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Adaptação Cultural da Escala de Qualidade de Vida Familiar (Family Quality of Life Scale) para o Português Brasileiro

RESUMO

Objetivo

Adaptar culturalmente a Escala de Qualidade de Vida Familiar (Family Quality of Life Scale - FQOLS) para a versão em Português Brasileiro (PB), avaliar a confiabilidade do instrumento e a qualidade de vida familiar (QVF) das famílias que possuem filhos com deficiência auditiva.

Métodos:

O processo de adaptação cultural da escala seguiu os passos doGuidelines for the Process of Cross-Cultural Adaptation of Self-Report Measure. Realizada em três momentos: tradução, retrotradução e aplicação na amostra piloto como forma de verificar dificuldades de compreensão dos itens. Quando finalizada foi aplicada em 41 famílias que possuem filhos com deficiência auditiva e, com os seus resultados, foram analisadas a qualidade de vida (QV) e a confiabilidade, a partir do teste estatístico alfa de Cronbach (α).

Resultados:

Na primeira versão (tradução), dentre os 25 itens presentes, apenas em 4 houve divergências entre as tradutoras; após as correções, houve a segunda versão (retrotradução), em que foram identificadas mais 4 divergências. Por fim, após as correções finais, a última versão foi elaborada e usada na amostra piloto sem divergências, e, dessa forma, foi aplicada nas famílias de filhos surdos, as quais se consideraram satisfeitas em relação à QV. Com o teste alfa de Cronbach (α) foi verificado que a escala tem confiabilidade satisfatória.

Conclusão:

A versão em PB da FQOLS é um instrumento de fácil aplicação e com confiabilidade satisfatória. As famílias estão satisfeitas com sua QVF.

Descritores:
Qualidade de Vida; Surdez; Relações Familiares; Auxiliares de Audição; Perda Auditiva

ABSTRACT

Purpose

To culturally adapt the Family Quality of Life Scale to the Brazilian Portuguese version and evaluate the instrument reliability and family quality of life of those who have children with hearing loss.

Methods

The process of cultural adaptation of the scale followed the steps of the Guidelines for the Process of Cross-Cultural Adaptation of Self-Report Measure. It was conducted in three stages: translation, back translation, and application in a pilot sample, as a way to check the comprehension difficulties of the items. After it had been completed, it was administered to 41 families who have children with hearing loss and, with their results, the quality of life and reliability were analyzed based on the Cronbach's alpha statistical test.

Results

In the first version (translation), among the 25 items, there were differences between the translators only in four items; after the corrections, the second version was done (back translation), in which other four more differences were found. Finally, after the final corrections, the last version was developed and used in the pilot sample without differences. Thus, it was applied to families with deaf children, who believe to be satisfied as to their quality of life. The Cronbach's alpha test found that the scale shows a satisfactory reliability.

Conclusion

The Brazilian Portuguese version of the Family Quality of Life Scale is a tool of easy use and satisfactory reliability. The families are satisfied with their family quality of life.

Keywords:
Quality of Life; Deafness; Family Relations; Hearing Aids; Hearing Loss

INTRODUÇÃO

Nos tempos atuais, estudiosos estão focando os seus olhares para o tema qualidade de vida (QV)11. Zerbeto AB, Chun RYS. Qualidade de vida dos cuidadores de crianças e adolescentes com alterações de fala e linguagem. CoDAS. 2013;25(2):128-34. 22. Kumar R, Warner-Czyz A, Silver CH, Loy B, Tobey E. American Parent Perspectives on Quality of Life in Pediatric Cochlear Implant Recipients. Ear Hear. 2015;36(2):269-78., que está, a cada ano, promovendo não só a sua possibilidade, mas também sendo o objetivo de vida de muitos indivíduos.

No entanto, mais que a QV pessoal/individual, as pesquisas atuais abrangem os olhares para as famílias. A extensão da QV individual para a familiar surgiu pela necessidade da compreensão da dinâmica familiar que influencia diretamente a vida de cada indivíduo que a contempla, principalmente quando existe na família um indivíduo com deficiência, como, por exemplo, a surdez33. Luterman DM. Counseling the Communicatively Disordered and their Families. Austin: Pro-ED; 1991. 44. Iervolino SMS, Castiglioni M, Almeida K. Orientação e o Aconselhamento no Processo de Reabilitação Auditiva In: Almeida K, Iorio MCM. Próteses Auditivas Fundamentos Teóricos e Aplicações Clínicas. 2 ed. São Paulo: Lovise; 2003..

As principais características identificadas para conceituar e medir a QV dos indivíduos incluem: sentimentos de bem-estar em geral, sentimentos de participação social positiva e oportunidades para alcançar o potencial pessoal55. Turnbull HR, Turnbull AP, Wehmeyer M, Park J. A quality of life framework for special education outcomes. Rem Spec Ed. 2003;24(2):67-74. 66. Whoqol Group. The development of the World Health Organization quality of life assessment instrument (the WHOQOL). In: Orley J, Kuyken W, editors. Quality of life assessment international perspectives. Heigelberg: Springer Verlag; 1994. p. 41-60.. No entanto, essas características apontam a QV individual. Para qualidade de vida familiar (QVF), o conceito central depende se as necessidades especiais de cada membro estão sendo atendidas, uma vez que passam o tempo juntos e dedicam-se uns aos outros. Há ainda as influências da interação entre os aspectos que representam áreas da vida familiar, como interação familiar, cuidado dos pais com os filhos, bem-estar emocional, recursos e apoio77. Zuna NI, Selig JP, Summers JA, Turnbull AP. Confirmatory Factor Analysis of a Family Quality of Life Scale for Families of Kindergarten Children Without Disabilities J Early Intervent. 2009;31(2):111-25. 88. Park J, Hoffman L, Marquis J, Turnbull AP, Poston D, Mannan H. Toward assessing family outcome of service delivery: Validation of a family quality of life survey. J Intellect Disabil Res. 2003;47(4/5):367-84. 99. Poston D, Turnbull AP, Park J. Mannan H, Marquis J, Wang M. Family quality of life outcomes: A qualitative inquiry launching a long-term research program. Mental Retardation. 2003;41(5):313-28..

A QVF torna-se de fundamental importância, principalmente quando os serviços realizam intervenção precoce e necessitam trabalhar diretamente com a família1010. Wang M, Roy Brown R. Family Quality of Life: A Framework for Policy and Social Service Provisions to Support Families of Children With Disabilities J Family Social Work. 2009;12(2):144-67., como, por exemplo, no diagnóstico da surdez, pois a orientação e o acolhimento são as ferramentas para o suporte familiar.

O suporte familiar é de extrema importância, pois é a família que ampara seus membros nos aspectos físico, emocional e social, e principalmente no esclarecimento do que é mais adequado para seu crescimento, cabendo-lhe a responsabilidade de lhes proporcionar QV. A harmonia e o equilíbrio das pessoas no seio familiar são o eixo para a sua dinâmica1111. Negrelli MED, Marcon SS. Família e Criança Surda. Ciênc Cuid Saud. 2006;5(1):98-107..

A dinâmica das famílias pode ser afetada com a descoberta da surdez de um filho e tal fato pode instaurar uma crise, gerando conflitos entre os pais e/ou outros membros do núcleo familiar, alterando, em consequência, sua QVF33. Luterman DM. Counseling the Communicatively Disordered and their Families. Austin: Pro-ED; 1991. 44. Iervolino SMS, Castiglioni M, Almeida K. Orientação e o Aconselhamento no Processo de Reabilitação Auditiva In: Almeida K, Iorio MCM. Próteses Auditivas Fundamentos Teóricos e Aplicações Clínicas. 2 ed. São Paulo: Lovise; 2003..

O modo como as famílias que têm filhos surdos possuem a sua dinâmica é o ponto crucial para o desenvolvimento da criança, por isso os pesquisadores passaram a se interessar por essa dinâmica, pelo modo como enfrentavam o diagnóstico e seu ajustamento à nova realidade. Para obter esses resultados, como não existia instrumento que avaliava a família em geral, aplicavam aos pais ou apenas às mães, para verificar o nível de estresse e os aspectos facilitadores que reduzem o estresse e facilitam o enfrentamento do diagnóstico que interferem diretamente na QV individual e familiar1212. Hintermair M. Parental resources, parental stress, and socioemotional development of deaf and hard of hearing children. J Deaf Stud Deaf Educ2006;11(4):493-513. 1313. Zaidman-Zait A. Parenting a child with a cochlear implant: a critical incident study. J Deaf Stud Deaf Educ 2007;12(2):221-41..

Para preencher a lacuna da falta de instrumentos que avaliam a QVF, pesquisadores1414. Hoffman L, Marquis J, Poston D, Summers JA, Turnbull A. Assessing family outcomes: Psychometric evaluation of the Beach Center Family Quality of Life Scale. J Marriage and Family. 2006;(4):1069-83. elaboraram uma escala denominada Family Quality of Life Scale (FQOLS),com o objetivo de avaliar a QV em famílias que possuem filhos com diversas deficiências (por exemplo, deficiência intelectual, autismo, deficiência auditiva, entre outros) e auxiliar os profissionais da saúde. Tal elaboração passou por modificações até ser finalizada em 25 itens, com 5 domínios (interação familiar, relação dos pais com os filhos, bem-estar emocional, bem-estar físico/material e apoio relacionado à deficiência), e com 5 tipos de respostas para satisfação (1=corresponde a muito insatisfeito, 2=insatisfeito, 3=nem satisfeito, nem insatisfeito, 4=satisfeito, e 5=muito satisfeito).

No Brasil não existe nenhum instrumento que possua tal abrangência e mensure os mesmos aspectos dessa escala. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi adaptar culturalmente a Escala de Qualidade de Vida Familiar, denominada Family Quality Of Life Scale (FQOLS), para a versão em Português Brasileiro (PB), avaliar a confiabilidade do instrumento, aplicá-lo em famílias com filhos deficientes auditivos e avaliar a QVF dessas famílias.

MÉTODOS

Este estudo foi realizado no Ambulatório de Audiologia Educacional do Departamento de Otorrinolaringologia da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (ISCMSP) e teve início após a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos, Projeto nº 333/09. Todos os sujeitos concordaram em participar do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Participantes

Participaram deste estudo 41 pais de crianças com perda auditiva sensório-neural. Estabeleceram-se como critérios de inclusão pais cuja(s) criança(s) tivesse(m) até 10 anos e cujo grau de deficiência auditiva sensório-neural fosse severo ou profundo. Foram excluídos pais com filhos deficientes auditivos com múltiplas deficiências.

Instrumento

O instrumento utilizado na realização deste estudo foi a FQOLS1414. Hoffman L, Marquis J, Poston D, Summers JA, Turnbull A. Assessing family outcomes: Psychometric evaluation of the Beach Center Family Quality of Life Scale. J Marriage and Family. 2006;(4):1069-83., uma escala padronizada. A FQOLS foi desenvolvida com base em um projeto de investigação realizado nos Estados Unidos e centrado na busca do aumento da QV das famílias que possuem filhos com patologias em geral.

Essa escala é organizada em 5 domínios: interação familiar (com 6 itens), cuidados dos pais com os filhos (com 6 itens), bem-estar emocional (com 4 itens), bem-estar físico/material (com 5 itens) e apoio ao deficiente (com 4 itens), totalizando 25 itens. As respostas variam em cinco níveis: 1=muito insatisfeito, 2=insatisfeito, 3=nem satisfeito, nem insatisfeito, 4=satisfeito, 5=muito satisfeito. A pontuação total é obtida por meio da soma de todos os itens, variando de 25 a 125.

Inicialmente, antes da aplicação da escala, foi utilizada a Ficha de Perfil da Famíliapara a caracterização da família com perguntas sobre idade do responsável, grau de escolaridade, profissão, salário, núcleo familiar residente na mesma casa, escolaridade e idade da criança, tipo de escola e se usa aparelho de amplificação sonora individual (AASI) ou implante coclear (IC).

Procedimentos

O estudo foi desenvolvido em duas fases: na primeira fase, foram realizadas a autorização, a tradução e a adaptação cultural da FQOLS, estudo-piloto; na segunda, aplicaram-se a Ficha de Perfil da Família e a FQOLS.

Primeira fase

Autorização

a adaptação e a publicação da escala em português falado no Brasil foram autorizadas pelos responsáveis no Beach Center (Jean Ann Summers, Universidade de Kansas).

Adaptação cultural

a adaptação cultural foi realizada a partir dos estágios recomendados por Beaton et al.1515. Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the Process of Cross-Cultural Adaptation of Self-Report Measure. Spine. 2000;25(24) :3186-91.(Figura 1). Trabalhando independentemente, duas tradutoras - a pesquisadora e a coorientadora deste artigo - realizaram a tradução do texto para o português. Quando cotejadas as duas versões (tradução) (T1 e T2), fizeram-se as adequações cabíveis, e o resultado foi a versão T3. Para verificar se os termos estavam adequados, a versão T3 foi retrotraduzida para o inglês por uma estadunidense e uma brasileira, ambas bilíngues e professoras de inglês, com experiência em traduções de assuntos fonoaudiológicos, que não haviam participado dos estágios anteriores. O resultado foi novamente avaliado pelas pesquisadoras e, quando necessário, as sentenças foram reescritas em português, compondo a versão final T4 (Anexo 1).

Figura 1:
Gráfico de representação de estágios para adaptação e validação cultural (Beaton et al. 1515. Beaton DE, Bombardier C, Guillemin F, Ferraz MB. Guidelines for the Process of Cross-Cultural Adaptation of Self-Report Measure. Spine. 2000;25(24) :3186-91.

Estudo-piloto

a última versão (T4) foi aplicada (estudo-piloto) a um grupo de cinco sujeitos, para testar a compatibilidade das sentenças; com isso, essa versão se mostrou perfeitamente aplicável.

Segunda fase

Aplicação da escala

o estudo-piloto demonstrou que a última versão é perfeitamente aplicável. A segunda fase da pesquisa foi a aplicação da Ficha de Perfil da Família e da escala em 41 pais de crianças com perda auditiva sensório-neural. As entrevistas foram realizadas com a pesquisadora lendo os itens aos pais, enquanto os filhos estavam em terapia fonoaudiológica ou durante os acompanhamentos periódicos.

Para verificar o grau de confiabilidade do instrumento, em termos de consistência interna dos valores observados, aplicou-se o teste de estatística alfa de Cronbach(α), com variação entre 0,000 e 1,000 e os limites de confiabilidade:

  • • 0,000 a 0,5000 (exclusive ) - insatisfatória;

  • • 0,5000 (inclusive ) a 0,7000 (exclusive ) - satisfatória;

  • • 0,7000 (inclusive ) a 1,000 - alta.

RESULTADOS

A escala passou por duas traduções, chegou-se à primeira versão/adaptação, depois à retrotradução e, por fim, à segunda revisão/final.

Na primeira versão, dentre os 25 itens, apenas em 4 provocaram divergências entre as tradutoras (Quadro 1):

  • • se usaria criança ou filho, optando por filho;

  • • se usaria apoio ou suporte, optando por apoio;

  • • se usaria atingir ou buscar, optando por buscar;

  • • se usaria em casa ou ambiente familiar, optando por ambiente familiar.

Quadro 1:
Divergências na formação da adaptação

Após a primeira versão, procedeu-se à retrotradução por duas tradutoras, que divergiram apenas quanto a um item: se usariam o termo "aprender" ou "se tornar", optando pelo "se tornar".

Com tais alterações, elaborou-se a versão final e com esta foi realizado um estudo-piloto com cinco mães, para verificar se as frases eram compreensíveis.

No estudo-piloto foram entrevistadas as famílias que tinham filhos ouvintes e sem nenhuma patologia associada. Durante as entrevistas, as mães não tiveram dúvidas quanto aos itens; com isso, deu-se continuidade ao estudo, com a aplicação da escala nas famílias que possuem filhos surdos.

Para avaliar a confiabilidade do instrumento estudado, aplicou-se o teste de estatística alfa de Cronbach, alcançando-se o resultado de α=0,663; com isso, pode-se afirmar que a confiabilidade da escala é satisfatória.

A versão final da escala foi aplicada em 41 pais de filhos com perda auditiva, os pais também não tiveram dúvidas quanto aos itens e responderam o quanto estavam satisfeitos com cada item.

Dos pais entrevistados (41), 83% eram mães, e 17%, pais; 56% não trabalhavam, e 44% trabalhavam; 17,1% ou não concluíram ou estavam cursando o ensino fundamental, e 22% o completaram; 9,8% ou não concluíram ou estavam cursando o ensino médio, e 41,5% o completaram; 4,9% estavam cursando ou não completaram o ensino superior, e 4,9% o completaram.

Quanto à renda familiar, a amostra era heterogênea, com uma grande concentração de um e meio salários mínimos, seguida de um e de três salários mínimos.

Quanto ao núcleo familiar, encontraram-se as seguintes estruturas e concentrações: mãe, pai e filho em 14 famílias (34%); mãe, pai e filhos em 13 famílias (32%); mãe, pai, filho(s) e parentes em 9 famílias (22%); mãe e filho em 5 famílias (12%).

As crianças estudavam majoritariamente em escola regular (51%), com 22% em escola especial, 20% que não frequentavam a escola, por terem menos que 3 anos, e 7% que estavam em creche.

Ao medir o nível de QVF em cada domínio da escala e o geral, observaram-se diferenças, em que o menor nível de satisfação é o do domínio bem-estar emocional, seguido, respectivamente, por apoio relacionado ao deficiente, bem-estar físico/material e relação dos pais com os filhos, e a maior satisfação é para o domínio interação familiar (Tabela 1).

Tabela 1:
Nível de qualidade de vida por domínio e total

DISCUSSÃO

O primeiro aspecto a ser salientado no estudo é a escolha e adaptação do instrumento. A QVF, de forma holística abrangente, é um tema pouco estudado, devido a sua complexidade, principalmente na tentativa de compreender a dinâmica e a subjetividade de cada família1616. Samuel PS, Rillotta F, Brown I. Review: The development of family quality of life concepts and measures. J Intellect Dis Res. 2012;56(1):1-16.. E como a família é fundamental para o processo de reabilitação auditiva, é de extrema importância o nosso aprofundamento nesse tema, utilizando instrumentos que nos fornecem uma base por onde devemos seguir em nosso acolhimento.

A tradução e a adaptação cultural da escala para o PB não foram uma tarefa árdua, pois os itens originais se mostravam bastante pertinentes e durante as traduções as interpretações dúbias foram poucas (quatro), relacionando principalmente sinônimos.

Como a escala possui itens gerais sobre as famílias com filhos com deficiência, ela pode ser usada para múltiplas deficiências, e pelo fato de os itens serem especificamente quanto a interação familiar, relação pais e filhos, bem-estar emocional, físico e material e relacionamento da família com os prestadores de serviço, ela foi altamente aceitável para os deficientes auditivos.

O segundo aspecto é a maneira como foi aplicado o instrumento, a versão original foi enviada via correio às famílias, e nesta pesquisa a pesquisadora entrevistou os pais separadamente, lendo para eles cada item, enquanto os filhos estavam sendo atendidos no serviço (todos os itens foram respondidos, não existindo omissões).

Comparando a escala aplicada neste trabalho com a original, encontramos confiabilidade (avaliada por meio do alfa de Cronbach), respectivamente, satisfatória e alta1414. Hoffman L, Marquis J, Poston D, Summers JA, Turnbull A. Assessing family outcomes: Psychometric evaluation of the Beach Center Family Quality of Life Scale. J Marriage and Family. 2006;(4):1069-83., diferença que pode ser imputada ao tamanho da amostra à qual aplicamos a escala, menor que a do trabalho original, e à heterogeneidade de respostas dos pais, por ficarem na dúvida em responder o nível de satisfação.

Dessa maneira, ao analisarmos os valores de alfa das duas versões da escala, podemos concluir que o coeficiente obtido na versão traduzida foi similar ao da versão original, quando referimos que possuem valores satisfatórios, apresentando, assim, boa confiabilidade para a sua reprodutibilidade.

O terceiro aspecto a mencionar é o perfil familiar do estudo, as famílias que participaram do estudo são as que procuraram ser atendidas em um hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), fosse por razões financeiras, fosse por se tratar de um hospital de referência na área. Portanto, o perfil traçado para essas famílias é de que a maioria tem renda mensal de um salário mínimo e meio, concluiu o ensino médio e não trabalha; achados diferentes de outro estudo1717. Jackson CW, Wegner JR, Turnbull AP. Family Quality of Life Following Early Identification of Deafness. Lang Speech Hear Serv Sch. 2010;41:194-205., em que a maioria tem curso superior completo, trabalha e tem renda consideravelmente maior.

A maioria das famílias também possui como estrutura familiar mãe, pai e filho(s), demonstrando a estrutura tradicional de família e a existência de separação de papéis, como mães que deixam de trabalhar para cuidar de seus filhos, neste caso com deficiência auditiva, e pais que vão trabalhar.

O quarto aspecto a ser discutido é o nível de satisfação para cada domínio da escala, a qual registra que a maior satisfação é a interação familiar e que o menor grau de satisfação está vinculado ao bem-estar emocional1212. Hintermair M. Parental resources, parental stress, and socioemotional development of deaf and hard of hearing children. J Deaf Stud Deaf Educ2006;11(4):493-513. 1717. Jackson CW, Wegner JR, Turnbull AP. Family Quality of Life Following Early Identification of Deafness. Lang Speech Hear Serv Sch. 2010;41:194-205. 1818. Bittencourt ZZLC, Hoehne EL. Qualidade de vida de familiares de pessoas surdas atendidas em um centro de reabilitação. Ciênc Saúde Coletiva. 2009;14(4):1235-9. 1919. Summers JA, Marquis J, Mannan H, Turnbull AP, Fleming K, Poston DJ, et al. Relationship of perceived adequacy of services, family-professional partnerships, and family quality of life in early childhood service programs. International J Dev Disabil Educ. 2007;54:319-38..

O domínio interação familiar aborda itens sobre o apoio que cada membro familiar oferece ao outro, os itens englobam o tempo que a família passa junta, a abertura que possuem um com o outro para conversa, as resoluções de problemas em conjunto, o apoio familiar para atingir os objetivos pessoais, a demonstração de afeto e a maneira que lidam com os altos e baixos da vida, e inferimos que esse domínio teve maior índice de satisfação exatamente pela presença de uma criança surda. Pois tal domínio está relacionado à comunicação entre os familiares, e neste quesito o desejo de conseguir se comunicar com a criança, de se fazer entender e compreender o desejo do outro é de extrema importância, favorecendo a comunicação entre os próprios familiares e entre os familiares e a criança.

No momento da entrevista, ao aplicarmos a FQOLS, notamos que, quando abordávamos principalmente os itens de bem-estar emocional, os participantes nos confidenciavam pontos de sua vida que não haviam comentado com a terapeuta. Isso nos levou a supor que aquele era o momento em que eles paravam para analisar o que estava acontecendo em sua vida.

Depois do bem-estar emocional, o menor índice de satisfação foi registrado para o apoio ao deficiente, tema muito discutido por estudiosos1717. Jackson CW, Wegner JR, Turnbull AP. Family Quality of Life Following Early Identification of Deafness. Lang Speech Hear Serv Sch. 2010;41:194-205. 1818. Bittencourt ZZLC, Hoehne EL. Qualidade de vida de familiares de pessoas surdas atendidas em um centro de reabilitação. Ciênc Saúde Coletiva. 2009;14(4):1235-9. 1919. Summers JA, Marquis J, Mannan H, Turnbull AP, Fleming K, Poston DJ, et al. Relationship of perceived adequacy of services, family-professional partnerships, and family quality of life in early childhood service programs. International J Dev Disabil Educ. 2007;54:319-38., pois é o domínio que aborda como os pais lidam com o dia a dia da surdez dos filhos. Quando eles não têm a possibilidade de frequentar um grupo de pais, não recebem aconselhamento e acolhimento ou mesmo não têm com quem conversar, com quem esclarecer suas dúvidas, possuindo pensamentos isolados, alimentando falsas crenças, há dificuldade tanto no desenvolvimento da criança quanto no da família1717. Jackson CW, Wegner JR, Turnbull AP. Family Quality of Life Following Early Identification of Deafness. Lang Speech Hear Serv Sch. 2010;41:194-205. 1919. Summers JA, Marquis J, Mannan H, Turnbull AP, Fleming K, Poston DJ, et al. Relationship of perceived adequacy of services, family-professional partnerships, and family quality of life in early childhood service programs. International J Dev Disabil Educ. 2007;54:319-38. 2020. Quittner AL, Barker DH, Cruz I, Snell C, Grimley ME, Botteri M; CDaCI Investigative Team. Parenting Stress among Parents of Deaf and Hearing Children: Associations with Language Delays and Behavior Problems. Parent Sci Pract. 2010;10(2):136-55. 2121. Calderon R, Low S. Early social-emotional, language and academic development in children with hearing loss: Families with and without fathers. Am Ann Deaf. 1998;143(4):347-62. 2222. Poon BT, Zaidman-Zait A. Social Support for Parents of Deaf Children: Moving Toward Contextualized Understanding. J Deaf Stud Deaf Educ 2014;19(2):176-88. 2323. Silva LSG, Gonçalves CGO. Processo de diagnóstico da surdez em crianças na percepção de familiares e gestores. Audiol Commun Res. 2013;18(4):293-302.

Os dados deste domínio (apoio ao deficiente) mostram que os pais não estão completamente envolvidos com a rotina do filho, o domínio inclui itens de: estimulação na escola, sobre a qual mães expressam sua insatisfação, pois referem que as escolas não dão a devida atenção aos seus filhos, como alfabetizar no tempo certo; estimulação no ambiente familiar, sobre a qual parte das mães também expressa insatisfação, por não ter tempo para se dedicar ao filho quando chega em casa; estimulação da família ao filho para fazer novos amigos, pois alguns pais não têm o hábito de sair para passear com os filhos; o envolvimento dos pais com os prestadores de serviço, único item em que a boa satisfação é unânime.

Durante a aplicação do instrumento, encontramos famílias que não participaram/aderiram ao tratamento, quer por não estarem envolvidas, (independentemente do estágio emocional sentido), quer, ainda, por razões ocupacionais (de trabalho), e, nesses casos, a satisfação também diminui, percebendo-se QVF menor, e quanto mais envolvida a família, maior a QVF, o que corrobora os resultados de outros autores2020. Quittner AL, Barker DH, Cruz I, Snell C, Grimley ME, Botteri M; CDaCI Investigative Team. Parenting Stress among Parents of Deaf and Hearing Children: Associations with Language Delays and Behavior Problems. Parent Sci Pract. 2010;10(2):136-55..

Neste estudo, apesar das particularidades das insatisfações dos domínios e de um perfil familiar diferenciado, as famílias se declararam satisfeitas com todas as áreas da vida familiar quando computamos a QVF geral, como observado em outras pesquisas1717. Jackson CW, Wegner JR, Turnbull AP. Family Quality of Life Following Early Identification of Deafness. Lang Speech Hear Serv Sch. 2010;41:194-205. 1818. Bittencourt ZZLC, Hoehne EL. Qualidade de vida de familiares de pessoas surdas atendidas em um centro de reabilitação. Ciênc Saúde Coletiva. 2009;14(4):1235-9..

Assim, acreditamos que a escolha dessa escala para avaliar a QVF com filhos surdos nos mostrou o processo de transformação dos papéis dentro da estrutura familiar em função da descoberta de um filho surdo.

No mundo atual, globalizado, pode parecer difícil mensurar a QVF, mas o conhecimento de informações geradas por meio de instrumentos como o que aplicamos neste estudo pode concorrer para que, coletivamente, nós, profissionais, logremos mapear os principais problemas dessas famílias e favorecer seu processo de ajustamento emocional, mapeando, ao mesmo tempo, novos modelos terapêuticos para famílias e crianças.

Apesar de as respostas a uma escala de QV parecerem subjetivas e de cada família fornecê-las em momentos diferentes de seu processo, elas nos ajudam a considerar imparcialmente as singularidades de cada caso, e os resultados são ferramentas importantes para o nosso trabalho de intervenção.

Sabemos que avaliar a QV é difícil principalmente porque aspectos relacionados a questões sociais e emocionais podem variar conforme o dia e mesmo o momento em que o instrumento é aplicado. No entanto, a QV é um fator primordial, e ignorá-la seria negligenciar etapas do desenvolvimento da criança, portanto acreditamos que a família é fundamental para seu desenvolvimento psicossocioemocional e de linguagem. Entre os diversos instrumentos capazes de mensurar a QV, escolhemos essa escala pela multiplicidade de aspectos que ela reúne.

O uso da FQOLS como ferramenta de avaliação da QVF com crianças surdas foi proveitoso e de grande valia, principalmente para nos guiar quanto ao acolhimento de cada família e entender suas decisões.

A QV é um tema cada vez mais abordado, e este estudo é apenas o começo para famílias com crianças surdas no Brasil. Entender os critérios relacionados à QV é fundamental para o desenvolvimento não só das crianças surdas, mas das famílias, e cabe a nós, profissionais, continuar estudando para compreender cada vez melhor toda a questão, aprofundando para melhorar o apoio às famílias e aumentar nosso conhecimento sobre os indicadores que facilitam a aceitação da surdez de um filho.

CONCLUSÃO

A escala FQOLS, versão em PB, mostrou-se um instrumento de fácil aplicação e com confiabilidade satisfatória.

As famílias estão satisfeitas com sua QV familiar.

O instrumento auxilia os profissionais da saúde a compreender melhor a dinâmica familiar, as fragilidades e as singularidades de cada família.

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  • 23. Silva LSG, Gonçalves CGO. Processo de diagnóstico da surdez em crianças na percepção de familiares e gestores. Audiol Commun Res. 2013;18(4):293-302.
  • 1
    Trabalho realizado no Setor de Fonoaudiologia, Departamento de Otorrinolaringologia, Faculdade de Ciências Médicas, Santa Casa de São Paulo - FCMSCSP - São Paulo (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

ANEXO 1: BEACH CENTER

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2014
  • Aceito
    01 Jun 2015
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