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Categorias enunciativas na descrição do funcionamento de linguagem de mães e bebês de um a quatro meses

RESUMO

Objetivo

apresentar categorias que expliquem o funcionamento de linguagem de um bebê com sua mãe a partir do conceito de sistema semiótico benvenisteano e verificar se tais categorias podem ser descritas numericamente.

Método

Quatro díades foram acompanhadas em três etapas. O primeiro estudo consistiu na análise qualitativa das filmagens transcritas, realizadas em cada uma das etapas. Pretendeu-se identificar os princípios enunciativos atrelados à relação do sistema semiótico corporal do bebê à linguagem materna, a saber, os princípios da interpretância e homologia. Outro estudo foi realizado por meio da análise numérica descritiva das categorias enunciativas identificadas e pela escala de comportamentos mãe-bebê, a partir da aplicação do Software ELAN (EUDICO Linguistic Anotador).

Resultados

Percebeu-se mutualidade mãe-bebê na maior parte das cenas analisadas. Identificaram-se, na homologia e na interpretância, categorias enunciativas produtivas que demonstram a relação demanda do bebê com a interpretação materna. Também foi possível utilizá-las para descrever numericamente as interações mãe-bebê. Além disso, outras categorias emergiram havendo mais subtipos de produções maternas que não estão diretamente relacionadas à demanda do bebê, demonstrando que este está exposto à linguagem de características heterogêneas.

Conclusão

O conceito de sistema semiótico permitiu propor categorias de funcionamento de linguagem identificáveis na relação mãe-bebê. Tais categorias puderam ser descritas numericamente.

Descritores:
Desenvolvimento da Linguagem; Desenvolvimento Infantil; Comportamento Materno; Avaliação da Linguagem; Detecção Precoce

ABSTRACT

Objective

To present categories which explain the language functioning between infants and their mothers from Benveniste’s concept of semiotic system, and verify whether such categories can be described numerically.

Method

Four mother-infant dyads were monitored in three stages. The first study consisted of a qualitative analysis of the transcribed video recordings conducted in each stage. We intended to identify the enunciative principles associated with the relationship between the semiotic system of the infant’s body and their mother’s language, namely, the principles of interpretancy and homology. The other study was conducted by means of a descriptive numerical analysis of the enunciative categories and the infant caregiver scale of behavior, using the ELAN software (EUDICO Linguistic Anotador).

Results

Mutuality in mother-infant interactions was observed in most of the scenes analyzed. Productive enunciative categories demonstrated in the infant’s demand/mother’s interpretation relation was identified in homology and interpretancy. It was also possible to use these categories to describe the mother-infant interactions numerically. In addition, other categories emerged because there are other subtypes of maternal productions not directly related to infant demand. This shows that infants are exposed to language of heterogeneous characteristics.

Conclusion

The concept of semiotic system allowed the proposition of language functioning categories identifiable in the mother-infant relationship. Such categories were described numerically.

Keywords:
Language Development; Child Development; Maternal Behavior; Language Assessment; Early Detection

INTRODUÇÃO

Vários estudos têm demonstrado a importância da relação entre o bebê e aquele que dele cuida, em especial aquele que faça a função materna ou cuidado de tipo materno como base para a constituição psíquica e linguística do bebê(11 Carlesso JPP, Souza APR, Moraes AB. Análise da relação entre depressão materna e indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Rev. CEFAC. 2014;16(2):500-10. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201418812.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620141...

2 Flores MR, Ramos-Souza AP. Diálogo de pais e bebês em situação de risco ao desenvolvimento. Rev CEFAC. 2014;16(3):840-52. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201411412.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620141...
-33 Oliveira LD, Ramos-Souza AP. O distúrbio de linguagem em dois sujeitos cm risco para o desenvolvimento em uma perspectiva enunciativa de funcionamento de linguagem. Rev. CEFAC. 2014;16(5):1700-12. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201410713.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620141...
). Especificamente em relação às manifestações iniciais do bebê e à linguagem dirigida a ele, há muitos estudos clássicos(44 Trevarthen C. The psychobiology of speech development. In: Lenneberg EH, editor. Language and brain: developmental aspects. Boston: Neurosciences Research Program; 1974. p. 570-585. (Neurosciences Research Program Bulletin, 12).

5 Fernald A. Four-month-old infants prefer to listen to motherese. Infant Behav Dev. 1985;8(2):181-95. http://dx.doi.org/10.1016/S0163-6383(85)80005-9.
http://dx.doi.org/10.1016/S0163-6383(85)...
-66 Fernald A, Kuhl P. Acoustic determinants of infant preference for motherese speech. Infant Behav Dev. 1987;10(3):279-93. http://dx.doi.org/10.1016/0163-6383(87)90017-8.
http://dx.doi.org/10.1016/0163-6383(87)9...
) e outros mais recentes ressaltando a importância do manhês como forma de sustentação subjetiva e linguística inicial do bebê(77 Laznik MC, Parlato-Oliveira E. Interações sonoras. In: Laznik MC, editor. A hora e a vez do bebê. 1. ed. São Paulo: Instituto Langage; 2013. p. 195-200.

8 Saint-Georges C, Chetouani M, Cassel R, Apicella F, Mahdhaoui A, Muratori F, et al. Motherese in interaction: at the cross-road of emotion and cognition? (a systematic review). PLoS One. 2013;8(10):e78103-78103. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0078103. PMid:24205112.
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-99 Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Saint-Georges C, Parlato E, Laznik MC, et al. Computadorized home video detection for motherese may help to study impaired interection between infants who become autistic and theier parents. Int J Methods Psychiatr Res. 2011;20(1):6-18. http://dx.doi.org/10.1002/mpr.332. PMid:21574205.
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).

Este estudo considera e busca ampliar o estudo de Silva(1010 Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas: Pontes Editores, 2009.) sobre o primeiro mecanismo enunciativo na aquisição da linguagem. A autora(1010 Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas: Pontes Editores, 2009.) afirma que a entrada do sujeito no simbólico da língua emerge quando o locutor se institui como sujeito enunciativo, constituindo e reconhecendo, ao mesmo tempo, o outro. A criança como locutor irá apontar o novo (estruturas enunciativas) para o já estabelecido (a língua), trazida pelo seu alocutário, o que permitirá sua instanciação enquanto sujeito linguístico-enunciativo. Considerando tais princípios, a autora propõe o primeiro mecanismo enunciativo caracterizado pelas relações de conjunção (eu-tu) e de disjunção (eu/tu) que são estratégias evidenciadas na passagem do preenchimento de lugar enunciativo partindo do outro para o reconhecimento do que esse lugar provoca no outro. Isso é evidenciado no bebê de um a quatro meses de idade. No entanto, a autora não aprofunda o estudo das estratégias enunciativas pertinentes a esse momento inaugural do desenvolvimento, visto que sua pesquisa inicia com uma criança em idade superior a 1 ano.

A pesquisa aqui relatada propôs-se a analisar as estratégias enunciativas presentes nas protoconversações iniciais mãe-bebê, nos primeiros quatro meses de vida do bebê, a partir da reflexão proporcionada pelo texto Semiologia da Linguagem de Benveniste(1111 Benveniste E. Semiologia da língua. In: Benveniste E. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes Editores; 2006. p. 43-67.), a partir do qual é possível propor que as manifestações corporais do bebê podem funcionar como um sistema semiótico não verbal que pede interpretância, por uma relação de homologia com o sistema verbal materno (ou de quem faça essa função), o que seria o mecanismo básico de inserção do bebê no funcionamento de linguagem e, portanto, no processo de aquisição da linguagem. A análise aqui oferecida busca oferecer categorias que permitam explicitar como se dá o acesso às relações entre forma e sentido na língua pelo bebê, por meio de sua inserção em rotinas significativas de linguagem com seu cuidador.

Considerando os pressupostos teóricos descritos, os objetivos deste artigo são apresentar categorias de linguagem que expliquem o funcionamento de linguagem inicial de um bebê com sua mãe (ou quem exerça este tipo de cuidado) propostas a partir do conceito de sistema semiótico proposto por Benveniste(1111 Benveniste E. Semiologia da língua. In: Benveniste E. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes Editores; 2006. p. 43-67.) e verificar se tais categorias podem ser descritas numericamente de modo a permitir estudos quantitativos futuros.

METODOLOGIA

Participaram deste estudo quatro famílias com seus bebês recém-nascidos. Os casais podiam ter outros filhos e ter escolaridade e nível socioeconômico variados, assim como as idades podiam variar. Porém deveriam coabitar e os bebês deveriam ter nascido a termo, sem complicações durante a gravidez, parto e pós-parto e não apresentar síndromes ou malformações. Entende-se que são participantes do estudo as famílias, pois foram realizadas filmagens em ambiente natural (em geral em casa), espaço no qual todos os membros da família estavam presentes, ainda que a mãe e o bebê fossem o foco principal de análise. O número de participantes se refere à totalidade das famílias que estavam disponíveis no período da coleta de dados, que se enquadravam nos critérios de inclusão no estudo e que aceitaram participar da pesquisa.

Na Tabela 1, são sintetizados os dados sociodemográficos dos participantes.

Tabela 1
Dados dos participantes

Tratou-se, portanto, de um estudo de caso coletivo(1212 Alves-Mazzotti AJ. Usos e abusos dos estudos de caso. Cadernos Pesquisa. 2006;36(129):637-51. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742006000300007.
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).

Em relação aos procedimentos de coleta, inicialmente, o projeto foi submetido à Comissão de Pesquisa do Hospital de uma cidade de porte médio do Rio Grande do Sul no qual os bebês e suas famílias seriam contatados para, a seguir, ser autorizado pelo comitê de ética em pesquisa (CEP) da universidade na qual se insere o programa de pós-graduação responsável pela Tese de doutorado que originou este artigo. O projeto de pesquisa foi aprovado no CEP sob número de CAAE 1154311.2.1.0000.5346. A coleta de dados iniciou entre os dias seis e onze de maio de 2013 na unidade de obstetrícia do referido hospital, na qual os familiares de cinco bebês que atendiam aos critérios de inclusão foram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Vinte dias após a alta hospitalar foi realizado o primeiro contato telefônico com as mulheres participantes e, nessa ocasião, uma delas referiu o seu constrangimento ao ser filmada, e declinou do aceite. Conforme previsto no estudo, a sua desistência foi aceita e permaneceram no estudo quatro famílias.

A amostra se deu por conveniência, porém as famílias participantes não foram escolhidas, a não ser pelos critérios já delimitados. A pesquisa abrangeu três etapas de coleta, tendo ocorrido a primeira entre 20 e 30 dias de vida dos bebês, a segunda entre 80 e 90 dias dos bebês, a terceira entre 110 e 120 dias, quando os bebês completaram quatro meses de idade. As coletas foram domiciliares, em dia e horário mais conveniente para a família. No primeiro encontro, foi realizada uma entrevista com a mãe sobre a experiência da maternidade e a amamentação. Também, a cada etapa da coleta, realizou-se uma filmagem da cena de amamentação, pelo menos cinco minutos antes do início da amamentação, finalizando-a cinco minutos depois.

As filmagens foram antecedidas de um rapport, ou seja, uma conversa informal com a família com a pretensão de familiarizar a todos com a câmera e com a presença da pesquisadora. A conversa incluía perguntas sobre o desenvolvimento do bebê, o cotidiano da família e quaisquer outros assuntos mencionados pelos familiares. A filmagem incluiu cenas da rotina familiar e, nas primeiras duas etapas da coleta, concentrou-se na cena de amamentação. Por essa razão, a pesquisadora buscou agendar a visita em um horário que coincidisse com a amamentação do bebê.

Durante o rapport, a mãe era informada de que qualquer atividade com o seu bebê poderia ser filmada e que, portanto, ela poderia fazer o que estava habituada, não necessariamente amamentar. Além disso, mesmo a pesquisa tendo enfoque em aspectos da linguagem, as mães não foram orientadas a interagir de modo especial ou a falar com seus bebês. Nesta proposta, a vantagem é de que as relações familiares mostram mãe e bebê em seu meio natural e em condições de vida cotidiana, e não inviabilizariam a análise por protocolos que permitissem perceber as interações mãe-bebê organizadas para uma análise de filmes familiares, como o proposto por Saint-Georges et al.(1313 Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Laznik MC, Apicella F, et al. Do parents recognize autistic deviant behavior long before diagnosis? Taking into account interaction using computational methods. PLoS One. 2011;6(7):e22393-22393. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0022393. PMid:21818320.
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). Ainda assim, não foi desconsiderado para fins de análise, a inevitável artificialidade imposta pela câmera e pela presença da pesquisadora.

Para efetivar essa análise, por meio da busca de evidências nos dados dos referidos princípios, as filmagens foram transcritas, considerando que a transcrição linguística decorre tanto da instância enunciativa em que o dado é produzido (no momento da entrevista e da filmagem), quanto do momento da transcrição, que também é produto de enunciação(1414 Surreaux LM, Deus VF. A especificidade da transcrição com base enunciativa na clínica fonoaudiológica. Verba Volant. 2010;1(1):110-20.).

Para análise de dados, foram pensados dois estudos. O primeiro estudo consistiu na análise qualitativa das transcrições para a identificação de aspectos relacionados aos princípios enunciativos atrelados à relação do sistema semiótico corporal do bebê à linguagem materna, a saber, os princípios da interpretância e homologia, bem como categorias relativas à linguagem materna dirigida ao bebê e manifestações comunicativas do bebê, que emergiram no momento da análise. Já o segundo estudo foi realizado por meio de dois procedimentos: a análise numérica descritiva das categorias enunciativas identificadas e a escala de Saint-Georges et al.(1313 Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Laznik MC, Apicella F, et al. Do parents recognize autistic deviant behavior long before diagnosis? Taking into account interaction using computational methods. PLoS One. 2011;6(7):e22393-22393. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0022393. PMid:21818320.
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). Esta foi utilizada com o intuito de analisar os bebês desta pesquisa comparativamente aos bebês típicos e autistas analisados pelos autores de modo a verificar se seu desenvolvimento estava a contento e também para observar alguns comportamentos que evidenciam a evolução no primeiro semestre, foco desta pesquisa.

A seguir são sintetizados os comportamentos propostos por Saint-Georges et al.(1313 Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Laznik MC, Apicella F, et al. Do parents recognize autistic deviant behavior long before diagnosis? Taking into account interaction using computational methods. PLoS One. 2011;6(7):e22393-22393. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0022393. PMid:21818320.
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):

  • Comportamentos Maternos:

  • Regulação - regula o comportamento infantil excitando ou acalmando, podendo ser verbal ou não verbal;

  • Toque - busca atenção da criança pelo toque;

  • Vocalização - estimula a criança requerendo a atenção dela para vocalizar ou nomear;

  • Gestos ou demonstração - busca a atenção da criança gesticulando ou mostrando um objeto.

  • Comportamentos infantis:

  • Com o objeto - orientação ao objeto - direciona seu olhar para um novo estímulo sensorial vindo de um objeto, segue a trajetória de um objeto, explora um objeto com suas mãos, boca e ações para senti-lo, olha o objeto ou ao redor, sorri para o objeto, encontra prazer e experiência física ou visual de satisfação com o objeto, busca objeto espontaneamente com movimentos intencionais.

  • Vocalizações - simples produzindo sons para as pessoas ou objetos, choro após um evento específico ou não.

  • Orientação às pessoas - direciona-se a um estímulo sensorial vindo de uma pessoa, acompanha com o olhar uma pessoa, toca a pessoa para sentir como ela é (mãos, boca...).

  • Receptividade a pessoas - olha para a face humana, sorri intencionalmente para uma pessoa, tem experiência de prazer/satisfação física ou visual com uma pessoa, sintonia (apresenta expressões congruentes para solicitações afetivas relacionadas ao humor do outro).

  • Buscando as pessoas - a criança busca contato com outra pessoa, solicita com gesto ou vocalização a atenção parental ou outra resposta.

  • Intersubjetividade - antecipa a intenção do outro por movimentos antecipatórios, gestos sociais comunicativos, fitar referencial para consultar ao familiar se pode ou não determinada ação em situação específica, muda seu olhar ou fitar em direção ao que o outro está fazendo, aceita convite do outro e isso dura pelo menos por 3 segundos, responde ao seu nome, imita a ação do outro após breve período (imitação retardada), aponta para pedido, declaração ou de modo compreensivo direcionando sua atenção para uma pessoa, para um objeto ou compartilhar experiência, mantém engajamento social com papel ativo para manter a interação em duas vias, vocaliza e mantém o turno, vocalizações com sentido.

Tais princípios e comportamentos foram identificados em 3 minutos de filmagem dos quatro bebês na primeira, segunda e terceira etapas. Esses minutos foram padronizados de modo a captar cenas em que o bebê e a mãe estivessem em interação face a face, podendo ter irmãos e outros familiares presentes na cena, já que não houve estruturação da cena de filmagem. Com base em tais elementos, uma análise estatística descritiva foi obtida para verificar a evolução dos bebês e trazer evidências numéricas descritivas para a presença dos princípios enunciativos atuantes no primeiro mecanismo enunciativo proposto por Silva(1010 Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas: Pontes Editores, 2009.).

A obtenção da estatística descritiva se deu por meio da aplicação do Software ELAN (EUDICO Linguistic Anotador)(1515 Max Planck Institute for PsycholinguisticsElan Eudico Linguistic AnotadorInternetGerman2014citado em 2014 Nov 2Disponível em: http://tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/
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), uma ferramenta de anotação que permite criar, editar, visualizar e procurar anotações para vídeo e dados de áudio. Tais comportamentos foram analisados nas etapas do estudo. A análise dos dados dos bebês foi realizada por duas fonoaudiólogas que estudaram a escala proposta por Saint-Georges et al.(1313 Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Laznik MC, Apicella F, et al. Do parents recognize autistic deviant behavior long before diagnosis? Taking into account interaction using computational methods. PLoS One. 2011;6(7):e22393-22393. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0022393. PMid:21818320.
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) e que se propuseram a identificar as categorias elencadas nela, durante três minutos em que fosse possível visualizar uma interação face a face da mãe com o bebê nos quatro casos. Os três minutos foram escolhidos por elas nos vídeos realizados pela pesquisadora, a partir desse critério de visualização da interação.

A seguir, a autora da tese, além de revisar as marcações realizadas, passou a analisar nos mesmos três minutos as relações de homologia, interpretância e demais categorias de fala que emergiram da análise, descrita nos resultados. Em caso de dúvida, na atribuição de categorias, a orientadora do trabalho foi mobilizada para a conferência da análise. Dessa análise, foram calculados valores totais e medianas por bebê e por etapa, bem como rodado o programa STATISTICA 9.0 para analisar se as categorias diferiam entre as etapas.

RESULTADOS

Em termos gerais, percebeu-se que havia mutualidade mãe-bebê na maior parte das cenas filmadas e observadas pela pesquisadora, ou seja, os bebês não estavam em risco psíquico o que pôde também ser observado nos comportamentos analisados a partir da escala de Saint-Georges et al.(1313 Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Laznik MC, Apicella F, et al. Do parents recognize autistic deviant behavior long before diagnosis? Taking into account interaction using computational methods. PLoS One. 2011;6(7):e22393-22393. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0022393. PMid:21818320.
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) que serão expostos na Tabela 2. É possível observar que os bebês tinham atenção e receptividade a pessoas, o que demonstra um comportamento típico de bebês sem risco em termos de evolução psíquica. Já as mães regulavam o comportamento de seus filhos, tocavam e vocalizavam para eles.

Tabela 2
Resumo dos quatro bebês quanto aos comportamentos da Escala Mãe-Bebê(1515 Max Planck Institute for PsycholinguisticsElan Eudico Linguistic AnotadorInternetGerman2014citado em 2014 Nov 2Disponível em: http://tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/
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)

As categorias de análise de linguagem encontradas, a partir da análise enunciativa, estão sintetizadas com exemplos de cenas das interações mãe-bebê por meio das quais foi possível identificá-las. A seguir, é apresentada uma tabela com o resumo descritivo das categorias nas três etapas investigadas, demonstrando que puderam ser evidenciadas numericamente.

Homologia Mãe-bebê - Homologia entre sistema semiótico verbal materno e sistema semiótico não verbal do bebê (gesto, choro, vocalização sem sentido). Ocorre nas situações em que a mãe fala com o bebê ou sobre o bebê a respeito de um gesto ou comportamento dele, estabelecendo uma correlação entre as partes do sistema semiótico corporal do bebê e sistema semiótico verbal da mãe. Como exemplo, pode-se citar a ocasião em que M4 repara que B4 está com as duas mãos em sua boca e diz: “Tu já tá comendo as mãos? Não pode ficar de mão de fora que ela já chupa tudo os dedos.” Nesta fala, a mãe fala primeiro com a bebê e depois sobre a bebê e, em ambos os casos há homologia mãe-bebê.

Interpretância - Atribuição de sentido pela mãe, via língua, às manifestações corporais do bebê. Ocorre quando a mãe atribui um sentido verbal ao comportamento do bebê, tal como ocorreu na cena em que M1 observa o interesse de B1 pela pesquisadora e diz: “Tá olhando pra tia? Tá olhando pra essa tia”. Teoricamente, prevê-se que ocorra conjuntamente com a homologia já que, possivelmente, a mãe atribua um comportamento partindo de manifestação do bebê. No entanto, ressalta-se que, em díades em que algo não vai bem, a mãe pode atribuir um sentido totalmente não sincronizado com a manifestação do bebê, o que implicaria na interpretância sem homologia.

Cabe ressaltar que se considerou que a interpretância esteve presente somente nos casos em que houve um gesto ou comportamento do bebê sendo traduzido pela mãe e isso exclui a interpretância das situações em que houve uma narrativa materna com homologia e sem demanda do bebê. É claro que ocorre a interpretação linguística entre o que a mãe faz e diz numa espécie de reforço entre sistema semiótico verbal e não verbal da mãe, mas essa análise foi alocada na categoria a seguir em razão de se considerar que tem outra dimensão teórica. Isso porque a interpretância aqui proposta incidiu apenas quando direcionada de modo sincrônico à demanda do bebê.

Narrativa Materna com gesto homólogo - Homologia entre sistema semiótico verbal e sistema semiótico não verbal maternos. Ocorre nas situações em que a mãe age na relação com o seu bebê e narra o que está fazendo, estabelecendo uma correlação entre parte do sistema semiótico corporal e parte do sistema semiótico verbal da mãe, por exemplo: “Vamo tenta dá uma tetiadinha, vamo?” M3 fala enquanto segura o bebê em seu colo e oferece o seio. “Toma o teu elefantão” M4 fala enquanto entrega o elefante de pelúcia para B4. Portanto, trata-se de um momento de exposição do bebê à língua(gem), e quando os gestos e as vocalizações da mãe se complementam, em relação de homologia, há pistas para o bebê sobre o sentido do que está sendo dito pela mãe. Ainda assim, compreende-se que há uma diferença da relação de homologia e interpretância estabelecidas sobre a demanda do bebê, pois ele pode ou não estar atento a essa fala. Hipotetiza-se que a chance de compreensão pelo bebê do que lhe é direcionado sobre sua demanda, considerando a teoria winnicottiana, é maior em termos integrativos, ou dito de outro modo, como possibilidade de comodalização perceptiva partindo do que propõe Golse(1616 Golse B. O autismo infantil, a intersubjetividade e a subjetivação entre as neurociências e a psicanálise. In: Marin IK, Aragão RO, editores. Do que fala o corpo do bebê. São Paulo: Escuta; 2013. p. 263-278.).

Fala com o bebê - Quando a mãe diz algo a seu bebê que não é acompanhado de um gesto seu reforçando, ou de uma interpretação de uma manifestação do bebê (homologia), e que pode ser com manhês ou sem manhês. Diferenciaram-se essas duas categorias tanto porque se achou importante demonstrar que a vocalização pode ser em manhês ou não, quanto ao fato de que o manhês pode aumentar ou decrescer nas distintas etapas evolutivas do bebê. Como exemplo, pode-se citar a cena de amamentação na primeira etapa, em que M1 fala sem manhês: “Ai filho, vem pra cá, tira a mão”. E na mesma cena, segundos depois, ela diz em manhês: “Não puxa, filho, o teti da mãe”.

Fala sobre o bebê - Mãe fala sobre o bebê com o interlocutor. Embora a comunicação não esteja na díade, é um momento de exposição do bebê à língua(gem). Assim como M2, estando com B2 no colo, demonstra reconhecer características próprias de seu bebê quando, na segunda etapa diz: “Se dá ele toma, tá sempre mamando. Né veio?” Nesse trecho, M2 fala sobre o bebê com a pesquisadora, expondo ele à língua(gem) e logo fala com o bebê sem manhês.

Interpretação não verbal da demanda do bebê - Situações em que a mãe interpreta o comportamento do bebê e responde gestualmente. Pode-se observar quando o bebê está sendo amamentado e solta o seio. Ao notar o comportamento do bebê, a mãe o afasta do seio e observa ou sopra em direção ao seu rosto. Ou na ocasião em que o bebê choraminga e a mãe oferece o seio, em silêncio.

Contato não verbal - Situações em que a mãe interage gestualmente com o bebê, sem que ele tenha demandado (carinho, ventilação). Observou-se nas ocasiões em que a mãe acaricia o rosto do bebê, dá-lhe beijos, retira a manta que está próxima ao rosto ou abana a mão próximo ao rosto do bebê para aumentar a ventilação, por exemplo, sem que o bebê tenha esboçado qualquer reação que demande carinho ou cuidado.

Formas de vocalização do bebê - Essas vocalizações foram classificadas em termos de qualidade em Nível I, Nível II e Nível III seguindo o trabalho de D’Odorico(1717 D’Odorico L, Majorano M, Fasolo M, Salerni N, Suttora C. Characteristics of phonological development as a risk factor for language development in Italian-speaking pre-term children: a longitudinal study. Clin Linguist Phon. 2011;25(1):53-65. http://dx.doi.org/10.3109/02699206.2010.511759. PMid:21080829.
http://dx.doi.org/10.3109/02699206.2010....
), conforme segue:

Nível I: vocalização contendo uma vogal ou uma sílaba que contém uma glotal ou glide;

Nível II: vocalizações contendo uma verdadeira consoante ou uma verdadeira consoante reduplicada (ex. [ba], [dada]), ou sons que diferem apenas no traço voz (por exemplo, [data]);

Nível III: vocalização contendo duas ou mais consoantes diferentes (por exemplo, [bati]). Essa análise dos distintos níveis de vocalização do bebê foi proposta porque eles demonstram sua evolução rumo à produção da fala, o que pode ter efeitos no adulto em termos de reconhecimento do bebê como falante e talvez isso leve a alguma mudança nos comportamentos do adulto, em idades mais avançadas. Demonstram uma mudança em termos de complexidade da produção da forma linguística. Possivelmente, um bebê com o aumento de produções no nível III tem sua fala reconhecida como mais próxima à fala do adulto.

Gesto/choro do bebê - gesto/choro do bebê que demanda cuidado do adulto. No caso, observou-se se a mãe correspondeu ao gesto ou choro do bebê, e se o bebê demanda por meio desses recursos. Na clínica, percebem-se bebês hipoativos, seja por deficiências do bebê, seja por consequência de dificuldades no vínculo pais-bebê, o que atesta a importância de identificar a existência de demanda do bebê.

Tais comportamentos foram analisados neste estudo tal como foi descrito no método. Inicialmente, foram analisados tais comportamentos em cada díade e, posteriormente, foi oferecida uma visão geral das quatro díades.

A seguir, são sintetizados na Tabela 3 os resultados das análises com o ELAN das categorias propostas e as análises estatísticas na Tabela 4.

Tabela 3
Síntese da frequência das categorias propostas
Tabela 4
Análise de média, mediana e desvio padrão entre as etapas

Cabe ressaltar que a variação de presença de fala com manhês entre as mães e também sua maior frequência em M3 deve-se ao fato de que esta mãe tem uma cena na etapa 2 em que o bebê chora muito e ela tenta acalmá-lo falando muito em manhês. Portanto, a variação numérica não tem um padrão por etapa, mas parece mais relacionada à cena em questão. Embora tenham sido selecionadas cenas em que o diálogo pudesse emergir mais, essas cenas apresentaram distintas demandas dos bebês, o que demonstra que a mãe se adapta ativamente ao bebê.

DISCUSSÃO

Considerando os resultados obtidos na Tabela 2, a partir da escala mãe-bebê de Saint-Georges et al.(1313 Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Laznik MC, Apicella F, et al. Do parents recognize autistic deviant behavior long before diagnosis? Taking into account interaction using computational methods. PLoS One. 2011;6(7):e22393-22393. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0022393. PMid:21818320.
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), é possível afirmar que os quatro bebês não apresentavam risco psíquico, pois apresentaram comportamentos de orientação e receptividade a pessoas já visíveis na segunda etapa da pesquisa, embora apenas B4 os tivesse demonstrado na primeira etapa nas cenas analisadas. Esse dado permite supor que se tratavam de bebês em desenvolvimento sem risco de evolução para estruturação de um autismo ou outra psicopatologia grave, considerando o que dizem estudos sobre análises de vídeos familiares(99 Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Saint-Georges C, Parlato E, Laznik MC, et al. Computadorized home video detection for motherese may help to study impaired interection between infants who become autistic and theier parents. Int J Methods Psychiatr Res. 2011;20(1):6-18. http://dx.doi.org/10.1002/mpr.332. PMid:21574205.
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,1313 Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Laznik MC, Apicella F, et al. Do parents recognize autistic deviant behavior long before diagnosis? Taking into account interaction using computational methods. PLoS One. 2011;6(7):e22393-22393. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0022393. PMid:21818320.
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,1818 Cohen D, Cassel RS, Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Laznik M-C, Apicella F, et al. Do parentese prosody and father’s involvement in interacting facilitate social interaction in infants who later develop autism? PLoS One. 2013;8(5):61409-61409. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0061402.
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).

Também é possível observar que, embora todas as mães vocalizem com seu bebê, há uma diferença na quantidade de vocalização das mães. M3 e M4 vocalizam mais do que M1 e M2, e isso se faz acompanhar de maior vocalização de seus bebês também, visto que B1 não vocaliza em nenhuma etapa e que B2 vocaliza uma vez na última etapa de coleta. Esses dados permitem dizer que quanto mais silenciosas as mães são na cena, mais silenciosos são os bebês. Isso não quer dizer que diante de um interlocutor que seja falante com o bebê ele não possa vocalizar mais. Apenas sugere que mães que dispendem um cuidado mais silencioso ao bebê, como M1 e M2, também têm bebês menos “falantes”. Cabe ressaltar ainda, em relação a este ponto, que M1 e M2, as mães mais silenciosas, são as mães também com menos anos de estudo o que pode estar relacionado com menor valorização do verbal como forma de interação, considerando vários estudos sobre escolaridade materna e nível de desenvolvimento de linguagem infantil(1919 Escarce AG, Camargos TV, Souza VC, Mourão MP, Lemos SMA. Escolaridade materna e desenvolvimento da linguagem em crianças de 2 meses a 2 anos. Rev CEFAC. 2012;14(6):1139-45. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462011005000144.
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).

Essa observação não deve ser confundida, no entanto, com a possibilidade de o bebê não estar inserido em um funcionamento de linguagem, pois, quando se analisam as categorias enunciativas propostas na Tabela 3, cujo foco é relação semiótica, percebe-se em maior detalhe como os bebês se manifestam de distintas formas por meio semiótico não verbal, pois o gesto e o choro são muito frequentes nos bebês, como formas de comunicação que são interpretadas pelas mães a partir de relações de homologia que se estabelecem entre o sistema semiótico verbal e o não verbal materno e o semiótico não verbal do bebê. Acredita-se que a expressividade numérica da homologia e da interpretância indica que essas podem ser mecanismos produtivos na construção da relação forma-sentido por parte do bebê, porque, ao ser interpretado em sua gestualidade, ele poderá comodalizar o que sente(1818 Cohen D, Cassel RS, Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Laznik M-C, Apicella F, et al. Do parentese prosody and father’s involvement in interacting facilitate social interaction in infants who later develop autism? PLoS One. 2013;8(5):61409-61409. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0061402.
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), transformando em percepção a partir da oferta de um signo pela mãe.

No entanto, para além das categorias pensadas a partir de Benveniste(1111 Benveniste E. Semiologia da língua. In: Benveniste E. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes Editores; 2006. p. 43-67.), no caso Homologia e Interpretância, emergiram outras categorias que transcendem a relação entre demanda do bebê-interpretação materna. Esse fato permite afirmar que há uma série de comportamentos sutis que podem ser descritos qualitativamente e numericamente que evidenciam o funcionamento do bebê na linguagem. Na análise de Saint-Georges et al.(1313 Saint-Georges C, Mahdhaoui A, Chetouani M, Cassel RS, Laznik MC, Apicella F, et al. Do parents recognize autistic deviant behavior long before diagnosis? Taking into account interaction using computational methods. PLoS One. 2011;6(7):e22393-22393. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0022393. PMid:21818320.
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), como o objetivo de sua escala era analisar comportamentos mais gerais que dissessem algo da estruturação psíquica e do risco para psicopatologia, não há uma especificação maior de como a mãe efetiva a regulação verbal do bebê, a mais presente na amostra estudada, sobretudo com o objetivo de acalmar, ou seja, responder a alguma demanda do bebê enquanto este chora.

As categorias expostas na Tabela 3 permitem, por outro lado, visualizar uma série de outros subtipos de falas das mães direcionadas aos bebês, além da Homologia e Interpretação, pois a mãe fala com o bebê sem que haja uma demanda dele, por exemplo, quando narra o que está fazendo com gestos que são homólogos à sua fala. Esses dados, somados ao fato de que a fala com e sem manhês se faz presente em proporções similares, exceto para M3 cuja produção com manhês foi maior, demonstra que não há uma produção exclusiva com o manhês, pois, embora se reconheça sua importância na constituição psíquica e na aquisição da linguagem(2020 Flores MR, Beltrami L, Ramos-Souza AP. O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrb Comun. 2011;23(2):143-52.), não deve ser tomado como forma constante e única de inserção do bebê na linguagem. Nas cenas analisadas, ele emergiu em momentos de prazer mãe-bebê e de regulação para acalmar no caso de M3. O que é importante ressaltar é que os bebês são expostos à linguagem por distintas formas verbais, inclusive a fala sobre ele que apareceu com razoável frequência nas quatro díades.

Quando observadas as manifestações não verbais maternas como interpretação não verbal e contato não verbal, pode-se inferir que tais comportamentos, embora menos frequentes na amostra estudada do que as manifestações verbais, também fazem parte do cuidado materno e são uma outra forma de comunicação mãe-bebê, por meio da qual a mãe expressa a mutualidade e identificação com seu bebê.

Considerando a análise estatística que comparou as medianas de comportamentos, percebe-se que as vocalizações do bebê apresentaram diferença significativa entre as etapas, sobretudo na transição da segunda para a terceira, demonstrando que, próximo aos 120 dias, o bebê se torna mais ativo no diálogo com o recurso da vocalização, o que pode sustentar de modo crescente o investimento materno e a suposição de um sujeito falante por parte da mãe. A ausência de significância nas demais categorias demonstra que o tipo de linguagem utilizado pelas mães é constante nas três etapas e que parece possuir um gatilho no tipo de cena que se apresenta e em demandas da própria mãe, e não pelas habilidades do bebê em si na faixa etária estudada.

Por fim, cabe ressaltar que este estudo descritivo indica que pesquisas futuras, com distintos grupos clínicos (bebês com e sem risco ao desenvolvimento) e com controle do desfecho de linguagem (com ou sem distúrbio de linguagem), poderão indicar a efetividade das categorias encontradas na distinção dos grupos e trazer reflexões que talvez permitam explanar a instalação dos distúrbios de linguagem. A partir destes estudos, talvez seja possível afirmar se as categorias propostas nesta pesquisa são eficazes para identificar se as distintas manifestações maternas ficam no âmbito do estilo materno de se comunicar com seu bebê ou se representam risco à aquisição da linguagem do seu bebê. As pesquisas(22 Flores MR, Ramos-Souza AP. Diálogo de pais e bebês em situação de risco ao desenvolvimento. Rev CEFAC. 2014;16(3):840-52. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201411412.
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-33 Oliveira LD, Ramos-Souza AP. O distúrbio de linguagem em dois sujeitos cm risco para o desenvolvimento em uma perspectiva enunciativa de funcionamento de linguagem. Rev. CEFAC. 2014;16(5):1700-12. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201410713.
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) já realizadas pelo grupo no qual se insere este trabalho sugerem que homologia e interpretância são menos ativas no diálogo entre mães e bebês em risco psíquico, pois as mães parecem não manter a suposição de sujeito falante em separado delas para seus bebês e/ou possuem dificuldade de estabelecer a demanda do bebê. A base para que esse processo se dê parece estar sustentada na mutualidade mãe-bebê(2121 Winnicott DW. A experiência mãe-bebe de mutualidade. In: Winnicott D. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994. p. 195-202.), estabelecida a partir da identificação de cada mãe, que um dia já foi bebê, com seu bebê.

CONCLUSÃO

Considerando o objetivo principal de propor categorias a partir do conceito de sistema semiótico elaborado por Benveniste(1111 Benveniste E. Semiologia da língua. In: Benveniste E. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes Editores; 2006. p. 43-67.), o trabalho permitiu identificar na homologia e na interpretância categorias produtivas na análise porque demonstram a relação demanda do bebê com a interpretação materna, esta ancorada na mutualidade mãe-bebê. Também foi possível utilizá-las para descrever numericamente as interações mãe-bebê, o que lhes confere potencial de utilização futura em estudos clínicos. Por fim, cabe ressaltar que outras categorias emergiram e que há mais subtipos de produções maternas que não estão diretamente relacionadas à demanda do bebê, demonstrando que o bebê está inserido em um banho de linguagem de características heteróclitas, como o próprio Benveniste já anunciara em sua definição de linguagem.

  • Trabalho realizado na Universidade Federal de Santa Maria – UFSM - Santa Maria (RS), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nenhuma.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2015
  • Aceito
    27 Ago 2015
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