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Campo dinâmico vocal: avaliação da funcionalidade da voz

RESUMO

O campo dinâmico vocal (CDV) é uma estratégia de avaliação vocal perceptivo-auditiva e acústica que oferece estimativas sobre a biomecânica e a aerodinâmica da produção vocal por meio da realização de tarefas de variação de frequência e de intensidade e do uso da espectrografia acústica da voz. Esse relato de experiência tem como objetivo demonstrar a aplicação do CDV na avaliação da funcionalidade vocal de indivíduos disfônicos e não-disfônicos, com foco especial na musculatura laríngea. As tarefas fonatórias envolvem emissão de vogal sustentada e/ou de fala encadeada em três intensidades autosselecionadas (habitual autorreferida, fraca e forte) e em três frequências (habitual autorreferida, aguda, grave), além do glissando. As tarefas de variação de intensidade e de frequência possibilitam a avaliação da musculatura laríngea no controle da adução glótica e do alongamento e encurtamento das pregas vocais. A tarefa de variação de frequência permite também a análise da musculatura extrínseca no controle da posição vertical da laringe no pescoço. Enquanto a vogal sustentada avalia a funcionalidade vocal com foco na laringe, a fala encadeada permite a avaliação dos ajustes articulatórios empregados. A aplicação do CDV será demonstrada por meio de pranchas espectrográficas de indivíduos normais e disfônicos. Indivíduos vocalmente saudáveis realizam as tarefas do CDV de forma equilibrada, com qualidade vocal adequada e sem esforço fonatório, denotando boa funcionalidade vocal. Por outro lado, indivíduos com dificuldade na realização das tarefas do CDV, com piora da qualidade vocal e/ou com aumento da tensão muscular, podem apresentar funcionalidade vocal alterada.

Descritores:
Voz; Percepção auditiva; Acústica da Fala; Espectrografia; Disfonia

ABSTRACT

Dynamic vocal analysis (DVA) is an auditory-perceptual and acoustic vocal assessment strategy that provides estimates on the biomechanics and aerodynamics of vocal production by performing frequency and intensity variation tasks and using voice acoustic spectrography. The objective of this experience report is to demonstrate the use of DVA in the assessment of vocal functionality of dysphonic and non-dysphonic individuals, with a special focus on the laryngeal musculature. Phonatory tasks consisted of sustained vowel, “a” or “é”, and/or connected speech, in three intensities (habitual, soft, and loud) and three frequencies (habitual, high, and low), as well as ascending and descending glissando. The adjustments of the laryngeal and paralaryngeal muscles can be inferred from the different DVA tasks. The main characteristics of the laryngeal muscles analyzed are control of glottic adduction, stretching, and shortening of the vocal folds; the main characteristics of the paralaryngeal musculature are mainly related to the vertical laryngeal position in the neck. While the sustained vowel evaluates the vocal functionality with a focus on the larynx, connected speech allows the evaluation of the articulatory adjustments employed. An acoustic spectrographic software can be used to visualize the performance of such tasks. The clinical application of the DVA will be exemplified using acoustic spectrography plates from normal and dysphonic voices, taken from a voice bank. Individuals who perform the DVA tasks in a balanced way, with adequate vocal quality and without phonatory effort, demonstrate good vocal functionality. On the other hand, difficulties in performing these tasks with worsening vocal quality and/or increased muscle tension may be indications of altered vocal functionality.

Keywords:
Voice; Auditory perception; Speech acoustic; Spectrography; Dysphonia

INTRODUÇÃO

A avaliação da voz humana compõe-se da análise de informações em duas dimensões: a do paciente e a do clínico. A perspectiva do paciente é analisada pela coleta de informações sobre a queixa e o impacto de um problema de voz, considerando-se aspectos sociais, profissionais, da vida diária e da expressão das emoções, além da avaliação específica de aspectos da qualidade de vida e dos impactos no desempenho vocal. Essa perspectiva pode ser obtida com a utilização de instrumentos de autoavaliação do impacto da disfonia, sendo que tais informações não podem ser obtidas por nenhum outro procedimento clínico.

Sob a perspectiva do clínico, a avaliação da voz envolve a análise perceptivo-auditiva da qualidade vocal, a análise acústica do sinal sonoro, o exame físico e a avaliação otorrinolaringológica da laringe. A análise perceptivo-auditiva é o padrão ouro da avaliação vocal pelo fato da voz ser essencialmente um fenômeno perceptivo(11 Oates J. Auditory-perceptual evaluation of disordered vocal quality: pros, cons and future directions. Folia Phoniatr Logop. 2009;61(1):49-56. http://dx.doi.org/10.1159/000200768. PMid:19204393.
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); contudo, é considerada uma avaliação subjetiva e a confiabilidade desse procedimento pode ser bastante variável(22 Ugulino AC, Oliveira G, Behlau M. Perceived dysphonia by the clinician’s and patient’s viewpoint. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):113-8. http://dx.doi.org/10.1590/S2179-64912012000200004. PMid:22832676.
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), sendo dependente de inúmeros fatores relacionados ao material de fala, tarefa executada, condições da escuta e experiência do avaliador(33 Shrivastav R, Sapienza CM, Nandur V. Application of psychometric theory to the measurement of voice quality using rating scales. J Speech Lang Hear Res. 2005;48(2):323-35. http://dx.doi.org/10.1044/1092-4388(2005/022). PMid:15989395.
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). A análise acústica, por sua vez, é considerada mais objetiva e tem como principal função o registro da voz para extração de parâmetros acústicos ou para análise descritiva. A extração de parâmetros acústicos oferece a mensuração de diversas características vocais, algumas delas mais robustas, como a medida da frequência fundamental (fo) da voz(44 Baken RJ, Orlikoff RF. Voice measurement: is more better? Log. Phon. Vocol. 1997;22(4):147-51. http://dx.doi.org/10.3109/14015439709075328.
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). A tendência moderna é a obtenção de medidas combinadas(55 Lopes LW, Alves JDN, Evangelista DDS, França FP, Vieira VJD, Lima-Silva MFB, et al. Acurácia das medidas acústicas tradicionais e formânticas na avaliação da qualidade vocal. CoDAS. 2018;30(5):e20170282. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182017282. PMid:30365651.
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), como as medidas cepstrais(66 Awan SN, Roy N, Zhang D, Cohen SM. Validation of the Cepstral Spectral Index of Dysphonia (CSID) as a screening tool for voice disorders: development of clinical cutoff scores. J Voice. 2016;30(2):130-44. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2015.04.009. PMid:26361215.
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) e o Acoustic Vocal Quality Index (AVQi)(77 Maryn Y, De Bodt M, Barsties B, Roy N. The value of the acoustic voice quality index as a measure of dysphonia severity in subjects speaking different languages. Eur Arch Otorhinolaryngol. 2014;271(6):1609-19. PMid:24162765.,88 Englert M, Lima L, Constantini AC, Latoszek BBV, Maryn Y, Behlau M. Acoustic Voice Quality Index - AVQI para o português brasileiro: análise de diferentes materiais de fala. CoDAS. 2019;31(1):e20180082. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018082. PMid:30758396.
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) por terem uma correlação mais elevada com a análise perceptivo-auditiva, e não apenas considerar parâmetros isolados. A análise descritiva da voz pode ser feita pela avaliação perceptivo-visual do traçado espectrográfico e oferece uma avaliação qualitativa da amostra vocal. Alguns parâmetros de avaliação foram propostos para essa análise(99 Hammarberg B, Fritzell B, Gaufin J, Sundberg J, Wedin L. Perceptual and acoustic correlates of abnormal voice qualities. Acta Otolaryngol. 1980;90(5-6):441-51. http://dx.doi.org/10.3109/00016488009131746. PMid:7211336.
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), sendo altamente dependentes das condições de registro do sinal(1010 Titze I. Towards standards in acoustic analysis of voice. J Voice. 1994;8(1):1-17. http://dx.doi.org/10.1016/S0892-1997(05)80313-3. PMid:8167782.
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) e da experiência do avaliador(1111 Behlau M, Madazio G, Feijó D, Pontes P. Avaliação de voz. In: Behlau M, editor. Voz: o livro do especialista. Rio de Janeiro: Revinter; 2001. p. 85-245.). Os aspectos mais importantes da análise descritiva do sinal vocal estão relacionados com a identificação da contribuição da fonte-filtro, dos aspectos temporais da onda sonora com visualização do traçado, dos detalhes da coarticulação da fala e das características individuais do sujeito.

O campo dinâmico vocal (CDV) é uma estratégia de avaliação vocal perceptivo-auditiva e acústica simples e de rápida execução que oferece estimativas sobre a biomecânica e a aerodinâmica da produção vocal a partir da realização de tarefas de variação de frequência e de intensidade e do uso da espectrografia acústica da voz. Embora tenha sido anteriormente descrito por Behlau e Pontes(1212 Behlau M, Pontes P. Avaliação e tratamento das disfonias. São Paulo: Editora Lovise; 1995. 218 p.), essa nova proposta envolve uma atualização, incluindo o detalhamento do procedimento, a descrição dos objetivos e o acréscimo da realização das tarefas com a utilização da espectrografia acústica da voz. Para a avaliação da funcionalidade laríngea, três aspectos devem ser considerados: adução glótica, alongamento e encurtamento das pregas vocais. Esses movimentos são fundamentais para a produção da voz, pois respondem pelos controles de intensidade e de frequência vocal, por meio das emissões de fracos, fortes, agudos e graves, variações essenciais para a comunicação.

O fechamento glótico, juntamente com a pressão subglótica, são os principais mecanismos de controle da intensidade vocal. Quanto maiores forem o fechamento glótico e a pressão subglótica, maior a intensidade vocal. Por outro lado, quanto menores forem o fechamento glótico e a pressão subglótica, menor a intensidade vocal. Os músculos intrínsecos da laringe responsáveis pelo fechamento glótico(1111 Behlau M, Madazio G, Feijó D, Pontes P. Avaliação de voz. In: Behlau M, editor. Voz: o livro do especialista. Rio de Janeiro: Revinter; 2001. p. 85-245.,1313 Sundberg J. The science of the singing voice. Illinois: Nothern Illinois University Press; 1987. 51 p.

14 Sataloff RT, Heman-Ackah YD, Hawkshaw MJ. Clinical anatomy and physiology of the voice. Otolaryngol Clin North Am. 2007;40(5):909-29, v. http://dx.doi.org/10.1016/j.otc.2007.05.002. PMid:17765688.
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-1515 Zhang Z. Mechanics of human voice production and control. J Acoust Soc Am. 2016;140(4):2614-35. http://dx.doi.org/10.1121/1.4964509. PMid:27794319.
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) são o cricoaritenóideo lateral-CAL, os aritenóideos-A e o tireoaritenóideo-TA. No CDV, a avaliação do controle de adução glótica é realizada por meio de emissões em intensidade habitual, fraca e forte. A tensão das pregas vocais é um dos principais mecanismos de controle de frequência da voz(1313 Sundberg J. The science of the singing voice. Illinois: Nothern Illinois University Press; 1987. 51 p.), sendo que pregas encurtadas produzem sons graves e pregas vocais alongadas produzem sons agudos. Os movimentos de alongamento e de encurtamento das pregas vocais são realizados pelos músculos cricotireóideo-CT e tireoaritenóideo-TA, respectivamente. No CDV, a avaliação da flexibilidade das pregas vocais é realizada por meio de emissões em frequência grave e aguda e durante o glissando.

A funcionalidade da musculatura extrínseca pode ser verificada pela análise dos ajustes dos articuladores do trato vocal, principalmente na emissão de agudos e de graves. Durante a produção vocal, a musculatura extrínseca da laringe tem a função de manter a estabilidade do esqueleto laríngeo para que a musculatura intrínseca atue de forma efetiva(1414 Sataloff RT, Heman-Ackah YD, Hawkshaw MJ. Clinical anatomy and physiology of the voice. Otolaryngol Clin North Am. 2007;40(5):909-29, v. http://dx.doi.org/10.1016/j.otc.2007.05.002. PMid:17765688.
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). Na emissão de agudos e de graves, os ajustes da musculatura intrínseca e extrínseca da laringe ocorrem concomitantemente. A movimentação vertical da laringe durante tarefas de variação de frequência é um comportamento normal.

Na voz profissional, cantores treinados tendem a realizar a variação de frequência vocal com ênfase maior na musculatura intrínseca da laringe, mantendo a laringe flexível e estável no pescoço. O CDV de cantores oferece dados sobre o controle fino da emissão profissional. Um dos desafios do cantor é realizar os movimentos de adução glótica e de alongamento/encurtamento de pregas vocais de forma praticamente dissociadas. Assim, as tarefas possibilitam verificar a habilidade do cantor em variar a frequência vocal mantendo-se a mesma intensidade, e, por outro lado, variar a intensidade com controle da frequência vocal.

Partindo do pressuposto de que uma disfonia pode implicar em perdas diversas e em variados graus da funcionalidade laríngea, o presente artigo tem como objetivo demonstrar o uso do CDV como uma estratégia de avaliação perceptivo-auditiva e acústica descritiva da funcionalidade vocal, com foco na musculatura laríngea.

CAMPO DINÂMICO VOCAL

O CDV pode ser realizado com tarefa de vogal sustentada e de fala encadeada.

A. Emissão sustentada: avalia aspectos da fonte glótica e envolve seis tarefas:

  1. Emissão habitual autorreferida: vogal “a” ou “é” em intensidade e frequência habituais. Registro de base.

  2. Emissão fraca autosselecionada: vogal “a” ou “é” em intensidade fraca, mas mantendo a sonoridade, sem sussurrar. Observar: habilidade de manter adução leve com sonoridade constante e estabilidade, de manter a frequência vocal do registro de base e de apresentar pelo menos 10 harmônicos.

  3. Emissão forte autosselecionada: produção da vogal “a” ou “é” em intensidade forte, mas sem gritar. Observar: ataque vocal no momento da adução, tensão, fo em relação ao registro de base, qualidade da emissão como a presença de sub-harmônicos, envolvimento de pregas vestibulares, estabilidade no registro e pelo menos 20 harmônicos.

  4. Emissão aguda: produção da vogal “a” ou “é” em frequência aguda. Observar: presença de esforço excessivo, manutenção da intensidade do registro de base, dificuldade para realizar a tarefa e/ou manter a emissão, qualidade da emissão como quebras de sonoridade e de frequência.

  5. Emissão grave: produção da vogal “a” ou “é” em frequência grave. Observar: qualidade vocal, manutenção da intensidade do registro de base, estabilidade vocal e conforto fonatório.

  6. Emissão em glissando: vogal “a” ou “é”, começando por um tom grave, subindo ao agudo e retornando ao tom inicial. Observar: extensão de frequências na tarefa, simetria na subida e na descida dos tons, continuidade no deslocamento das frequências e presença de quebras de frequência ou de sonoridade.

B. Emissão de fala encadeada: avalia os ajustes dos articuladores do trato vocal, tanto em relação à posição como em relação à amplitude de movimento dos lábios, da mandíbula, da língua e da própria laringe. Além disso, avalia também aspectos de ressonância e de coordenação pneumofônica, permitindo a apreciação do uso da voz na fala. Cinco tarefas podem ser utilizadas:

  1. Emissão habitual autorreferida: contagem de 1 a 10 em intensidade e frequência habituais. Registro de base.

  2. Emissão fraca autosselecionada: contagem de 1 a 10 em fraca intensidade, mantendo a sonoridade, sem sussurrar. Observar: habilidade de manter adução leve das pregas vocais com controle da intensidade fraca, foco de ressonância, articulação e coordenação pneumofônica.

  3. Emissão forte autosselecionada: contagem de 1 a 10 em forte intensidade, sem gritar. Observar: presença de ataque brusco, tensão excessiva, envolvimento de pregas vestibulares, controle da intensidade forte, foco de ressonância, articulação e coordenação pneumofônica.

  4. Emissão aguda: contagem de 1 a 10 em frequência aguda. Observar: qualidade vocal, PVL, tensão muscular, esforço fonatório, coordenação pneumofônica, velocidade de fala, qualidade da emissão como quebras de sonoridade ou de frequência.

  5. Emissão grave: contagem de 1 a 10 em frequência grave. Observar: qualidade vocal, PVL, tensão muscular, esforço fonatório, qualidade da emissão.

Importante comparar as emissões aos registros de base. O registro das tarefas deve ser feito, preferencialmente, com a utilização de um programa de espectrografia acústica da voz. Os parâmetros da análise espectrográfica devem incluir: espectrograma de faixa estreita (40 Hz), taxa de amostragem de 11 kHz para as tarefas com as vogais e 22 kHz para as tarefas com fala encadeada. Os espectrogramas em gradação de cinza permitem uma análise mais confiável; contudo, os espectrogramas coloridos destacam mais as mudanças obtidas.

A aplicação clínica do CDV será exemplificada por meio de pranchas de espectrografia acústica da voz de indivíduos normais e disfônicos, retiradas de um banco de vozes.

APRESENTAÇÃO DOS REGISTROS ESPECTROGRÁFICOS DO CDV

Para demonstrarmos o uso do CDV na prática clínica, selecionamos oito exemplos de registros espectrográficos de indivíduos vocalmente saudáveis e disfônicos durante a realização das diferentes tarefas fonatórias, Figuras 1 e 2. O programa de espectrografia acústica da voz utilizado foi o FonoView 4.0, CTS Informática.

Figura 1
CDV de duas mulheres jovens vocalmente saudáveis. 1a. CDV com tarefas de VOGAL “é” em intensidade habitual, fraca e forte e em frequência aguda, grave e em glissando; 1b. CDV de uma cantora com tarefas de contagem de 1 a 10 em frequência habitual, aguda e grave (programa Fono View 4.0)
Figura 2
CDV de seis pacientes disfônicos. 2a a 2d. CDV com tarefas de VOGAL “é” em intensidade fraca e forte e em glissando. 2a) Mulher de 53 anos com ELA; 2b) Menino de 11 anos com nódulos vocais; 2c e 2d) Comparação pré e pós-tratamento de pólipo de prega vocal de um ator de 28 anos por microcirurgia laríngea e reabilitação vocal; 2e e 2f. Dubladora de 53 anos com disfonia por tensão muscular. 2e) CDV com tarefa de contagem de números de 1 a 10 em frequência habitual, aguda e grave; 2f) CDV com tarefa de vogal “é” em intensidade habitual, fraca e forte; 2g e 2 h. Pacientes do sexo masculino com muda vocal incompleta. CDV com tarefas de contagem de números de 1 a 10 em frequência habitual, aguda e grave (programa FonoView 4.0)

A Figura 1a mostra a espectrografia do CDV de uma mulher vocalmente saudável durante a emissão da vogal sustentada “é” com variação de intensidade e de frequência. A estabilidade do traçado em todas as tarefas é visível; o traçado espectrográfico do fraco e do forte indica mudança de ajustes glóticos, com a fo praticamente estável; observa-se uma tendência da associação do forte com elevação da fo. Por outro lado, a fraca intensidade indicou a manutenção e estabilidade do traçado, o que dificilmente é atingido por pacientes disfônicos. Nota-se também nítida mudança da fo nas emissões aguda e grave. A emissão aguda mostra uma leve mudança da qualidade vocal, com maior ruído entre os harmônicos e menor intensidade dos harmônicos mais agudos, compatível com o ajuste fisiológico de frequências agudas.

A Figura 1b mostra o CDV de uma cantora vocalmente saudável durante a contagem de 1 a 10 em frequência habitual, aguda e grave. Nota-se boa definição do traçado espectrográfico nas três emissões, articulação precisa e grande energia no espectro, demonstrando adequada projeção vocal. Pode-se observar adequada variação de frequência, o que denota boa flexibilidade vocal. Os harmônicos são mais espaçados no agudo e mais próximos no grave. Em relação à frequência habitual, houve leve diminuição da intensidade vocal no grave.

A Figura 2 mostra o CDV de seis pacientes disfônicos. A Figura 2a. é de uma mulher de 53 anos com Esclerose Lateral Amiotrófica - ELA. Observa-se nítida instabilidade na manutenção do traçado da fo, tanto na emissão de sons fracos como nos fortes; Observa-se também mudança de qualidade vocal, com queda de frequência nos fracos chegando a atingir o registro basal, além de variabilidade no número dos harmônicos nesse trecho; há flutuação muito ampla na manutenção da fo, com quebras de frequências na emissão dos fortes e bifurcação da fundamental no início dessa tarefa; no glissando, também se observa bifurcação da fundamental e provável envolvimento de pregas vestibulares na região aguda do traçado; os achados do CDV dinâmico refletem as alterações neurológicas da ELA, caracterizada por uma disartria mista, hipocinética e hipercinética.

A Figura 2b é de um menino de 11 anos de idade com nódulos vocais. Nota-se a presença de ataque vocal com quebra de sonoridade na emissão dos fracos e brusco nos fortes; na emissão dos sons fracos identifica-se queda espectral rápida, enquanto que na emissão dos sons fortes observa-se fo mais aguda do que nos fracos, com tensão, rugosidade e quebra de sonoridade ao final da emissão; o glissando é irregular, com tensão excessiva, saltos de frequência e bifurcação da fo na região aguda da tarefa.

As Figuras 2c e 2d mostram a comparação de dois traçados, pré e pós-tratamento de pólipo de prega vocal, de um ator de 28 anos. O CDV pré-tratamento mostra ataques vocais bruscos e tensão nas três tarefas, emissão dos fracos com grande número de harmônicos pela tensão, glissando com quebras de frequência na escala ascendente e descendente, presença de sub-harmônico provavelmente produzido pela massa do pólipo, com traçado de ruído entre os harmônicos; no pós-tratamento observa-se emissão mais regular nas três tarefas, com fo menos grave nas emissões fraca e forte, ataque isocrônico na emissão dos fracos, maior regularidade nos harmônicos, glissando sem quebras e com menor esforço, embora com menor extensão de frequências nos agudos.

As Figuras 2e e 2f mostram o CDV de uma dubladora com disfonia por tensão muscular primária-DTMp. A Figura 2e mostra a contagem de 1 a 10 em frequência habitual, aguda e grave. Em frequência habitual, observa-se frequência vocal elevada, número de harmônicos bastante reduzido, presença de bifurcação de frequência e de sub-harmônicos. No agudo, observa-se tensão, quebras de sonoridade e quebra de frequência ascendente. No grave, nota-se também vogais com poucos harmônicos, ruído nas frequências graves, substituição de harmônicos por ruído e quebras de sonoridade. A Figura 2f mostra a vogal sustentada “é” em intensidades habitual, fraca e forte. Na emissão habitual, observa-se número restrito de harmônicos, bifurcação de frequência e presença de ruído. Em intensidade fraca, ocorre ausência de sonoridade. Em intensidade forte observa-se melhor definição dos primeiros harmônicos e presença de ruído no traçado. A espectrografia do CDV dessa paciente demonstra importante comprometimento da funcionalidade vocal tanto no controle de frequência como no de intensidade.

As Figuras 2g e 2h mostram o CDV de dois pacientes com muda vocal incompleta durante contagem de 1 a 10 em frequências habitual, aguda e grave. A Figura 2g é de um paciente de 21 anos que apresenta pouca variação de frequência nas três tarefas. Auditivamente, escuta-se pequena variação de frequência e qualidades vocais muito semelhantes, o que demonstra o provável uso do mesmo mecanismo laríngeo nas três emissões, com predomínio importante do músculo cricotireóideo -CT. A Figura 2h é de um paciente de 15 anos de idade. Observa-se grande variação de frequência entre as três emissões. Na emissão habitual, a frequência é aguda e a intensidade fraca. Na emissão aguda, a espectrografia mostra marcação de harmônicos com direção ascendente. Auditivamente, não se escuta tensão. Na frequência grave, o paciente conseguiu realizar a mudança do mecanismo laríngeo, com importante ativação do músculo tireoaritenóideo -TA. Auditivamente, a voz tornou-se grave e levemente rugosa. A comparação dos dois CDVs mostra que a flexibilidade vocal desses dois casos de muda vocal incompleta é muito diferente, sendo que o paciente de 15 anos apresenta maior flexibilidade da musculatura laríngea.

A análise do CDV pode ser considerada uma ferramenta clínica útil, de interpretação intuitiva e diretamente relacionada à funcionalidade vocal. A análise espectrográfica do CDV pode ser analisada em qualquer programa de análise espectrográfica, incluindo os gratuitos disponíveis na internet.

DISCUSSÃO

A possibilidade de variar a extensão dinâmica, com emissão de fraco e forte, e a extensão fonatória, com a emissão agudo e grave, é essencial para a expressão de nossas emoções, gerando riqueza na qualidade vocal e refletindo a plasticidade do mecanismo laríngeo. Quanto maior a extensão dinâmica e fonatória, maior a flexibilidade vocal, o que reflete saúde vocal e que permite adequada expressividade vocal. Quando se trata do uso profissional da voz, essa flexibilidade colabora para a qualidade e a resistência necessárias para a profissão.

A análise do CDV de um paciente com queixa de voz ou de um indivíduo que busca o aperfeiçoamento vocal possibilita o diagnóstico da funcionalidade vocal e também a análise comparativa do resultado de um programa de desenvolvimento vocal ou de reabilitação.

O CDV associado à espectrografia acústica da voz favorece o direcionamento do raciocínio clínico quanto às características biomecânicas e aerodinâmicas da produção vocal, mostrando de forma eficiente a condição da funcionalidade vocal do paciente. Por ser uma tarefa simples e de rápida execução, o CDV pode ser utilizado tanto na avaliação vocal como durante a terapia de voz para fins de monitoramento. A conclusão da avaliação do CDV deve conter informações sobre as características perceptivo-auditivas e acústicas da voz observadas durante a realização das tarefas fonatórias, como mudanças da qualidade vocal e do traçado espectrográfico.

COMENTÁRIOS FINAIS

O presente artigo teve como objetivo demonstrar a aplicação clínica do CDV, uma estratégia de avaliação perceptivo-auditiva e acústica descritiva que avalia a funcionalidade laríngea vocal, seja para fins de aperfeiçoamento vocal ou para analisar as condições vocais de um paciente com distúrbio vocal e acompanhar os resultados de um tratamento. A estratégia é de fácil execução e pode ser registrada em qualquer programa de espectrografia acústica da voz.

  • Trabalho realizado no Centro de Estudos da Voz - CEV - São Paulo, Brasil.
  • Fonte de financiamento: nada a declarar.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2021
  • Aceito
    10 Out 2022
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