Acessibilidade / Reportar erro

O impacto da afinação vocal na análise perceptivo-auditiva de vozes normais e alteradas

RESUMO

Objetivo:

Avaliar a habilidade de identificação de vozes normais e alteradas por indivíduos afinados e desafinados, comparando seu desempenho nos testes de processamento auditivo e na avaliação perceptivo-auditiva.

Método:

Participaram 15 indivíduos afinados e 15 desafinados pareados quanto à idade e sexo, oriundos de um coral amador, com limiares auditivos e qualidade vocal dentro dos padrões de normalidade. Todos foram submetidos à Triagem da Afinação vocal para a alocação nos grupos de afinados e desafinados. Em seguida, realizaram o Teste Padrão de Frequência (TPF), Teste Padrão de Duração (TPD) e análise perceptivo-auditiva de 36 vozes, mais 20% de repetição para teste de confiabilidade.

Resultados:

Os indivíduos desafinados apresentaram resultados estatisticamente menores que os afinados no TPF e no TPD para ambas as orelhas (p=0,002 OD; p=0,001 OE; p=0,009 TPD). Resultados da análise perceptivo-auditiva e da confiabilidade não apresentaram diferença (p=0,153). Contudo, esses resultados foram melhores quando comparados os participantes com valores normais no TPF e TPD, em relação aos resultados alterados (p=0,033). Assim, participantes com testes temporais de processamento auditivo alterados apresentaram maiores dificuldades na análise perceptivo-auditiva e menor confiabilidade intrassujeito, independentemente de serem ou não afinados.

Conclusão:

Percebe-se que a afinação vocal não é um pré-requisito para a realização de uma boa avaliação perceptivo-auditiva da voz, mas os padrões temporais e a confiabilidade intrassujeito estão notavelmente associados à análise perceptivo-auditiva de vozes normais e alteradas. Assim, sugere-se que o treinamento auditivo seja contemplado em programas de desenvolvimento da habilidade de realizar avaliação perceptivo-auditiva da voz.

Descritores
Música; Percepção auditive; Testes auditivos; Treinamento da voz; Triagem; Voz

ABSTRACT

Purpose:

To evaluate the ability that in tune and out of tune individuals have to identify normal and deviated voice qualities and to compare it with their performance in auditory processing tests and perceptual judgment.

Method:

The study investigated 15 in tune and 15 out of tune individuals. Participants were matched for age and sex, were amateur choir singers, had normal hearing thresholds and normal vocal quality. All individuals underwent Pitch-matching scanning to be classified as in or out of tune. Next, they performed the Pitch Pattern Sequence (PPS) and the Duration Pattern Sequence (DPS) tests and the perceptual judgment of 36 voices plus 20% of repetition for reliability analysis.

Results:

The out of tune individuals had worse performance in the PPS and DPS for both ears (p=0.002 RE; p=0.001 LE; p=0.009 DPS); no difference was observed in the perceptual judgment and the reliability (p=0.153). However, participants with normal PPS and DPS had better performance in the perceptual judgment and better reliability (p=0.033). Thus, individuals with disorders in temporal auditory processing skills have greater difficulty in the perceptual judgment and have lower intra-rater reliability, despite being in or out of tune.

Conclusion:

It can be observed that voice tone is not required to guarantee good perceptual judgment. However, temporal patterns and intra-rater reliability are essential to perceptually assess normal and altered voice qualities. Therefore, auditory training should be included in programs that aim to develop voice perceptual judgment abilities.

Keywords
Music; Auditory perception; Hearing tests; Vocal training; Screening; Voice

INTRODUÇÃO

Afinação vocal é um estado de perfeito acordo entre todas as notas produzidas pela voz humana(11 Houaiss, A. (Ed.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001). Afinar implica reproduzir as alturas das notas isoladas e compreender a estrutura musical em que se encontram, podendo sofrer influência do ponto de vista acústico e cultural(22 Sobreira S. Desafinação Vocal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Musimed; 2003). Já a desafinação é definida como sendo a reprodução vocal de uma linha melódica diferente do modelo de intervalo entre as notas sugerido. Algumas causas presumidas de desafinação vocal são apresentadas na literatura: causas psicológicas e atitudinais, neurológicas, cognitivas, audiológicas, laringológicas, respiratórias, genéticas, musculares, articulares, problemas de percepção, processamento e memória, problemas com o feedback auditivo e proprioceptivo; além de autorreferência interna para compreender, processar e recordar material musical, falta de aprendizado anterior, diferença cultural, dentre outras(33 Heresniak M. The care and training of adult bluebirds: teaching the singing impaired. J Singing. 2004;61(1):9-25). Para uma boa reprodução da escuta, é preciso, além de uma boa detecção auditiva, um processamento sensorial eficiente(44 Estis JM, Dean-Claytor A, Moore RE, Rowell TL. Pitch-matching accuracy in trained singers and untrained individuals: the impact of musical interference and noise. J Voice. 2011;25(2):173-80. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2009.10.010
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2009.10...
).

Sabe-se que a reprodução vocal também é influenciada pelo processamento das informações auditivas(55 Ishii C, Arashiro PM, Pereira LD. Ordering and temporal resolution in professional singers and in well tuned and out of tune amateur singers. Pro Fono. 2006;18(3):285-92) que, por sua vez, conta com a eficiência e eficácia do sistema nervoso central para a percepção e utilização da informação auditiva. O processamento auditivo é constituído por uma série de processos que ocorrem no tempo e permitem que um indivíduo realize análise acústica e metacognitiva dos sons, relacionando as habilidades envolvidas na decodificação, na organização e na codificação da informação sensorial auditiva, levando à percepção e compreensão da informação sonora pelo indivíduo(66 American Speech-Language-Hearing Association. (2005). (Central) Auditory Processing Disorder [Technical Report]. Disponível a partir do http://www.asha.org/policy
http://www.asha.org/policy...
). Nele está inserido o processamento temporal auditivo, que diz respeito à percepção do som ou de sua alteração dentro de um domínio do tempo delimitado. É um componente presente na maioria dos recursos do processamento auditivo, pois muitas características abrangendo informações sonoras são de alguma forma influenciadas pelo tempo. Assim, o processamento auditivo temporal é considerado uma habilidade fundamental na percepção auditiva de sons verbais e não verbais, na percepção de música, ritmo e pontuação, na discriminação de frequência de duração e de fonemas.

Dentre as habilidades do processamento auditivo temporal está a ordenação, que envolve a percepção e o processamento de dois ou mais estímulos auditivos em sua ordem de ocorrência no tempo(77 Shin JB. Temporal processing: the basics. Hear J. 2003; 56(7):52. https://doi.org/10.1097/01.HJ.0000292557.52409.67
https://doi.org/10.1097/01.HJ.0000292557...
). A ordenação pode ser analisada pelo teste comportamental padrão de frequência (TPF) e pelo teste de padrão de duração (TPD), sendo que ambos também evidenciam uma relação significativa entre o processamento auditivo e a afinação vocal do indivíduo(88 Santos DG, Bouzada MAC. O processamento auditivo central e a desafinação vocal. Inter Science Place. 2013; 25(1): 102-105. https://doi.org/10.6020/1679-9844/2506
https://doi.org/10.6020/1679-9844/2506...
). Um melhor desempenho na habilidade de ordenação temporal e processamento das informações auditivas no que se refere à frequência é melhor em indivíduos afinados do que em indivíduos desafinados(55 Ishii C, Arashiro PM, Pereira LD. Ordering and temporal resolution in professional singers and in well tuned and out of tune amateur singers. Pro Fono. 2006;18(3):285-92).

A avaliação perceptivo-auditiva é tradicionalmente utilizada na rotina clínica e considerada um método padrão-ouro na avaliação vocal(99 Patel S, Shrivastav R. Perception of dysphonic vocal quality: some thoughts and research update. Perspect Voice Voice Dis. 2007;17:3-6. ASHA SID-3. https://doi.org/10.1044/vvd17.2.3
https://doi.org/10.1044/vvd17.2.3...
). A sua utilização é muito importante visto que a mobilização do paciente para o tratamento, na maioria das vezes, é a queixa vocal e o impacto que ela causa em si

e nos outros, ou seja, as mudanças de natureza perceptiva na qualidade vocal(1010 Behlau M. Avaliação de voz. In: Voz: O livro do especialista. Rio de Janeiro: Revinter; 2001. p.96-99).

As estratégias utilizadas na avaliação perceptivo-auditiva, principalmente para uso clínico, envolvem a comparação de vozes a um sistema de referências pessoal do avaliador. Tal sistema de referência interno é flutuante e instável, podendo causar variação nas avaliações(1111 Kreiman J, Gerrat BR, Precoda K & Berke GS. Individual diferences in voice quality perception. J Speech Hear Res.1992; 35:512-20. https://doi.org/10.1044/jshr.3503.512. PMid:1608242
https://doi.org/10.1044/jshr.3503.512...
).

Tendo em vista os aspectos subjacentes à afinação vocal, ao processamento auditivo temporal e à avaliação perceptivo-auditiva da voz, a presente pesquisa tem como objetivo avaliar a habilidade de identificação de vozes normais e alteradas por indivíduos afinados e desafinados, comparando o desempenho de afinados e desafinados nos testes de processamento auditivo e na avaliação perceptivo-auditiva.

MÉTODO

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número de parecer 2.501.293. No que tange aos seus objetivos, métodos, riscos e benefícios, foram explicados a todos os participantes que concordaram na participação do estudo, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido.

Trata-se de um estudo transversal que avaliou o processo de identificação de vozes normais e alteradas realizadas por 15 indivíduos brasileiros adultos afinados e 15 desafinados, pareados quanto à idade e sexo (50% homens e 50% mulheres), com idades entre 29 e 59 anos (X = 44 anos), participantes de um coral amador há um ano e meio, em média.

Inicialmente foram convidados 32 coristas participantes de um coral amador que há 15 anos realiza apresentações filantrópicas e tem uma coorte dinâmica de entrada e saída de integrantes.

Os critérios de inclusão da amostra constaram de ausência de queixa vocal e audiológica, avaliação da voz e audição dentro dos padrões de normalidade. Foram descartados indivíduos com queixas psiquiátricas, neurológicas e/ou endócrinas. Portanto, para a seleção dos participantes, todos os voluntários responderam a um questionário demográfico e, caso preenchessem os critérios de inclusão, foram submetidos à avaliação audiológica e triagem vocal, triagem da afinação vocal(1212 Moreti F., Pereira L.D., Gielow I. Pitch-matching Scanning: comparison of musicians and non-musicians' performance. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(4):368-73. https://doi.org/10.1590/S2179-64912012000400013
https://doi.org/10.1590/S2179-6491201200...
) e testes temporais de processamento auditivo. Por fim, realizaram a análise perceptivo-auditiva de um banco de 30 vozes do Centro de Estudos da Voz (CEV).

Questionário de caracterização clínica

Para contemplar requisitos de seleção para a amostra populacional, os voluntários responderam a um questionário com dados relativos à idade, ocupação, saúde geral e questões específicas sobre presença ou ausência de queixa vocal e/ou auditiva, sintomas laríngeos, distúrbios endócrinos e/ou neurológicos, além de exposição a treinamento e atividades musicais (canto, instrumento musical, educação musical).

Avaliação audiológica

Para a avaliação audiológica, foram utilizados os seguintes materiais: cabina acústica, otoscópio marca Heine, audiômetro marca Madsen modelo Itera II (faixa de frequência de 125-12500 Hz), com fones TDH 39P, vibrador ósseo B71, analisador de orelha média marca Madsen modelo Zodiac 901 com frequência de sonda de 226 Hz.

A audiometria tonal avaliou as frequências de 250 a 8.000 Hz. Foram considerados normais os limiares auditivos até 25 dB nas frequências de 250 a 8.000 Hz. Na meatoscopia e imitanciometria, timpanogramas tipo A e a presença de reflexos acústicos entre 70 e 90 dBNS foram considerados dentro dos padrões de normalidade.

Foi excluído um participante por apresentar limiares audiológicos alterados e timpanometria com curva tipo A, compatíveis com uma perda auditiva neurossensorial moderada. Neste momento, a amostra do estudo ficou com 31 coristas.

Triagem vocal

A triagem vocal foi realizada por meio da análise perceptivo-auditiva. Para tanto, em ambiente silencioso, o participante foi orientado a inspirar e, logo após, produzir as seguintes amostras de fala: 1. Vogal “e” sustentada, em frequência e intensidade habituais e confortáveis; 2. Vogal “e” em fraca intensidade, forte intensidade e glissando para avaliação do campo dinâmico; 3. Contagem de números de 1 a 20, em frequência, intensidade e ritmo habituais; e, por fim, 4. Leitura das frases do CAPE-V.

A análise perceptivo-auditiva foi realizada por uma fonoaudióloga especialista em voz por meio da utilização da escala GRBAS(1313 Hirano M. Clinical examination of voice. New York: Springer Verlag; 1981), em que o “G” refere-se ao grau geral do desvio vocal, “R” à rugosidade, “B” à soprosidade, “A” à astenia e “S” à tensão; esses parâmetros foram pontuados em uma escala de Likert de 4 pontos, a saber: 0 = sem alteração vocal, 1 = alteração vocal leve, 2 = alteração vocal moderada e 3 = alteração vocal intensa. Para teste de confiabilidade, foi realizada a repetição de 10% das amostras de voz. O valor da confiabilidade intra-avaliador foi de 1,000, podendo ser considerada como quase perfeita, de acordo com Landis e Koch (1977). Apenas um dos coristas foi avaliado com alteração vocal moderada e, desta forma, foi excluído da amostra, que passou a contar com 30 participantes.

Os participantes com limiares auditivos e qualidade vocal dentro dos padrões de normalidade foram encaminhados às seguintes avaliações: triagem de afinação, processamento auditivo e análise perceptivo-auditiva de vozes.

Triagem da Afinação Vocal

Com a finalidade de realizar a composição dos grupos de afinados e desafinados, os indivíduos foram submetidos individualmente ao instrumento de Triagem da Afinação Vocal(1212 Moreti F., Pereira L.D., Gielow I. Pitch-matching Scanning: comparison of musicians and non-musicians' performance. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(4):368-73. https://doi.org/10.1590/S2179-64912012000400013
https://doi.org/10.1590/S2179-6491201200...
), no qual foram emitidos estímulos sonoros em campo, com intensidade confortável e compatíveis com a tessitura masculina e feminina. O instrumento é composto por duas tarefas, que foram executadas pela pesquisadora com o auxílio de um piano. Na Tarefa 1, os indivíduos ouviram cinco tons musicais isolados (mi, sol#, fá, si, ré#) e os reproduziram por meio de imitação vocal. Na Tarefa 2, os indivíduos ouviram as cinco sequências de três tons (mi lá fá#, sol ré# fá, ré sol mi, ré fá lá, lá# fá# mi) e reproduziram da mesma forma como orientado na Tarefa 1, ou seja, logo após sua apresentação. Os estímulos foram

apresentados apenas uma vez ou repetidos, quando solicitado, e as reproduções foram gravadas em um computador portátil para registro e posterior conferência se necessário. O escore utilizado foi o mínimo de 8 (80%) de acertos dentre as 10 tarefas apresentadas pelo instrumento de triagem.

A partir destes resultados, os participantes foram alocados nos grupos de afinados e desafinados: Afinados - 15 indivíduos, sete do sexo feminino e oito do sexo masculino, que passaram na triagem de afinação; Desafinados - 15 indivíduos, oito do sexo feminino e sete do sexo masculino, que não passaram na triagem de afinação. Não houve diferença entre os grupos para a variável sexo (p=0,50).

Em seguida, todos os participantes, afinados e desafinados, realizaram a avaliação perceptivo-auditiva de 30 amostras vocais do banco de vozes do CEV, localizada na cidade de São Paulo. Essa avaliação foi realizada no mesmo encontro das avaliações que antecederam a seleção e formação dos grupos, ou ainda em um encontro seguinte.

Avaliação do Processamento Auditivo

Todos os indivíduos (n=30) foram submetidos à avaliação do processamento auditivo em relação à ordenação temporal, por meio do Teste de Padrão de Frequência (TPF) e Teste de Padrão de Duração (TPD), da Auditec. O TPF e o TPD são testes elaborados por Musiek(1414 Musiek, F.E. Frequency (pitch) and duration patterns test. J. Am. Acad. Audiol.1994; 5:265-8. PMid:7949300) com o objetivo de verificar a habilidade de ordenação temporal por meio da discriminação de padrões sonoros, considerada um mecanismo fisiológico de processamento temporal.

Para o TPF, tons em frequências baixas (B), em torno de 880 Hz, e altas (A), 1430 Hz, foram apresentados com duração de 500ms e intervalos de 300ms entre os tons. Os tons foram exibidos em grupos de três, com seis sequências possíveis (AAB, ABA, ABB, BAA, BAB e BBA), perfazendo um total de 30 estímulos. A apresentação ocorreu monoauralmente em cada orelha, em nível de 50 dBNS. Os padrões normais para este teste equivalem a um mínimo de 75% de acerto.

O TPD é um teste com aplicação similar ao TPF, porém com estímulos longos (L), com 500ms, e curtos (C), 250ms, com intervalo de 300ms entre os tons, com a frequência constante em 1000 Hz, a 50 dBNS. Também foram apresentadas 30 sequências de três estímulos, em seis possibilidades (LLCC, LCL, LCC, CLL, CLC e CCL). As respostas normais foram aquelas que apresentaram acima de 70% de acertos.

Os testes temporais de processamento auditivo permitem dois tipos de respostas: a imitação, na qual há maior participação do hemisfério direito e a nomeação, com maior participação do hemisfério esquerdo. Os participantes foram instruídos a responder inicialmente nomeando a sequência de tons ouvidos usando as terminologias fino/grosso ou grave/agudo para TPF e curto/longo para o teste TPD. Caso apresentasse desempenho abaixo do padrão de normalidade (75% para TPF e 70% para TPD), foi solicitada a tarefa de imitação (humming), devendo reproduzir vocalmente a sequência de tons ouvidos. O critério de acerto no teste não exigiu a reprodução precisa da nota, mas sim a capacidade de diferenciar diferentes padrões de frequência e duração de sons.

Análise perceptivo-auditiva

Os participantes analisaram 30 vozes do banco de vozes do CEV, sendo 15 vozes normais e 15 disfônicas. O banco foi composto por vozes masculinas e femininas, de vogal sustentada, e contagem de números e meses do ano. Foi repetido 20% (n=6) da amostra total (n=30) de vozes, para a testagem da confiabilidade interna dos participantes, perfazendo um total de 36 vozes.

Para a análise perceptivo-auditiva, os indivíduos foram orientados a avaliar o grau geral do desvio vocal, considerando tanto a vogal sustentada como a contagem de números das amostras vocais selecionadas, por meio de uma escala categórica de 4 pontos: voz normal, um pouco alterada, alteração moderada e muito alterada.

Os participantes realizaram a análise individualmente, em ambiente silencioso com o uso de fone auricular. Foi apresentada uma voz de cada vez e, somente após a resposta, outra voz era apresentada para análise. O estímulo era repetido sempre que solicitado pelo participante.

As respostas dos participantes foram conferidas com um gabarito, previamente elaborado por três especialistas em voz, brasileiros, com média de 9 anos de experiência clínica. Para tanto, os especialistas utilizaram o parâmetro G - grau geral de desvio - da escala GRBAS. O valor da mediana foi usado para definir o gabarito do grau geral do desvio vocal. Os testes Coeficiente Kappa (Ck) e Coeficiente Fleiss Kappa (Fk), os quais mensuraram a confiabilidade intra e intersujeitos, respectivamente, indicaram que os especialistas foram confiáveis na elaboração do gabarito (Tabela 1).

Tabela 1
Dados de confiabilidade dos 3 juízes especialistas em voz

Análise estatística

Os dados foram tabulados e analisados por meio de estatística descritiva e inferencial, utilizando-se o software SPSS 25.0. Adotou-se um nível de significância de 5% para todas as análises estatísticas inferenciais.

As variáveis quantitativas contínuas, a saber: Teste Padrão de Frequência, Teste Padrão de Duração, análise perceptivo-auditiva e grau da análise perceptivo-auditiva, foram analisadas descritivamente por meio do cálculo da média, desvio padrão, mediana, mínimo e máximo. As variáveis qualitativas nominais sexo, classificação do Teste Padrão de Frequência e classificação do Teste Padrão de Duração foram analisadas descritivamente por frequência e porcentagem.

Para comparação das variáveis quantitativas em função dos dois grupos independentes, foi analisada a distribuição das variáveis com o Teste Shapiro Wilk. Todas obtiveram distribuição não normal. Dessa forma, utilizou-se o teste não paramétrico Teste de Mann-Whitney para comparar essas variáveis entre os dois grupos de pesquisa. A associação entre os grupos e as variáveis qualitativas nominais foi realizada com o Teste Exato de Fisher.

RESULTADOS

Foram avaliados 32 coristas e, após empregados os critérios de exclusão, permaneceram 30 indivíduos na amostra, divididos em dois grupos, afinados (n=15) e desafinados (n=15). Destes, nove indivíduos afinados e quatro desafinados mostraram resultados de TPF dentro dos padrões da normalidade em orelha direita, oito indivíduos afinados e três desafinados mostraram resultados de TPF dentro dos padrões da normalidade em orelha esquerda e seis afinados e um desafinado mostraram resultados de TPD normais.

A tabela 2 apresenta o número e porcentagem de afinados e desafinados quanto a resultados normais e alterados de TPF e TPD e respectivos p-valores.

Tabela 2
Número e porcentagem de acertos nos testes temporais de processamento auditivo em afinados e desafinados

A análise dos dados da Tabela 3 mostra que o resultado médio de todos os participantes foi de 60,27% no Teste Padrão de Frequência para orelha direita e 58,80% para a orelha esquerda, e de 48,72% no Teste Padrão de Duração. O grupo de indivíduos desafinados apresentou resultados estatisticamente menores que o grupo de afinados no Teste Padrão de Frequência para orelha direta (p=0,002) e esquerda (p=0,001), e no Teste Padrão de Duração (p=0,009). O valor de p refere-se à comparação entre afinados e desafinados.

Tabela 3
Análise da porcentagem média de acertos nos testes temporais de Processamento Auditivo Central considerando o grupo total pesquisado e a divisão em grupos de afinados e desafinados

A análise da Tabela 4 mostra que a média geral de acertos na avaliação perceptivo-auditiva considerando todos os participantes foi de 54%. Houve maior média de acertos dos participantes para vozes com desvio intenso (81,33%), seguidas por vozes normais (56,67%), vozes com desvio moderado (42,67%) e desvio leve (30,00%) na análise perceptivo-auditiva. Não houve diferença na média dos acertos no grupo como um todo e nem no grupo de indivíduos afinados e desafinados considerando os graus de desvio. A confiabilidade da avaliação de indivíduos de ambos os grupos também não apresentou diferença estatística. Ressalta-se que a confiabilidade apresentada refere-se à confiabilidade interna dos participantes, testada com a repetição das amostras. A confiabilidade dos participantes nesta amostra foi acima de 70%.

Tabela 4
Análise dos acertos por grau de desvio e da confiabilidade da análise perceptivo-auditiva no grupo total pesquisado e na divisão dos grupos de afinados e desafinados

Embora a média dos acertos na avaliação perceptivo-auditiva entre afinados e desafinados tenha sido similar, ao se analisar os testes temporais (Tabela 5), indivíduos com resultado normal especificamente no Teste Padrão de Frequência para orelha esquerda apresentaram porcentagem total de acertos significativa. Os indivíduos com resultados normais nos testes temporais apresentaram também maior confiabilidade na avaliação perceptivo-auditiva.

Tabela 5
Porcentagem total de acertos e confiabilidade da análise perceptivo-auditiva dos indivíduos com resultados normal e alterado nos testes temporais

DISCUSSÃO

A literatura apresenta um amplo detalhamento sobre a afinação vocal por meio de estudos que apontam sua relação com aspectos culturais, percepção musical, domínio vocal(22 Sobreira S. Desafinação Vocal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Musimed; 2003), mecanismos neurais inatos(88 Santos DG, Bouzada MAC. O processamento auditivo central e a desafinação vocal. Inter Science Place. 2013; 25(1): 102-105. https://doi.org/10.6020/1679-9844/2506
https://doi.org/10.6020/1679-9844/2506...
) , emoções(1515 Petrini K, Crabbe F, Sheridan C, Pollick FE. The music of your emotions: neural substrates involved in detection of emotional correspondence between auditory and visual music actions. PLoS One. 2011;6(4):e19165. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0019165. PMCID:PMC3084768. PMid:21559468
https://doi.org/10.1371/journal.pone.001...
); além disso, integração motora-auditiva no controle da voz modulada em função da atenção no nível do córtex(1616 Hu H, Liu Y, Guo Z, Li W,Liu P, Chen S, Liu H. Attention Modulates Cortical Processing of Pitch Feedback Errors in Voice Control. Sci Rep.2015; 5: 7812. https://doi.org/10.1038/srep07812
https://doi.org/10.1038/srep07812...
) e integridade das habilidades auditivas, as quais são importantes para que a monitoração vocal possa produzir resposta comportamental adequada aos estímulos musicais(55 Ishii C, Arashiro PM, Pereira LD. Ordering and temporal resolution in professional singers and in well tuned and out of tune amateur singers. Pro Fono. 2006;18(3):285-92). Tendo em vista que não existe consenso definido e talvez por respeitar essa ampla abrangência conceitual sobre a afinação vocal, um valor determinado dentro de uma escala para classificar afinados e desafinados ainda não foi apresentado.

Contudo, baseado no instrumento de triagem de afinação vocal(1212 Moreti F., Pereira L.D., Gielow I. Pitch-matching Scanning: comparison of musicians and non-musicians' performance. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(4):368-73. https://doi.org/10.1590/S2179-64912012000400013
https://doi.org/10.1590/S2179-6491201200...
) proposto por Moreti et al., e fortalecido pelos resultados apresentados pelo Teste de Reprodução Tonal(1717 Ramos JS, Feniman MR, Gielow I, Silverio KCA. Correlation between Voice and Auditory Processing. J Voice. 2018;32(6):771.e25-771.e36. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08.011. PMid:28967586
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08...
), o presente estudo considerou como coristas afinados aqueles que apresentaram 80% de acertos, ou seja, até dois erros, dentre as 10 tarefas apresentadas. Desta forma, os 30 coristas foram alocados em dois grupos, de afinados e desafinados, cada um com 15 participantes. Quando o teste de triagem da afinação vocal(1212 Moreti F., Pereira L.D., Gielow I. Pitch-matching Scanning: comparison of musicians and non-musicians' performance. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(4):368-73. https://doi.org/10.1590/S2179-64912012000400013
https://doi.org/10.1590/S2179-6491201200...
) foi proposto, os musicistas estudados apresentaram no máximo 3 erros, representando 81,3% de acertos na tarefa de emissão de tons isolados e, na tarefa de ordenação temporal de três tons, apresentaram acertos maiores que 75%. Com valores próximos, os resultados do Teste de Reprodução Tonal Vocal indicaram média de 87,8% de reproduções afinadas em mulheres não disfônicas e média de 71,5% de reproduções afinadas em disfônicas(1717 Ramos JS, Feniman MR, Gielow I, Silverio KCA. Correlation between Voice and Auditory Processing. J Voice. 2018;32(6):771.e25-771.e36. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08.011. PMid:28967586
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08...
).

Dentre as questões relacionadas à afinação vocal, encontram-se as habilidades auditivas. Por exemplo, uma reprodução vocal satisfatória daquilo que ouvimos ocorre mediante um processamento sensorial eficiente das informações auditivas pelo sistema auditivo central(55 Ishii C, Arashiro PM, Pereira LD. Ordering and temporal resolution in professional singers and in well tuned and out of tune amateur singers. Pro Fono. 2006;18(3):285-92). Há uma importante relação entre a produção vocal e as funções auditivas temporais(1717 Ramos JS, Feniman MR, Gielow I, Silverio KCA. Correlation between Voice and Auditory Processing. J Voice. 2018;32(6):771.e25-771.e36. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08.011. PMid:28967586
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08...
), uma vez que desafinados apresentaram maiores alterações na capacidade de processamento auditivo em discriminar padrões sonoros relacionados à frequência e ao tempo, quando comparados aos afinados. O mesmo pode ser observado no presente estudo, sendo que o grupo de desafinados apresentou resultados menores do que o grupo de afinados, tanto no Teste Padrão de Frequência, para orelha direta (p=0,002) e esquerda (p=0,001), como no Teste Padrão de Duração (p=0,009). Assim, é possível corroborar a hipótese de que o desempenho é maior no TPF em cantores afinados(5). A relação estatisticamente significativa entre os testes TPF e TPD e a desafinação vocal de indivíduos, também foi apresentada em uma pesquisa que encontrou uma proporção de indivíduos alterados entre o grupo de desafinados bem maior no grupo de afinados(88 Santos DG, Bouzada MAC. O processamento auditivo central e a desafinação vocal. Inter Science Place. 2013; 25(1): 102-105. https://doi.org/10.6020/1679-9844/2506
https://doi.org/10.6020/1679-9844/2506...
). Esta relação entre a produção vocal e funções auditivas confirma a importância de se considerar os aspectos do processamento auditivo temporal no treinamento da afinação vocal. Foi encontrado um alto desvio padrão, principalmente, no grupo dos desafinados, reforçando uma grande variabilidade nas respostas nos testes temporais, achado esse já encontrado em outro estudo(1717 Ramos JS, Feniman MR, Gielow I, Silverio KCA. Correlation between Voice and Auditory Processing. J Voice. 2018;32(6):771.e25-771.e36. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08.011. PMid:28967586
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08...
). A condição individual de cada participante para a realização do teste talvez seja um fator determinante para estes resultados. Fatores como condições atencionais, psicológicas, emocionais, físicas podem variar entre os participantes podendo ter influenciado essa variabilidade dos resultados dos testes temporais aumentando seu desvio padrão. O processamento auditivo central, por sua vez, envolve diversas habilidades auditivas, e o desempenho conjunto dessas habilidades pode favorecer ou não as estratégias compensatórias utilizadas para responder aos desafios auditivos dos testes. Essa variabilidade entre os perfis auditivos pode justificar o alto desvio padrão encontrado. Salienta-se que a desafinação também pode ocorrer em decorrência de problemas de percepção, processamento, memória, linguagem e/ou produção da emissão, sendo que esses problemas podem ter causas de natureza orgânica, cognitiva, funcional, atitudinal ou estar relacionados à combinação destes fatores(1818 Lacerda O. Classificação das vozes. In: Lacerda O. Compêndio de teoria elementar da música. 12a ed. São Paulo: Ricordi; 1961. p.125-8).

O conceito de voz normal e alterada ainda não é consensual. Usualmente, uma emissão produzida sem desconforto pelo falante e de boa qualidade para o ouvinte é conceituada como norma; em contrapartida, uma emissão produzida com certo desconforto pelo falante e considerada ruidosa pelos ouvintes pode caracterizar uma alteração(1010 Behlau M. Avaliação de voz. In: Voz: O livro do especialista. Rio de Janeiro: Revinter; 2001. p.96-99). Neste estudo, os participantes acertaram entre 17% e 93% das vozes apresentadas para análise perceptivo-auditiva, com média de 54%. Não houve diferença na avaliação perceptivo-auditiva entre indivíduos afinados e desafinados. Assim sendo, sugere-se que a avaliação de voz talvez necessite, além da resolução temporal, de outras competências relacionadas à percepção de componentes harmônicos e desarmônicos, necessárias para percepção de padrões que concorrem no julgamento de uma voz como normal ou alterada. A percepção individual do avaliador, entre outras questões, também é ponto muito importante na análise perceptivo-auditiva, fazendo com que o julgamento auditivo seja influenciado por experiência profissional e pessoal(2727 Costa FP, Yamasaki R, Behlau M. Influência da escuta contextualizada na percepção da intensidade do desvio vocal. Audiol Commun Res. 2014; 19(1): 69-74. https://doi.org/10.1590/S2317-64312014000100012
https://doi.org/10.1590/S2317-6431201400...
).

A análise perceptivo-auditiva na avaliação vocal é uma avaliação subjetiva que tem como filtros elementos como a impressão auditiva, aspectos socioeconômicos e culturais até as preferências individuais do avaliador, permitindo a inferência de dados anatomofisiológicos e importantes informações sobre os aspectos psicossociais da voz(1919 Nemr K, Simões-Zenari M, Cordeiro GF, Tsuji D, Ogawa AI, Ubrig MT, et al. GRBAS and Cape-V Scales: high reliability and consensus when applied at different times. J Voice. 2012;26(6):812e17-22. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.03.005. PMid:23026732
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.03...
). No processo de avaliação, inúmeros adjetivos e métodos são usados para qualificar e classificar uma voz, o que pode gerar uma certa confusão, com discordâncias entre os ouvintes e dificuldades de um consenso acerca da terminologia e do método(2020 Bele I. Reliability in perceptual analysis of voice quality. J Voice. 2005;19(4):555-73. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2004.08.008. PMid:16301102
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2004.08...
). A maior média de acerto na análise perceptivo-auditiva da voz encontrada neste estudo foi para vozes muito alteradas (81,33%), seguidas por vozes normais (56,67%), vozes com alteração média (42,67%) e pouco alteradas (30,00%). Ou seja, quanto mais alterada a voz, mais facilmente ela foi percebida como alterada. Não houve diferença estatística na média dos acertos de indivíduos afinados e desafinados na análise perceptivo-auditiva para vozes normais e alteradas de nenhum grau, bem como na confiabilidade da avaliação de indivíduos de ambos os grupos. Resultado diferente foi encontrado na literatura, em que outro estudo propôs que o ouvido parece ser mais confiável para avaliar vozes normais, havendo, porém, diferenças individuais consideráveis nas análises de vozes alteradas(1111 Kreiman J, Gerrat BR, Precoda K & Berke GS. Individual diferences in voice quality perception. J Speech Hear Res.1992; 35:512-20. https://doi.org/10.1044/jshr.3503.512. PMid:1608242
https://doi.org/10.1044/jshr.3503.512...
). Tendo em vista o caráter subjetivo inerente à avaliação perceptivo-auditiva, a divergência destes achados mais uma vez parece reforçar a variabilidade de critérios existentes nesse tipo de avaliação. Porém, é essa mesma subjetividade e diversidade de parâmetros da avaliação perceptivo-auditiva que atende às variadas demandas clínicas, visto que a subjetividade permeia a avaliação que o paciente realiza sobre a sua própria voz, razão pela qual busca pelo tratamento fonoaudiológico.

É preciso considerar também que a presente pesquisa contou com participantes sem treinamento para avaliação perceptivo-auditiva da voz. Em um estudo que investigou o fator de aprendizagem durante a análise perceptivo-auditiva, o especialista em voz mostrou-se mais preparado e mais suscetível a utilizar estratégias de aprendizagem para melhorar sua performance durante uma tarefa perceptivo-auditiva, mesmo que pouco usual. Dessa forma, observou-se que a experiência profissional influencia de modo positivo, sendo o treinamento importante na formação de um especialista em voz(2121 Englert Marina, Madazio Glaucya, Gielow Ingrid, Lucero Jorge, Behlau Mara. Influência do fator de aprendizagem na análise perceptivo-auditiva. CoDAS [Internet]. 2018 [cited 2019 Feb 21] ; 30( 3 ): e20170107. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-17822018000300304&lng=en. Epub June 07, 2018. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182017107
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Lembrando também que a situação de escuta que envolve o conhecimento ou não do contexto clínico tem impacto direto na avaliação perceptivo-auditiva da intensidade do desvio vocal percebido(2727 Costa FP, Yamasaki R, Behlau M. Influência da escuta contextualizada na percepção da intensidade do desvio vocal. Audiol Commun Res. 2014; 19(1): 69-74. https://doi.org/10.1590/S2317-64312014000100012
https://doi.org/10.1590/S2317-6431201400...
).

Além da análise dos resultados da avaliação perceptivo-auditiva realizada pelos participantes da pesquisa, foram analisados os resultados daqueles que obtiveram escores normais no TPF e TPD quanto ao seu número de acertos e confiabilidade na avaliação perceptivo-auditiva da voz. Nesta pesquisa, apenas os participantes que apresentaram resultados normais no TPF (p=0,001) apresentado à OE obtiveram mais acertos na avaliação do grau geral das vozes apresentadas.

O processo de reconhecimento, identificação e sequencialização dos padrões ocorre desde vias auditivas ipsi e contralaterais da orelha estimulada até os dois hemisférios corticais e corpo caloso(2222 Momensohn-Santos TM, Branco-Barreiro FCA. Avaliação e intervenção fonoaudiológica no transtorno de processamento auditivo. In: Ferreira LP, Befi-Lopes DM, Limongi SCO. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Roca; 2004. p. 553-68). Sabe-se que o circuito do sinal sonoro nas vias centrais apresenta em sua fisiologia um cruzamento que ocorre no tronco encefálico, a informação auditiva apresentada na orelha direita é transmitida para os centros nervosos superiores, tanto pelo feixe ipsilateral como pelo contralateral. Esta representação binaural permite ao sistema responder às mínimas diferenças de tempo e intensidade que ocorrem entre as duas orelhas. Desta forma, a informação apresentada na orelha direita pode demorar alguns milissegundos mais para alcançar o hemisfério cerebral esquerdo do que para alcançar a mesma área do lado direito(2323 Musiek, F.E.; Baran, J.A.; Pinheiro, M.L. Duration pattern recognition in normal subjects and patterns with cerebral and cochlear lesions. Audiology.1990; 29: 304-13. https://doi.org/10.3109/00206099009072861. PMid:2275645
https://doi.org/10.3109/0020609900907286...
).

Não houve diferença na avaliação perceptivo-auditiva entre os grupos investigados, o que demonstra o fato de que ser afinado ou desafinado não influencia a habilidade de avaliar vozes, mas sim a consistência das repostas, o que deve ser considerado principalmente na seleção de juízes para realização de avaliação perceptivo-auditiva.

A confiabilidade das avaliações perceptivo-auditivas da voz é questão central na pesquisa de voz. Variações intra e intersujeitos na avaliação de um mesmo sinal sonoro, ou de diferentes tarefas de um mesmo individuo, desafiam pesquisadores na busca de um modelo teórico. Já existe a proposta de um modelo que atribui várias fontes, por exemplo, a experiência e treinamento anteriores do avaliador, suas preferências, aspectos relacionados às tarefas de fala (emissão sustentada, fala encadeada) e erros causais(2424 Kreiman J, Gerrat BR, Kempster GB, Erman A, Berke GS. Perceptual evaluation of voice quality: review tutotial na a framework for future research. J Speech Hear Res.1993; 36:21-40. https://doi.org/10.1044/jshr.3601.21. PMid:8450660
https://doi.org/10.1044/jshr.3601.21...
). Em relação à confiabilidade intra-avaliador, independentemente da orelha, os participantes que obtiveram resultados normais no TPF foram mais confiáveis. Participantes com resultado normal no Teste Padrão de Duração apresentaram confiabilidade significativamente maior na avaliação perceptivo-auditiva, do que os participantes com resultado alterado (p=0,003). Outra pesquisa que descreveu os resultados de uma avaliação perceptivo-auditiva, caracterizou a confiabilidade intra-avaliadores como baixa para 40% dos juízes(2626 Freitas SV, Pestana PM, Almeida V, Ferreira A. Audio-perceptual evaluation of Portuguese voice disorders - an inter and intra-judge reliability study. J Voice. 2014;28(2):210-5. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2013.08.001
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2013.08...
). Uma pesquisa com foco na confiabilidade encontrou que ouvintes mais experientes tendem a ser mais consistentes em suas avaliações que avaliadores não treinados(2020 Bele I. Reliability in perceptual analysis of voice quality. J Voice. 2005;19(4):555-73. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2004.08.008. PMid:16301102
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2004.08...
). Outra pesquisa encontrou também boa confiabilidade intra e interavaliadores especialistas em voz com experiência clínica(2828 Englert Marina, Lima Livia, Constantini Ana Carolina, Latoszek Ben Barsties v., Maryn Youri, Behlau Mara. Acoustic Voice Quality Index - AVQI para o português brasileiro: análise de diferentes materiais de fala. CoDAS [Internet]. 2019 [cited 2019 Feb 23] ; 31( 1 ): e20180082. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-17822019000100303&lng=en. Epub Feb 11, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018082
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Pesquisas propõem que a audição pode e deve ser treinada clinicamente, com o objetivo de melhora nos escores obtidos na avaliação(2929 Bassich CJ, Ludlow CL. The use of perceptal methods by new clinicians for assessing voice quality. J Speech Hear Disord.1986; 51:125-33. https://doi.org/10.1044/jshd.5102.125. PMid:3702360
https://doi.org/10.1044/jshd.5102.125...
,3030 De bodt FL, Vab de Heyning PH, Wuyst FL, Lambrecht L. The perceptual evaluation of voice disorders. Acta Otolaryngol Belg.1996; 50:283-91. PMid:9001637). O achado no presente estudo evidencia que possivelmente a maior confiabilidade intrassujeito nos avaliadores com TPF e TPD normais ocorre porque percebem de forma mais sistemática as variações acústicas no decorrer do tempo. Desta forma, o padrão temporal do processamento auditivo central dos avaliadores é um parâmetro importante no treinamento de avaliadores na análise perceptiva-auditiva da voz com impacto também no aumento de sua confiabilidade. Estudos anteriores sobre avaliações perceptivo-auditivas da voz têm mostrado que a confiabilidade dessa análise também pode ser aumentada com a eliminação de fatores que influenciam a variabilidade do avaliador, usando, por exemplo, tarefas correspondentes, âncoras sintéticas externas, estímulos de vogal sustentada e classificações unidimensionais, além de protocolos validados e utilizados em larga escala(2525 Iwarsson J, Reinholt Petersen N. Effects of Consensus Training on the reliability of Auditory Perceptual ratings of voice quality. J Voice. 2012; 26(3): 304-12. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2011.06.003. PMid:21840170
https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2011.06...
).

Neste estudo, indivíduos com testes temporais de processamento auditivo alterados apresentaram maiores dificuldades na análise perceptivo-auditiva e menor confiabilidade intrassujeito nesta tarefa, independentemente de serem ou não afinados. Ao se considerar o desenvolvimento dos diversos profissionais que trabalham com a voz humana, tais como fonoaudiólogos especialistas em voz, professores de canto, cientistas vocais, coaches vocais, policiais e peritos, apesar de a afinação vocal não ser um pré-requisito para a realização de uma boa avaliação perceptivo-auditiva da voz, os padrões temporais e a confiabilidade intrassujeito estão notavelmente relacionados à avaliação perceptivo-auditiva de vozes normais e alteradas. Desta forma, foi possível identificar que a habilidade auditiva de percepção dos padrões de frequência está diretamente relacionada ao reconhecimento de vozes e oferecer subsídios para se considerar a importância de seu treinamento no aprimoramento da avaliação perceptivo-auditiva.

CONCLUSÕES

A afinação vocal está relacionada com os padrões temporais de processamento auditivo central; porém, não é um pré-requisito para a realização de uma boa avaliação perceptivo-auditiva da voz. Contudo, os padrões temporais e a confiabilidade intrassujeito estão notavelmente relacionados à análise perceptivo-auditiva de vozes normais e alteradas. Desta forma, sugere-se que o treinamento auditivo dos padrões temporais seja parte de programas de desenvolvimento da habilidade de realizar a avaliação perceptivo-auditiva da voz.

  • Fonte de financiamento: Nada a declarar.
  • Trabalho realizado no Centro de Estudos da Voz - CEV, com base na experiência clínica dos autores.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Houaiss, A. (Ed.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001
  • 2
    Sobreira S. Desafinação Vocal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Musimed; 2003
  • 3
    Heresniak M. The care and training of adult bluebirds: teaching the singing impaired. J Singing. 2004;61(1):9-25
  • 4
    Estis JM, Dean-Claytor A, Moore RE, Rowell TL. Pitch-matching accuracy in trained singers and untrained individuals: the impact of musical interference and noise. J Voice. 2011;25(2):173-80. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2009.10.010
    » https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2009.10.010
  • 5
    Ishii C, Arashiro PM, Pereira LD. Ordering and temporal resolution in professional singers and in well tuned and out of tune amateur singers. Pro Fono. 2006;18(3):285-92
  • 6
    American Speech-Language-Hearing Association. (2005). (Central) Auditory Processing Disorder [Technical Report]. Disponível a partir do http://www.asha.org/policy
    » http://www.asha.org/policy
  • 7
    Shin JB. Temporal processing: the basics. Hear J. 2003; 56(7):52. https://doi.org/10.1097/01.HJ.0000292557.52409.67
    » https://doi.org/10.1097/01.HJ.0000292557.52409.67
  • 8
    Santos DG, Bouzada MAC. O processamento auditivo central e a desafinação vocal. Inter Science Place. 2013; 25(1): 102-105. https://doi.org/10.6020/1679-9844/2506
    » https://doi.org/10.6020/1679-9844/2506
  • 9
    Patel S, Shrivastav R. Perception of dysphonic vocal quality: some thoughts and research update. Perspect Voice Voice Dis. 2007;17:3-6. ASHA SID-3. https://doi.org/10.1044/vvd17.2.3
    » https://doi.org/10.1044/vvd17.2.3
  • 10
    Behlau M. Avaliação de voz. In: Voz: O livro do especialista. Rio de Janeiro: Revinter; 2001. p.96-99
  • 11
    Kreiman J, Gerrat BR, Precoda K & Berke GS. Individual diferences in voice quality perception. J Speech Hear Res.1992; 35:512-20. https://doi.org/10.1044/jshr.3503.512 PMid:1608242
    » https://doi.org/10.1044/jshr.3503.512
  • 12
    Moreti F., Pereira L.D., Gielow I. Pitch-matching Scanning: comparison of musicians and non-musicians' performance. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(4):368-73. https://doi.org/10.1590/S2179-64912012000400013
    » https://doi.org/10.1590/S2179-64912012000400013
  • 13
    Hirano M. Clinical examination of voice. New York: Springer Verlag; 1981
  • 14
    Musiek, F.E. Frequency (pitch) and duration patterns test. J. Am. Acad. Audiol.1994; 5:265-8. PMid:7949300
  • 15
    Petrini K, Crabbe F, Sheridan C, Pollick FE. The music of your emotions: neural substrates involved in detection of emotional correspondence between auditory and visual music actions. PLoS One. 2011;6(4):e19165. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0019165 PMCID:PMC3084768. PMid:21559468
    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0019165
  • 16
    Hu H, Liu Y, Guo Z, Li W,Liu P, Chen S, Liu H. Attention Modulates Cortical Processing of Pitch Feedback Errors in Voice Control. Sci Rep.2015; 5: 7812. https://doi.org/10.1038/srep07812
    » https://doi.org/10.1038/srep07812
  • 17
    Ramos JS, Feniman MR, Gielow I, Silverio KCA. Correlation between Voice and Auditory Processing. J Voice. 2018;32(6):771.e25-771.e36. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08.011 PMid:28967586
    » https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2017.08.011
  • 18
    Lacerda O. Classificação das vozes. In: Lacerda O. Compêndio de teoria elementar da música. 12a ed. São Paulo: Ricordi; 1961. p.125-8
  • 19
    Nemr K, Simões-Zenari M, Cordeiro GF, Tsuji D, Ogawa AI, Ubrig MT, et al. GRBAS and Cape-V Scales: high reliability and consensus when applied at different times. J Voice. 2012;26(6):812e17-22. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.03.005 PMid:23026732
    » https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.03.005
  • 20
    Bele I. Reliability in perceptual analysis of voice quality. J Voice. 2005;19(4):555-73. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2004.08.008 PMid:16301102
    » https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2004.08.008
  • 21
    Englert Marina, Madazio Glaucya, Gielow Ingrid, Lucero Jorge, Behlau Mara. Influência do fator de aprendizagem na análise perceptivo-auditiva. CoDAS [Internet]. 2018 [cited 2019 Feb 21] ; 30( 3 ): e20170107. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-17822018000300304&lng=en Epub June 07, 2018. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182017107
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-17822018000300304&lng=en» http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182017107
  • 22
    Momensohn-Santos TM, Branco-Barreiro FCA. Avaliação e intervenção fonoaudiológica no transtorno de processamento auditivo. In: Ferreira LP, Befi-Lopes DM, Limongi SCO. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Roca; 2004. p. 553-68
  • 23
    Musiek, F.E.; Baran, J.A.; Pinheiro, M.L. Duration pattern recognition in normal subjects and patterns with cerebral and cochlear lesions. Audiology.1990; 29: 304-13. https://doi.org/10.3109/00206099009072861 PMid:2275645
    » https://doi.org/10.3109/00206099009072861
  • 24
    Kreiman J, Gerrat BR, Kempster GB, Erman A, Berke GS. Perceptual evaluation of voice quality: review tutotial na a framework for future research. J Speech Hear Res.1993; 36:21-40. https://doi.org/10.1044/jshr.3601.21 PMid:8450660
    » https://doi.org/10.1044/jshr.3601.21
  • 25
    Iwarsson J, Reinholt Petersen N. Effects of Consensus Training on the reliability of Auditory Perceptual ratings of voice quality. J Voice. 2012; 26(3): 304-12. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2011.06.003 PMid:21840170
    » https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2011.06.003
  • 26
    Freitas SV, Pestana PM, Almeida V, Ferreira A. Audio-perceptual evaluation of Portuguese voice disorders - an inter and intra-judge reliability study. J Voice. 2014;28(2):210-5. https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2013.08.001
    » https://doi.org/10.1016/j.jvoice.2013.08.001
  • 27
    Costa FP, Yamasaki R, Behlau M. Influência da escuta contextualizada na percepção da intensidade do desvio vocal. Audiol Commun Res. 2014; 19(1): 69-74. https://doi.org/10.1590/S2317-64312014000100012
    » https://doi.org/10.1590/S2317-64312014000100012
  • 28
    Englert Marina, Lima Livia, Constantini Ana Carolina, Latoszek Ben Barsties v., Maryn Youri, Behlau Mara. Acoustic Voice Quality Index - AVQI para o português brasileiro: análise de diferentes materiais de fala. CoDAS [Internet]. 2019 [cited 2019 Feb 23] ; 31( 1 ): e20180082. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-17822019000100303&lng=en Epub Feb 11, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018082
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-17822019000100303&lng=en» http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018082
  • 29
    Bassich CJ, Ludlow CL. The use of perceptal methods by new clinicians for assessing voice quality. J Speech Hear Disord.1986; 51:125-33. https://doi.org/10.1044/jshd.5102.125 PMid:3702360
    » https://doi.org/10.1044/jshd.5102.125
  • 30
    De bodt FL, Vab de Heyning PH, Wuyst FL, Lambrecht L. The perceptual evaluation of voice disorders. Acta Otolaryngol Belg.1996; 50:283-91. PMid:9001637

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2019
  • Aceito
    17 Set 2019
Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia Al. Jaú, 684, 7º andar, 01420-002 São Paulo - SP Brasil, Tel./Fax 55 11 - 3873-4211 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@codas.org.br