INTRODUÇÃO
A voz é um fenômeno próprio produzido pelo homem, que representa não somente a sua idade, sexo e tipo físico, como também é um dos meios mais fortes que identificam nossas características de personalidade e estados emocionais(1). Dentre os fatores que podem interferir na qualidade vocal, destaca-se a ocorrência de doenças como o refluxo laringofaríngeo (RFL, que tem sido frequente nos dias atuais, como consequência, entre outros, de vida estressante e má alimentação(2).
O RLF, designado por Koufman et al em 1996, é uma das manifestações extraesofágicas mais comuns da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE)(3,4). Apontado como uma das causas mais relevantes para o desenvolvimento de disfonia(3,5), o RLF é o fluxo retrógrado do conteúdo gastroduodenal para o trato aerodigestivo superior, englobando sinais, sintomas e lesões teciduais(2,5,6). Está relacionado à incompetência do esfíncter esofágico inferior e clareamento ineficaz por diminuição do peristaltismo(7). Dentre os conteúdos refluídos, o ácido clorídrico e a pepsina são os principais(8). A laringe apresenta maior susceptibilidade à lesão por refluxo do que o esôfago, pois não possui as defesas epiteliais (barreira antirrefluxo) do esôfago(3).
Os sintomas mais frequentemente relacionados ao refluxo laringofaríngeo são: dor de garganta, sensação de globus faríngeo, pigarro, disfonia, tosse seca e crises de laringoespasmo(5,8,9,10,11,12,13,14), sendo que uma parcela considerável destes sintomas está associada à voz(4,6,15,16,17,18). As pregas vocais podem sofrer com os efeitos provocados pelo refluxo ácido, uma vez que o próprio ácido, tosse e pigarro podem agravar lesões laríngeas, alterando a constituição das pregas vocais e resultando em lesões típicas como granulomas e úlceras de contato(7).
Estima-se que o RLF seja uma das condições inflamatórias crônicas de laringe mais frequentemente encontradas e que ocorra em pelo menos 50% dos indivíduos com distúrbios de laringe e voz(13).
Dentre os exames previstos na avaliação diagnóstica, inclui-se o exame laringoscópico, no qual é possível visualizar sinais sugestivos de refluxo, como hiperemia e edemas laríngeos difusos, edema de pregas vocais e de pregas vestibulares, edema da mucosa subglótica, hipertrofia da região interaritenoídea, muco espesso endolaríngeo e granuloma ou tecido de granulação(3,14). Todavia, estes sinais inflamatórios podem estar presentes em outras patologias que acometem o trato laringofaríngeo, resultando em dificuldade diagnóstica para o RLF(10,12,14).
A fim de contribuir para o diagnóstico de refluxo laringofaríngeo, o Reflux Finding Score (RFS) foi um questionário elaborado com o objetivo de documentar os achados físicos relacionados ao refluxo e à intensidade dos sintomas (19). Esse instrumento produz um escore que pontua os sinais inflamatórios laríngeos acima citados por meio dos achados videolaringoscópicos, com o objetivo de tornar o diagnóstico menos subjetivo. O escore de pontuação atribui graus de intensidade destes sinais inflamatórios e determina a presença ou ausência de lesões sugestivas de refluxo laringofaríngeo. A escala RFS apresenta alta reprodutibilidade e confiabilidade, de modo que um indivíduo com pontuação total acima de 7 pontos tem uma probabilidade de 94% de apresentar refluxo laringofaríngeo. Ademais, também é utilizada para monitorar a evolução da doença e a resposta ao tratamento(19). Essa escala demonstrou contribuir no diagnóstico clínico de refluxo laringofaríngeo em 16% a 32% dos casos nos grupos de ensaios clínicos randomizados(17).
Partindo do pressuposto de que não existe um teste de critério padrão para diagnóstico clínico de RLF e o mesmo permanece controverso, pretendeu-se investigar se há associação entre sinais e sintomas laríngeos sugestivos de RLF com qualidade vocal e queixas de voz, bem como sua relação com a idade e o sexo, utilizando-se o escore total do RSF como medidor de sinais endolaríngeos de refluxo.
MÉTODO
O presente estudo, de caráter exploratório transversal, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto sob número 2166/201, CAEE: 13066513. 0. 0000. 5440 e todos os indivíduos envolvidos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O local para coleta de dados foi o Hospital Estadual de Ribeirão Preto, que atende à demanda do XIII Departamento Regional de Saúde (DRS) de Ribeirão Preto, no qual é realizado o atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) dos 26 municípios que compõem a área de abrangência do mesmo.
Para inclusão no estudo, foram utilizados como critérios: ter idade entre 18 e 70 anos, de ambos os sexos e indicação médica de nasofibrolaringoscopia por queixas de voz ou refluxo no período compreendido de março a outubro de 2015. Foram inseridos todos os usuários do SUS que haviam recebido atendimento médico prévio em qualquer um dos municípios que englobam a DRS e que possuíam encaminhamento médico para o ambulatório de otorrinolaringologia do hospital, contanto que preenchessem os critérios de inclusão em período determinado de oito meses.
Os sujeitos com lesões laríngeas diferentes de RLF, bem como alterações respiratórias, histórico de doença neurológica e tabagistas foram excluídos do estudo. Dentre tais critérios, o tabagismo foi autorreferido, doenças neurológicas foram confirmadas via prontuário eletrônico e as lesões laríngeas e alterações respiratórias foram classificadas por médico otorrinolaringologista dentre alergias, sinusite e rinite.
A amostra total, selecionada por conveniência dentro do período determinado, foi composta por 97 pacientes com ou sem queixa autorrelatada de voz (rouquidão, soprosidade, garganta seca) ou de refluxo laringofaríngeo (pigarro, globus faríngeo, tosse, queimação, pirose). Para classificar a ausência e presença de queixas vocais, bem como queixas de refluxo laringofaríngeo, foram utilizados os valores 0 e 1, respectivamente.
Os achados endolaríngeos foram classificados através da nasofibrolaringoscopia por um médico otorrinolaringologista utilizando a escala de achados endolaríngeos de refluxo (RFS, que varia de 0 a 26 pontos, sendo 26 a pontuação de maior gravidade.
A amostra de fala para análise perceptivo-auditiva foi composta de emissão de vogal prolongada /Ɛ/ e contagem de números de 1 a 10. Tais atividades foram realizadas no período da manhã, supondo-se um descanso vocal mínimo noturno. Fez-se o registro em computador portátil (Toshiba, Windows 7, acoplado com microfone CAD C195 cardiodcondenser, colocado a 10 cm do participante da pesquisa. Foi utilizada uma placa externa de captura de som modelo Mobile Pré da marca M-Audio a fim de garantir a qualidade do som coletado. O software utilizado para a gravação das vozes foi o Sound Forge 8. 0, da Sony.
As amostras foram analisadas por uma fonoaudióloga especialista em voz, com 25 anos de experiência em atendimento clínico na área de voz e que não tinha conhecimento da identidade dos sujeitos e nem de sua condição clínica.
A análise da qualidade vocal foi realizada por meio da avaliação perceptivo-auditiva, com base na escala GRBASI (Grade, Roughness, Breathiness, Asteny, Strain, Instability, instrumento de alto grau de confiabilidade que classifica as vozes de acordo com o grau geral de alteração (G, rugosidade (R, soprosidade (B, astenia (A, tensão (S) e instabilidade (I). Para tal, foi atribuído para cada parâmetro os valores: 0 (ausência, 1 (alteração discreta, 2 (alteração moderada) ou 3 (alteração intensa).
Segundo esta proposta de investigação, as vozes foram classificadas em: ausência (0) ou presença (1) de alteração na qualidade vocal. A presença de alteração da qualidade vocal (1) foi considerada quando a voz foi classificada com grau 1, 2 ou 3 na escala GRBASI.
A avaliação perceptivo-visual foi realizada com nasofibroscópio flexível (Olympus, modelo ENF-P4) de 3. 4 mm e sistema de vídeo da marca Olympus. A visualização foi feita com uso de xilocaína tópica em gel aplicada na fibra ótica. A avaliação laringológica foi feita durante a respiração e emissão da vogal /i/.
Foram registrados dados referentes à condição anatomofuncional da laringe considerando achados endolaríngeos sugestivos de acometimento por refluxo como: edema subglótico, obliteração dos ventrículos, eritema/hiperemia, edema das pregas vocais, edema laríngeo difuso, hipertrofia da região interaritenóidea, granuloma/tecido de granulação e muco endolaríngeo espesso. Para tal classificação, foi utilizada a Reflux Finding Score (RFS, proposta e validada por Belafasky et al. em 2001. A escala varia de 0 (nenhum achado anormal) a um máximo de 26 (pior pontuação possível). Os itens finais incluídos na escala englobam edema subglótico, obliteração ventricular, eritema/hiperemia, edema da prega vocal, edema laríngeo difuso, hipertrofia, granuloma/tecido de granulação e muco endolaríngeo excessivo.
Foi realizada uma análise exploratória dos dados, com o objetivo básico de sumarizar os valores, organizando e descrevendo os dados por meio de tabelas com medidas descritivas. As variáveis contínuas foram expressas em termos de estatísticas descritivas básicas (média, mediana, desvio padrão, já as variáveis categóricas foram expressas em termos de frequência.
As análises estatísticas foram realizadas através do software SAS® 9. 0, através da PROC GLM. Para verificar a associação estatística das variáveis categóricas, foi utilizado o teste exato de Fisher. A associação entre duas variáveis quantitativas (Idade e Escore Refluxo) foi feita através do Coeficiente de Correlação de Pearson.
Nesas análises, considerou-se um nível de significância de 5% e os ajustes foram obtidos no software SAS (versão 9. 2). Os gráficos foram construídos no R (The R Project for Statistical Computing, versão 3. 1.
RESULTADOS
Foram avaliados 97 indivíduos, com média de idade de 42,6 anos (DP = 13,9, mediana de 41, variando entre 18 e 67 anos, sendo 62,3% do sexo feminino. Dos 48 voluntários que apresentaram queixas vocais, 34 eram mulheres e 14 homens, com idade média igual a 44,9 (DP=13,3) anos. Já dos 49 voluntários sem queixas vocais, 27 eram mulheres e 22 homens, com idade média igual a 41,2 (DP = 12,3) anos.
As variáveis sexo, queixa vocal, queixa de refluxo e qualidade vocal foram analisadas para verificar se havia associação entre si, por meio de teste exato de Fisher (nível de significância de 5%). Foi detectada associação apenas entre sexo e queixa de refluxo (p = 0,02, no qual se observou que mulheres apresentam mais queixas de refluxo do que homens (Tabela 1).
Tabela 1 Associação entre gênero e queixa de refluxo pelo Teste Exato de Fischer
Sexo | Queixas de refluxo | Total | |
---|---|---|---|
Não | Sim | ||
Masculino | 16 | 20 | 36 |
Feminino | 13 | 48 | 61 |
Total | 29 | 68 | 97 |
Valor de p | 0,0219 |
Ao comparar as variáveis estudadas com os escores da escala RFS, existe evidência de relação entre esse escore e as variáveis “queixa vocal” (p = 0,02) e “queixa de refluxo” (p < 0,0001) (Tabela 2).
Tabela 2 Comparação entre as variáveis estudadas e o escore da escala RFS por meio do modelo de regressão linear
Efeito | Escore RFS Médio | Estimativa da comparação | Erro Padrão | Valor de p | |
---|---|---|---|---|---|
Não | Sim | ||||
Queixa vocal (0-1) | 5,59 | 6,94 | -1,34 | 0,58 | 0,0231 |
Queixa refluxo (0-1) | 3,93 | 7,25 | -3,31 | 0,55 | <0,0001 |
Qualidade vocal (0-1) | 6,08 | 6,47 | -0,38 | 0,59 | 0,5170 |
Masculino | Feminino | ||||
Sexo (1-2) | 6,08 | 6,36 | -0,27 | 0,61 | 0,6553 |
Ao correlacionar a idade com os escores da escala RFS, obteve-se um coeficiente r = 0,41, que indica uma relação altamente positiva (p < 0,01) com tendência de que, quanto maior a idade, maiores os achados endolaríngeos de refluxo, como mostra a Figura 1.
DISCUSSÃO
O presente estudo verificou a associação entre sinais e sintomas laríngeos sugestivos de RLF com qualidade vocal e queixas de voz em pacientes atendidos em um hospital de nível secundário na cidade de Ribeirão Preto - SP e analisou estatisticamente tais características, buscando possíveis relações entre as mesmas.
A idade indicou evidência de relação estatística com a presença de sinais indicativos de RLF através da escala RFS, uma vez que os indivíduos com idade mais avançada apresentaram uma probabilidade maior de terem achados de RLF quando comparados com indivíduos mais jovens. A incidência de refluxo provavelmente aumenta à medida que se envelhece(20,21,22). Tal achado vai de acordo com achados da literatura, nos quais foi observado que 69% dos sujeitos que apresentavam sinais de RLF e tinham média de idade entre 53 e 55 anos(3).
Em outra pesquisa, verificou-se que a probabilidade de sinais de refluxo serem encontrados é maior em pessoas mais idosas; bem como indivíduos do sexo feminino com idade mais avançada apresentam um fator de risco para o surgimento de alterações extraesofagianas, como o RLF(13). Com o envelhecimento, pode haver um colapso da barreira antirrefluxo natural. O relaxamento transitório do EEI é o mecanismo fisiopatológico mais comum dos episódios de refluxo(22). Segundo Mendelsohn(21), embora seja improvável que um esôfago em envelhecimento produza um aumento do relaxamento transitório do EEI, pacientes idosos apresentam uma probabilidade muito maior de tomar um ou mais medicamentos que possam promover esses relaxamentos inadequados como, por exemplo, bloqueadores do canal de cálcio, benzodiazepínicos, anticolinérgicos e antidepressivos. O outro mecanismo fisiopatológico que explica o aumento da incidência de refluxo nos idosos é uma depuração diminuída do ácido esofágico(22). Observa-se que o refluxo ácido permanece no esôfago por mais tempo nos idosos devido à fraca propulsão esofágica em direção ao estômago.
Entretanto, no presente estudo, ainda que o fator idade tenha apresentado relação com a presença de sinais endolaríngeos de refluxo, tal influência deve ser ponderada, uma vez que a média de idade foi de 42,6 anos, com poucos indivíduos acima de 60 anos.
A influência do RLF na patogênese de alterações laríngeas é bastante estudada(11,13,14,15,23), contudo suas implicações na produção vocal ainda não estão bem estabelecidas. Dos sintomas vocais mais frequentes em pacientes com RLF, a rouquidão é um dos principais(14,23); assim como o RLF pode estar presente em até 50% dos pacientes com problemas de voz(11,15),, bem como estar envolvido em até 75% dos pacientes com sintomas otorrinolaringológicos refratários(24). No presente estudo, verificou-se que a queixa vocal se relacionou estatisticamente com o escore de RFL, sendo que quanto maior o escore, maiores as queixas vocais.
Na literatura, a associação entre a presença de alteração vocal e sinais sugestivos de RLF é controversa. Neste estudo, ela não foi associada, assim como em outros estudos que citam uma possível relação, mas não comprovam relação causal entre o RLF e patologia vocal(2,5,14,17,18,12,22).
Verificou-se também que quanto mais queixas de refluxo o paciente apresentou, maior o escore da escala RFS, o que corrobora para inferirmos que essa escala é um método que pode ser usado para medir sinais laríngeos de refluxo.
Vale ressaltar que alguns indivíduos do presente estudo não apresentavam queixa de refluxo, nem queixa vocal, mas apresentavam sinais de RLF no exame otorrinolaringológico. O contrário também ocorreu, ou seja, houve registro de indivíduos que relataram apresentar alteração vocal e sintomas de RLF, mas não apresentavam sinais no exame. Tal fato confirma a complexidade mencionada na literatura para se chegar a um diagnóstico clínico de RLF(4,12,16).
A maioria dos clínicos reconhece prontamente a facilidade de diagnosticar casos intensos de refluxo quando os sinais teciduais são dramáticos. Todavia, muitos pacientes apresentam perfis sutis, dificultando, assim, a interpretação(4). Os sintomas de RLF podem ser encontrados em cerca de 10% dos pacientes referentes aos serviços de otorrinolaringologia16. As queixas mais frequentes encontradas em indivíduos com RLF são: dor de garganta, sensação de globus faríngeo, pigarro, disfonia, tosse seca e crises de laringoespasmo(8,9,11,12,14,15,16).
No entanto, apesar da prevalência relativamente alta dessa condição clínica, o diagnóstico de RLF permanece controverso, uma vez que atualmente não existe um teste de critério padrão(17,18). Este dilema clínico continuará até que uma definição específica e confiável dos sinais de refluxo possa ser estabelecida, uma vez que o RLF é uma síndrome multifatorial, com uma vasta representação clínica e requer uma abordagem multidisciplinar(6).
As avaliações da qualidade vocal podem ajudar a entender melhor os distúrbios da voz e podem ser usadas como indicadores da eficácia do tratamento em pacientes com sintomas relacionados ao refluxo laringofaríngeo(5,24,25).
Este estudo apresenta algumas limitações, importantes de serem citadas. Foi realizado em um único hospital, o que limita a generalização dos resultados. Ainda poderíamos considerar a possibilidade de testar a confiabilidade intra-avaliador, tanto na análise perceptivo-auditiva, como na análise visual (endoscópica) com duplicação de parte da amostra de áudio e vídeo, assim como a análise considerando o grau de intensidade da alteração vocal.
Sendo assim, os dados apontam para a necessidade de novas pesquisas que investiguem tais inter-relações, podendo auxiliar na construção do conhecimento e contribuir para o tratamento multidisciplinar dessa população.
CONCLUSÃO
O refluxo gastroesofágico, quando se manifesta além do esôfago, provoca sinais e sintomas, que podem produzir alterações laríngeas e vocais.
A presença de sinais videolaringoscópicos sugestivos de RLF através da escala RFS não se mostrou associada ao sexo nem à presença de alteração de voz, mas apresentou relação com queixas de RLF, queixas vocais e idade mais avançada.