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Doença de Moyamoya: impacto no desempenho da linguagem oral e escrita

RESUMO

A Doença de Moyamoya (DMM) é uma forma incomum de doença cerebrovascular oclusiva que acomete artérias do sistema nervoso central, acarretando alterações adquiridas de linguagem e dificuldades na aprendizagem. O objetivo foi descrever habilidades de linguagem oral/escrita e cognitivas em menina com diagnóstico de DMM de sete anos e sete meses. A avaliação constou de entrevista com pais, Observação do Comportamento Comunicativo, Teste de Vocabulário por Imagem Peabody, Teste de Desempenho Escolar, Perfil de Habilidades Fonológicas, Wechsler Intelligence Scale for Children, Teste Gestáltico Visomotor Bender, Wisconsin Card Sorting Test. Até os seis anos e cinco meses, ocorreram dois episódios de acidente vascular encefálico (AVE) em região temporoparietal esquerda e direita e área frontal esquerda. Realizou cirurgia para revascularização e tratamento medicamentoso. Avaliações audiológicas e oftalmológicas indicaram normalidade. Cursa o segundo ano do ensino fundamental. Apresentou alterações na linguagem oral e escrita (silábico-alfabética); não nomeação de todos os grafemas; escrita e aritmética média-inferior e leitura inferior à primeira série; habilidades do processamento fonológico em nível pré-escolar. A avaliação psicológica indicou nível intelectual satisfatório, porém prejuízo no desempenho cognitivo em tarefas verbais e de execução, limitações nas competências gráfico-percepto-motoras e na organização sequencial lógica. Os episódios de AVEs trouxeram interferências no desempenho dos processos de aprendizagem pelas especificidades das áreas afetadas, interferindo na análise, integração e interpretação de informações auditivas e visuais relevantes para os processos de aprendizagem.

Descritores:
Doença de Moyamoya; Desenvolvimento Infantil; Acidente Vascular Cerebral; Linguagem Infantil; Aprendizagem; Cognição

ABSTRACT

Moyamoya disease is an unusual form of occlusive, cerebrovascular disorder that affects the arteries of the central nervous system, causing acquired language alterations and learning difficulties. The study aim was to describe the oral/written language and cognitive skills in a seven-year-and-seven-month-old girl diagnosed with Moyamoya disease. The assessment consisted of interviews with her parents and application of the following instruments: Observation of Communicative Behavior, Peabody Picture Vocabulary Test, Academic Performance Test, Profile of Phonological Awareness, Raven’s Progressive Matrices Test, Special Scale, Wechsler Intelligence Scale for Children, Bender Visual Motor Gestalt Test, and Wisconsin Card Sorting Test. Two episodes of stroke in the left and right temporal-parietal and left frontal areas occurred until the age of six years and five months. Revascularization surgery and medication treatment were conducted. The audiologic and ophthalmologic assessments indicated normality. At the time of the study, the girl was attending the second grade of elementary school. She presented changes in oral and written language (syllabic-alphabetic), non-naming of all graphemes, low arithmetic and writing means, reading skill below first grade level and psycholinguistic delay, and pre-school level phonological processing skills. The psychological evaluation indicated satisfactory intellectual level; however, it also showed cognitive performance impairment in verbal and execution tasks and limitations on graphic-perceptual-motor skills and sequential logic organization. The stroke episodes influenced the performance of learning processes, affecting the analysis, integration, and interpretation of relevant visual and auditory information.

Keywords:
Moyamoya Disease; Child Development; Stroke; Child Language; Learning; Cognition

INTRODUÇÃO

A Doença de Moyamoya (DMM) é uma forma incomum de doença cerebrovascular oclusiva crônica, que acomete artérias do sistema nervoso central, provocando tromboses, isquemias e hemorragias intraparenquimatosas. As obstruções provocam neoformações vasculares de fino calibre e pouco eficientes(11 Takanashi J. Moyamoya disease in children. Brain Dev. 2011;33(3):229-34. PMid:20932697. http://dx.doi.org/10.1016/j.braindev.2010.09.003.
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).

Trata-se de uma doença rara de aspectos etiológicos e mecanismos fisiopatológicos insuficientemente conhecidos(22 Bersano A, Guey S, Bedini G, Naca S, Hervé D, Vajkoczy P, et al. Research progresses in understanding the pathophysiology of Moyamoya disease. Cerebrovasc Dis. 2016;41(3-4):105-18. PMid:26756907. http://dx.doi.org/10.1159/000442298.
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,33 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2011.02.007.
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), tendo principal prevalência no Japão, mas tem sido cada vez mais diagnosticada em todo o mundo, e representa uma importante causa de acidente vascular cerebral na infância. Esta condição é responsável por aproximadamente 6% dos acidentes vasculares cerebrais na infância nos países ocidentais(33 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2011.02.007.
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). É relatada a ocorrência para o gênero feminino de aproximadamente 2:1(33 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2011.02.007.
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,44 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)70240-0.
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).

O termo Moyamoya tem origem japonesa e significa “algo nebuloso”, como cortina de fumaça, devido aos achados angiográficos, critério usado, nestes casos, para confirmação do diagnóstico(33 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2011.02.007.
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,44 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)70240-0.
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).

A taxa de incidência variável entre diferentes grupos étnicos e a recorrência familial apoiam o papel dos fatores genéticos na DMM(22 Bersano A, Guey S, Bedini G, Naca S, Hervé D, Vajkoczy P, et al. Research progresses in understanding the pathophysiology of Moyamoya disease. Cerebrovasc Dis. 2016;41(3-4):105-18. PMid:26756907. http://dx.doi.org/10.1159/000442298.
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). Foram identificados inúmeros genes candidatos na DMM, nos últimos anos, em diversas regiões cromossômicas (e.g. 3p24.2p26, 6q25, 8q23, 12p12 e 17q25)(22 Bersano A, Guey S, Bedini G, Naca S, Hervé D, Vajkoczy P, et al. Research progresses in understanding the pathophysiology of Moyamoya disease. Cerebrovasc Dis. 2016;41(3-4):105-18. PMid:26756907. http://dx.doi.org/10.1159/000442298.
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), o que justifica a variabilidade fenotípica.

Nesta doença, ocorre oclusão bilateral das artérias carótidas internas e, pelo fato de a oclusão ser lenta e progressiva, surgem anastomoses múltiplas que se formam entre as artérias carótidas internas e externas, compostas pelas colaterais das artérias coroidais anterior e posterior, artéria basilar, além de artérias meníngeas(33 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2011.02.007.
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4 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)70240-0.
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-55 Lee JY, Phi JH, Wang KC, Cho BK, Shin MS, Kim SK. Neurocognitive profiles of children with Moyamoya disease before and after surgical intervention. Cerebrovasc Dis. 2011;31(3):230-7. PMid:21178347. http://dx.doi.org/10.1159/000321901.
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).

A etiologia ainda não é clara(22 Bersano A, Guey S, Bedini G, Naca S, Hervé D, Vajkoczy P, et al. Research progresses in understanding the pathophysiology of Moyamoya disease. Cerebrovasc Dis. 2016;41(3-4):105-18. PMid:26756907. http://dx.doi.org/10.1159/000442298.
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,66 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2010.10.016.
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) e sua incidência é maior na primeira década de vida (50% na idade pré-escolar), mas pode ocorrer também na segunda ou terceira. A história natural da DMM envolve significativa morbidade e mortalidade(66 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2010.10.016.
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). Os pacientes pediátricos podem apresentar ataques silentes, ataques isquêmicos transitórios ou permanentes e infartos cerebrais no território da artéria carótida interna, particularmente na região do lobo frontal(44 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)70240-0.
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). Lesões unilaterais podem progredir para lesões bilaterais(66 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2010.10.016.
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). Os pacientes pediátricos podem apresentar dores de cabeça, crises convulsivas, movimentos involuntários e alterações cognitivas(11 Takanashi J. Moyamoya disease in children. Brain Dev. 2011;33(3):229-34. PMid:20932697. http://dx.doi.org/10.1016/j.braindev.2010.09.003.
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,66 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2010.10.016.
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).

As manifestações clínicas das injúrias cerebrais são variáveis, dependentes das áreas afetadas, que podem causar disartrias, afasias, hemiparesias e/ou crises convulsivas(33 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2011.02.007.
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4 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)70240-0.
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-55 Lee JY, Phi JH, Wang KC, Cho BK, Shin MS, Kim SK. Neurocognitive profiles of children with Moyamoya disease before and after surgical intervention. Cerebrovasc Dis. 2011;31(3):230-7. PMid:21178347. http://dx.doi.org/10.1159/000321901.
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). São relatados estudos que apontam para alterações neurocognitivas e neurolinguísticas trazendo prejuízos para a aprendizagem e qualidade de vida(11 Takanashi J. Moyamoya disease in children. Brain Dev. 2011;33(3):229-34. PMid:20932697. http://dx.doi.org/10.1016/j.braindev.2010.09.003.
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2 Bersano A, Guey S, Bedini G, Naca S, Hervé D, Vajkoczy P, et al. Research progresses in understanding the pathophysiology of Moyamoya disease. Cerebrovasc Dis. 2016;41(3-4):105-18. PMid:26756907. http://dx.doi.org/10.1159/000442298.
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3 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2011.02.007.
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4 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)70240-0.
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5 Lee JY, Phi JH, Wang KC, Cho BK, Shin MS, Kim SK. Neurocognitive profiles of children with Moyamoya disease before and after surgical intervention. Cerebrovasc Dis. 2011;31(3):230-7. PMid:21178347. http://dx.doi.org/10.1159/000321901.
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6 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2010.10.016.
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-77 Hayashi T, Shirane R, Fujimura M, Tominaga T. Postoperative neurological deterioration in pediatric Moyamoya disease: watershed shift and hyperperfusion. J Neurosurg Pediatr. 2010;6(1):73-81. PMid:20593991. http://dx.doi.org/10.3171/2010.4.PEDS09478.
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). A cirurgia de revascularização pode reduzir significantemente os riscos subsequentes dos eventos isquêmicos cerebrais(44 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)70240-0.
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,66 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2010.10.016.
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) e resguardar as capacidades intelectuais da criança com DMM(77 Hayashi T, Shirane R, Fujimura M, Tominaga T. Postoperative neurological deterioration in pediatric Moyamoya disease: watershed shift and hyperperfusion. J Neurosurg Pediatr. 2010;6(1):73-81. PMid:20593991. http://dx.doi.org/10.3171/2010.4.PEDS09478.
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).

O objetivo deste estudo foi descrever as habilidades de linguagem oral/escrita e cognitivas de uma menina com diagnóstico de DMM de sete anos e sete meses.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

A família assinou o termo de consentimento livre e esclarecido de acordo com o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Resolução 466/12).

Criança do gênero feminino, de sete anos e sete meses de idade cronológica, filha de pais não consanguíneos, com diagnóstico da DMM. Apresentou desenvolvimento neuropsicomotor, de acordo com os critérios normativos. Durante o primeiro ano de vida teve vários episódios de infecção crônica do ouvido. Os pais relataram que, por volta dos quatro anos, iniciaram-se as queixas de zumbido e dores de cabeça. A criança realizou avaliações audiológicas e oftalmológicas que indicaram normalidade. Por volta dos cinco anos manifestou “repuxamento” dos lábios e “formigamento das mãos”. Nessa época, em acompanhamento neurológico, realizou exames por imagem que indicou sinais de Acidente Vascular Encefálico isquêmico (AVE), tendo sido afetada a área temporoparietal esquerda. Aos seis anos e cinco meses apresentou o segundo AVE isquêmico na região temporoparietal direita e frontal esquerda, tendo sido submetida à cirurgia de revascularização e tratamento medicamentoso. A seguir, na Figura 1, são apresentados dados da Tomografia computadorizada, Ressonância Magnética com estudo perfusional e Angiorressonância de artérias e veias intracranianas após o processo de revascularização cerebral.

Figura 1
Resultado da tomografia computadorizada, ressonância magnética e angioressonância

Aos sete anos e sete meses de idade, cursava o segundo ano do ensino fundamental em escola particular e, mesmo com reforço pedagógico e intervenções terapêuticas nas áreas de Fonoaudiologia e Psicologia, era constante a queixa da escola de baixo rendimento nas atividades acadêmicas. Não havia queixas quanto a problemas de comportamento.

A avaliação fonoaudiológica e neuropsicológica constou de entrevista com os responsáveis e aplicação de instrumentos específicos de avaliação, de acordo com a faixa etária da criança. O protocolo constou dos seguintes instrumentos: Observação do Comportamento Comunicativo (OCC)(88 Ferreira AT. Vocabulário receptivo e expressivo de crianças com síndrome de Down [dissertação]. Bauru: Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo; 2010. Observação do Comportamento Comunicativo; 129 p.); Teste de Vocabulário por Imagem Peabody (TVIP)(99 Dunn LM, Dunn LM. Peabody Picture Vocabulary Test-revised [adaptação Hispano-americana]. Circle Pines: American Guidance Service; 1986.); Teste de Desempenho Escolar (TDE)(1010 Stein LM. Teste de desempenho escolar: manual para aplicação e interpretação. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1994.), Perfil de Habilidades Fonológicas (PHF)(1111 Alvarez AMMA, Carvalho IAM, Caetano AL. Perfil de habilidades fonológicas. 2. ed. São Paulo: Via Lettera; 2004.), Matrizes Progressivas Coloridas de Raven: Escala Especial (RAVEN)(1212 Angelini AL, Alves ICB, Custódio EM, Duarte WF, Duarte JLM. Matrizes progressivas coloridas de Raven: escala especial: manual. São Paulo: CETEPP; 1999.), Wechsler Intelligence Scale for Children – Third Edition (WISC-III)(1313 Wechsler D. WISC-III: escala de inteligência Wechsler para crianças: manual. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2002. 309 p.), Teste Gestáltico Visomotor Bender(1414 Cunha JA. Bender na criança e no adolescente. In: Cunha JA, Péres-Ramos ALMQ, Jacquemim A, Amaral AEV, Werlang BG, Camargo CHP et al. Psicodiagnóstico. 5. ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000. p. 295-316.) e Wisconsin Card Sorting Test (WCST)(1515 Heaton RK, Chelune GJ, Talley JL, Kay G, Curtiss G. Wisconsin Card Sorting Test (WCST): manual. Odessa: Psychological Assessment Resources; 1993.).

Os resultados da avaliação fonoaudiológica encontram-se na Tabela 1. Foi solicitado o reconhecimento de grafemas isolados, e constatou-se dificuldade no reconhecimento.

Tabela 1
Habilidades, Desempenhos, Idade correspondente e Classificação obtida pelos instrumentos da avaliação fonoaudiológica

A avaliação neuropsicológica (Tabela 2) indicou nível intelectual na média esperada à idade, porém os desempenhos cognitivos em tarefas verbais e de execução estiveram prejudicados, com limitações especialmente identificadas no gerenciamento do foco atencional, nas funções grafo-percepto-motoras, na organização sequencial lógica e na linguagem expressiva, prejuízos estes impactantes na aquisição e desenvolvimento de competências acadêmicas. O comportamento mostrou-se colaborativo na execução das provas.

Tabela 2
Desempenho, Quociente de Inteligência e Classificação obtida pelos instrumentos da avaliação neuropsicológica

DISCUSSÃO

Alterações em habilidade do processamento de informações envolvendo memória de trabalho, consciência fonológica e acesso ao léxico mental, bem como, atraso cognitivo interferem no processo de alfabetização(55 Lee JY, Phi JH, Wang KC, Cho BK, Shin MS, Kim SK. Neurocognitive profiles of children with Moyamoya disease before and after surgical intervention. Cerebrovasc Dis. 2011;31(3):230-7. PMid:21178347. http://dx.doi.org/10.1159/000321901.
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). Os desempenhos obtidos sugerem risco para ocorrência de prejuízos significantes nas competências acadêmicas para a progressão escolar.

As sequelas da DMM, provocadas por AVEs são variáveis e dependentes da especificidade das áreas cerebrais afetadas(11 Takanashi J. Moyamoya disease in children. Brain Dev. 2011;33(3):229-34. PMid:20932697. http://dx.doi.org/10.1016/j.braindev.2010.09.003.
http://dx.doi.org/10.1016/j.braindev.201...
,33 Currie S, Raghavan A, Batty R, Connolly DJA, Griffiths PD. Childhood Moyamoya disease and Moyamoya syndrome: a pictorial review. Pediatr Neurol. 2011;44(6):401-13. PMid:21555050. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2011.02.007.
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). Depois da lesão cerebral, os déficits neurológicos, invariavelmente permanentes, exigem acompanhamento terapêutico frequente, principalmente para lidar com as alterações decorrentes da lesão. Neste caso, as áreas afetadas são extremamente importantes para o funcionamento da linguagem e aprendizagem. Um estudo apresentou que, as funções cognitivas e o desempenho em linguagem são determinantes nos processos de aprendizagem e integração social, especialmente na idade escolar(55 Lee JY, Phi JH, Wang KC, Cho BK, Shin MS, Kim SK. Neurocognitive profiles of children with Moyamoya disease before and after surgical intervention. Cerebrovasc Dis. 2011;31(3):230-7. PMid:21178347. http://dx.doi.org/10.1159/000321901.
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).

Uma das áreas afetadas com o AVE, no presente caso, foi o lobo parietal. O lobo parietal é dividido em duas regiões funcionais. Uma envolvida na sensação e na percepção e outra responsável pela integração do input sensorial, primariamente com o sistema visual. A primeira função integra informações sensoriais para formar uma única percepção (cognição). A segunda função constrói um sistema de coordenadas espaciais para representar o mundo que nos cerca. Indivíduos com danos nos lobos parietais podem demonstrar déficits de leves a profundos, relacionados a anormalidades na imagem corporal e nas relações espaciais(77 Hayashi T, Shirane R, Fujimura M, Tominaga T. Postoperative neurological deterioration in pediatric Moyamoya disease: watershed shift and hyperperfusion. J Neurosurg Pediatr. 2010;6(1):73-81. PMid:20593991. http://dx.doi.org/10.3171/2010.4.PEDS09478.
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). Danos no lobo parietal esquerdo podem causar confusão entre esquerda e direita, dificuldade de escrita (disgrafia) e dificuldades com o pensamento matemático (discalculia), desordens na linguagem (afasia), até a inabilidade para perceber objetos normalmente (disgnosia). Danos no lobo parietal direito podem resultar em inabilidades que abalam o cuidado com o próprio corpo, tais como vestir-se e banhar-se e que comprometem a independência nas atividades da vida diária (AVDs). O histórico clínico apresenta estes achados, ou seja, a criança demonstrava dificuldades para realizar, com independência, as AVDs.

As lesões bilaterais, interferem na integração da atenção visual e da eficiência motora(66 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2010.10.016.
http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneuro...
), caracterizada por manifestações relacionadas à dispraxia, com prejuízos em atividades formais de desenho e escrita, na construção de ângulos e integração de traçados. Estas habilidades eram particularmente difíceis para a criança em questão.

Outra região afetada com o AVE foi o lobo temporal. Os lobos temporais estão relacionados à memória, à audição, ao processamento e percepção de informações sonoras, à capacidade de entender a linguagem e ao processamento visual de ordem superior. As alterações psicolinguísticas observadas são relatadas na literatura(77 Hayashi T, Shirane R, Fujimura M, Tominaga T. Postoperative neurological deterioration in pediatric Moyamoya disease: watershed shift and hyperperfusion. J Neurosurg Pediatr. 2010;6(1):73-81. PMid:20593991. http://dx.doi.org/10.3171/2010.4.PEDS09478.
http://dx.doi.org/10.3171/2010.4.PEDS094...
). Lee et al.(55 Lee JY, Phi JH, Wang KC, Cho BK, Shin MS, Kim SK. Neurocognitive profiles of children with Moyamoya disease before and after surgical intervention. Cerebrovasc Dis. 2011;31(3):230-7. PMid:21178347. http://dx.doi.org/10.1159/000321901.
http://dx.doi.org/10.1159/000321901...
) apresentaram que as lesões no hemisfério cerebral esquerdo resultam em redução das habilidades verbais, enquanto as lesões do lado direito resultaram em pontuações mais baixas nas funções neurocognitivas, como memória, habilidades visuais e relações espaciais.

Lesões no lobo frontal podem relacionar-se a dificuldades para manutenção de atenção sustentada, memória e planejamento, bem como distúrbios de humor. Este último não observado no caso estudado.

As crianças com DMM podem se beneficiar de revascularização cirúrgica, principalmente aquelas com sintomas neurológicos progressivos ou evidência de fluxo sanguíneo inadequado e/ou circulação colateral e nas quais a cirurgia não é contraindicada(44 Kuroda S, Houkin K. Moyamoya disease: current concepts and future perspectives. Lancet Neurol. 2008;7(11):1056-66. PMid:18940695. http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)70240-0.
http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(08)...
-55 Lee JY, Phi JH, Wang KC, Cho BK, Shin MS, Kim SK. Neurocognitive profiles of children with Moyamoya disease before and after surgical intervention. Cerebrovasc Dis. 2011;31(3):230-7. PMid:21178347. http://dx.doi.org/10.1159/000321901.
http://dx.doi.org/10.1159/000321901...
). A criança deste estudo realizou este procedimento cirúrgico.

Considerando a plasticidade do desenvolvimento no cérebro infantil, espera-se que influências extrínsecas, como a participação em processos de intervenção fonoaudiológica e psicológica, somadas às influências intrínsecas possam alterar a organização cortical e regenerar conexões danificadas, melhorando o desempenho da criança nas habilidades que estão comprometidas.

Embora a incidência de DMM não seja alta é uma causa importante de AVE em crianças, que necessita ser melhor compreendida, principalmente quanto ao desenvolvimento destas crianças, pelo impacto provocado no funcionamento cerebral, com reflexos na vida destes indivíduos(66 Amlie-Lefond C, Zaidat OO, Lew SM. Moyamoya disease in early infancy: case report and literature review. Pediatr Neurol. 2011;44(4):299-302. PMid:21397174. http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneurol.2010.10.016.
http://dx.doi.org/10.1016/j.pediatrneuro...
).

DMM é um distúrbio complexo e heterogêneo, com diferentes fenótipos e genótipos, que tem aumentado rapidamente em todo o mundo(11 Takanashi J. Moyamoya disease in children. Brain Dev. 2011;33(3):229-34. PMid:20932697. http://dx.doi.org/10.1016/j.braindev.2010.09.003.
http://dx.doi.org/10.1016/j.braindev.201...
,22 Bersano A, Guey S, Bedini G, Naca S, Hervé D, Vajkoczy P, et al. Research progresses in understanding the pathophysiology of Moyamoya disease. Cerebrovasc Dis. 2016;41(3-4):105-18. PMid:26756907. http://dx.doi.org/10.1159/000442298.
http://dx.doi.org/10.1159/000442298...
). Assim, há a necessidade de conhecimentos mais aprofundados sobre a doença para desenvolver sistemas de estratificação de risco mais específicos e eficientes, incluindo profunda fenotipagem clínica e radiológica e a identificação de biomarcadores que possam melhorar a capacidade de predizer o prognóstico para desenvolver procedimentos de intervenções adaptados às necessidades individuais(22 Bersano A, Guey S, Bedini G, Naca S, Hervé D, Vajkoczy P, et al. Research progresses in understanding the pathophysiology of Moyamoya disease. Cerebrovasc Dis. 2016;41(3-4):105-18. PMid:26756907. http://dx.doi.org/10.1159/000442298.
http://dx.doi.org/10.1159/000442298...
).

A gestão do tratamento das sequelas do DMM requer uma abordagem multidisciplinar, principalmente na infância, com o intuito de minimizar os efeitos deletérios provocados pelo(s) insulto(s) cerebral(is), que trarão reflexos para a vida escolar e social destas crianças e suas famílias.

COMENTÁRIOS FINAIS

A DMM é uma condição que se mostrou interferente nos processos de linguagem e nas funções neurocognitivas, com prejuízos nos processos de aprendizagem devido às especificidades das áreas afetadas, nas habilidades de análise, integração e interpretação de informações auditivas e visuais, fundamentais nos processos de aprendizagem.

  • Trabalho realizado na Clínica de Fonoaudiologia, Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo – USP - Bauru (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nada a declarar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2016
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2016
  • Aceito
    05 Mar 2016
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