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Voz de crianças e adolescentes deficientes auditivos e pares ouvintes: influência da percepção auditiva da fala na produção vocal

RESUMO

Objetivo:

Comparar os resultados acústicos e perceptivo-auditivos da voz de crianças e adolescentes deficientes auditivos com pares ouvintes e correlacionar estes resultados com o relato dos pais em relação à percepção auditiva da fala.

Método:

Os participantes foram divididos em dois grupos: grupo I, 20 crianças e adolescentes deficientes auditivos, e grupo II, 20 crianças e adolescentes ouvintes. Foi realizada análise acústica da vogal /a/ e avaliação perceptivo-uditiva da vogal /a/ e da fala. A percepção auditiva do GI foi avaliada utilizando a Escala de Integração Auditiva Significativa para Crianças Pequenas e a Escala de Integração Auditiva Significativa, com adaptação para participantes adolescentes. Os resultados acústicos e perceptivo-auditivos da voz de GI e GII foram comparados e, para o GI, estes resultados foram correlacionados com o desempenho na percepção auditiva.

Resultados:

Os grupos I e II apresentaram resultados similares, diferenciando-se estatisticamente nos parâmetros variação da frequência fundamental (vF0) e variação da amplitude (vAm) da vogal /a/ e ressonância da fala. Houve correlação negativa entre o desempenho na percepção auditiva com os parâmetros de jitter, vF0 e grau geral da vogal /a/.

Conclusão:

A qualidade vocal do GI foi semelhante em praticamente todos os parâmetros vocais analisados a dos seus pares ouvintes (G2). A percepção auditiva influenciou os parâmetros jitter, vF0 e grau geral do impacto da voz, em que crianças e adolescentes deficientes auditivos que apresentaram maiores escores para a percepção auditiva também foram capazes de manter a emissão vocal mais equilibrada.

Descritores:
Implante Coclear; Auxiliares de Audição; Perda Auditiva; Percepção da Fala; Qualidade Vocal

ABSTRACT

Purpose:

To compare the acoustic and perceptual-auditory results of the hearing impaired children and adolescents with hearing pairs and to correlate these results with parents’ reports regarding speech auditory perception.

Method:

The participants were divided into two groups: Group I, 20 hearing-impaired children and adolescents and Group II, 20 children and adolescents with normal hearing. Acoustic analysis of the vowel /a/ and perceptual-auditory assessment of the vowel /a/ and speech were performed. The speech auditory perception of the GI was assessed using the Infant-Toddler Meaningful Auditory Integration Scale and the Meaningful Auditory Integration Scale with adaptation for adolescent participants. The acoustic and perceptual-auditory voice results of the GI and GII were compared and these results were correlated with the performance in the auditory perception of the GI group.

Results:

The groups I and II presented similar results, differing statistically in the long-term frequency variation (vF0) and the long-term amplitude variation (vAm) parameters of the vowel /a/ and speech resonance parameter. It was found a negative correlation between auditory perception performance with jitter, vF0 and general degree of vowel /a/.

Conclusion:

The vocal quality in GI was similar to their hearing peers in almost all the vocal parameters that were analyzed. The auditory perception influenced jitter, vF0 and general degree of voice parameters, in which hearing-impaired children and adolescents who presented higher scores for auditory perception were also able to keep a more controlled vocal emission.

Keywords:
Cochlear Implants; Hearing Aids; Hearing loss; Speech Perception; Voice Quality

INTRODUÇÃO

A perda de audição pode causar prejuízos na comunicação relacionados à fala e à voz. A voz é um fator de extrema importância, pois as alterações vocais impactam negativamente a integração social da população com deficiência auditiva(11 Coelho ACC, Bevilacqua MC, Oliveira G, Behlau M. Relationship between voice and speech perception in children with cochlear implant. Pró-Fono R. Atual. Cient. 2009; 21(1):7-12. https://doi.org/10.1590/S0104-56872009000100002
https://doi.org/10.1590/S0104-5687200900...
).

Os dispositivos tecnológicos que possibilitam o acesso aos sons da fala, aparelho de amplificação sonora individual (AASI) e implante coclear (IC), são amplamente eficazes na remediação da perda auditiva. Dentre suas vantagens, podem-se destacar os benefícios em relação à percepção da fala e, consequentemente, desenvolvimento da linguagem(22 Moret ALM, Bevilacqua MC, Costa OA. Cochlear implant: hearing and language in pre-lingual deaf children. Pró-Fono R. Atual. Cient. 2007;19(3):295-304. https://doi.org/10.1590/s0104-56872007000300008. PMid:17934605
https://doi.org/10.1590/s0104-5687200700...
). Além disso, o uso de AASI e IC propicia a produção equilibrada da voz, uma vez que estes recursos tecnológicos proporcionam o feedback auditivo, imprescindível para o controle vocal(33 Souza LBR de, Bevilacqua MC, Brasolotto AG, Coelho AC. Cochlear implanted children present vocal parameters within normal standards. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2012;76(8):1180-3. https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2012.04.029. PMid:22652499
https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2012.04...
).

Estudos têm demonstrado os benefícios que a utilização dos referidos dispositivos implicam especificamente na voz, podendo-se citar o maior controle da frequência fundamental (F0), a diminuição e o equilíbrio das medidas de ruído, perturbação do sinal acústico e dos parâmetros perceptivo-auditivos de rugosidade, tensão e pitch(44 Coelho AC, Brasolotto AG, Bevilacqua MC. Systematic analysis of the benefits of cochlear implants on voice production. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(41):395-402. https://doi.org/10.1590/S2179-64912012000400018.
https://doi.org/10.1590/S2179-6491201200...

5 Knight K, Ducasse S, Coetzee A, Van der Linde J, Louw A. The effect of age of cochlear implantation on vocal characteristics in children. South African J Commun Disord. 2016;63(1):1-6. https://doi.org/10.4102/sajcd.v63i1.142. PMid:27380914
https://doi.org/10.4102/sajcd.v63i1.142...
-66 Fabron EMG, Garcia YS, Delgado-Pinheiro EMC. The voice of the hearing impaired: a literature review. Distúrbios Comum. 2017;29(1):55-67. https://doi.org/10.23925/2176-2724.2017v29i1p55-67
https://doi.org/10.23925/2176-2724.2017v...
).

A literatura também evidencia amplamente a existência de diferenças em determinados aspectos vocais (acústicos e perceptivos) em usuários de AASI e IC como a inteligibilidade da fala, os valores dos formantes das vogais, a F0 e a qualidade vocal, sendo estes mais próximos aos parâmetros de normalidade em usuários de IC do que em usuários de AASI(66 Fabron EMG, Garcia YS, Delgado-Pinheiro EMC. The voice of the hearing impaired: a literature review. Distúrbios Comum. 2017;29(1):55-67. https://doi.org/10.23925/2176-2724.2017v29i1p55-67
https://doi.org/10.23925/2176-2724.2017v...

7 Van Lierde KM, Vinck BM, Baudonck N, De Vel E, Dhooge I. Comparison of the overall intelligibility, articulation, resonance, and voice characteristics between children using cochlear implants and those using bilateral hearing aids: A pilot study. Int J Audiol. 2005;44(8):452-65. https://doi.org/10.1080/14992020500189146. PMid:16149240
https://doi.org/10.1080/1499202050018914...

8 Horga D, Liker M. Voice and pronunciation of cochlear implant speakers. Clin Linguist Phonetics. 2006;20(2-3):211-7. https://doi.org/10.1080/02699200400027015. PMid:16428239
https://doi.org/10.1080/0269920040002701...

9 Souza LBR. Differences between vocal parameters of cochlear implanted children and children who use individual sound amplification device. Rev CEFAC. 2013;15(3):616-21. https://doi.org/10.1590/S1516-18462013005000027
https://doi.org/10.1590/S1516-1846201300...

10 Jafari N, Yadegari F, Jalaie S. Acoustic Analysis of Persian Vowels in cochlear implant Users: A Comparison With Hearing-impaired Children Using Hearing Aid and Normal-hearing Children. J Voice. 2016;30(6):763.e1-763.e7. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2015.10.006. PMid:26725549
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2015.10...

11 Jafari N, Izadi F, Salehi A, Dabirmoghaddam P, Yadegari F, Ebadi A, et al. Objective Voice Analysis of Pediatric cochlear implant Recipients and Comparison With Hearing Aids Users and Hearing Controls. J Voice. 2017;31(4):505.e11-505.e18. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.10.018. PMid:27865551
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.10...
-1212 Joy J V, Deshpande S, Vaid N. Period for Normalization of Voice Acoustic Parameters in Indian Pediatric cochlear implantees. J Voice. 2017;31(3):391.e19-391.e25. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.09.030. PMid:28029557
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.09...
).

Entretanto, é importante salientar que o uso do dispositivo para acesso aos sons não é o único fator a ser considerado no desenvolvimento de crianças e adolescentes com deficiência auditiva, pois estes proporcionam apenas a audibilidade dos sons ambientais e da fala, sendo necessária a realização da terapia fonoaudiológica em parceria com pais e profissionais(1313 Novaes BCAC, Versolatto-Cavanaugh MC, Figueiredo RSL, Mendes BCA. Determinants of communication skills development in children with hearing impairment. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(4):335-41. PMid:23306683). Além disso, outros fatores como a intervenção precoce, o tempo de uso do IC, os limiares de detecção de voz, a idade auditiva e a estratégia de processamento da fala são capazes de impactar as características vocais de deficientes auditivos(55 Knight K, Ducasse S, Coetzee A, Van der Linde J, Louw A. The effect of age of cochlear implantation on vocal characteristics in children. South African J Commun Disord. 2016;63(1):1-6. https://doi.org/10.4102/sajcd.v63i1.142. PMid:27380914
https://doi.org/10.4102/sajcd.v63i1.142...
,66 Fabron EMG, Garcia YS, Delgado-Pinheiro EMC. The voice of the hearing impaired: a literature review. Distúrbios Comum. 2017;29(1):55-67. https://doi.org/10.23925/2176-2724.2017v29i1p55-67
https://doi.org/10.23925/2176-2724.2017v...
,1212 Joy J V, Deshpande S, Vaid N. Period for Normalization of Voice Acoustic Parameters in Indian Pediatric cochlear implantees. J Voice. 2017;31(3):391.e19-391.e25. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.09.030. PMid:28029557
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.09...
,1414 Coelho AC, Brasolotto AG, Bevilacqua MC. An initial study of voice characteristics of children using two different sound coding strategies in comparison to normal hearing children. Int J Audiol. 2015;54(6):417-23. https://doi.org/10.3109/14992027.2014.998784. PMid:25634776
https://doi.org/10.3109/14992027.2014.99...
,1515 Coelho AC, Brasolotto AG, Bevilacqua MC, Moret ALM, Júnior FB. Hearing performance and voice acoustics of cochlear implanted children. Braz J Otorhinolaryngol. 2016;82(1):70-5. https://doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.11.002
https://doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.11....
).

No Brasil, atualmente, as políticas públicas convergem para que crianças deficientes auditivas tenham acesso aos sons da fala, por meio do diagnóstico precoce e de recursos tecnológicos. Gradativamente as crianças com perda auditiva têm a possibilidade de minimizar o impacto da privação auditiva em suas vidas.

Entre os fatores de impacto que podem ser atenuados, está a qualidade vocal(1616 Cysneiros HRS, Leal MC, Lucena JA, Muniz LF. Relação entre percepção auditiva e produção vocal em implantados cocleares: uma revisão sistemática. CoDAS. 2016;28(5):634-9. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20162015165
https://doi.org/10.1590/2317-1782/201620...
). Em processo terapêutico, contemporaneamente, há crianças deficientes auditivas que já se beneficiam dos avanços diagnósticos e tecnológicos relacionados à audição e outro grupo de crianças que iniciaram a intervenção mais tardiamente(1717 Bicas RS, Guijo LM, Delgado-Pinheiro EMC. Oral communication and auditory skills of hearing impaired children and adolescents and the speech therapy rehabilitation process. Rev CEFAC. 2017;19(4):465-74. https://doi.org/10.1590/1982-0216201719412516
https://doi.org/10.1590/1982-02162017194...
).

Acompanhar e buscar conhecer mais profundamente os aspectos que envolvem a comunicação das crianças deficientes auditivas, entre eles a qualidade vocal, possibilitará aprimorar o processo terapêutico fonoaudiológico. Ressalta-se também a necessidade de se obter mais informações sobre o assunto, buscando compreender se crianças que utilizam dispositivos tecnológicos de acesso aos sons da fala, associado às variáveis como a percepção auditiva dos sons da fala, podem manifestar diferentes características na qualidade vocal.

Desta forma, os objetivos do presente estudo foram comparar os resultados acústicos e perceptivo-auditivos da voz de crianças e adolescentes deficientes auditivos com pares ouvintes e correlacionar estes resultados com o relato dos pais em relação à percepção auditiva da fala.

MÉTODO

Este trabalho é parte de um projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Marília, sob o parecer nº 1.299.760. Todos os participantes e/ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido. Os participantes com faixa etária entre 11 anos e 17 anos e 11 meses também assinaram o Termo de Assentimento. Trata-se de um estudo clínico transversal controlado.

A amostra se constituiu por dois grupos: grupo I (GI), composto por 20 crianças e/ou adolescentes com perda auditiva sensório-neural bilateral, de grau moderado (n= 2), severo (n= 5) e profundo (n=13), usuários de IC (n= 13) ou AASI (n= 7), na faixa etária de três anos e seis meses a 18 anos (média de idade: 10 anos e 4 meses); e grupo II (GII), composto por 20 crianças e/ou adolescentes ouvintes, pareados pela faixa etária e pelo gênero de cada participante deficiente auditivo.

Os critérios de inclusão adotados para o GI foram: crianças/adolescentes usuários de AASI e/ou IC, que participavam ou tivessem participado do mesmo programa de reabilitação, com ênfase no desenvolvimento da audição e da linguagem falada, ausência de outras deficiências associadas e a não utilização da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e que fossem capazes de realizar as tarefas de fala solicitadas. Os participantes do grupo II que foram selecionados apresentavam limiares auditivos dentro dos padrões de normalidade, confirmados a partir da avaliação audiológica, e ausência de alterações na qualidade vocal, confirmada pela avaliação perceptivo-auditiva realizada por um fonoaudiólogo especialista em voz.

Foi realizada a avaliação vocal por meio de gravações das vozes de cada participante em sala com tratamento acústico, com a utilização do gravador digital MARANTZ modelo PMD660, microfone Sennheiser e835, posicionado a cinco centímetros de distância da boca dos participantes. Foram gravadas a emissão da vogal sustentada /a/ e a fala, utilizando como estímulo para eliciar a emissão o instrumento Avaliação Fonológica da Criança - AFC(1818 Yavas M, Hernandorena CLM, Lamprecht RR. Avaliação Fonológica da Criança. 1st ed. Porto Alegre: Artmed; 2001), tendo como temas: itens da cozinha, do banheiro, da sala, meios de transporte e zoológico. Essas palavras pertencem ao vocabulário de crianças a partir de três anos de idade(1818 Yavas M, Hernandorena CLM, Lamprecht RR. Avaliação Fonológica da Criança. 1st ed. Porto Alegre: Artmed; 2001)).

A gravação da vogal sustentada foi editada, recortando-se o início e o final da emissão para que o ataque vocal e a instabilidade não interferissem na análise dos dados, sendo mantidos, aproximadamente, cinco segundos de gravação. Estas amostras editadas foram utilizadas tanto para a avaliação perceptivo-auditiva, como para a análise acústica. Em relação à fala, foram sorteadas 10 palavras do AFC para a realização da avaliação perceptivo-auditiva, sendo excluídos dois participantes do GI nesta tarefa, pois estes apresentaram emissões ininteligíveis, interferindo na qualidade do julgamento.

A avaliação perceptivo-auditiva foi realizada por dois fonoaudiólogos experientes na avaliação vocal, mediante consenso, em ambiente silencioso. As gravações foram organizadas, sendo divididas de acordo com o tipo de emissão (vogal /a/ ou fala) e randomizadas para que os juízes não soubessem qual criança era deficiente auditiva usuária de IC ou AASI, ou ouvinte, sendo ainda repetidas quatro gravações de cada grupo, para a análise da concordância intrajuiz. Os juízes foram orientados a reproduzirem novamente cada gravação, à medida que necessitassem de forma ilimitada, até que se estabelecesse o consenso no julgamento.

Foram analisados, por meio de escala visual analógica de 100 milímetros (mm), os seguintes parâmetros: grau geral do impacto da voz, rugosidade, soprosidade, tensão, presença de desvio de pitch, loudness, instabilidade e ressonância. A escala foi pontuada medindo-se com uma régua e anotando-se o valor de cada parâmetro, sendo que quanto mais próximo de zero milímetro, menor o desvio, e quanto mais próximo de 100 mm, maior o desvio do respectivo parâmetro.

A análise acústica foi realizada no Laboratório de Análise Acústica - LAAc da UNESP - Marília, pelo software Multi Dimensional Voice Program (MDVP) da Key- Pentax, sendo analisados os parâmetros: F0, jitter, shimmer, relação harmônico-ruído (NHR), variação da frequência fundamental (vF0) e variação da amplitude (vAm) da vogal /a/.

Foram coletados nos prontuários dos participantes do GI informações quanto a: idade cronológica, idade da criança/adolescente na época do diagnóstico, idade na adaptação do AASI ou na ativação do IC, o tempo de privação sensorial e o tempo de terapia com enfoque no desenvolvimento da audição e da linguagem falada. Também foram registrados os limiares auditivos com o dispositivo nas frequências de 500 Hz, 1 KHz, 2 KHz e 4 KHz, para os participantes do GI, por meio da avaliação audiológica.

O registro dos referidos limiares auditivos foi realizado com a finalidade de garantir que os participantes utilizavam dispositivos que possibilitavam o acesso da percepção auditiva dos sons da fala. Além disso, buscou-se complementar essas informações, a partir do relato dos pais, sobre a utilização da função auditiva em situações cotidianas, utilizando a Escala de Integração Auditiva Significativa para Crianças Pequenas (IT-MAIS)(1919 Castiquini EAT. Escala de integração auditiva significativa: procedimento adaptado para a avaliação da percepção da fala [dissertação]. São Paulo(SP): Pontifícia Universidade Católica; 1998. Adaptado de: Zimmerman-Phillips S; Osberger MJ; Robbins AM. Infant-Toddler: Meaningful Auditory Integration Scale (IT-MAIS). Sylmar, Advanced Bionics Corporation, 1997)) e da Escala de Integração Auditiva Significativa (MAIS)(2020 Castiquini EAT, Bevilacqua MC. Escala de integração auditiva significativa: procedimento adaptado para a avaliação da percepção da fala. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2000;4(6):51-60).

A proposta da utilização dessas escalas está alicerçada na possibilidade da aplicação do mesmo procedimento para todo o grupo de participantes, considerando que parte da amostra apresentou privação auditiva nos primeiros anos de vida. Portanto, para os participantes adolescentes, as questões do referido protocolo foram adaptadas lexicalmente, adequando-se à faixa etária deles(1717 Bicas RS, Guijo LM, Delgado-Pinheiro EMC. Oral communication and auditory skills of hearing impaired children and adolescents and the speech therapy rehabilitation process. Rev CEFAC. 2017;19(4):465-74. https://doi.org/10.1590/1982-0216201719412516
https://doi.org/10.1590/1982-02162017194...
).

A análise estatística consistiu na aplicação do teste de Mann-Whitney para comparar os resultados da análise acústica e perceptivo-auditiva da vogal e da fala entre os grupos. Para analisar a relação entre os resultados da análise acústica e perceptivo-auditiva com a percepção dos sons da fala dos participantes do GI, foi utilizado o teste de Correlação de Spearman. Também, foi utilizado o Índice de Concordância de Kappa para verificar a concordância intrajuiz na avaliação perceptivo-auditiva dos dois tipos de emissões: vogal sustentada e fala. Para todos os testes foi admitido o nível de significância de 5%.

RESULTADOS

Os dados que caracterizam o grupo I são apresentados na Tabela 1.

Tabela 1
Caracterização do grupo I quanto aos dados pesquisados

No que se refere às variáveis demográficas pesquisadas no grupo de participantes estudado, há crianças que obtiveram diagnóstico precoce, entretanto, as médias da idade no diagnóstico (22,95 meses), da adaptação do AASI (28,85 meses), da adaptação do IC (24,05 meses) e do tempo de privação sensorial (28,05 meses) demonstraram o início tardio das intervenções e o impacto na média do período do processo terapêutico (88,10 meses). A média dos limiares auditivos com o uso do dispositivo demonstrou que o grupo de participantes apresentou a possibilidade de acesso aos sons de fala (29 dB). O relato dos pais referente ao desempenho da percepção auditiva da fala configurou o valor médio de 90,34% no escore de IT-MAIS/MAIS do GI.

As médias de F0 de acordo com a faixa etária e gênero de cada grupo (GI e GII) são descritas na Tabela 2.

Tabela 2
Distribuição das médias de F0 de acordo com a faixa etária e gênero de cada grupo

Os resultados demonstraram que as transformações na média de F0 para o gênero masculino ocorrem em ordem cronológica para ambos os grupos, a qual indica um pitch mais agudizado em idades mais jovens e mais agravado aos 18 anos. Para o gênero feminino, houve redução da média de F0, ou seja, agravamento da voz, porém, a mudança do pitch se apresentou de forma desordenada nos dois grupos.

Ressalta-se que esses achados mostram a tendência para a média de F0 no grupo estudado, pois se observa o número reduzido de participantes na distribuição de cada faixa etária.

A Tabela 3 mostra a comparação entre os grupos GI e GII dos resultados dos parâmetros acústicos da vogal /a/.

Tabela 3
Comparação entre os grupos GI e GII dos parâmetros acústicos da vogal /a/

Dentre os parâmetros analisados, houve diferença estatisti-camente significante entre os grupos apenas para os parâmetros acústicos vF0 (p= 0,011) e vAm (p= 0,099).

A Tabela 4 mostra a comparação entre os grupos GI e GII dos resultados da avaliação perceptivo-auditiva da vogal /a/ e da fala.

Tabela 4
Comparação entre os grupos GI e GII dos parâmetros perceptivo-auditivos da vogal /a/ e da fala

Verifica-se que houve diferença estatisticamente significante para o parâmetro da ressonância da fala, sendo que GI apresentou desvios neste aspecto (p=0,011) caracterizados por hiponasalidade (n=1), hipernasalidade (n=6) e ressonância laringofaríngea (n=1). Não foi encontrada diferença entre os grupos nos demais parâmetros, tanto para a vogal /a/, quanto para a fala.

Houve concordância intrajuiz na avaliação da vogal sustentada para os parâmetros rugosidade, soprosidade, tensão, presença de desvio de pitch e loudness, não havendo concordância para o grau geral do impacto da voz, instabilidade e ressonância. Em relação à fala, não houve concordância apenas para o parâmetro da ressonância, sendo que para os demais parâmetros descritos anteriormente foi obtida a concordância intrajuiz.

A Tabela 5 mostra a relação entre os resultados acústicos e perceptivo-auditivos da voz com a percepção da fala dos participantes do GI.

Tabela 5
Correlação entre parâmetros acústicos e perceptivo-auditivos da voz com a percepção da fala do grupo I

Observa-se que houve correlação negativa entre o escore de IT-MAIS/MAIS da percepção auditiva dos sons da fala com os parâmetros acústicos de jitter (r= -47,0%, p= 0,042) e vF0 (r= -47,8%, p= 0,038) da vogal /a/ e com o parâmetro perceptivo-auditivo de grau geral da vogal /a/ (r=-54,9%, p=0,015).

DISCUSSÃO

Este estudo buscou comparar os resultados acústicos e perceptivo-auditivos da voz de crianças e adolescentes deficientes auditivos com pares ouvintes e correlacionar estes resultados com o relato dos pais em relação à percepção auditiva da fala.

Em relação à frequência fundamental, observou-se que, embora o grupo de crianças e adolescentes deficientes auditivos tenha apresentado, numericamente, vozes mais agudas do que o grupo de crianças e adolescentes com audição dentro dos padrões de normalidade, os valores médios de F0 de ambos os grupos apresentaram-se próximos, corroborando os achados da literatura(33 Souza LBR de, Bevilacqua MC, Brasolotto AG, Coelho AC. Cochlear implanted children present vocal parameters within normal standards. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2012;76(8):1180-3. https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2012.04.029. PMid:22652499
https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2012.04...
,99 Souza LBR. Differences between vocal parameters of cochlear implanted children and children who use individual sound amplification device. Rev CEFAC. 2013;15(3):616-21. https://doi.org/10.1590/S1516-18462013005000027
https://doi.org/10.1590/S1516-1846201300...
,1212 Joy J V, Deshpande S, Vaid N. Period for Normalization of Voice Acoustic Parameters in Indian Pediatric cochlear implantees. J Voice. 2017;31(3):391.e19-391.e25. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.09.030. PMid:28029557
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.09...
).

Estudos apontam valores médios de normalidade da F0 para o gênero masculino entre 4 e 6 anos, 263,15 Hz; entre 5 e 7 anos, 263,74 Hz; entre 7 e 9 anos, 245,90 Hz; entre 8 e 9 anos, 237,97 Hz; entre 10 e 11 anos, 231,41 Hz; entre 10 e 12 anos, 234,29; aos 12 anos, 195,84 Hz; entre 13 e 15 anos, 128,28 Hz; entre 16 e 18 anos, 121,34 Hz; entre 4 e 18 anos, 209 Hz, variando de 103 Hz a 297 Hz(2121 Tavares ELM, Brasolotto A, Santana MF, Padovan CA, Martins RHG. Epidemiological study of dysphonia in 4-12 year-old children. Braz J Otorhinolaryngol. 2011;77(6):736-46. PMid:22183280

22 Maturo S, Hill C, Bunting G, Ballif C, Maurer R, Hartnick C. Establishment of a normative cepstral pediatric acoustic database. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2012;138(10):956-61. https://doi.org/10.1001/jamaoto.2014.3545. PMid:25612091
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-2323 Spazzapan EA. Características acústicas da voz de falantes do português brasileiro nos diferentes ciclos da vida [dissertação]. São Paulo(SP): Universidade Estadual Paulista; 2018).

Os mesmos autores encontraram médias de F0 para o gênero feminino entre 4 e 6 anos, 261,28 Hz; entre 5 e 7 anos, 267,98 Hz; entre 7 e 9 anos, 249,81 Hz; entre 8 e 9 anos, 241,24 Hz; entre 10 e 11 anos, 238,29 Hz; entre 10 e 12 anos, 242,60 Hz; aos 12 anos, 226,13 Hz; entre 13 e 15 anos, 219,03 Hz; entre 16 e 18 anos, 223,79 Hz; entre 4 e 18 anos, 247 Hz, variando de 277 Hz a 208 Hz(2121 Tavares ELM, Brasolotto A, Santana MF, Padovan CA, Martins RHG. Epidemiological study of dysphonia in 4-12 year-old children. Braz J Otorhinolaryngol. 2011;77(6):736-46. PMid:22183280

22 Maturo S, Hill C, Bunting G, Ballif C, Maurer R, Hartnick C. Establishment of a normative cepstral pediatric acoustic database. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2012;138(10):956-61. https://doi.org/10.1001/jamaoto.2014.3545. PMid:25612091
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-2323 Spazzapan EA. Características acústicas da voz de falantes do português brasileiro nos diferentes ciclos da vida [dissertação]. São Paulo(SP): Universidade Estadual Paulista; 2018).

Também são descritos valores médios de normalidade da F0 para ambos os sexos, sendo: entre 3 e 9 anos, 241,50 Hz; aos 5 anos, 255,06 Hz; aos 6 anos, 253,18 Hz; aos 7 anos, 248,87 Hz; entre 4 e 12 anos, 250,06 Hz; e entre 5 e 7 anos, 270,93 Hz(2121 Tavares ELM, Brasolotto A, Santana MF, Padovan CA, Martins RHG. Epidemiological study of dysphonia in 4-12 year-old children. Braz J Otorhinolaryngol. 2011;77(6):736-46. PMid:22183280,2424 Cappellari VM, Cielo CA. Vocal acoustic characteristics in pre-school aged children. Braz J Otorhinolaryngol. 2008;74(2):265-72. https://doi.org/10.1016/s1808-8694(15)31099-5. PMid:18568207
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,2525 Natour YS, Wingate JM. Fundamental Frequency Characteristics of Jordanian Arabic Speakers. J Voice. 2009;23(5):560-6. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2008.01.005. PMid:18640820
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,2626 Lopes LW, Lima ILB, Almeida LNA, Cavalcante DP, Almeida AAF. Severity of voice disorders in children: Correlations between perceptual and acoustic data. J Voice. 2012;26(6):819e7-819e12. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.05.008. PMid:23177753
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.05...
).

É possível observar que os dados da literatura variam amplamente, provavelmente pelos diferentes métodos empregados, entretanto, ao comparar os resultados das crianças deficientes auditivas desta pesquisa, pode-se afirmar que são compatíveis com valores de normalidade apresentados pelas pesquisas(2121 Tavares ELM, Brasolotto A, Santana MF, Padovan CA, Martins RHG. Epidemiological study of dysphonia in 4-12 year-old children. Braz J Otorhinolaryngol. 2011;77(6):736-46. PMid:22183280

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23 Spazzapan EA. Características acústicas da voz de falantes do português brasileiro nos diferentes ciclos da vida [dissertação]. São Paulo(SP): Universidade Estadual Paulista; 2018

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-2626 Lopes LW, Lima ILB, Almeida LNA, Cavalcante DP, Almeida AAF. Severity of voice disorders in children: Correlations between perceptual and acoustic data. J Voice. 2012;26(6):819e7-819e12. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.05.008. PMid:23177753
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.05...
).

Os resultados deste estudo também mostraram que as médias da frequência fundamental para o gênero masculino de GI e GII foram mais altas na faixa etária de 3 a 4 anos e mais baixas na faixa etária de 15 a 18 anos, que pode se justificar por diferenças significativas decorrentes do desenvolvimento anatômico e fisiológico do organismo e que, consequentemente, impactam as características funcionais da laringe, modificando a voz(2222 Maturo S, Hill C, Bunting G, Ballif C, Maurer R, Hartnick C. Establishment of a normative cepstral pediatric acoustic database. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2012;138(10):956-61. https://doi.org/10.1001/jamaoto.2014.3545. PMid:25612091
https://doi.org/10.1001/jamaoto.2014.354...
,2323 Spazzapan EA. Características acústicas da voz de falantes do português brasileiro nos diferentes ciclos da vida [dissertação]. São Paulo(SP): Universidade Estadual Paulista; 2018,2727 Soltani M, Ashayeri H, Modarresi Y, Salavati M, Ghomashchi H. Fundamental frequency changes of persian speakers across the life span. J Voice. 2014;28(3):274-81. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2013.10.012. PMid:24461477
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2013.10...
).

No gênero feminino, houve variabilidade nas médias de F0, tanto no GI quanto no GII, nas diferentes faixas etárias, explicada pela constante maturação das estruturas fonatórias que ocorrem nesta fase e pela não linearidade das modificações vocais nos diferentes gêneros e faixas etárias(2222 Maturo S, Hill C, Bunting G, Ballif C, Maurer R, Hartnick C. Establishment of a normative cepstral pediatric acoustic database. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2012;138(10):956-61. https://doi.org/10.1001/jamaoto.2014.3545. PMid:25612091
https://doi.org/10.1001/jamaoto.2014.354...
,2323 Spazzapan EA. Características acústicas da voz de falantes do português brasileiro nos diferentes ciclos da vida [dissertação]. São Paulo(SP): Universidade Estadual Paulista; 2018,2828 Stathopoulos ET, Huber Je, Sussman JE. Changes in Acoustic Characteristics of the Voice Across the Life Span: Measures From Individuals 4-93 Years of Age. J. Speech Lang. Hear. Res. 2011;54(4):1011-21. https://doi.org/10.1044/1092-4388(2010/10-0036). PMid:21173391
https://doi.org/10.1044/1092-4388(2010/1...
). Além disso, a literatura reporta que o padrão de normalidade da frequência fundamental para o gênero feminino é atingido aos 14 anos de idade, ocorrendo um período de transição, que se inicia aos 11 anos de idade, em que há o decréscimo de F0(2222 Maturo S, Hill C, Bunting G, Ballif C, Maurer R, Hartnick C. Establishment of a normative cepstral pediatric acoustic database. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2012;138(10):956-61. https://doi.org/10.1001/jamaoto.2014.3545. PMid:25612091
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,2323 Spazzapan EA. Características acústicas da voz de falantes do português brasileiro nos diferentes ciclos da vida [dissertação]. São Paulo(SP): Universidade Estadual Paulista; 2018).

No que diz respeito aos parâmetros acústicos da vogal /a/, verificou-se que as vozes das crianças e adolescentes usuárias de AASI e IC apresentaram resultados próximos, quando comparadas às vozes de ouvintes. Apenas os parâmetros vF0 e vAm diferiram entre os grupos, com perda auditiva (GI) e ouvinte (GII), estando consonantes com os achados da literatura(55 Knight K, Ducasse S, Coetzee A, Van der Linde J, Louw A. The effect of age of cochlear implantation on vocal characteristics in children. South African J Commun Disord. 2016;63(1):1-6. https://doi.org/10.4102/sajcd.v63i1.142. PMid:27380914
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,1414 Coelho AC, Brasolotto AG, Bevilacqua MC. An initial study of voice characteristics of children using two different sound coding strategies in comparison to normal hearing children. Int J Audiol. 2015;54(6):417-23. https://doi.org/10.3109/14992027.2014.998784. PMid:25634776
https://doi.org/10.3109/14992027.2014.99...
,2929 Holler T, Campisi P, Allegro J, Chadha NK, Harrison RV., Papsin B, et al. Abnormal Voicing in Children Using cochlear implants. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2010;136(1):17-21. https://doi.org/10.1001/archoto.2009.194. PMid:20083772
https://doi.org/10.1001/archoto.2009.194...
).

Os parâmetros vF0 e vAm consistem em indicadores de instabilidade vocal, a qual é considerada uma característica típica da voz de deficientes auditivos, devido à dificuldade de controle vocal ocasionada pelo déficit no feedback auditivo. À medida que o feedback auditivo é estabelecido e o deficiente auditivo inicia a experiência no mundo sonoro, este consegue desenvolver a maturação vocal e controle fonatório necessário para o equilíbrio da qualidade vocal(55 Knight K, Ducasse S, Coetzee A, Van der Linde J, Louw A. The effect of age of cochlear implantation on vocal characteristics in children. South African J Commun Disord. 2016;63(1):1-6. https://doi.org/10.4102/sajcd.v63i1.142. PMid:27380914
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,1414 Coelho AC, Brasolotto AG, Bevilacqua MC. An initial study of voice characteristics of children using two different sound coding strategies in comparison to normal hearing children. Int J Audiol. 2015;54(6):417-23. https://doi.org/10.3109/14992027.2014.998784. PMid:25634776
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,2929 Holler T, Campisi P, Allegro J, Chadha NK, Harrison RV., Papsin B, et al. Abnormal Voicing in Children Using cochlear implants. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2010;136(1):17-21. https://doi.org/10.1001/archoto.2009.194. PMid:20083772
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).

Em relação aos resultados perceptivo-auditivos da vogal /a/ e da fala, novamente observou-se semelhança na produção vocal dos deficientes auditivos com os ouvintes, em que apenas o desvio de ressonância na emissão da fala dos participantes do GI foi diferente. Vale ressaltar que a ressonância foi o único parâmetro da tarefa de fala em que não foi obtida a concordância intrajuiz. Salienta-se a importância da avaliação perceptivo-auditiva na complementação da impressão global da qualidade vocal(3030 Oates J. Auditory-perceptual evaluation of disordered voice quality.Folia Phoniatr Logop. 2009;61(1):49-56. https://doi.org/10.1159/000200768. PMid:19204393
https://doi.org/10.1159/000200768...
). Embora essa avaliação tenha sido realizada mediante consenso por dois fonoaudiólogos experientes, seu resultado apontou dificuldade na percepção da ressonância das crianças e adolescentes com deficiência auditiva, indicando a necessidade de se compreender os aspectos que podem ter influenciado esse dado e, ainda, de se realizar treinamento apropriado e específico para este parâmetro, ao avaliar esta população.

A correlação entre os parâmetros vocais acústicos e perceptivo-auditivos com a percepção da fala dos participantes do GI mostrou que quanto maior o escore de IT-MAIS/MAIS, menores os desvios nos parâmetros de jitter, variação da frequência fundamental e grau geral do impacto da voz para a vogal /a/. Tendo em vista que jitter e variação da frequência fundamental são medidas de perturbação da frequência em curto e longo prazo, respectivamente, e refletem o controle da voz, os resultados encontrados reforçam os benefícios da utilização do AASI e IC e da reabilitação auditiva no controle vocal(1515 Coelho AC, Brasolotto AG, Bevilacqua MC, Moret ALM, Júnior FB. Hearing performance and voice acoustics of cochlear implanted children. Braz J Otorhinolaryngol. 2016;82(1):70-5. https://doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.11.002
https://doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.11....
).

A literatura reporta a relação entre maiores escores para a percepção da fala e menores desvios nos aspectos da qualidade vocal, dentre eles, o grau geral do impacto da voz e o desvio de pitch, e que crianças deficientes auditivas que utilizam a linguagem falada e participaram de programa de reabilitação auditiva apresentam medidas de jitter e grau geral do impacto da voz similares às de seus pares ouvintes(11 Coelho ACC, Bevilacqua MC, Oliveira G, Behlau M. Relationship between voice and speech perception in children with cochlear implant. Pró-Fono R. Atual. Cient. 2009; 21(1):7-12. https://doi.org/10.1590/S0104-56872009000100002
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,33 Souza LBR de, Bevilacqua MC, Brasolotto AG, Coelho AC. Cochlear implanted children present vocal parameters within normal standards. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2012;76(8):1180-3. https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2012.04.029. PMid:22652499
https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2012.04...
,55 Knight K, Ducasse S, Coetzee A, Van der Linde J, Louw A. The effect of age of cochlear implantation on vocal characteristics in children. South African J Commun Disord. 2016;63(1):1-6. https://doi.org/10.4102/sajcd.v63i1.142. PMid:27380914
https://doi.org/10.4102/sajcd.v63i1.142...
).

Os achados deste estudo reforçam a importância do uso dos dispositivos tecnológicos (AASI e IC), pois estes propiciam o acesso aos sons da fala e, consequentemente, o feedback auditivo, imprescindível para o controle vocal e o equilíbrio das medidas acústicas e perceptivo-auditivas da voz de deficientes auditivos(33 Souza LBR de, Bevilacqua MC, Brasolotto AG, Coelho AC. Cochlear implanted children present vocal parameters within normal standards. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2012;76(8):1180-3. https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2012.04.029. PMid:22652499
https://doi.org/10.1016/j.ijporl.2012.04...
).

Além disso, este trabalho mostrou o impacto que a reabilitação auditiva, com ênfase na utilização das habilidades auditivas e da linguagem falada, ocasiona nos aspectos vocais, salientando a relevância desta e do enfoque no trabalho vocal específico durante o processo terapêutico fonoaudiológico. Os achados desta pesquisa também contribuem para o direcionamento de intervenções apropriadas no processo de reabilitação auditiva.

Ressalta-se que o número de participantes justifica-se por ter sido uma população atendida em um mesmo programa de reabilitação auditiva, que contemplava os critérios de inclusão da pesquisa.

Futuramente, com o impacto das políticas públicas quanto ao diagnóstico e intervenção precoces, este estudo poderá ser replicado analisando-se todas as variáveis demográficas (idade cronológica, idade da criança/adolescente na época do diagnóstico, tipo e grau da perda auditiva, idade na adaptação do AASI ou na ativação do IC, tempo de privação sensorial, tempo de terapia com enfoque no desenvolvimento da audição e da linguagem falada) e a habilidade auditiva, em relação aos aspectos vocais.

CONCLUSÃO

Os resultados demonstraram que o acesso à percepção dos sons da fala, com dispositivo tecnológico (AASI ou IC), em um grupo de crianças e adolescentes que utilizavam linguagem falada e participavam de programa de reabilitação auditiva foram semelhantes em praticamente todos os parâmetros vocais analisados aos seus pares ouvintes, diferindo nos parâmetros de variação da frequência fundamental (vF0), variação da amplitude (vAm) e ressonância.

Houve correlação negativa entre o escore de IT-MAIS/MAIS com os parâmetros de jitter, vF0 e grau geral do impacto da voz, ou seja, a percepção auditiva dos sons da fala influenciou o controle vocal do grupo estudado, em que crianças e adolescentes deficientes auditivos que apresentaram maiores escores para a percepção da fala também foram capazes de manter a emissão vocal mais equilibrada.

  • Trabalho realizado pelo Departamento de Fonoaudiologia - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP ‐ Marília (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP processo nº 2015/20853-3.

AGRADECIMENTOS

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP processo nº 2015/20853-3.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2018
  • Aceito
    27 Ago 2019
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