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O conhecimento da Guarda Municipal de Curitiba a respeito da Língua Brasileira de Sinais (Libras), da surdez e do surdo

RESUMO

Introdução:

No Brasil, há um número considerável de pessoas com surdez, usuárias de língua de sinais, as quais deveriam ter acesso à igualdade de oportunidades. Apesar disso, a língua de sinais ainda é desconhecida por parte da população brasileira, especialmente os que trabalham em órgãos públicos, negando seus direitos de igualdade. Assim, em geral, vários profissionais, entre esses os guardas municipais, não estão preparados para a diversidade.

Objetivo:

Investigar o conhecimento dos membros da guarda municipal (GM) de Curitiba a respeito dos surdos, da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e das práticas de atendimento diante da necessidade de interagir com cidadãos surdos.

Método:

Trata-se de um estudo transversal de natureza mista, cuja coleta de dados se deu por meio da aplicação de um questionário semiestruturado, respondido por 50 policiais da GM, com perguntas a respeito do conhecimento deles sobre os surdos e a língua de sinais e das práticas de atendimento realizadas por membros da corporação com pessoas surdas. Os dados foram tabulados e analisados em percentuais quantitativos e eixos de análise qualitativa, sob a Análise do Conteúdo de Bardin.

Resultados:

Os resultados demonstram que os participantes possuem conhecimento limitado da surdez e da Libras.

Conclusão:

A maioria dos integrantes da GM da cidade possui uma visão de surdos e da Língua Brasileira de Sinais baseada em uma perspectiva orgânica da surdez. Além disso, foi possível observar que, durante as práticas de atendimento desses servidores públicos com um cidadão surdo, muitos não conseguiram interagir nem se comunicar.

Descritores
Línguas de sinais; Surdez; Inquéritos e Questionários; Polícia; Política Pública

ABSTRACT

Introduction:

In Brazil, there is a considerable number of deaf people, sign language users, who should have access to equal opportunities. However, sign language is unknown by the most Brazilian population, especially those who work in public institutions, and deny the deaf their rights to equality. Therefore, several professionals, among them, the municipal guards, are not prepared for the diversity.

Purpose:

to investigate the knowledge of the Municipal Guards (MG) from Curitiba about the deaf, Brazilian Sign Language (Libras),and their service practices when they need to interact with deaf citizens.

Method:

It´s a mixed crosscut study; data were collected by the application of a semi-structured questionnaire answered by 50 municipal guards, with questions on their knowledge about the deaf, the sign language and the service practices conducted by their corporation towards deaf people. Data were analyzed quantitatively and qualitatively by means of Bardin’s Content Analysis.

Results:

The results demonstrate that participants have a limited knowledge of deafness and Libras.

Conclusion:

Most members of the Municipal Guard have a view of deaf people and the Brazilian Sign Language based on an organic perspective of deafness, and it was also observed that during their service practices towards deaf people, many of them could not either interact or communicate with them.

Keywords
Sign language; Deafness; Surveys and Questionnaires; Police; Public Policy

INTRODUÇÃO

Segundo dados estimativos divulgados em 1o de julho de 2015, pelo Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE)(11 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas de População. [Internet]. 2015. [acessado 2017 abr 04]. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2015;default
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), 6,2% da população brasileira tem algum tipo de deficiência auditiva, visual, física e/ou intelectual. Dentre essas, as pessoas com deficiência auditiva representam 1,1% da população, o que corresponde a quase 10 milhões de pessoas. Do total de deficientes auditivos, 21% dessas pessoas apresentam perda auditiva de grau severo, o que, em geral, compromete as atividades habituais e pode levar a uma série de limitações, especialmente linguísticas.

No estado do Paraná, conforme o citado censo, foram identificadas 1.879.355 pessoas com diferentes tipos de deficiência. Dentre as pessoas com perda auditiva, identificaram-se 18.988 pessoas que não ouvem coisa alguma, 100.206 que têm grande dificuldade para ouvir e 396.755 que apresentam alguma dificuldade auditiva(11 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas de População. [Internet]. 2015. [acessado 2017 abr 04]. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2015;default
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). No que se refere especificamente à capital desse estado, a pesquisa estimada pelo Censo de 2015 registrou 79.185 pessoas com deficiência auditiva com diversos graus de dificuldade.

Com base nesses dados, percebe-se que há, no Brasil, um número considerável de pessoas com deficiência. Em vista disso, nos últimos anos, políticas públicas específicas para essa parcela da população têm estabelecido critérios técnicos e regulamentos que definem a participação e a inclusão dessa população na sociedade, indicando que essas pessoas devem ter igualdade de oportunidades, acessibilidade e não ser discriminadas, devendo ser respeitadas e valorizadas nas suas diversidades(22 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 13.146 de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília. [Internet]. 2015. [acessado 2017 abr 13] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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,33 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 2005, Seção 1, n. 246, p. 28-30).

Um exemplo dessa legislação é a Lei no 13.146/2015(22 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 13.146 de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília. [Internet]. 2015. [acessado 2017 abr 13] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoas com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

Entende-se que a acessibilidade é um processo dinâmico, que se associa não apenas à mobilidade e ao desenvolvimento tecnológico, mas também ao desenvolvimento da sociedade, que abriga grupos de cidadãos diversos, com direito à participação social, econômica, de lazer e de educação. Tendo em vista que o foco desse trabalho são pessoas com surdez usuárias da língua de sinais, a reflexão nesse estudo é a respeito da acessibilidade dessa parcela da população(44 Araujo EHS. Acessibilidade e Inclusão de pessoas com deficiência na Faculdade de Direito da UFBA, 2015. [acessado 2018 ago 18] Disponível em: https://repositorio.ufba.br/.../dissertação-eliece%20helena%20santos%20araujo%20.pdf
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).

A discussão em torno da acessibilidade dos surdos usuários da língua de sinais ampliou-se a partir de 2002, quando foi promulgada a Lei no 10.4363, que reconhece, em seu artigo 1o,a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão e, em seu artigo 2o, garante que o poder público, em geral, deve apoiar seu uso e difusão de forma institucionalizada, sendo esse o meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil.

Posteriormente, o Decreto no 5.626/05(33 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 2005, Seção 1, n. 246, p. 28-30), art. 17, estabeleceu que essa parcela da população tem o direito a um intérprete de Libras, nos espaços públicos, a estudar em escolas bilíngues, direito à saúde, entre outros critérios.

Com a entrada em vigor da Lei no 13.146/15(22 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 13.146 de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília. [Internet]. 2015. [acessado 2017 abr 13] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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), as normas legais voltaram a discutir o acesso dos surdos por meio da eliminação das barreiras linguísticas enfrentadas pelos usuários de Libras, enfatizando que uma das formas de eliminar tais barreiras é possibilitada pela obrigatoriedade de intérpretes nos locais públicos, como unidades de saúde, hospitais, delegacias de polícia, entre outros.

Apesar de a Lei determinar a obrigatoriedade dos intérpretes, é notória a falta desses profissionais nos locais onde os serviços públicos são ofertados. Assim, na maioria das instituições públicas brasileiras, há falta de adaptação à realidade dos usuários de língua de sinais(55 Souza VM, Mascarenhas VD, Antas LOFS, Soares JFR, Andrade WTL. A inclusão de surdos no trânsito. Rev Cefac 2016; 18(3): 677-687. https://doi.org/10.1590/1982-0216201618317615
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).

Além disso, a língua de sinais ainda é desconhecida por parte da população brasileira, especialmente os que trabalham em órgãos públicos, negando seus direitos de igualdade. Assim, em geral, os profissionais que trabalham no serviço público não estão preparados para a diversidade. Entre esses, destacam-se, nesse trabalho, os guardas municipais que têm um papel importante nos serviços públicos das cidades brasileiras, pois são profissionais disponíveis para auxílio imediato da população, bem como para a resolução de conflitos que podem ocorrer nesses ambientes.

Segundo a Lei no 13.022/14(66 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014. Dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Brasília. [Internet]. 2014. [acessado 2016 ago 10] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13022.htm
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), os guardas municipais são profissionais que atuam na proteção dos direitos humanos do cidadão, na preservação da vida, no patrulhamento preventivo, no compromisso com a sociedade, além de atender a problemas que surgem no exercício das atividades de Segurança Pública. Cabe esclarecer que nas abordagens policiais, geralmente a polícia se identifica com um comando de voz, solicitando que o cidadão abordado pare, mostre as mãos, vire-se de costas e identifique-se. Além disso, é comum o uso de outros comandos que podem minimizar o risco para ambos os envolvidos, como solicitar que o cidadão abordado permaneça parado e não faça movimentos bruscos. É preciso, ainda, salientar que nessas situações de abordagem policial é corriqueiro que os envolvidos estejam sob um nível elevado de estresse, no qual, no caso de surdos usuários de língua de sinais, este pode se agravar pela falta de entendimento da língua oral e pelo uso de gestos ou sinais deles, em geral, desconhecidos pelos policiais da guarda. Assim, é possível inferir que nessas abordagens podem ocorrer mal-entendidos(77 Xavier R. Língua Brasileira de Sinais auxilia nas abordagens e nos serviços realizados pela PM. [Internet]. 2018. [acessado 2018 abr 04] Disponível em: http://www.agenciaalagoas.al.gov.br/noticia/item/23346-lingua-brasileira-de-sinais-auxilia-nas-abordagens-e-nos-servicos-realizados-pela-pm
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).

É preciso esclarecer que apesar de a Lei estabelecer que os funcionários públicos devem assegurar os direitos de qualquer cidadão, a formação da GM, estabelecida a partir da Lei no 13.022/14(66 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014. Dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Brasília. [Internet]. 2014. [acessado 2016 ago 10] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13022.htm
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), em seu art. 11o, explicita que, para que os guardas municipais trabalhem de maneira mais efetiva, é preciso haver capacitação específica, com matriz curricular nacional compatível com suas atribuições. Assim, propõe que os guardas municipais devem ter ensino médio completo e passar por um processo de formação municipal. Tal formação possui a carga horária de 720 horas e, na grade curricular, encontram-se disciplinas relacionadas à segurança pública e aos direitos humanos. Chama a atenção o fato de que os temas referentes às garantias de direitos (com noções legais) voltados ao idoso, à criança e ao adolescente, à pessoa com deficiência, ao consumidor, à etnia/raça, ao gênero, à religião e à orientação sexual sejam ministrados de maneira restrita em somente 16 horas-aula.

Além disso, é preciso esclarecer que durante a revisão bibliográfica para esse trabalho não foram encontrados estudos que discutissem a temática da acessibilidade na surdez na segurança pública nacional nem estudos a respeito da formação desses profissionais.

Entendendo-se a importância de a população surda brasileira usuária da língua de sinais ter acesso igualitário a todos os setores sociais e que tal acesso deve ocorrer prioritariamente por meio de recursos visuais, tal como a língua de sinais, e que a função da GM brasileira, na maioria dos lugares públicos do país, deve ser proteger toda a população, esse trabalho objetiva investigar o conhecimento dos integrantes da GM de Curitiba a respeito dos surdos e da Libras, bem como averiguar as práticas de atendimento desses servidores públicos quando se deparam com situações em que necessitam interagir com um cidadão surdo.

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal de natureza mista, com coleta de dados por meio da aplicação de um questionário semiestruturado, com questões abertas e fechadas referentes ao conhecimento de guardas municipais sobre a Libras e os surdos, além das práticas de atendimento adotadas pelos profissionais da GM quando se depararam com algum surdo ou deficiente auditivo. As perguntas foram elaboradas e aplicadas a três profissionais da GM para verificar o entendimento deles a respeito da pesquisa. Como todos conseguiram responder sem dificuldades, o estudo foi aplicado a outros profissionais.

Para selecionar os profissionais, optou-se pela amostragem por acessibilidade, sendo incluídos aqueles que participaram de um curso de qualificação profissional disponibilizado pela GM de Curitiba.

Durante esse curso, realizado no prédio da corporação da GM da cidade, os participantes foram convidados a participar da pesquisa. Aqueles que aceitaram receberam esclarecimentos sobre o objetivo dela e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), o qual garantia a confidencialidade das informações. Depois disso, cada participante respondeu ao questionário individualmente e por escrito, sem a interferência do pesquisador. O tempo médio de preenchimento dos questionários foi de 30 minutos.

A amostra final foi composta de 50 guardas municipais. O critério de inclusão na pesquisa delimitou os participantes que exerciam o cargo de guarda municipal e que concordassem voluntariamente em participar da pesquisa. Todos os participantes, para proteger o anonimato, foram identificados como “P” (participante) e “n” (numerados) de 1 a 50, na sequência das tabulações.

As respostas qualitativas foram analisadas com base na análise do conteúdo proposta por Bardin(88 Silva RQ, Guarinello AC, Martins SESO. O intérprete de libras no contexto do ensino superior. Rev Teias. 2016; 17(46): 177-90. https://doi.org/10.12957/teias.2016.25283
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), a qual permite reconhecer significações de diferentes tipos de discursos, baseando-se na dedução de critérios que possibilitam o entendimento de dados arrolados em estruturas temáticas. Esses dados inicialmente foram pré-selecionados e categorizados em dois eixos: 1. Conhecimento sobre Libras e surdez; 2. Práticas de atendimento ao público com surdez.

Os dados quantitativos foram submetidos à análise estatística de significância (Qui-quadrado ou Fischer quando a soma das frequências foi inferior a 30 para avaliar a correlação significativa entre algumas questões com resultados quantitativos).

Esta pesquisa foi provada pelo Comitê de Ética com o parecer no 1.315.024 sob o no 4988715.5.000.5529/2015.

RESULTADOS

A média de idade dos 50 participantes foi de 43,5 anos (idade mínima de 25 anos e idade máxima de 58 anos), com desvio padrão de 8,22 anos. O perfil da amostra revela que 47 participantes (94%) eram do sexo masculino e três, do sexo feminino (6%). Em relação ao nível de escolaridade, 46% da amostra concluiu apenas o ensino médio, 36% declararam ter ensino superior e 18% relataram ter algum curso de pós-graduação. O tempo médio de serviço alcançou o índice de 14,92 anos, com tempo mínimo de seis anos e máximo de 31 anos de serviço.

O eixo 1 - denominado de Conhecimento sobre Libras e Surdez compreendeu os dados tabulados relativos a como os participantes definem Libras (Tabela 1), quem são os usuários de Libras (Tabela 2) e como definem a surdez (Tabela 3).

Tabela 1
Distribuição da amostra na categoria de definição de Libras
Tabela 2
Distribuição da amostra na categoria: usuário de Libras
Tabela 3
Distribuição da amostra na categoria definição da surdez

Na questão sobre quem utiliza essa língua, 38 participantes (76%) responderam que sabem quem são os usuários de Libras e 24% afirmaram desconhecer quem utiliza essa língua. A caracterização das respostas dos participantes está exposta na Tabela 2.

Dentre os participantes que responderam que sabem quem utiliza a língua de sinais, 52% escreveram nas respostas “surdos, deficientes auditivos ou mudos”. Ao distribuir essa porcentagem entre surdos, mudos e DA (deficientes auditivos), chegou-se à seguinte porcentagem: 34% para surdos ou mudos e 18% para DA.

Ainda nesse eixo, outra questão abordou a temática sobre como o participante definia surdez e as respostas possibilitaram organizar os dados de acordo com as categorias demonstradas na Tabela 3.

No eixo 2 _ Práticas de atendimento ao público com surdez, os profissionais responderam a questões que relacionavam seu trabalho na guarda a atendimentos prestados com essa parcela surda da população. Ao responderem à questão se já haviam atendido a alguma ocorrência envolvendo um sujeito surdo, 34 participantes responderam que não, o equivalente a 68% da amostra, e 16 participantes responderam que sim, ou seja, 32% da amostra.

Entre os que responderam que já tinham atendido ocorrências envolvendo surdos, 62% relataram que esse contato se deu pela necessidade de realizar uma abordagem policial, na qual o cidadão surdo estava na condição de suspeito pela prática de algum ato ilícito.

Os 37,5% que relataram ter tido contato com surdos em atendimentos revelaram que estes ocorreram em situações nas quais um surdo solicitava ajuda ou pedia informação.

Quando questionados se tiveram dificuldade ao realizar atendimento com os surdos, 87,5% dos participantes responderam que sim e apenas 12,5%, não.

Outra questão que também faz parte desse eixo é se o profissional conseguiu se comunicar com o sujeito surdo: 81% dos participantes responderam que sim por meio de gestos, escrita e comunicação visual. Os outros 19% que atenderam a algum tipo de ocorrência não conseguiram estabelecer comunicação com o cidadão surdo.

Os profissionais que conseguiram se comunicar com o surdo utilizaram diversos recursos, 31% dos servidores relataram que utilizaram a língua portuguesa na modalidade escrita, 23% conseguiram estabelecer comunicação utilizando a leitura labial e 46% relataram que o uso de gestos foi utilizado para essa interação.

Sobre a questão se conheciam algum guarda municipal que tivesse atendido a alguma ocorrência envolvendo um cidadão surdo, 35 participantes responderam que não, número que representa 70% do total da amostra. Os outros 15 participantes informaram que conheciam outros guardas que se envolveram em situações em que precisaram fazer o atendimento a ocorrências em que algum surdo estava envolvido.

Quando questionados sobre que tipo de ocorrência o guarda que conheciam haviam prestado a esse público, 38% dos participantes responderam prestação de serviços e atendimento ao público para auxiliar com informações solicitadas. A abordagem policial e o atendimento às vítimas de crimes somam um total de 31% dos casos relatados e os outros 31% dos participantes alegaram desconhecer o tipo de atendimento prestado por outro colega da GM.

Em relação à análise quantitativa, foram aplicados alguns testes estatísticos em parte dos resultados para verificar se os resultados podiam relacionar-se a idade dos participantes, tempo de serviço e nível de escolaridade, já que a hipótese inicial era que os participantes com mais tempo de serviço e mais nível de escolaridade poderiam ter um conhecimento mais relevante a respeito dos surdos e da língua de sinais, bem como poderiam ter resultados mais positivos durante as abordagens policiais. Através do teste Qui-quadrado (ou teste de Fisher), quando a soma das frequências foi inferior a 30, verificou-se que não existia correlação significativa (p > 0,05) entre a idade, o tempo de serviço e o nível de escolaridade dos participantes.

DISCUSSÃO

De acordo com a caracterização da amostra, constata-se que a idade média dos participantes foi de 43,5 anos, com variação entre 25 e 58 anos; o desvio padrão foi de 8,22 anos de idade. A caracterização da amostra revela que a maioria dos participantes era do sexo masculino: 47 participantes = 94% do total e apenas três, do sexo feminino (6% da amostra). Dados da corporação dessa cidade no sul do Brasil informam que, em 2013, havia um efetivo de 1.533 homens e somente 133 mulheres. Tal fato, provavelmente, tem relação com a própria instituição da GM fundada na hierarquia, nas normas e nos rituais ancorados em valores e preceitos masculinos, segundo uma cultura cristalizada no cotidiano e assimilada por homens e mulheres, marcada por relações de poder que determinam os limites e os avanços da introdução de mulheres na instituição. Assim, a área de segurança pública brasileira era até poucos anos basicamente composta apenas de integrantes homens(99 Oliveira SMC. A presença da mulher na guarda municipal de Fortaleza: avanços e desafios. [monografia]. Fortaleza: Universidade federal do Ceará, 2010).

Quanto ao nível de escolaridade, percebe-se nos resultados que quase metade da amostra concluiu apenas o ensino médio; 36% declararam ter ensino superior e 18% relataram ter curso de pós-graduação. Cabe destacar que o Ensino Médio é exigido como pré-requisito para o ingresso na carreira de guarda municipal. Deste modo, ainda é comum que esses profissionais não se qualifiquem em outro nível de ensino, já que não há essa exigência para fazer parte da corporação. Cabe esclarecer que apenas em 2014, no estado do Paraná, a Lei no 14.522/2014(1010 Paraná. Curitiba. Câmara Municipal de Curitiba. Lei n, 14.522 de 14 de outubro de 2014. Institui o Plano de Carreira para servidores integrantes do cargo de Guarda Municipal. [Internet]. 2014. [acessado 2016 mar 30] Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/pr/c/curitiba/lei-ordinaria/2014/1452/14522/lei-ordinaria-n-14522-2014
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) instituiu o plano de carreira para os integrantes da GMl, o qual dá direito à progressão na carreira denominada “avanço por titulação”.

Quanto ao tempo de serviço, a amostra coletada alcançou o índice médio de 14,92 anos, com tempo mínimo de seis anos e máximo de 31 anos de serviço. Considerando o período de três anos de estágio probatório, infere-se que a maioria dos profissionais apresenta experiência na área.

Quanto aos dados demonstrados na Tabela 1, sobre o conhecimento acerca de Libras, verifica-se que a maioria dos participantes respondeu que Libras é língua de sinais utilizada pelos surdos ou é um código ou método de comunicação.

Apesar de mais da metade da amostra considerar Libras uma língua, muitos a consideram um código de comunicação entre os surdos. Tal visão parece estar vinculada a uma noção de Língua instrumental, a qual não considera que a linguagem precisa da relação com os outros. Considera-se, então, nesse trabalho(1111 Guarinello AC, Massi G, Berberian AP, Tonocchi R, Valentin SML. Speech language group therapy in the context of written language for deaf subjects in Southern Brazil. Deafness & Education Internat. 2017; 1:1-11. https://doi.org/10.1080/14643154.2017.1402549
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,1212 Ferreira CK, Massi GAA, Guarinello AC, Mendes J. Encontros intergeracionais mediados pela linguagem na visão de jovens e de idosos. Rev Disturb comun. 2015; 27 (2):253-263), que a língua tem evolução ininterrupta e é utilizada pelo interlocutor para suas necessidades enunciativas concretas. Para compreender a língua, é preciso perceber as formas linguísticas como flexíveis e variáveis, e não como imutáveis e idênticas, a exemplo da visão de língua enquanto código. Outros quatro participantes (9,52%) definiram Libras com informações que não têm relação direta com língua de sinais, inclusive um deles confundiu Libras com o sistema Braile.

Ainda, entre as respostas categorizadas como outros, apareceram relatos dizendo que Libras é um curso. Tal resposta está de acordo com a realidade, já que existem vários cursos de língua de sinais que possuem esse nome. Outro participante respondeu que Libras são pessoas com deficiência auditiva, ou seja, parece que esse participante possui conhecimento de que ambas as palavras fazem parte do mesmo campo semântico e confundiu o nome da língua com a própria pessoa surda. Outro, ainda, afirmou: Libras é “falar com as mãos”.

Na Tabela 2 estão delineadas as categorias de quem são os usuários de Libras. Observa-se que a maioria das respostas afirma que quem utiliza Libras são surdos ou deficientes auditivos. É preciso destacar, porém, que, na área da surdez, em geral, essas duas nomenclaturas revelam campos de saber diferenciados. Assim, há quem defina surdez como uma deficiência auditiva(1313 Guarinello AC, Claudio DP, Festa PSV, Paciornik R. Reflexões sobre as interações linguísticas entre familiares ouvintes - filhos surdos. Tuiuti: Ciênc Cult. 2018; 46:151-168). Tal visão, em geral, vincula-se a pesquisas na área clínico-médica, as quais percebem a deficiência auditiva como uma deficiência que precisa ser tratada e curada. Comumente, a área clínica se refere aos surdos como deficientes auditivos, independentemente da causa da perda ou de sua severidade. Já as pesquisas que tratam a surdez com essa nomenclatura, geralmente, estão localizadas em outro campo de saber, que aponta que os surdos formam uma comunidade linguística minoritária, caracterizada por compartilhar a língua de sinais e valores culturais, hábitos e modos de socialização próprios(1111 Guarinello AC, Massi G, Berberian AP, Tonocchi R, Valentin SML. Speech language group therapy in the context of written language for deaf subjects in Southern Brazil. Deafness & Education Internat. 2017; 1:1-11. https://doi.org/10.1080/14643154.2017.1402549
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12 Ferreira CK, Massi GAA, Guarinello AC, Mendes J. Encontros intergeracionais mediados pela linguagem na visão de jovens e de idosos. Rev Disturb comun. 2015; 27 (2):253-263

13 Guarinello AC, Claudio DP, Festa PSV, Paciornik R. Reflexões sobre as interações linguísticas entre familiares ouvintes - filhos surdos. Tuiuti: Ciênc Cult. 2018; 46:151-168
-1414 Santana AP, Guarinello AC, Bergamo A. Clínica fonoaudiológica e a aquisição do português como segunda língua para surdos. Distúrb comum. 2013; 25(3): 440-451. [Internet]. 2014. [acessado 2017 abr 04] Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/dic/article/download/17734/132
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).

É preciso esclarecer que no processo de elaboração dos enunciados não existe neutralidade na escolha das palavras, já que o uso da língua está atrelado a um conjunto valorativo do sistema da língua(1515 Signor RCF. Os gêneros do discurso na clínica fonoaudiológica. Working papers em lingüística. 2008; 9 (1): 39-56. https://doi.org/10.5007/1984-8420.2008v9n1p39
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16 Signor RCF. Os gêneros do discurso como proposta de ação fonoaudiológica voltada para sujeitos com queixas de dificuldades de leitura e escrita. Bakhtiniana. 2011; 1(5): 54-71
-1717 Signor RCF. A interlocução na clínica fonoaudiológica: ressignificando vivências em práticas de leitura e escrita. Signo. 2012; 37(63): 2-24. http://dx.doi.org/10.17058/signo.v37i63.2666
http://dx.doi.org/10.17058/signo.v37i63....
). Desse modo, a escolha da palavra mudo por alguns participantes indica o que ouviram acerca da surdez e suas percepções sociais. Tal palavra pode representar não só a falta de voz (mudez), mas também incapacidade intelectual atribuída a esses sujeitos. Historicamente, atribui-se a pessoas que não falam a ideia de que não pensam, de que possuem alguma deficiência intelectual por não fazerem uso da linguagem oral.

Na categoria outros, 13 participantes (31,57%) referiram que usuários de Libras são tradutores, intérpretes, familiares de surdos, pessoas que necessitam se comunicar com outras pessoas, ou seja, as respostas indicam que tradutores, intérpretes e familiares são pessoas que estão em contato com surdos e sua forma de comunicação, pois, às vezes, utilizam Libras para interagir.

Na Tabela 3 estão demonstrados os dados a respeito da definição de surdez. A maioria dos participantes (72%) define surdez como deficiência auditiva, perda de audição ou a não ouvir. Esse elevado percentual de respostas possivelmente relaciona-se a evidências de como a surdez é percebida pela sociedade, ou seja, como uma deficiência relacionada ao não ouvir ou ouvir menos. Possivelmente, tais respostas estão atreladas a discursos sob o viés patológico, clínico, por meio do qual se parte do pressuposto de que existem pessoas “normais” e pessoas deficientes e quem possui alguma deficiência precisa ser curado, medicado(1313 Guarinello AC, Claudio DP, Festa PSV, Paciornik R. Reflexões sobre as interações linguísticas entre familiares ouvintes - filhos surdos. Tuiuti: Ciênc Cult. 2018; 46:151-168).

As respostas relacionadas a tristeza, solidão e isolamento também aparecem nos dados coletados com um percentual de 10%. Tais respostas parecem remeter a ideias negativas sobre surdez, ou seja, de que se é surdo, é incapaz, triste e solitário. É preciso ressaltar que não se pode restringir a surdez apenas aos limites corporais do indivíduo. É preciso incluir as reações de outras pessoas como parte integrante e crucial desse fenômeno, pois são essas reações que, em última instância, definem alguém como deficiente ou não deficiente(1818 Omote S. Deficiência e não deficiência: recortes do mesmo tecido. Rev Bras Educ Especial. 1994; 1(2): 65-73).

Vale mencionar que muitas das respostas do questionário parecem estar atreladas a uma visão de surdez do senso comum, ou seja, refletem o conhecimento adquirido pelo homem segundo experiências, vivências e observações do mundo. São discursos sociais que carregam as marcas do dia a dia(1919 Cirqueira, JS. Críticas de Boaventura à relação de ciência e senso comum de Bachelard. Enicecult. I Encontro Internacional de Cultura, Linguagens e Tecnologias do Recôncavo. 2017. [acessado 2018 abr 14] Disponível em: https://ufrb.edu.br/cecult/images/caderno-resumos-I-enicecult.pdf
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).

Conforme refere uma pesquisa(2020 Rios ERG, Franchi KMB, et al. Senso comum, ciência e filosofia - elo dos saberes necessários à promoção da saúde. Cien Saude Colet. 2017; 12(2): 501-8. https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000200026
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), o senso comum envolve o saber popular, entendido pelo autor como cheio de equívocos, de contradições e preconceitos, enquanto o conhecimento vulgar traduz o pensamento fundamentado, verdadeiro. O conhecimento que integra o senso comum se caracteriza por conhecimentos empíricos acumulados ao longo da vida e passados às gerações. É um saber fundamentado na herança cultural cuja função é orientar a sobrevivência humana nos mais variados aspectos.

É por meio do senso comum que a criança aprende o que é perigoso e o que é seguro, o que pode ou não comer, o que é justo e injusto; aprende a distinguir o bem do mal, entre outras normas. O senso comum se articula com a ciência, inclusive a clínico-médica e a filosofia para sistematizar o que aprendemos por processos formais, informais e, às vezes, inconscientes e inclui um conjunto de valorações que envolvem fatos históricos verdadeiros, doutrinas religiosas, informações científicas popularizadas pelos meios de comunicação de massa, bem como a experiência pessoal acumulada(1919 Cirqueira, JS. Críticas de Boaventura à relação de ciência e senso comum de Bachelard. Enicecult. I Encontro Internacional de Cultura, Linguagens e Tecnologias do Recôncavo. 2017. [acessado 2018 abr 14] Disponível em: https://ufrb.edu.br/cecult/images/caderno-resumos-I-enicecult.pdf
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,2020 Rios ERG, Franchi KMB, et al. Senso comum, ciência e filosofia - elo dos saberes necessários à promoção da saúde. Cien Saude Colet. 2017; 12(2): 501-8. https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000200026
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200700...
). Assim, é previsível supor que esses integrantes da GM, os quais não tiveram em sua formação nenhum conteúdo a respeito dos surdos nem de Libras, tenham ideias baseadas no senso comum.

Apenas um participante dessa pesquisa fez um curso de Libras de forma voluntária, modalidade a distância ofertada pelo Ministério da Justiça (MJ) em parceria com a GM, com um total de 60 horas/aula.

É preciso ressaltar que a disponibilidade desse conteúdo para as instituições de Segurança Pública pelo MJ, mesmo que na modalidade educação a distância, pode ser um indício de que o poder público está iniciando um trabalho visando difundir e utilizar Libras. Apesar disso, é preciso destacar que o curso que esse participante realizou, além de ser a distância, foi de forma voluntária, ou seja, não faz parte da matriz curricular da formação das GMs, nem tão pouco está inserido na formação da GM do município pesquisado.

Quanto às respostas que definem que a surdez é um tipo de barreira, obstáculo ou doença (6% da amostra), é possível inferir que também se relacionam à visão clínica da surdez. A busca por soluções para o problema da comunicação dos surdos inicialmente se assenta sobre duas bases: a ofertada pelas ciências biológicas, que utiliza avanços tecnológicos para sua correção, e a que se acha ligada às ciências humanas, na qual a Libras é considerada a língua dos surdos(1313 Guarinello AC, Claudio DP, Festa PSV, Paciornik R. Reflexões sobre as interações linguísticas entre familiares ouvintes - filhos surdos. Tuiuti: Ciênc Cult. 2018; 46:151-168).

De acordo com os dados apresentados no eixo 2, ao responderem à questão se já tinham atendido a alguma ocorrência envolvendo um sujeito surdo, 34 participantes responderam que não, o equivalente a 68% da amostra, e 16 pessoas responderam que sim, ou seja, 32% da amostra. Cabe esclarecer que atualmente uma parte do efetivo da corporação, que é de 1.341 servidores, dos quais 455 trabalham no período noturno e 158, em postos onde a principal atribuição é preservar o patrimônio público, como escolas e unidades básicas de saúde, não tem contato direto com a população.

Entre os que responderam que já tinham atendido a ocorrências envolvendo surdos, 62% relataram que esse contato ocorrera no momento da abordagem policial. Os outros 37,5% que relataram ter tido contato com surdos em atendimentos revelaram que estes ocorreram em situações nas quais um surdo solicitou ajuda ou pediu informação. Em geral, essas situações ocorrem, pois os GMs podem ser identificados facilmente como servidores públicos pelo uso de uniforme e por estarem inseridos em vários locais públicos para o auxílio imediato à população.

Sobre a dificuldade de realizar atendimento com surdos, 87,5% dos participantes responderam que sim e apenas 12,5%, não. A principal dificuldade em realizar algum tipo de atendimento com surdos, de acordo com os participantes que alegaram dificuldades, tem relação com o desconhecimento sobre os procedimentos necessários a uma boa interação com surdos.

A respeito das dificuldades de interação com surdos, justifica-se a importância da linguagem como mediadora das interações, já que é por meio dela que o homem se constitui como sujeito sociocultural(1111 Guarinello AC, Massi G, Berberian AP, Tonocchi R, Valentin SML. Speech language group therapy in the context of written language for deaf subjects in Southern Brazil. Deafness & Education Internat. 2017; 1:1-11. https://doi.org/10.1080/14643154.2017.1402549
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,2121 Massi G, et al. Envelhecimento ativo: um relato de pesquisa intervenção. Rev CEFAC. 2018; 20(1): 5-12. Envelhecimento ativo: um relato de pesquisa intervenção

22 Guarinello AC, Massi G, Berberian AP, Cláudio DP, Festa PSV, Carvalho HAS. A retextualização como prática nas terapias fonoaudiológicas com sujeitos surdos. Rev CEFAC. 2014; 16(5): 1680-90. https://doi.org/10.1590/1982-0216201412113
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-2323 Mariani BZP, Guarinello AC, Massi G, Tonocchi R, Berberian AP. Speech language therapy practice in a bilingual dialogical clinic: case report. Rev CoDAS. 2016; 28(5): 653-60. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20162015287
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). Um estudo(1414 Santana AP, Guarinello AC, Bergamo A. Clínica fonoaudiológica e a aquisição do português como segunda língua para surdos. Distúrb comum. 2013; 25(3): 440-451. [Internet]. 2014. [acessado 2017 abr 04] Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/dic/article/download/17734/132
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) explicita que os surdos, em geral, passam por dificuldades durante o processo de apropriação da linguagem e que muitos surdos filhos de pais ouvintes apresentam atrasos em relação a essa apropriação, uma vez que o processo depende do meio social, das interações comunicativas e sociais, da audição e de uma língua comum entre a criança e seus pais. Porém, tratando-se dos integrantes da GM, pode-se inferir que essas dificuldades são ainda maiores.

Assim, ao serem questionados se os participantes conseguiram se comunicar com o sujeito surdo durante uma abordagem policial, 81% dos participantes responderam que sim, utilizando outros mecanismos de significação além da fala, como gestos, escrita e comunicação visual. Os outros 19% que atenderam a algum tipo de ocorrência não conseguiram estabelecer comunicação com o cidadão surdo, o que pode ser entendido como ocorrências em que a GM não conseguiu realizar atendimento de qualidade ou até mesmo resolver a situação por falta de conhecimento de Libras.

Os profissionais que conseguiram se comunicar com o surdo utilizaram diversos recursos: 31% relataram que utilizaram a língua portuguesa na modalidade escrita, 23% conseguiram estabelecer a comunicação utilizando a leitura labial e 46% relataram que gestos foram utilizados para essa interação.

De acordo com as respostas do questionário, pode-se supor ser essencial que os guardas municipais estejam cada vez mais preparados e atualizados para trabalhar com qualquer cidadão da sociedade, pois estes são responsáveis pelos atendimentos ao público geral, sob as mais variadas formas, e precisam ter capacitação para interferir, mediar, auxiliar e exercer efetivamente seu papel. Isto porque tanto as garantias de direito social quanto o direito ao acesso e à comunicação são instrumentos que integram os direitos humanos de toda e qualquer pessoa, independentemente de sua situação de deficiente ou não(2424 Frias AAS. Inclusão social dos deficientes auditivos: fundamentos jurídicos e aspectos sociais acerca da acessibilidade dos surdos. [Internet]. 2017. [acessado 2018 abr 21] Disponível em: http://www.facnopar.com.br/conteudo-arquivos/arquivo-2017-06-14-14974689257975.pdf
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).

Em geral, cabe afirmar que a GM está presente em grande parte dos eventos e atua ou deveria atuar sempre como um facilitador na mediação de conflitos, na divulgação de informações e na oferta de ajuda, aspectos esses extremamente relevantes para a população. Entende-se que a GM exerce um papel fundamental na sociedade e que sua interação com todos os cidadãos deveria basear-se nas interações dialógicas consideradas preponderantes para que não haja barreiras linguísticas.

Outro aspecto que deveria ser levado em consideração para os guardas municipais em relação à sua formação é a obrigatoriedade de ter apenas o nível médio de ensino. Entende-se que dificilmente uma pessoa com esse nível de instrução e um curso de formação fragmentado consiga ter uma visão mais crítica e ampla, por meio da qual possa visualizar e atender a população em toda a sua diversidade cultural, étnica, religiosa, política e social.

Com base nos dados analisados, percebe-se que muitos guardas municipais desconhecem a surdez e a língua de sinais e que a maioria dos que tiveram contato com essa população apresentou dificuldades para se comunicar e interagir. Apesar de a amostra estudada ter apenas 50 participantes, pode-se supor que essa talvez seja a realidade de grande parte da população de servidores públicos da área da segurança pública brasileira, já que inexistem pesquisas na área a respeito dessa temática. Em vista disso, sugere-se que outras pesquisas sejam realizadas com essa população e que com base nos resultados sejam feitas propostas, como a introdução de disciplinas na formação da GM que reflitam sobre a diversidade da população e também de cursos de língua de sinais que possam facilitar a interação entre a GM e a população surda usuária da língua de sinais.

Apesar de esse estudo ter sido focado na população surda usuária da língua de sinais e em apenas uma cidade brasileira, pode-se inferir que a maioria dos profissionais que trabalham na GM em vários municípios brasileiros também não possui conhecimento aprofundado da diversidade da população nacional, especialmente das pessoas com deficiência. Tal fato justifica-se, pois a formação dos servidores da guarda não abrange tal temática. Entende-se, portanto, que uma formação que considere as questões da acessibilidade é fundamental e deveria ser condição primordial pelo compromisso social que os guardas municipais têm com os cidadãos.

CONCLUSÃO

De acordo com os resultados desse trabalho, verificou-se que a maioria dos integrantes da GM da cidade de Curitiba possui uma visão de surdos e da Libras baseada em uma perspectiva clínica da surdez. Além disso, foi possível observar que durante as práticas de atendimento desses servidores públicos com um cidadão surdo muitos não conseguiram interagir nem se comunicar.

Sendo assim, é fundamental que se proponha o estabelecimento de programas de capacitação contínua, de formação ampla, por meio de interações dialógicas que proporcionem mais discussão sobre temas relevantes à sociedade, como a Libras. Essa formação contínua deveria capacitar o servidor da GM a ter as condições mínimas de atender o surdo usuário de Libras nas suas diferenças e singularidades.

  • Fonte de financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • Trabalho realizado no Programa de Pós Graduação em Distúrbios da Comunicação, Universidade Tuiuti do Paraná - UTP- Cidade (PR), Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2019
  • Aceito
    17 Set 2019
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