Acessibilidade / Reportar erro

Efeitos da presença do cão na expressão de conteúdos psíquicos de um sujeito que gagueja: estudo de caso

RESUMO

A gagueira gera impactos negativos na qualidade de vida dos sujeitos e está associada a maior risco de desenvolvimento de problemas sociais e psíquicos. Nessa perspectiva, apesar da diversidade das hipóteses etiológicas e dos tratamentos da gagueira, destaca-se a interface entre psicologia e fonoaudiologia na abordagem dos aspectos bio-psíquicos envolvidos nesse quadro clínico. Pesquisas recentes indicam que a presença, especificamente de cães, pode auxiliar o paciente na elaboração simbólica de conteúdos psíquicos. Nessa perspectiva, o objetivo desse estudo é avaliar os efeitos da presença do cão na expressão de conteúdos psíquicos de um sujeito que gagueja, com a hipótese de que o enquadre pode reduzir o sintoma. O sujeito é M., sexo feminino, 45 anos, casada, sem filhos, cursou ensino fundamental completo e de auxiliar de cabeleireira. Passou pelo processo de terapia fonoaudiológica na presença do cão. Foi realizada uma entrevista semi-dirigida após o processo. Um cão coterapeuta, da raça Golden Retriever, participou de todas as sessões. Alguns conteúdos subjetivos relevantes observados no setting no decorrer do processo terapêutico fonoaudiológico, os quais parecem ter sido mobilizados pelo enquadre estabelecido pela interação entre terapeuta-paciente-cão, parecem demonstrar associação com a manifestação das disfluências. O cão fez contato físico, deu suporte, motivou e acolheu o sujeito em situações de demonstração de conflitos psíquicos. Assim, este estudo de caso clínico indica que o enquadre da presença e interação do cão favoreceu a redução do sintoma da gagueira, promovendo ambiente acolhedor possibilitando a integração psique-soma do sujeito.

Descritores
Linguagem; Gagueira; Terapia Assistida por Animais; Tratamento; Fala

ABSTRACT

Stuttering has negative impacts on an individual’s quality of life and is associated with higher risk of development of social and psychological problems. From this perspective, despite the diversity of etiological hypotheses for and treatments of stuttering, the interface between psychology and speech therapy in the approach to the biopsychic aspects involved in this clinical scenario stands out. Recent research indicates that the presence, specifically of dogs, can assist patients in symbolic elaboration of psychic content. From this perspective, the aim of this study is evaluate the effects of a dog's presence on the expression of the psychic content of a stuttering person, with the hypothesis that framing may reduce symptoms. The subject is M., female, 45 years old, married, without children, hairdressing assistant, with elementary school completed. She underwent the process of speech therapy in presence of a dog. A semidirected interview was conducted after this process. A co-therapist dog of Golden Retriever breed participated in all sessions. The relevant subjective content observed in the setting during the speech therapy process, which seems to have been mobilized by the framework established by the interaction among the therapist, the patient, and the dog, seems to demonstrate an association with the manifestation of disfluencies. The dog made physical contact with, supported, motivated and welcomed the subject in situations in which psychic conflicts were demonstrated. This clinical case study indicates that the dog's presence and interaction framework favored the reduction of stuttering symptoms, promoting welcoming environment that enabled the subject's psyche-soma integration.

Keywords
Language; Stuttering; Animal-Assisted Therapy; Treatment; Speech

INTRODUÇÃO

A gagueira gera impactos negativos na qualidade de vida dos sujeitos(11 Andrade CRF, Sassi FC, Juste FS, Ercolin B. Qualidade de vida em indivíduos com gagueira desenvolvimental persistente. Pro Fono. 2008;20(4):219-24. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-56872008000400003. PMid:19142463.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-56872008...
) e está associada a maior risco de desenvolvimento de problemas sociais e psíquicos(22 Tran Y, Blumgart E, Craig A. Subjective distress associated with chronic stuttering. J Fluency Disord. 2011;36(1):17-26. http://dx.doi.org/10.1016/j.jfludis.2010.12.003. PMid:21439420.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jfludis.2010...
).

Nessa perspectiva, apesar da diversidade das hipóteses etiológicas e dos tratamentos da gagueira, destaca-se a interface entre psicologia e fonoaudiologia na abordagem dos aspectos bio-psíquicos envolvidos nesse quadro clínico(33 Cunha MC, Gomes REO. Fonoaudiologia e psicanálise: uma reflexão sobre a gagueira e o inconsciente. In: Passos MC, editor. Fonoaudiologia: recriando seus sentidos. São Paulo: Plexus; 2002.).

No presente estudo, tal interface será referenciada pela teoria psicanalítica, que entende que os sintomas manifestos (no caso, a gagueira) decorrem de conflitos entre as dimensões Inconsciente e consciente do aparelho psíquico(44 Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes; 2001.).

Ressalta-se que tal dimensão do sintoma, isto é, sua natureza simbólica, não exclui nem reduz sua dimensão biológica (no presente estudo, da gagueira). Trata-se de distúrbio que pode manifestar-se em pessoas de diferentes faixas etárias, afetando a fluência da fala. Tem sido associada a diferenças na anatomia e funcionamento (regulação da dopamina) do cérebro associados a fatores genéticos. Destaca-se que o tratamento farmacológico tem sido investigado em pesquisas recentes, mas suas evidências clínicas ainda são limitadas(55 Perez HR, Stoeckle JH. Stuttering: clinical and research update. Can Fam Physician. 2016;62(6):479-84. PMid:27303004.).

Feitas essas considerações, é necessário introduzir o elemento que justifica a questão subjacente ao presente estudo, a saber, as Intervenções Assistidas por Animais (IAA).

Pesquisas recentes indicam que a presença (especificamente de cães) pode auxiliar o paciente na elaboração simbólica de conteúdos psíquicos, maior contato com a angústia e tentativas de reorganização interna dos sujeitos estudados. Tais resultados sugerem que a IAA promoveu maior contato com a afetividade e decorrente enfrentamento/elaboração de conteúdos psíquicos, em diferentes graus(66 Faccin AB. Efeitos da intervenção assistida por animais na expressão verbal e não-verbal de conteúdos psíquicos em crianças hospitalizadas [dissertação]. São Paulo: PUC-SP; 2018.).

Nesse contexto – o da abordagem bio-psíquica no tratamento da gagueira - o presente estudo emerge da seguinte questão: a presença de um cão no setting terapêutico fonoaudiológico beneficia a expressão/elaboração de conteúdos psíquicos envolvidos nos sintomas manifestos por sujeitos que gaguejam para promover esse ambiente satisfatório?

Nessa perspectiva, o objetivo desse estudo é avaliar os efeitos da presença do cão na expressão de conteúdos psíquicos de um sujeito que gagueja, com a hipótese de que o enquadre pode reduzir o sintoma.

APRESENTAÇÃO DO CASO

Esta pesquisa seguiu as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde/ resolução 466. Foi aprovado pelo Comitê de Ética sob número CAAE: 60647716.3.3001.0065, em 08 de dezembro de 2016. Os dados foram coletados de março a julho de 2017, no Laboratório de Investigação Fonoaudiológica da Fluência, Motricidade e Funções Orofaciais (LIF-FMFO) do Curso de Fonoaudiologia, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Participou um cão coterapeuta, da raça Golden Retriever, seguindo protocolo de saúde e comportamento já utilizados na rotina(77 Lefebvre SL, Golab GC, Christensen E, Castrodale L, Aureden K, Bialachowski A, et al. Guidelines for animal-assisted interventions in heath care facilities. Am J Infect Control. 2008;36(2):78-85. http://dx.doi.org/10.1016/j.ajic.2007.09.005. PMid:18313508.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ajic.2007.09...
). O cão foi conduzido pela pesquisadora que esteve presente em todas as sessões.

O sujeito passou pelo Programa Fonoaudiológico de Promoção da Fluência (PFPF)(88 Andrade CRF. Programa Fonoaudiológico de Promoção da Fluência em adultos gagos: tratamento e manutenção. In: Limongi SCO, editor. Fonoaudiologia informação para formação: procedimentos terapêuticos em linguagem. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 2003. p. 27-53.) na presença do cão coterapeuta, que consiste em 12 sessões, de 30 minutos cada, divididos em 04 módulos. O cão participou de todas as sessões e, em cada módulo, realizava diferentes atividades como sortear palavras e frases para o paciente ler, sortear objetos para descrever, e como interlocutor. Além disso, ele ficava solto na sala para interagir livremente quando não estava realizando as atividades específicas. O cão foi selecionado e treinado para a função, e adaptado ao ambiente antes de se iniciarem as atividades. Tanto o paciente quanto a fonoaudióloga tinham afinidade com cães. Foi realizada uma entrevista semi-dirigida pela pesquisadora após o processo.

M., sexo feminino, 45 anos, casada, sem filhos, cursou ensino fundamental completo e de auxiliar de cabeleireira (profissão atual).

M. é a sétima (por ordem de nascimento) de 09 filhos (06 mulheres e 03 homens). Não se lembra de ter conhecido/ convivido com o pai. A família é de classe sócio-econômica baixa. Não frequentou escola na infância.

Relata que ninguém da família gagueja. Não se lembra de quando começou a gaguejar, considera que “nasceu assim” porque sua mãe teve problemas durante o parto, diz que “nasceu roxa”. Teve meningite quando bebê e questiona se tal fato também influenciou no surgimento da gagueira.

Dos 8,0 aos 9,0 anos procurava não falar para não gaguejar. Aos 15,0 anos gaguejava muito. Relata que as pessoas sempre riram dela por causa da gagueira, o que lhe causa muito sofrimento.

Aos 20,0 anos conheceu um rapaz e um mês depois se casaram, estão casados há 22 anos. Diz que essa relação é diferente de relacionamentos anteriores, pois sempre conversou “sinceramente” com o marido sobre a gagueira.

Fez tratamento médico para engravidar, mas, depois de algumas tentativas sem sucesso, desistiu. Logo depois, teve câncer no útero e fez quimioterapia. Tentou um processo de adoção que também fracassou. Acha que a doença surgiu por não ter resolvido “alguma coisa na vida”, referindo-se a eventos passados.

Procurou tratamento para a gagueira para falar bem e fazer com que as pessoas não rissem mais dela. Realizou tratamento fonoaudiológico em serviço particular, em 2016, mas não obteve melhora. Não soube relatar por quanto tempo realizou a terapia.

Durante todo o processo, M. demonstrou bastante envolvimento para obter melhora do sintoma da gagueira, mesmo queixando-se de dificuldades com a leitura de palavras e frases que faziam parte do tratamento. Os resultados das avaliações demonstram que houve melhora no grau de severidade do sintoma da gagueira. A avaliação inicial pré-terapia apontou grau grave e, na pós-terapia, a paciente obteve grau leve.

M. fez relatos e desabafos sobre momentos e conflitos de sua vida quando esteve em contato físico com o cão. Disse ficar chateada com sua “patroa” e seus clientes por causa das gozações, mas nunca reclamou, pois precisava do emprego para viver. Nunca confrontou as colegas da igreja que também davam risada pela gagueira. Queixou-se também de ter vergonha em pegar condução e perguntar o caminho, ou de ir ao médico e não saber falar os nomes de exames.

M. relatou ter se sentido muito bem acolhida, algo que não ocorreu em outros tratamentos de saúde que já realizou na vida. Num processo anterior, o terapeuta enfatizou que a gagueira não teria cura, porém para ela ficou evidente nesse processo que teria: “minha voz é outra agora”.

Em vários momentos, M. se dirigiu ao cão e percebeu-se que não gaguejou. Em todas as sessões, M. o cumprimentava, perguntava como ele estava se sentindo e “respondia por ele”, sem gaguejar.

Observou-se que M. tem grande necessidade de aceitação perante os outros, o que está associado às marcas negativas que a gagueira promove em sua autoestima. Observou-se um forte desejo de agradar o outro, mesmo que isso lhe cause sofrimento. Em outras palavras: parece desculpar-se por gaguejar, o que não ocorre na interação com o cão que não condiciona manifestações de curiosidade aos seus sintomas, desde o primeiro encontro.

O acolhimento recebido durante o tratamento parece ter sido marcante quanto à redução do sentimento de rejeição experimentado até então.

DISCUSSÃO

Alguns conteúdos subjetivos relevantes observados no setting no decorrer do processo terapêutico fonoaudiológico, os quais parecem ter sido mobilizados pelo enquadre estabelecido pela interação entre terapeuta-paciente-cão, parecem demonstrar associação com a manifestação das disfluências.

Os fatos observados durante as sessões serão destacados em negrito para serem discutidos.

Nos momentos em que M. sentiu-se à vontade para desabafar sobre suas questões, o contato físico com o cão pode ter sido desencadeador de conflitos psíquicos. O enquadre pode ter promovido sensação de afeto e acolhimento para que os assuntos latentes viessem à tona, além de favorecer a escuta terapêutica. O contato físico com o cão pode promover conforto e acolhimento aos pacientes em situação de vulnerabilidade(99 Sobo EJ, Eng B, Kassity-Krich N. Canine visitation (pet) therapy: pilot data on decreases in child pain perception. J Holist Nurs. 2006;24(1):51-7. http://dx.doi.org/10.1177/0898010105280112. PMid:16449747.
http://dx.doi.org/10.1177/08980101052801...
), além de se sentirem conectados, cuidados e com menos sentimentos de solidão(1010 Shen RZZ, Xiong P, Chou UI, Hall BJ. We need them as much as they need us”: a systematic review of the qualitative evidence for possible mechanisms of effectiveness of animal-assisted intervention (AAI). Complement Ther Med. 2018;41:203-7. http://dx.doi.org/10.1016/j.ctim.2018.10.001. PMid:30477840.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ctim.2018.10...
), corroborando com resultados deste estudo.

Nesse momento inicial da terapia, M. pareceu estar num estado de não-integração. Na teoria psicossomática de Winnicott, faz parte do processo saudável de desenvolvimento. M. encontrava-se numa posição de total dependência do ambiente cuidador. Nessa fase de dependência absoluta, o indivíduo instintivamente busca cumprir algumas tarefas como integração e personalização (quando a psique se aloja no corpo)(1111 FARIA CM. Um estudo sobre as referências de Winnicott aos fenômenos psicossomáticos [dissertação]. Campinas: PUC-Campinas; 2012.).

No início, o sujeito é um conjunto não-organizado de fenômenos sensório-motores em que o ambiente dará suporte para que esse estágio primitivo possa amadurecer. O ambiente é a instância que sustenta e responde à dependência. Nesse enquadre, o cão pode ter feito a função de holding que faz com que o sujeito comece a vivenciar o início da integração. O cuidado físico (contato) e o ambiente acolhedor são fundamentais para esse desenvolvimento saudável do sujeito(1111 FARIA CM. Um estudo sobre as referências de Winnicott aos fenômenos psicossomáticos [dissertação]. Campinas: PUC-Campinas; 2012.).

O cão coterapeuta fez papel de suporte afetivo nos momentos de dificuldades diante das atividades propostas pela terapeuta, demonstrando inquietação e agitação quando M. reclamava “não treinei”, “não consigo”. M. reconhecia que o cão queria dizer alguma coisa a ela e interpretava como “preciso parar de reclamar”, favorecendo positivamente o setting terapêutico. Alguns estudos indicam que o cão pode promover calma e conforto, diminuindo sintomas de ansiedade e depressão(1010 Shen RZZ, Xiong P, Chou UI, Hall BJ. We need them as much as they need us”: a systematic review of the qualitative evidence for possible mechanisms of effectiveness of animal-assisted intervention (AAI). Complement Ther Med. 2018;41:203-7. http://dx.doi.org/10.1016/j.ctim.2018.10.001. PMid:30477840.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ctim.2018.10...
), além de estimular a motivação pessoal e capacidade de enfrentamento(1212 Reed R, Ferrer L, Villegas N. Curadores naturais: uma revisão da terapia e atividades assistidas por animais como tratamento complementar de doenças crônicas. Rev Lat Am Enfermagem. 2012;20(3):7.), o que pode ter ocorrido com M. nesse processo.

Outro fenômeno da integração psicossomática na teoria de Winnicott é a personalização (alojamento da psique no corpo), também importante para o desenvolvimento saudável. Esse processo depende do holding ambiental que é o conjunto de cuidados que o sujeito recebe desse ambiente. Isso contribui para que o sujeito tenha o sentimento de estar no próprio corpo. Gradualmente, o corpo torna-se continente do próprio eu(1111 FARIA CM. Um estudo sobre as referências de Winnicott aos fenômenos psicossomáticos [dissertação]. Campinas: PUC-Campinas; 2012.). Quando M. se deu conta de que precisava parar de reclamar e se encorajar, a ação do cão no ambiente pode ter promovido o início do fenômeno da personalização (alojamento da psique no corpo).

Embora saiba que a gagueira não tem “cura”, M. reconheceu que para ela tem e percebeu que “sua voz mudou” durante o processo terapêutico pode sugerir a construção gradual da personalização satisfatória. A experiência instintiva é importante para esse processo de construção. Ela engloba (1) a experiência pessoal – sensações da pele, impulsos, excitações, e (2) ambiental – cuidados do corpo e satisfação das necessidades. A repetição dessas experiências é que leva o sujeito a construção da personalização(1313 Galván GB. Distúrbio piscossomático e amadurecimento. Winnicott e-Prints. 2007;2(2):63-79.).

Para M., o cão foi fundamental para sua melhora, pois deixou o ambiente mais alegre, sem parecer que estava em tratamento. A interação terapeuta-paciente-cão sugere ter fortalecido o vínculo terapêutico. De maneira geral, a presença do cão tornou o ambiente mais acolhedor, favorecendo o vínculo terapeuta-paciente e fortalecendo a demanda de tratamento. Alguns estudos indicam que o cão proporciona sentimentos positivos como alegria e bem-estar, demonstrando potencial terapêutico importante no que se refere a aspectos psíquicos(99 Sobo EJ, Eng B, Kassity-Krich N. Canine visitation (pet) therapy: pilot data on decreases in child pain perception. J Holist Nurs. 2006;24(1):51-7. http://dx.doi.org/10.1177/0898010105280112. PMid:16449747.
http://dx.doi.org/10.1177/08980101052801...
).

O fato de M. não gaguejar enquanto fala com o cão, pode ter sido em decorrência de M. não ter se sentido julgada, podendo ser o que ela é em sua essência(10). Aqui é possível sugerir que a presença do cão potencializou experiências de interação verbal sem críticas e julgamentos, frequentemente (e por longo tempo) experimentados em situações cotidianas diversas e também no sintoma da gagueira.

A diminuição dos sintomas de M. em relação a gagueira pode ser devido ao manejo e enquadres adequados para ela. O importante é que não haja simplesmente uma unificação do cuidado (integração de fora para dentro), e nem de curar os sintomas somáticos, mas sim fornecer as condições necessárias para que o indivíduo não vivencie psique e soma dissociados(1313 Galván GB. Distúrbio piscossomático e amadurecimento. Winnicott e-Prints. 2007;2(2):63-79.). O caminho é que exista um acompanhamento de muita paciência para que as defesas se modifiquem e que cada um possa vivenciar o processo da integração. Nesse caso, o cão teve papel fundamental para que M. pudesse vivenciar esse processo.

O cão não manifestou qualquer estranhamento diante do sintoma de M., corroborando com a hipótese que o animal tem a função despatologizante perante o paciente, não evidenciando a doença, mas sim a relação entre eles(1414 Domingues CM. Terapia Fonoaudiológica com cães: estudo de casos clínicos [dissertação]. São Paulo: PUC-SP; 2007.).

Sendo assim, na teoria winnicottiana, a natureza é uma questão de psique e soma inter-relacionados e a existência é essencialmente psicossomática. Há uma tendência inata à integração gradual numa unidade de modo que a psique resida no corpo, levando a uma coesão psicossomática(1515 Dias EO. O distúrbio psicossomático em Winnicott. In: Volich RM, Ferraz FC, Ranña W, editores. Psicossoma IV: corpo, história, pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008.).

Essa coesão é fruto de alguns fatores: (1) o cuidador disponível que permita que o paciente explore o corpo; (2) o cuidador que sustenta fisicamente com firmeza; (3) reconhecer a necessidade do corpo do outro; (4) não criar sensação de abandono; (5) manter o ambiente seguro, estável e previsível(1515 Dias EO. O distúrbio psicossomático em Winnicott. In: Volich RM, Ferraz FC, Ranña W, editores. Psicossoma IV: corpo, história, pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008.). Nessa direção, ressalta-se que o papel do terapeuta/fonoaudiólogo também é fundamental em relação a escuta terapêutica.

Esse enquadre promovido pelo cão indicou efeitos positivos na evolução do quadro clínico, pois M. passou a enfrentar os desafios e dificuldades com empenho. Passou a estabelecer limites claros para que as pessoas não zombassem mais de sua gagueira, afirmando que esse foi um dos resultados do processo: expressar insatisfação diante de relacionamentos que considerar abusivos. Sendo assim, há possibilidade de afirmar que M. pode estabelecer gradualmente a conexão psique-soma, tornando-se uma pessoa mais integrada em seus aspectos bio-psíquicos.

COMENTÁRIOS FINAIS

Este estudo de caso clínico indica que o enquadre da presença e interação do cão favoreceu a redução do sintoma da gagueira, promovendo ambiente acolhedor possibilitando a integração psique-soma do sujeito.

AGRADECIMENTOS

Nada a declarar.

  • Trabalho realizado na Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP - São Paulo (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: CNPq (142207/2016-0).

REFERÊNCIAS

  • 1
    Andrade CRF, Sassi FC, Juste FS, Ercolin B. Qualidade de vida em indivíduos com gagueira desenvolvimental persistente. Pro Fono. 2008;20(4):219-24. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-56872008000400003 PMid:19142463.
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0104-56872008000400003
  • 2
    Tran Y, Blumgart E, Craig A. Subjective distress associated with chronic stuttering. J Fluency Disord. 2011;36(1):17-26. http://dx.doi.org/10.1016/j.jfludis.2010.12.003 PMid:21439420.
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.jfludis.2010.12.003
  • 3
    Cunha MC, Gomes REO. Fonoaudiologia e psicanálise: uma reflexão sobre a gagueira e o inconsciente. In: Passos MC, editor. Fonoaudiologia: recriando seus sentidos. São Paulo: Plexus; 2002.
  • 4
    Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes; 2001.
  • 5
    Perez HR, Stoeckle JH. Stuttering: clinical and research update. Can Fam Physician. 2016;62(6):479-84. PMid:27303004.
  • 6
    Faccin AB. Efeitos da intervenção assistida por animais na expressão verbal e não-verbal de conteúdos psíquicos em crianças hospitalizadas [dissertação]. São Paulo: PUC-SP; 2018.
  • 7
    Lefebvre SL, Golab GC, Christensen E, Castrodale L, Aureden K, Bialachowski A, et al. Guidelines for animal-assisted interventions in heath care facilities. Am J Infect Control. 2008;36(2):78-85. http://dx.doi.org/10.1016/j.ajic.2007.09.005 PMid:18313508.
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.ajic.2007.09.005
  • 8
    Andrade CRF. Programa Fonoaudiológico de Promoção da Fluência em adultos gagos: tratamento e manutenção. In: Limongi SCO, editor. Fonoaudiologia informação para formação: procedimentos terapêuticos em linguagem. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 2003. p. 27-53.
  • 9
    Sobo EJ, Eng B, Kassity-Krich N. Canine visitation (pet) therapy: pilot data on decreases in child pain perception. J Holist Nurs. 2006;24(1):51-7. http://dx.doi.org/10.1177/0898010105280112 PMid:16449747.
    » http://dx.doi.org/10.1177/0898010105280112
  • 10
    Shen RZZ, Xiong P, Chou UI, Hall BJ. We need them as much as they need us”: a systematic review of the qualitative evidence for possible mechanisms of effectiveness of animal-assisted intervention (AAI). Complement Ther Med. 2018;41:203-7. http://dx.doi.org/10.1016/j.ctim.2018.10.001 PMid:30477840.
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.ctim.2018.10.001
  • 11
    FARIA CM. Um estudo sobre as referências de Winnicott aos fenômenos psicossomáticos [dissertação]. Campinas: PUC-Campinas; 2012.
  • 12
    Reed R, Ferrer L, Villegas N. Curadores naturais: uma revisão da terapia e atividades assistidas por animais como tratamento complementar de doenças crônicas. Rev Lat Am Enfermagem. 2012;20(3):7.
  • 13
    Galván GB. Distúrbio piscossomático e amadurecimento. Winnicott e-Prints. 2007;2(2):63-79.
  • 14
    Domingues CM. Terapia Fonoaudiológica com cães: estudo de casos clínicos [dissertação]. São Paulo: PUC-SP; 2007.
  • 15
    Dias EO. O distúrbio psicossomático em Winnicott. In: Volich RM, Ferraz FC, Ranña W, editores. Psicossoma IV: corpo, história, pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2019
  • Aceito
    06 Maio 2020
Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia Al. Jaú, 684, 7º andar, 01420-002 São Paulo - SP Brasil, Tel./Fax 55 11 - 3873-4211 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@codas.org.br