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Miopatia mitocondrial e deficiência auditiva neurossensorial: estudo de caso

Resumo

A miopatia mitocondrial é causada pela ausência e/ou insuficiência de uma enzina quaternária, L-carnitina, responsável por transportar ácidos graxos livres para a parte interna da mitocôndria. A função da mitocôndria é produzir energia, contribuindo para o bom funcionamento das células. A Lipidose Muscular é uma doença que provoca anomalias em enzimas que metabolizam gordura e por consequência causa acúmulo de toxinas de subprodutos com gordura nos tecidos. O objetivo deste trabalho é apresentar o estudo de caso da paciente B.D., 37 anos, diagnosticada com Lipidose Muscular aos seis anos, com deficiência de L-Carnitina e relatar o acompanhamento fonoaudiológico realizado em um serviço de saúde auditiva. A abertura de prontuário da paciente foi realizada em 05/03/1989. Foi prescrito pelo neurologista o uso contínuo de 2g/dia de L-carnitina. A mãe relatou que B.D. apresentava dificuldades em ouvir, pois era muito desatenta, o que foi mais evidente quando começou a frequentar a escola. Em 1988, a paciente foi diagnosticada com perda auditiva neurossensorial de grau moderado bilateral e começou a fazer uso de aparelhos de amplificação sonora individual retroauriculares em 1989. O desempenho escolar e comunicação melhoraram. Em 1998, passou a utilizar aparelhos tipo micro canal, o que a favoreceu esteticamente, promoveu melhora da localização sonora e maior ganho em altas frequências. Os limiares de audibilidade apresentaram uma leve piora e a paciente atualmente é pós-graduada e trabalha em uma grande instituição financeira. Conclui-se que o diagnostico neurológico e a intervenção fonoaudiológica precoces possibilitaram o adequado desenvolvimento de linguagem da paciente.

Descritores
Perda Auditiva; Carnitina; Doenças Mitocondriais; Audiologia; Miopatias Mitocondriais

Abstract

Mitochondrial myopathy is caused by the absence and/or insufficiency of L-carnitine, a quaternary enzyme responsible for transporting free fatty acids into the mitochondria. The primary function of the mitochondria is to produce energy, contributing to proper cell functioning. Muscular lipidosis causes abnormalities in enzymes that metabolize fat, resulting in the accumulation of harmful amounts of fats in tissues. The aim of this study was to present the case study of patient B.D., a 37-year-old woman diagnosed with muscular lipidosis with L-carnitine deficiency at 6 years old, and describe the speech-language follow-up performed at a hearing care clinic. The first entry in the patient’s medical chart was on 03/05/1989, with continuous use of 2g/day of L-carnitine prescribed by a neurologist. The mother reported that B.D. had difficulty hearing and was inattentive, which became more evident when she started school. In 1988 the patient was diagnosed with moderate bilateral sensorineural hearing loss and began using behind-the-ear (BTE) hearing aids in 1989, after which her academic performance and communication improved. In 1998 she switched to Completely in Canal (CIC) hearing aids, which are more discreet, provided better sound localization and greater high frequency gain, although her hearing thresholds worsened slightly. She completed her graduate studies and currently works at a large financial institution. It was concluded that early neurological diagnosis and speech-language intervention enabled adequate language development in the patient.

Keywords
Hearing Loss; Carnitine; Mitochondrial Diseases; Audiology; Mitochondrial Myopathies

INTRODUÇÃO

A L-carnitina pertence a um grupo de componentes da dieta conhecido como nutrientes não vitamínicos e pode ser produzida pelo corpo e consumida na alimentação. Desde a sua descoberta, os estudos publicados na literatura científica relatam seu principal papel no organismo que é o transporte de ácidos graxos para o interior da mitocôndria, e uma multiplicidade de efeitos benéficos no tratamento de várias doenças e prejuízos com a sua ausência/insuficiência em nosso corpo(11 Coelho CDF, Mota JF, Ravagnani FCDP, Burini RC. A suplementação de L-carnitina não promove alterações na taxa metabólica de repouso e na utilização dos substratos energéticos em indivíduos ativos. Arq Bras Endocrinol Metabol. 2010;54(1):37-44. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-27302010000100007. PMid:20414546.
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).

As mitocôndrias são organelas complexas envoltas por duas membranas (externa e interna) e estão presentes na quase totalidade das células eucariontes. A principal função atribuída à mitocôndria é a de prover energia à célula por meio da respiração celular(22 Coelho CDF, Mota JF, Bragrança E, Burini RC. Aplicações clínicas da suplementação de L-carnitina. Rev Nutr. 2005;18(5):651-9. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-52732005000500008.
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). A mitocôndria tem ainda funções na produção de radicais livres para propósitos específicos na célula (sinalização celular e processo inflamatório) e na desintoxicação desses mesmos radicais em outras situações.

A produção de energia (Adenosina trifosfato – ATP) ocorre na cadeia respiratória. A glicose, proveniente da alimentação (ou obtida por meio da fotossíntese em organismos autotróficos), é convertida em gás carbônico e água e produz o ATP que é usado em diversas atividades celulares. A degradação da glicose envolve diversas moléculas, enzimas e íons, e ocorre em três etapas: Glicólise, Ciclo de Krebs e Fosforilação Oxidativa(33 Degasperi GR, Marques MJM, Juncker A, Martin I. Mitocôndrias no cenário da resposta imune inata exercida por macrófagos. Rev Eletrônica Acervo Saúde. 2019;11(10):e569. http://dx.doi.org/10.25248/reas.e569.2019.
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).

A carnitina é uma amônia quaternária que existe em três formas (acetil-L-carnitina (ALCAR), L-carnitina e propionil-L-carnitina)(44 Gopal KV, Thomas BP, Mao D, Lu H. Efficacy of carnitine in treatment of tinnitus: evidence from audiological and MRI measures—a case study. J Am Acad Audiol. 2015;26(3):311-24. http://dx.doi.org/10.3766/jaaa.26.3.10. PMid:25751698.
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) e tem importância fisiológica como co-fator no transporte de ácidos graxos livres de cadeia longa do citoplasma para o interior da mitocôndria. Dentro da mitocôndria, estes ácidos graxos de cadeia longa serão oxidados e utilizados como fonte de energia no Ciclo de Krebs. Quando há alteração dessas atividades, decorrentes de mutações no DNA mitocondrial (DNAmt), ocorre disfunção celular ou morte celular nas doenças de DNAmt.

Na orelha interna, a estria vascular é uma estrutura altamente vascularizada e com grande concentração de mitocôndrias, necessária para manutenção do potássio na endolinfa. Quando houver insuficiente aporte glicídico a gordura será mobilizada para suprimento energético(55 Fukuda Y, Mota PHDM. Alteraçoesoteneurológicas em deficiência sistêmica de carnitina: relato de um caso. Rev Bras Otorrinolaringol. 1988;54(4):109-11.).

Entre outras funções, a carnitina pode auxiliar a proteger os receptores das células dos neurônios cerebrais que recebem e interpretam as ondas sonoras para que ocorra a transmissão de sinais a partir das células ciliadas da cóclea para as células dos neurônios do sistema auditivo central. Esta enzima é conhecida por melhorar a bioenergética mitocondrial e a eficiência do transporte de ácidos graxos pela membrana da mitocôndria(66 Berni A, Meschini R, Filippi S, Palitti F, De Amicis A, Chessa L. L-camitine enhances resistance to oxidative stress by reducing DNA damage in Ataxia telangiectasia cells. Mutat Res. 2008;650(2):165-74. http://dx.doi.org/10.1016/j.mrgentox.2007.11.008. PMid:18201923.
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).

Alterações na homeostase da L-Carnitina têm sido associadas à cardiomiopatia progressiva, à encefalopatia e à fraqueza muscular, levando, quando não tratada, à morte por insuficiência cardíaca(77 Waber LJ, Valle D, Neill C, DiMauro S, Shug A. Carnitine deficiency presenting as familiar cardiomyopathy: a treatable defect in carnitine transport. J Pediatr. 1982;101(5):700-5. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-3476(82)80294-1. PMid:7131143.
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,88 Stanley CA, DeLeeuw S, Coates PM, Vianey-Liaud C, Divry P, Bonnefont JP, et al. Chronic cardiomyopathy and weakness or acute coma in children with a defect in carnitine uptake. Ann Neurol. 1991;30(5):709-16. http://dx.doi.org/10.1002/ana.410300512. PMid:1763895.
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). As disfunções mitocondriais devidas à deficiência de carnitina podem provocar também a deficiência auditiva neurossensorial e alterações labirínticas(55 Fukuda Y, Mota PHDM. Alteraçoesoteneurológicas em deficiência sistêmica de carnitina: relato de um caso. Rev Bras Otorrinolaringol. 1988;54(4):109-11.). As deficiências auditivas causadas por mutações no DNA mitocondrial correspondem a 0,5 a 1% de todas as deficiências auditivas de origem genética(99 Carvalho MFP, Ribeiro FAQ. As deficiências auditivas relacionadas às alterações do DNA mitocondrial. Rev Bras Otorrinolaringol. 2002;68(2):268-75. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-72992002000200018.
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).

A deficiência de L-carnitina pode ser alvo de uma possível intervenção farmacológica para prevenir e/ou melhorar os limiares auditivos de acordo com a sua proporção/tempo de reposição no próprio corpo(55 Fukuda Y, Mota PHDM. Alteraçoesoteneurológicas em deficiência sistêmica de carnitina: relato de um caso. Rev Bras Otorrinolaringol. 1988;54(4):109-11.,1010 Sekulic-Jablanovic M, Voronkova K, Bodmer D, Petkovic V. Combination of antioxidants and NFAT (nuclear factor of activated T cells) inhibitor protects auditory hair cells from ototoxic insult. J Neurochem. 2020;154(5):519-29. PMid:31755556.).

O objetivo deste trabalho é apresentar o estudo de caso de uma paciente com deficiência de L-Carnitina por Lipidose Muscular diagnosticada em 1989 e relatar o acompanhamento fonoaudiológico realizado em um serviço de saúde auditiva do município de São Paulo.

APRESENTAÇĀO DO CASO CLÍNICO

Trata-se de um estudo retrospectivo por meio de levantamento de prontuários nas Disciplinas de Neurologia Clínica (Departamento de Neurologia) e Distúrbios da Audição (Departamento de Fonoaudiologia) na Universidade Federal de São Paulo.

A abertura de prontuário da paciente no serviço de saúde auditiva foi realizada em 05 de março de 1989 e ela realiza acompanhamento anual até os dias atuais no Hospital São Paulo, nas clínicas dos Departamentos de Fonoaudiologia e Neurologia.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa – CEP da Universidade Federal de São Paulo sob número: 1207/2016 junto ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado pela paciente.

Caso clínico

B.D. sexo feminino, natural de Recife, PE, nascida em 31/01/1983, pré termo com 2520 kg e 50 cm, atualmente com 37 anos, foi diagnosticada com Lipidose Muscular aos seis anos de idade.

Em 1989, a biópsia muscular identificou que a dosagem de L- carnitina era insuficiente no sistema de B.D. A paciente faz a reposição desta enzima desde 1989 com dosagem de 2g/dia.

História pregressa da queixa atual: B.D. é nascida de parto cesáreo, sem intercorrências gestacionais, nasceu e recebeu oxigênio por duas horas (a mãe não soube relatar maiores detalhes). B.D. apresentou fraqueza muscular já na primeira infância, o que impedia o aleitamento materno e a realização de alguns movimentos esperados nos primeiros meses de vida. Apresentou atraso do desenvolvimento motor: engatinhou aos 11 meses e andou com um ano e quatro meses de idade, mas apresentava quedas freqüentes. A mãe nega antecedentes familiares. Por essa razão, B.D. fez acompanhamento fisioterápico de um ano e dois meses de idade até 2018. Fez ainda hidroterapia por seis anos, RPG, pilates e acupuntura por um ano e hoje faz ioga. Aos três anos de idade, em 1986, B.D. também iniciou fonoterapia em serviço privado, em Recife, sua cidade de origem, por apresentar alterações na emissão oral (articulação e voz).

Em 1988, a mãe notou que B.D. demonstrava sinais indicativos de possível deficiência auditiva: apresentava desatenção, que ficou mais evidente após seu ingresso na escola, e fazia uso constante da leitura orofacial como pista para entender o que era dito, a ponto de compreender ordens verbais apenas pelo gesto de fala, quando a mãe conversava com ela sem emitir sons. A partir do relato dessa observação feita pela mãe, a fonoaudióloga que atendia a paciente na ocasião fez sua primeira audiometria, cujo laudo evidenciou perda auditiva neurossensorial de grau moderado bilateral(1111 WHO: World Health Organization. Grades of hearing impairment [Internet]. 2019 [citado em 2020 May 12]. Disponível em: http://www.who.int/pbd/deafness/hearing_impairment_grades/en/
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).

A prima da māe de B.D., enfermeira, fazia Mestrado em Enfermagem na Universidade Federal de São Paulo nessa mesma época, o que a motivou a procurar atendimento em outro estado, no serviço de saúde vinculado ao programa de pós graduação de sua prima. Procuraram primeiramente o neurologista, em função da fraqueza muscular da B.D. Na época, B.D. apresentava como manifestações paresia facial, ptose palpebral (encaminhada ao oftalmologista), atraso na idade óssea, paresia da musculatura flexora cervical, alterações na arcada dentária (encaminhada ao ortodontista). Após hipótese diagnóstica de miopatia congênita, aos seis anos de idade, em março de 1989, a paciente recebeu o diagnóstico de Lipidose Muscular. A biópsia muscular detectou que a enzima L-carnitina apresentava níveis insuficientes no sistema da paciente. B.D. passou, a partir de abril de 1989, a fazer reposição da enzima L-carnitina, com importante melhora dos sintomas listados após oito meses dessa conduta. Fez, no início do tratamento, acompanhamentos semestrais, e depois dos dez anos passou a fazer acompanhamentos anuais financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Em função do exame de audiometria descrito, a mãe procurou o serviço de saúde auditiva do mesmo hospital no qual fazia o acompanhamento neurológico. A partir de então, B.D. passou a ser acompanhada no referido serviço, o que ocorre até os dias de hoje.

A mãe acredita que a perda auditiva tardiamente diagnosticada tenha comprometido seu desempenho escolar na alfabetização durante a primeira série do ensino fundamental.

O diagnóstico audiológico de B.D. em abril de 1989, realizado no serviço de saúde auditiva onde a paciente permanece em acompanhamento até hoje, revelou perda auditiva neurossensorial de grau moderado à orelha direita e perda auditiva mista de grau moderado à orelha esquerda(1111 WHO: World Health Organization. Grades of hearing impairment [Internet]. 2019 [citado em 2020 May 12]. Disponível em: http://www.who.int/pbd/deafness/hearing_impairment_grades/en/
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). O Limiar de Reconhecimento de Fala (LRF) foi de 45dBNA à orelha direita e 55 dBNA à orelha esquerda e o Índice Percentual de Reconhecimento de Fala (IPRF) para palavras monossilábicas foi de 84% à orelha direita e de 80% à esquerda obtidos no nível de maior conforto, 90dBNA, em ambas as orelhas. A imitanciometria mostrou curvas timpanométricas do tipo A(1212 Jerger J, Jerger S, Mauldin L. Studies in impedance audiometry. normal and sensorineural ears. Arch Otolaryngol. 1972;96(6):513-23. http://dx.doi.org/10.1001/archotol.1972.00770090791004. PMid:4621039.
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) e reflexos acústicos contralaterais ausentes bilateralmente (Figura 1).

Figura 1
Avaliaçāo audiológica aos seis anos de idade, em 1989

A paciente começou a fazer uso de Aparelhos de Amplificação Sonora Individual (AASI) em 1989.Os primeiros AASI adaptados foram do tipo retroauricular (BTE, do inglês behind the ear) em adaptação bilateral com amplificação linear. A amplificação linear é a que fornece o mesmo ganho para os diferentes níveis de pressão sonora de entrada, ou seja, o ganho é o mesmo para sons fracos, médios (sons de fala) e fortes. Os primeiros AASI de B.D. foram da marca Widex, modelo ES6, com molde invisível duplo com hélix.

Após a adaptação dos AASI, B.D., bem como seus familiares, relataram melhora para escutar, o que facilitou e aprimorou seu desempenho escolar e social.

Em 1994, seus AASI foram substituídos, devido a problemas técnicos, por aparelhos da marca Bernafon, modelo C2H bilateral, também com amplificação linear. A perda auditiva da paciente manteve-se estável desde o diagnóstico, o que manteve a indicação de AASI para perdas auditivas de grau moderado(1111 WHO: World Health Organization. Grades of hearing impairment [Internet]. 2019 [citado em 2020 May 12]. Disponível em: http://www.who.int/pbd/deafness/hearing_impairment_grades/en/
http://www.who.int/pbd/deafness/hearing_...
).

Concomitante ao uso dos AASI, B.D. manteve-se em terapia fonoaudiológica, em Recife, até 1996, com a periodicidade de duas vezes na semana. A partir daí a paciente, já com 13 anos, teve condições de fazer o treino para a produção correta dos fonemas ainda emitidos com distorção, em casa, sob supervisão e orientação da Fonoaudióloga e com auxilio de sua mãe.

A partir de 1998, o tipo do AASI foi alterado de retroauricular para micro-canal (CIC, do inglês completely in the canal), bilateralmente, com amplificação não linear, inicialmente da marca Siemens. A amplificação não linear é definida como aquela que apresenta diferentes valores de ganho para diferentes níveis de pressão sonora de entrada, ou seja, o ganho é maior para sons fracos, menor para os sons da fala e fraco para níveis de pressão sonora altos. Esta mudança proporcionou maior aceitação dos novos AASI pela melhora na qualidade sonora e também por razões estéticas. Além disto, sabe-se que pelo fato da localização do microfone nos AASI intra-aurais ser endo-aural, há maior aproveitamento das funções acústicas do pavilhão auricular, com melhor localização sonora e maior ganho nas frequências altas – de 2000 a 5000 Hz.

A partir de então, todas as reposições realizadas consideraram estes benefícios obtidos com os AASI microcanais, e este tipo de adaptação foi mantido até os dias de hoje.

Em 2003, B.D. foi orientada, por uma fonoaudióloga também do serviço no qual faz o acompanhamento audiológico e neurológico, a retomar a terapia fonoaudiológica. A partir de maio de 2006, passou a ser atendida no Serviço de Odontologia da Universidade de São Paulo, com especialista Buco-Maxilo-Facial, para adaptação de prótese para elevação do palato mole e melhora da competência palatofaríngea, o que é essencial para a produção de fala e voz.

Em 2008 a paciente teve seus AASI CIC trocados por outros de mesmo tipo, modelo Extra 11, da marca Phonak. Atualmente, a paciente faz uso do modelo Cassia 10 Petite, marca Phonak, adaptado em 2014, e pode-se observar os limiares obtidos com a amplificação no Quadro 1. Vale ressaltar que os limiares obtidos com AASI refletem os limiares para sons fracos. A última consulta foi realizada no mês de agosto de 2017 e os resultados obtidos na avaliação audiológica são apresentados na Figura 2.

Quadro 1
Limiares auditivos pesquisados com fones separadamente nas orelhas direita e esquerda, com e sem AASI intra aurais microcanais
Figura 2
Audiometria tonal limiar aos 34 anos de idade

Na verificação in situ com emprego do equipamento Verifit 1, foi realizado o ajuste do ganho acústico ao ganho prescrito pelo método prescritivo NAL N/L1 e foram obtidos os valores de SII (Índice de Inteligibilidade de Fala – do inglês Speech Intelligibility Index) com amplificação a 65 dBNPS e emprego do estimulo ISTS (International Speech Test Signal)(1313 Holube I, Fredelake S, Vlaming M, Kollmeier B. Development and analysis of an international speech test signal (ISTS). Int J Audiol. 2010;49(12):891-903. http://dx.doi.org/10.3109/14992027.2010.506889. PMid:21070124.
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), sendo estes de 56% à orelha direita e 55% à orelha esquerda, cujos resultados são apresentados nas Figuras 3 e 4.

Figura 3
Mapeamento de Fala Amplificada da Orelha Direita – AASI da marca Phonak modelo Cassia Petite 10
Figura 4
Mapeamento de Fala Amplificada da Orelha Esquerda – AASI da marca Phonak modelo Cassia Petite 10

Até o momento presente, B.D. faz uso contínuo de 2 g/dia de L- carnitina, acompanhamento com buco-maxilo-facial, bem como o uso efetivo da amplificação (acima de 17 h/dia). A conjunção desses fatores e tratamentos propiciou o bom desempenho comunicativo e social da paciente, que concluiu seus estudos com êxito e hoje está bem inserida no mercado de trabalho com formação de grau superior e pós-graduação.

DISCUSSÃO

Este estudo de caso mostra a importância da equipe multidisciplinar e de toda a observação da família para o desenvolvimento infantil, pois foi a partir das queixas apresentadas pela mãe e da investigação multidisciplinar que foi possível a intervenção precoce, a qual favoreceu o bom desenvolvimento da paciente. Por meio de exames anuais e acompanhamento fonoterápico regular, foi possível observar a estabilidade dos limiares auditivos bilateralmente e o desenvolvimento de linguagem adequado.

Os limiares auditivos da paciente permanecem relativamente estáveis o que ocorre devido a L-carnitina auxiliar e proteger os receptores das células dos neurônios cerebrais, que recebem e transmitem as informações sonoras por todo o sistema nervoso auditivo central. Algumas pesquisas foram realizadas com emprego de antioxidantes direcionados às mitocôndrias para tratamento da perda auditiva com essa mesma proposta. Em estudos com animais, a L-Carnitina demonstrou reduzir a ototoxicidade induzida por aminoglicosídeos(1010 Sekulic-Jablanovic M, Voronkova K, Bodmer D, Petkovic V. Combination of antioxidants and NFAT (nuclear factor of activated T cells) inhibitor protects auditory hair cells from ototoxic insult. J Neurochem. 2020;154(5):519-29. PMid:31755556.). Em outra pesquisa, a acetil-L-carnitina (ALCAR) teve importante papel na diminuição do zumbido de uma paciente, após seu uso por 30 dias(44 Gopal KV, Thomas BP, Mao D, Lu H. Efficacy of carnitine in treatment of tinnitus: evidence from audiological and MRI measures—a case study. J Am Acad Audiol. 2015;26(3):311-24. http://dx.doi.org/10.3766/jaaa.26.3.10. PMid:25751698.
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).

Associado à protetização, houve orientação, aconselhamento e terapia para possibilitar o desenvolvimento de linguagem adequado da paciente. Mais recentemente, foram introduzidos os procedimentos de verificação – mapeamento de fala – como rotina para avaliar o desempenho dos AASI. A verificação foi realizada para ajuste do ganho acústico de acordo com o método prescritivo NAL N/L1e foi obtido oSII (Índice de Inteligibilidade de Fala – Speech Intelligibility Index).

O SII foi obtido por meio de verificação eletroacústica com estímulo de fala ISTS (International Speech Test Signal). O ISTS é utilizado internacionalmente para mensurações in situ com o microfone sonda no meato acústico externo da paciente. Este estímulo de fala é uma mistura de seis idiomas (francês, inglês, mandarim, árabe, espanhol e alemão) e foi criado com base na necessidade de um estímulo de teste padrão que incluiu todas as propriedades relevantes da fala e permitiu condições de medição reprodutíveis. As gravações são embasadas em sons naturais de fala que não são inteligíveis devido ao mix e segmentação das línguas envolvidas no estímulo. O sinal reflete uma única voz para as seis línguas(1313 Holube I, Fredelake S, Vlaming M, Kollmeier B. Development and analysis of an international speech test signal (ISTS). Int J Audiol. 2010;49(12):891-903. http://dx.doi.org/10.3109/14992027.2010.506889. PMid:21070124.
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). No caso de B.D., o SII revelou resultado de 54% à orelha direita e 55% à orelha esquerda com aparelhos de amplificação sonora individual. Sem AASI, este valor é zero em ambas as orelhas. Esse dado mostra que, com os ajustes realizados nos AASI, B.D. passou a ter acesso a mais de 50% dos fonemas em ambas as orelhas para estímulos de intensidade média de fala. A melhora substancial da audibilidade proporcionada pela amplificação, somada ao aproveitamento que a paciente faz das pistas orofaciais desde a infância, permitiram que B.D. se tornasse hoje uma adulta competente do ponto de vista receptivo e expressivo da comunicação.

Analisando o quadro clínico geral e atual da paciente, pode-se verificar o benefício no desenvolvimento global decorrente do diagnóstico e intervenção precoces realizados pela equipe do setor da neuromuscular do Departamento de Neurologia Clínica e do Departamento de Fonoaudiologia. B.D. passou a ter acesso aos sons de fala, movimentos musculares mais definidos, equilíbrio estático e dinâmico adequados, dores de cabeça não recorrentes e desenvolvimento infantil com melhor qualidade. Desta forma, ressalta-se a importância do diagnóstico e acompanhamento fonoaudiológico no que diz respeito à parte auditiva, equilíbrio e motricidade oral desde os seis anos de idade.

Todo o atendimento de B.D. somente foi possível devido ao Sistema Único de Saúde (SUS) que prevê o Tratamento Fora de Domicílio – TFD. O TFD instituído pela Portaria nº 55 da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde, de 24/02/1999(1414 Brasil. Portaria nº 55/SAS/MS, de 24 de fevereiro de 1999. Dispõe sobre a rotina do Tratamento Fora de Domicilio no. Sistema Único de Saúde - SUS, com inclusão dos procedimentos específicos na tabela de procedimentos do Sistema de Informações Ambulatoriais do SIA/SUS e dá outras providências [Internet]. Diário Oficial da União; Brasília; 1999 [citado em 2020 May 12]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/1999/prt0055_24_02_1999.html
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
), é um instrumento legal que visa garantir, através do SUS, tratamento médico a pacientes portadores de doenças não tratáveis no município de origem por falta de condições técnicas. Ela também assegura aos usuários da rede pública ou conveniada / contratada do SUS e acompanhantes o acesso ao transporte e ajuda de custo, desde que o local do atendimento esteja, a pelo menos, 50 km de distância de sua cidade de origem. Embora se saiba que, idealmente, todos os cidadãos brasileiros deveriam ter acesso aos variados tratamentos de que necessitassem em suas regiões de moradia, alguns atendimentos de maior complexidade ainda são possíveis apenas em grandes Centros de Referência. Por essa razão, políticas públicas como o TFD, que viabilizam o translado e a permanência dos pacientes nos locais de interesse enquanto os atendimentos em saúde perdurarem, são indispensáveis. Neste casoem particular, o TFD permitiu que a paciente tivesse acesso a tratamentos de alta complexidade e estabelecesse vínculos importantes para o bem sucedido atendimento multiprofissional, atendimento este que se mantém até o momento atual. Em um processo de reabilitação, as boas práticas são essenciais e os vínculos são determinantes para adesão ao tratamento e o sucesso da reabilitação.

COMENTÁRIOS FINAIS

O diagnóstico precoce com intervenção terapêutica adequada e monitoramento anual contribuiu para um desempenho global da paciente satisfatório, estabilidade da perda auditiva, maior conforto devido às tecnologias, e melhor qualidade vida.

  • Trabalho realizado na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nada a declarar.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Coelho CDF, Mota JF, Ravagnani FCDP, Burini RC. A suplementação de L-carnitina não promove alterações na taxa metabólica de repouso e na utilização dos substratos energéticos em indivíduos ativos. Arq Bras Endocrinol Metabol. 2010;54(1):37-44. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-27302010000100007 PMid:20414546.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2020
  • Aceito
    10 Ago 2020
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