos de experiência na área. Todos compartilhavam de forma clara a definição da expressão "voz metálica" e possuíam conhecimento prévio quanto à produção e à identificação perceptivo-auditiva do padrão vocal pesquisado.

Os juízes confirmaram, por meio de consenso, quais seriam as amostras consideradas metálicas e não metálicas. Para esse procedimento, foram consideradas amostras vocais de qualidade vocal metálica as vozes que apresentavam foco de ressonância faríngeo e que causavam incômodo ao juiz devido às características compatíveis com voz estridente.

Após a confirmação, foi realizada a etapa da coleta propriamente dita, a qual consistiu na gravação de amostras da emissão vocal da vogal /ε/ em tom habitual e em dois tons (frequências) pré-determinados - Lá 2 (220,0 Hz) e Dó 4 (523,2 Hz). As emissões foram gravadas por meio do software SONAR(r)8.0.2, com microfone unidirecional SHURE(r) modelo SM58 posicionado a 45° e 4 cm de distância da boca da cantora. Para os tons pré-determinados, utilizou-se como referência auditiva antes de cada emissão o teclado digital do software SPEECHPITCH (versão 1.1).

As amostras foram importadas para o software PRAAT 5.3.42 para a realização da análise acústica. Das emissões em tom habitual (TH), foram extraídos os valores da frequência fundamental (F0) e das medidas da frequência de formantes (FF) F1, F2, F3 e F4, enquanto que, das emissões em tons pré-determinados, foram extraídos os valores de F1, F2, F3 e F4. Para a análise dessas frequências (em Hz), foram utilizados como critério de seleção dos registros sonoros somente os seis segundos centrais de cada emissão, sendo desconsiderados os segundos iniciais e finais, extraindo-se os excertos com maior estabilidade.

Os dados foram analisados estatisticamente por meio do teste paramétrico t de Student, com nível de significância de 0,05 (5%).

RESULTADOS

A comparação entre grupos para TH demonstrou não haver diferença quanto ao parâmetro vocal F0, mas os valores de F2, F3 e F4 foram maiores no GE (Tabela 1).

Tabela 1.
Comparação dos grupos estudo e controle para as variáveis F0, F1, F2, F3 e F4, na emissão da vogal /e/ em tom habitual

Nas tonalidades pré-estabelecidas, verificou-se diferença entre os dois grupos para F3 e F4, em ambos os tons (Tabela 2).

Tabela 2.
Comparação dos grupos estudo e controle para as variáveis F1, F2, F3 e F4, na emissão da vogal /e/ nos tons Lá 2 e Dó 4

DISCUSSÃO

Na área musical, percebe-se que os professores de canto não são unânimes quanto ao uso de terminologias para a descrição das diferentes qualidades vocais e de seus respectivos ajustes de trato vocal, ocorrendo o uso de denominações baseadas apenas nas sensações auditivas e vibrações corporais( 88. Pacheco COLC, Marçal M, Pinho SMR. Registro e cobertura: arte e ciência no canto. Rev CEFAC. 2004;6(4):429-35. ). Deste modo, a associação da análise acústica à análise perceptivo-auditiva na descrição/identificação da qualidade vocal pode agregar-se como um recurso complementar a essa prática.

No presente estudo, os valores de F0 obtidos pelas cantoras de ambos os grupos são semelhantes aos valores de referência( 99. Santos CC, Mituuti CT, Berretin-Felix G, Teles LCS. Características da fonetografia em mulheres com equilíbrio dentofacial. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(4):584-8. , 1010. Felippe ACN, Grillo MHMM, Grechi TH. Normatização de medidas acústicas para vozes normais. Rev Bras Otorrinolaringol. 2006;72(5):659-64. ), o que permite afirmar que a qualidade vocal metálica não pode ser considerada como um padrão vocal de F0 elevada. Contudo, a sensação de pitch agudo atribuído a ela se dá pelo aumento das frequências e amplitudes dos formantes( 22. Hanayama EM, Camargo ZA, Tsuji DH, Pinho SMR. Metallic voice: physiological and acoustic features. J Voice. 2009;23(1):62-70. ).

Quanto aos valores de FF, com a exceção de F1, todos os formantes em TH encontraram-se mais elevados nas vozes metálicas. É possível relacionar esse evento ao ajuste de encurtamento de trato vocal, ou seja, um trato vocal em menor tamanho resultaria em FFs maiores quando comparado a um trato vocal mais longo( 55. Camardo ZA, Madureira S. Dimensões perceptivas das alterações de qualidade vocal e suas correlações aos planos da acústica e da fisiologia. DELTA. 2009;25(2):285-317. ). Fisiologicamente, esse encurtamento de trato vocal resultaria da elevação laríngea e da hipertonicidade dos músculos constritores faríngeos, ajustes estes associados à produção da voz metálica( 11. Boone DlR, McFarlane SC. A voz e a terapia vocal. 5ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994. , 22. Hanayama EM, Camargo ZA, Tsuji DH, Pinho SMR. Metallic voice: physiological and acoustic features. J Voice. 2009;23(1):62-70. ).

Dentre esses valores, F2 do GE ficou acima do valor de referência, que é de 2.062 Hz( 1111. Monteiro MC. Uma análise computadorizada espectrográfica dos formantes das vogais orais do Português Brasileiro falado em São Paulo [monografia]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 1995. ). Esse aumento de F2 foi relacionado à produção da voz em modo metálico por estudo que investigou os ajustes fisiológicos relacionados a ela( 22. Hanayama EM, Camargo ZA, Tsuji DH, Pinho SMR. Metallic voice: physiological and acoustic features. J Voice. 2009;23(1):62-70. ). Sabe-se que tal formante é variável conforme o posicionamento da língua na cavidade oral, mais precisamente no que se refere à modificação de seu corpo e ao seu posicionamento no sentido anteroposterior( 55. Camardo ZA, Madureira S. Dimensões perceptivas das alterações de qualidade vocal e suas correlações aos planos da acústica e da fisiologia. DELTA. 2009;25(2):285-317. , 77. Lindblom BE, Sundberg JE. Acoustical consequences of lip, tongue, jaw, and larynx movement. J Acoust Soc Am. 1971;50(4):1166-79. ). Possivelmente, os ajustes musculares que levaram a esse aumento de frequência são provenientes da anteriorização e elevação do dorso da língua, semelhante ao movimento que ocorre na produção da vogal /i/. Tal movimento lingual, além do ajuste de estiramento dos lábios em sorriso, é utilizado na prática do canto para se buscar a metalização da voz e foi referido pela literatura como um ajuste presente nessa qualidade vocal( 33. Pinho SMR. Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1998. ). No entanto, para que tal hipótese pudesse ser confirmada, seria necessária a realização de exames radiológicos/de imagem complementares.

Nas emissões em tons pré-determinados, somente F3 e F4 apresentaram valores maiores para essa qualidade vocal. Esses formantes sofrem modificações relacionadas à dimensão da cavidade do trato vocal, cuja diminuição implicaria em frequências aumentadas( 77. Lindblom BE, Sundberg JE. Acoustical consequences of lip, tongue, jaw, and larynx movement. J Acoust Soc Am. 1971;50(4):1166-79. , 1212. Sundberg J. Articulatory interpretation of the "singing formant". J Acoust Soc Am. 1974;55(4):838-44. ). Nesse caso, os ajustes de trato vocal empregados pelo GE durante a emissão do tom grave e agudo possivelmente implicaram em uma dimensão de trato vocal menor quando comparados ao GC.

CONCLUSÃO

A partir da avaliação acústica vocal, pode-se concluir que cantoras amadoras com qualidade vocal metálica apresentam F0 dentro dos padrões de normalidade. No entanto, apresentam valores da frequência dos formantes F2, F3 e F4 aumentados em relação às cantoras amadoras com qualidade vocal não metálica. O formante F2 parece ser o mais relacionado à qualidade vocal metálica, já que os valores médios apresentados pelo GE são superiores aos valores médios apontados pela literatura.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo apoio concedido para a realização desta pesquisa, sob o processo número 158639/2012-0.

REFERENCES

  • 1
    Boone DlR, McFarlane SC. A voz e a terapia vocal. 5ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994.
  • 2
    Hanayama EM, Camargo ZA, Tsuji DH, Pinho SMR. Metallic voice: physiological and acoustic features. J Voice. 2009;23(1):62-70.
  • 3
    Pinho SMR. Fundamentos em Fonoaudiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1998.
  • 4
    Laver J. Principles of phonetics. New York: Cambridge University Press; 1994.
  • 5
    Camardo ZA, Madureira S. Dimensões perceptivas das alterações de qualidade vocal e suas correlações aos planos da acústica e da fisiologia. DELTA. 2009;25(2):285-317.
  • 6
    Kent RD. Vocal tract acoustics. J Voice. 1993;7(2):97-117.
  • 7
    Lindblom BE, Sundberg JE. Acoustical consequences of lip, tongue, jaw, and larynx movement. J Acoust Soc Am. 1971;50(4):1166-79.
  • 8
    Pacheco COLC, Marçal M, Pinho SMR. Registro e cobertura: arte e ciência no canto. Rev CEFAC. 2004;6(4):429-35.
  • 9
    Santos CC, Mituuti CT, Berretin-Felix G, Teles LCS. Características da fonetografia em mulheres com equilíbrio dentofacial. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(4):584-8.
  • 10
    Felippe ACN, Grillo MHMM, Grechi TH. Normatização de medidas acústicas para vozes normais. Rev Bras Otorrinolaringol. 2006;72(5):659-64.
  • 11
    Monteiro MC. Uma análise computadorizada espectrográfica dos formantes das vogais orais do Português Brasileiro falado em São Paulo [monografia]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 1995.
  • 12
    Sundberg J. Articulatory interpretation of the "singing formant". J Acoust Soc Am. 1974;55(4):838-44.
  • Trabalho realizado no Programa de Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação, Universidade Tuiutí do Paraná - UTP - Curitiba (PR), Brasil.
  • Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
  • *
    CBXF foi responsável pelo projeto, coleta, tabulação dos dados e elaboração do manuscrito; APDL supervisionou a análise dos dados e colaborou com a elaboração do manuscrito; RSS foi responsável pela orientação geral do estudo; MOR foi responsável pela orientação das etapas de execução e colaborou com a análise dos dados; JMM foi responsável pela análise dos dados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2015

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2014
  • Aceito
    12 Nov 2014
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