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Protocolo de avaliação para apraxia de fala adquirida

RESUMO

Objetivo

Elaborar um protocolo de avaliação do planejamento motor da fala com estímulos fonologicamente balanceados para o português brasileiro e que contemple todas as variáveis necessárias para este diagnóstico.

Método

Foram realizadas três etapas: Na primeira, construíram-se listas de palavras cujo critério principal foram os padrões silábicos e acentuais. Do levantamento realizado na Etapa 1, procedeu-se à seleção dos vocábulos que compuseram a primeira versão do protocolo na Etapa 2, reunidas em duas tarefas: de repetição e de Leitura em Voz Alta (LVA). Em seguida, investigou-se a ocorrência das palavras usando a base de dados do Corpus Brasileiro (PUC-SP) - Linguateca. Na etapa 3 realizou-se a análise estatística para verificar se as listas de repetição e de LVA estavam equilibradas quanto à ocorrência das palavras. Assim, as listas foram distribuídas em quartis e foram analisadas de forma descritiva e bivariada. O nível de significância utilizado foi de 5%.

Resultados

Após a realização de todas as etapas, foi possível obter as palavras que compuseram as listas das tarefas de repetição e de LVA. Finalmente, foram então acrescidas ao protocolo as demais tarefas consideradas essenciais para a avaliação da apraxia como as taxas diadococinéticas e a prancha para a emissão oral espontânea.

Conclusão

O protocolo desenvolvido contém as tarefas consideradas padrão para a avaliação da apraxia de fala pela literatura internacional, o que torna esse instrumento importante para o diagnóstico desse distúrbio em falantes do português brasileiro.

Descritores:
Apraxias; Transtornos da Articulação; Protocolo; Avaliação de Sintomas; Diagnóstico

ABSTRACT

Purpose

To develop an assessment protocol for speech motor planning with phonologically balanced stimuli for Brazilian Portuguese, including all necessary variables for this diagnosis.

Methods

Three stages were carried out: In the first, word lists were built with the main criterion being syllabic and accentual patterns. From the survey conducted in Stage 1, the words that composed the first version of the protocol lists in Stage 2 were selected, and grouped into two fundamental tasks for diagnosing acquired apraxia of speech (AOS): repetition and Reading Aloud (RA). In Stage 3, the occurrence of words was investigated using the Brazilian Corpus (PUC-SP) - Linguateca database, and a statistical analysis was performed to verify if the repetition and RA lists were balanced in terms of the occurrences. Thus, the lists were distributed in quartiles and submitted to both descriptive and bivariate analyses. A significance level of 5% (p<0.05) was adopted.

Results

After completion of all stages, the words that composed the lists of the repetition and RA tasks were obtained. Finally, other tasks considered essential for the assessment of AOS, such as diadochokinetic rates and the board for spontaneous oral emission, were then added to the protocol.

Conclusion

The developed protocol contains the tasks considered standard for the assessment of AOS according to the international literature, which makes this instrument important for diagnosing this disorder in speakers of Brazilian Portuguese.

Keywords:
Apraxia; Articulation Disorders; Protocol; Symptom Assessment; Diagnosis

INTRODUÇÃO

A apraxia de fala adquirida foi descrita como “[...] um distúrbio da programação motora da fala manifestada primariamente por erros de articulação”(11 Darley FL, Aronson AE, Brown JR. Motor speech disorders. 1st ed. Philadelphía: W. B. Saunders; 1975.). Pode ser decorrente de diversos insultos neurológicos como acidente vascular encefálico, traumatismo cranioencefálico, tumores que invadem o sistema nervoso central e doenças neurodegenerativas. A apraxia de fala costuma acompanhar quadros de afasia(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.), o que dificulta a diferenciação das manifestações fonológicas (afasia) das fonéticas(apraxia).

Dentre as características da apraxia de fala, há a repetição de fonemas e de sílabas, a autocorreção e o ensaio articulatório. Manifestações como prolongamento de vogais, aumento da distância interssilábica, distorção fonêmica e chuá intrusivo estão mais diretamente relacionadas à apraxia de fala(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.). A substituição, a omissão e a adição, comuns na afasia de condução, também podem ser observadas nos pacientes apráxicos(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.). A apraxia também pode ser caracterizada na prosódia por uma fala mais lenta e hesitante com alteração no ritmo e na entonação em virtude de questões do planejamento articulatório(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.,33 Ballard KJ, Azizi L, Duffy JR, McNeil MR, Halaki M, O’Dwyer N, et al. A predictive model for diagnosing stroke-related apraxia of speech. Neuropsychologia. 2016;81:129-39. http://dx.doi.org/10.1016/j.neuropsychologia.2015.12.010. PMid:26707715.
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).

Além da descrição de manifestações, é possível e recomendado utilizar modelos linguísticos de produção de fala para análise dos tipos de erros para entender os processos envolvidos nos distúrbios de fala e assim melhor caracterizá-los. O modelo de produção da fala mais aceito atualmente(44 Van Der Merwe A. New perspectives on speech motor planning and programming in the context of the four-level model and its implication for understanding the pathophysiology underlying apraxia of speech and other motor speech disorders. Aphasiology. 2020;32(1):88-102. http://dx.doi.org/10.1080/02687038.2020.1765306.
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) identifica quatro níveis de processamento: o primeiro nível é o pré-motor, também chamado de planejamento linguístico-simbólico, no qual ocorre a seleção dos fonemas e a aplicação das regras linguísticas; o segundo nível é o do planejamento motor, que é responsável pelas memórias motoras e ordenação têmporo-espacial dos fonemas a serem emitidos; no terceiro nível, da programação motora, ocorre a seleção de músculos na sequência apropriada para a produção dos fonemas selecionados; no quarto nível, há a execução da sequência de fala produzida pelos articuladores envolvidos na ação.

De acordo com esse modelo, os sinais de afasia aparecem como um déficit na etapa de planejamento linguístico-simbólico, enquanto os de apraxia aparecem na etapa de planejamento e de programação motora.

Algumas características são típicas e outras exclusivas da apraxia de fala. Distorção de sons, prolongamento de vogais e consoantes e prolongamento de duração de intersegmentos são exclusivas da apraxia de fala(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.,33 Ballard KJ, Azizi L, Duffy JR, McNeil MR, Halaki M, O’Dwyer N, et al. A predictive model for diagnosing stroke-related apraxia of speech. Neuropsychologia. 2016;81:129-39. http://dx.doi.org/10.1016/j.neuropsychologia.2015.12.010. PMid:26707715.
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). Tais características são mais evidentes em palavras polissilábicas(55 Haley KL, Jacks A, Richardson JD, Wambaugh JL. Perceptually salient sound distortions and apraxia of speech: a performance continuum. Am J Speech Lang Pathol. 2017;26(2S):631-40. http://dx.doi.org/10.1044/2017_AJSLP-16-0103. PMid:28654944.
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). Mesmo com a publicação do modelo de processamento de fala e a observação de características relacionadas ao planejamento motor, a diferenciação entre erros fonológicos e fonéticos é uma tarefa bastante complexa(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.,66 Cera ML, Ortiz KZ, Bertolucci PHF, Minett T. Phonetic and phonological aspects of speech in Alzheimer’s disease. Aphasiology. 2018;32(1):88-102. http://dx.doi.org/10.1080/02687038.2017.1362687.
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).

Com essa mudança na visão e na interpretação da interface fala e linguagem a partir dos modelos de processamento de fala, novos protocolos foram desenvolvidos, tentando tornar o processo de avaliação mais eficaz para a diferenciação de transtornos da linguagem (afasia) e os de fala (apraxia).

No âmbito internacional, destaca-se o Apraxia Battery for Adults, ABA-2(77 Dabul B. Apraxia battery for adults. Austin: PRO-ED; 2000.), que possui tarefas com listas de palavras para avaliar a presença e mensurar a gravidade da apraxia de fala do paciente. Isso é feito por meio do Errors on Words of Increasing Length (E_WIL), medida que relaciona o erro com a extensão da palavra(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.). O Apraxia of Speech Rating Scale (ASRS) é uma escala perceptual que, assim como o ABA-2, baseia-se na percepção auditiva do avaliador(88 Strand EA, Duffy JR, Clark HM, Josephs K. The apraxia of speech rating scale: A tool for diagnosis and description of apraxia of speech. J Commun Disord. 2014;51:43-50. http://dx.doi.org/10.1016/j.jcomdis.2014.06.008. PMid:25092638.
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). Nestes protocolos, destaca-se o controle acurado dos estímulos utilizados com as variáveis atualmente consideradas fundamentais para o diagnóstico da apraxia adquirida de fala, incluindo o balanceamento fonológico. Como a análise é subjetiva, existem protocolos que objetivaram reduzir a subjetividade, tais como o Word Syllable Duration (WSD), em que se calcula o tempo de produção da palavra dividido pelo número de sílabas produzidas por meio do uso de medidas acústicas(99 Haley KL, Jacks A, de Riesthal M, Abou-Khalil R, Roth HL. Toward a quantitative basis for assessment and diagnosis of apraxia of speech. J Speech Lang Hear Res. 2012;55(5):S1502-17. http://dx.doi.org/10.1044/1092-4388(2012/11-0318). PMid:23033444.
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) e o Pairwise Variability Index (PVI), que usa palavras, frases e sentenças para calcular a diferença entre sílabas tônicas e átonas pela duração, frequência fundamental e intensidade(1010 Haley KL, Jacks A. Word-level prosodic measures and the differential diagnosis of apraxia of speech. Clin Linguist Phon. 2019;33(5):479-95. http://dx.doi.org/10.1080/02699206.2018.1550813.
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). Ainda assim, todos os protocolos contêm estímulos linguísticos com as variáveis que interferem no planejamento motor como frequência e estrutura das sílabas, posição da sílaba tônica da palavra, balanceamento fonológico, frequência e extensão das palavras e probabilidade fonotática(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.,33 Ballard KJ, Azizi L, Duffy JR, McNeil MR, Halaki M, O’Dwyer N, et al. A predictive model for diagnosing stroke-related apraxia of speech. Neuropsychologia. 2016;81:129-39. http://dx.doi.org/10.1016/j.neuropsychologia.2015.12.010. PMid:26707715.
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,55 Haley KL, Jacks A, Richardson JD, Wambaugh JL. Perceptually salient sound distortions and apraxia of speech: a performance continuum. Am J Speech Lang Pathol. 2017;26(2S):631-40. http://dx.doi.org/10.1044/2017_AJSLP-16-0103. PMid:28654944.
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,88 Strand EA, Duffy JR, Clark HM, Josephs K. The apraxia of speech rating scale: A tool for diagnosis and description of apraxia of speech. J Commun Disord. 2014;51:43-50. http://dx.doi.org/10.1016/j.jcomdis.2014.06.008. PMid:25092638.
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). Além disso, preconiza-se o uso de tarefas de emissão espontânea e taxas diadococinéticas(88 Strand EA, Duffy JR, Clark HM, Josephs K. The apraxia of speech rating scale: A tool for diagnosis and description of apraxia of speech. J Commun Disord. 2014;51:43-50. http://dx.doi.org/10.1016/j.jcomdis.2014.06.008. PMid:25092638.
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).

No Brasil há uma escassez de procedimentos objetivos destinados à avaliação clínica da apraxia adquirida de fala. O único protocolo publicado para a avaliação clínica desse quadro(1111 Martins FC, Ortiz KZ. Proposta de protocolo para avaliação da apraxia da fala. Fono Atual. 2004;30:53-61.) prescinde do controle das variáveis linguísticas necessárias para uma acurada avaliação do planejamento motor, bem como de tarefas atualmente consideradas fundamentais para esse diagnóstico.

Diante da mudança na compreensão sobre a produção motora da fala, oriunda dos novos modelos de processamento e a presença de novos instrumentos, surge a necessidade de desenvolver um protocolo para o português brasileiro que contemple as variáveis que interferem no planejamento e na produção motora da fala.

Desse modo, o objetivo desse estudo foi elaborar um protocolo de avaliação para apraxia de fala adquirida com as variáveis importantes para o diagnóstico e com estímulos fonologicamente balanceados para o português brasileiro.

MÉTODO

Trata-se de um estudo realizado no Departamento de Fonoaudiologia da Escola Paulista de Medicina (EPM), da Universidade Federal de São Paulo.

Para a elaboração do protocolo foram seguidas três etapas:

Na primeira etapa, construíram-se listas de palavras em que foram consideradas palavras de conteúdo, especificamente, substantivos e adjetivos. Além dos substantivos próprios, foram excluídos verbos flexionados ou no infinitivo, palavras funcionais, palavras com contexto para epêntese e palavras cujo significado fosse especializado. Nessa etapa, o critério principal para a construção das listas foram os padrões silábicos e acentuais. Foram consideradas palavras que contemplassem os padrões silábicos da língua portuguesa, do canônico CV ao mais complexo CCVCC, com alternância acentual. Palavras dissílabas e trissílabas formadas somente pelo padrão silábico CV, a saber, CV.CV e CV.CV.CV, foram contempladas em todas as posições acentuais.

Também foram contemplados os seguintes padrões silábicos: CCV em posição tônica em início de palavra; em posição tônica e átona no meio de palavra; CVC em sílaba tônica e átona; CVCC em sílaba átona para coda /lS/ e /RS/ e tônica para /NS/; CVCC em sílaba tônica e átona e CVG (consoante vogal glide) em sílaba átona e tônica, a partir dos ditongos fonológicos /ai/, /ei/, /oi/ e /ui/.

A partir do levantamento realizado na Etapa 1, procedeu-se à seleção dos vocábulos que, de fato, compuseram uma primeira versão da lista. Uma segunda etapa foi necessária em virtude do número excessivo de vocábulos, o que inviabilizaria a aplicação do protocolo. Também foi considerada a necessidade de o protocolo estar composto por palavras com o mesmo tipo de complexidade nas duas tarefas emissivas: repetição e leitura em voz alta. Para isso, foi realizada uma distribuição controlada dos itens entre as duas tarefas, de tal modo que, consideradas todas as vogais orais de todos os itens do protocolo, as palavras da Tarefa de Repetição e de Leitura em Voz Alta tivessem exatamente a mesma proporção de cada uma delas. O mesmo ocorreu para a distribuição das palavras em relação aos fonemas surdos e sonoros que foram controlados.

Durante esta distribuição, para que as listas ficassem idênticas quanto às variáveis pré-determinadas, seria necessário acrescentar três palavras, que seriam correspondentes às que possuem as codas ls e rs, a saber, “solstício” e “perspicaz”, e à que possui o ataque complexo fl, especificamente para a palavra “supérfluo”. Para a sílaba CV/lS/, só havia a palavra “solstício” no português, dados os critérios adotados. Como não há um correspondente em termos de complexidade articulatória para as duas tarefas, essa palavra foi excluída.

Para a sílaba CV/RS/, os substantivos encontrados na língua foram “perspectiva”, “perscrutação”, “superstição” e “interstício”. Foram escolhidas para permanecer na lista as palavras “superstição” e “interstício”.

Por sua vez, a palavra “supérfluo”, presente na primeira lista de palavras devido ao ataque complexo em sílaba átona (pós-tônica), ficou sem um correspondente na Lista de Leitura em Voz Alta porque a única ocorrência que há nesse padrão é a palavra “setênfluo”, cuja frequência nem é registrada no banco do Corpus Brasileiro. Considerou-se, então, como alternativa a palavra “confluído”. No entanto, elas não se equipararam quanto à ocorrência. Por este motivo, esta palavra não foi incluída na lista.

A complexidade do padrão silábico e acentual e as variáveis fonéticas e fonológicas foram controladas pois é a partir delas que é possível realizar uma análise acurada dos erros, incluindo-se, inclusive, a análise da prosódia, em seu aspecto ênfase e a duração das palavras pode também corroborar para a análise da velocidade de produção de fala.

Além dos critérios referentes à complexidade do padrão silábico e acentual e das variáveis fonéticas e fonológicas, houve a necessidade de realização de uma terceira etapa, para o controle da variável frequência das palavras. A seleção dos vocábulos nesta etapa tomou como referência o número de ocorrências verificado no Corpus Brasileiro (PUC-SP), por meio da ferramenta Linguateca. Para isso, todas as ocorrências das palavras pré-selecionadas nas etapas I e II foram identificadas e, posteriormente, analisadas estatisticamente por quartis. Assim, as listas foram analisadas de forma descritiva (por meio do cálculo de medidas resumo) e bivariada pelo coeficiente de correlação de Spearman (rho). Todas as análises foram realizadas no software estatístico R, versão 4.2.1. O nível de significância utilizado foi de 5%.

RESULTADOS

Os resultados referem-se às etapas para a escolha das palavras que compõem o protocolo. Na primeira etapa foram levantados 266 vocábulos. Os vocábulos escolhidos foram: pé, fé, má, pá, pó, dó, xô, vô, ata, asa, ela, era, ilha, ira, até, axé, aqui, ali, sopa, zona, torá, sofá, cura, pura, guru, tutu, casaca, salada, cilada, pirata, sucata, mulata, careca, tarefa, fivela, tigela, capeta, tabela, cabina, vacina, birita, visita, sulina, tulipa, papuda, maluca, sisuda, sinuca, butuca, sutura, sarará, guaraná, cafuné, canapé, chaminé, picolé, caratê, matinê, jabuti, javali, sururu, jururu, camelô, bibelô, maracatu, tataravô, prata, breve, brisa, prumo, draga, dreno, tropa, fraco, fruta, frevo, cravo, greve, crime, grosso, braço, prece, prima, bruxa, traça, treze, droga, frete, frota, frevo, grade, creme, grilo, grossa, plano, pluma, flora, clero, clima, cloro, glosa, blefe, blusa, flecha, claro, clube, clone, globo, atraso, mutreta, aplauso, conflito, cobra, templo, abrigo, recruta, atleta, emblema, pobre, dupla, braço, glacê, flexão, brechó, clichê, glutão, testa, mesmo, gosto, carta, verde, curto, delta, culto, santo, mente, pasta, misto, custo, perto, circo, morto, calda, filme, conta, mundo, cascata, custoso, mercado, virtude, palmito, soldado, cantada, pintura, construção, circunstância, interstício, baile, noite, azeitona, cuidado, pestana, mistério, partida, curtido, beldade, cultura, mentira, zumbido, menstruação, instrumento, superstição, peito, muito, caiçara, coitado.

Em seguida, com a exclusão de itens com estrutura silábica e sonoridade semelhantes, juntamente com a inclusão de palavras para pareamento em relação à semelhança fonológica para as listas de Repetição e de Leitura em Voz Alta, chegou-se à 176 itens. Os itens e suas respectivas ocorrências na Língua Portuguesa são apresentados no Quadro 1. Nesse quadro, também se pode observar a primeira tentativa de distribuição das palavras nas listas de Leitura em Voz Alta e Repetição, segundo os critérios descritos para a Etapa II.

Quadro 1
Palavras selecionadas e suas respectivas ocorrências segundo a tarefa

Em seguida, realizou-se o estudo das frequências das palavras em quartis (Tabela 1). Na análise dos quartis, observa-se grande semelhança entre as listas quanto as medidas resumo. Para testar essa semelhança, utilizou-se a correlação de Spearman em que se obteve correlação estatisticamente significante entre as listas de Repetição e Leitura em Voz Alta (rho = 0,34, p-valor < 0,001).

Tabela 1
Análise dos quartis de ocorrências de palavras por lista

Quanto à classificação por sílabas, ambas as listas apresentam a mesma quantidade, isto é, 04 monossílabos, 47 dissílabos, 33 trissílabos e 04 polissílabos.

Além das tarefas de repetição e leitura em voz alta com vocábulos controlados quanto às variáveis descritas, o protocolo conta com as tarefas de conversa espontânea, emissão de história a partir de uma prancha de figura (assalto ao banco, retiradas da Bateria MTL-BR) e emissão das diadococinesias /pa/, /ta/, /ca/ e /pataca/. Tais tarefas são consideradas padrão ouro para a avaliação da apraxia de fala adquirida.

Nessa etapa foi gerada a folha para marcação das respostas, intitulada “Folha de Registro”, a qual conta com os dados de identificação do participante, lista dos estímulos e espaço para a marcação da emissão correta ou não, e tempo de produção da fala, consideradas as variáveis complexidade articulatória e frequência da palavra na língua. A folha de marcação é apresentada na Figura 1. Nesse sentido, esse protocolo ainda será testado, sendo um esboço para o estudo piloto.

Figura 1
Folha de respostas do protocolo de apraxia adquirida

DISCUSSÃO

O protocolo desenvolvido para o português brasileiro conta com tarefas que são referências na literatura internacional para a avaliação clínica da apraxia de fala adquirida.

A apraxia de fala adquirida é um quadro difícil de ser diagnosticado, uma vez que raramente aparece de forma isolada e, quando coocorre com a afasia, o que mais comumente se observa, há necessidade de que, a partir da análise dos erros da fala, seja possível diferenciar padrões de erros fonológicos dos fonéticos. Nesse sentido, um protocolo que controle as variáveis linguísticas que interferem na produção motora da fala é extremamente importante. No entanto, ainda assim, apresenta limitações. De fato, não há ainda na literatura internacional uma metodologia de avaliação ou um protocolo que possa ser considerado padrão-ouro para o diagnóstico deste distúrbio de fala e, da mesma forma, a classificação e a análise dos erros de fala realizada pelos fonoaudiólogos clínicos ainda se mostra difícil e com baixa concordância interavaliadores(1212 Molloy J, Jagoe C. Use of diverse diagnostic criteria for acquired apraxia of speech: a scoping review. Int J Lang Commun Disord. 2019;54(6):875-93. http://dx.doi.org/10.1111/1460-6984.12494. PMid:31322824.
http://dx.doi.org/10.1111/1460-6984.1249...
).

As variáveis das listas de palavras foram bem controladas, focando-se nos aspectos que mais interferem na produção motora da fala, a fim de diferenciar claramente os erros de natureza fonética (apraxia) dos erros fonológicos (afasia). Vale lembrar que o diagnóstico diferencial entre apraxia de fala e parafasias fonêmicas oriundas de alteração fonológica devido à afasia deve ser feito pela análise dos erros. No entanto, se os estímulos não estiverem controlados linguisticamente, esta análise pode ser dificultada ou até enviesada.

Como a fala dos pacientes com apraxia de fala adquirida caracteriza-se por lentidão e prolongamento de vogais e consoantes, espera-se que o tempo de produção nas listas de leitura e repetição sejam maiores do que nos indivíduos saudáveis(11 Darley FL, Aronson AE, Brown JR. Motor speech disorders. 1st ed. Philadelphía: W. B. Saunders; 1975.,22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.,55 Haley KL, Jacks A, Richardson JD, Wambaugh JL. Perceptually salient sound distortions and apraxia of speech: a performance continuum. Am J Speech Lang Pathol. 2017;26(2S):631-40. http://dx.doi.org/10.1044/2017_AJSLP-16-0103. PMid:28654944.
http://dx.doi.org/10.1044/2017_AJSLP-16-...
,1313 Basilakos A, Yourganov G, den Ouden DB, Fogerty D, Rorden C, Feenaughty L, et al. A multivariate analytic approach to the differential diagnosis of apraxia of speech. J Speech Lang Hear Res. 2017;60(12):3378-92. http://dx.doi.org/10.1044/2017_JSLHR-S-16-0443. PMid:29181537.
http://dx.doi.org/10.1044/2017_JSLHR-S-1...

14 Bislick L, Hula WD. Perceptual characteristics of consonant production in apraxia of speech and aphasia. Am J Speech Lang Pathol. 2019;28(4):1411-31. http://dx.doi.org/10.1044/2019_AJSLP-18-0169.
http://dx.doi.org/10.1044/2019_AJSLP-18-...
-1515 Bartle CJ, Goozée J, Murdoch B. An EMA analysis of the effect of increasing word length on consonant production in apraxia of speech: a case study. Clin Linguist Phon. 2007;21(3):189-210. http://dx.doi.org/10.1080/02699200601007865. PMid:17364625.
http://dx.doi.org/10.1080/02699200601007...
).

A presença de palavras com várias estruturas silábicas torna mais rica a avaliação, pois sabe-se que os apráxicos tendem a cometer mais erros nas palavras conforme há o aumento de extensão delas(88 Strand EA, Duffy JR, Clark HM, Josephs K. The apraxia of speech rating scale: A tool for diagnosis and description of apraxia of speech. J Commun Disord. 2014;51:43-50. http://dx.doi.org/10.1016/j.jcomdis.2014.06.008. PMid:25092638.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jcomdis.2014...
). Além disso, eles apresentam mais dificuldade em consoantes no início da palavra(22 McNeil MR, Pratt SR, Fossett TRD. The differential diagnosis of apraxia of speech. In: Maassen B, Kent R, Peters H, van Lieshout P, Hulstijn W, editors. Speech motor control in normal and disordered speech. New York: Oxford University Press; 2004. p. 389-412.,33 Ballard KJ, Azizi L, Duffy JR, McNeil MR, Halaki M, O’Dwyer N, et al. A predictive model for diagnosing stroke-related apraxia of speech. Neuropsychologia. 2016;81:129-39. http://dx.doi.org/10.1016/j.neuropsychologia.2015.12.010. PMid:26707715.
http://dx.doi.org/10.1016/j.neuropsychol...
,99 Haley KL, Jacks A, de Riesthal M, Abou-Khalil R, Roth HL. Toward a quantitative basis for assessment and diagnosis of apraxia of speech. J Speech Lang Hear Res. 2012;55(5):S1502-17. http://dx.doi.org/10.1044/1092-4388(2012/11-0318). PMid:23033444.
http://dx.doi.org/10.1044/1092-4388(2012...
) e em palavras menos utilizadas no cotidiano. Dessa forma, pode-se estimar que os pacientes com apraxia de fala adquirida terão um pior desempenho nas palavras mais extensas e menos frequentes na língua(1414 Bislick L, Hula WD. Perceptual characteristics of consonant production in apraxia of speech and aphasia. Am J Speech Lang Pathol. 2019;28(4):1411-31. http://dx.doi.org/10.1044/2019_AJSLP-18-0169.
http://dx.doi.org/10.1044/2019_AJSLP-18-...
,1515 Bartle CJ, Goozée J, Murdoch B. An EMA analysis of the effect of increasing word length on consonant production in apraxia of speech: a case study. Clin Linguist Phon. 2007;21(3):189-210. http://dx.doi.org/10.1080/02699200601007865. PMid:17364625.
http://dx.doi.org/10.1080/02699200601007...
). Espera-se também que haja uma associação entre os erros na lista de Repetição e os erros na lista de Leitura em Voz alta nos pacientes com apraxia.

Os avanços no estudo de produção motora da fala, valorizando questões perceptuais e linguísticas, foram valiosos para a compreensão das etapas da emissão oral. No entanto, embora o conhecimento que se tenha hoje sobre erros de natureza puramente fonética (apraxia) e erros puramente fonológicos (afasia) auxilie no diagnóstico diferencial entre estes transtornos, a grande maioria dos erros encontrados em pacientes em que se objetiva esse diagnóstico diferencial, podem, de fato, expressar falhas no processamento linguístico ou motor. Portanto, ainda há a possibilidade de dificuldade na distinção de quadros puramente motores.

Assim, a lista desenvolvida auxiliará na avaliação e na prática terapêutica, uma vez que tornará mais prático o mapeamento dos tipos de erros e, consequentemente, possibilitará uma seleção mais apurada dos estímulos para cada paciente.

Limitações do estudo

Trata-se de um estudo inicial em que se apresenta um protocolo de avaliação de apraxia de fala para o português brasileiro com o controle das variáveis linguísticas e com todas as tarefas necessárias para esse diagnóstico. A variável probabilidade fonotática não foi controlada porque não há estudos suficientes no Brasil nesta temática. Amostras de fala de indivíduos saudáveis ainda deverão ser comparadas aos de indivíduos com apraxia adquirida de fala, a fim de verificarmos se haverá necessidade de mudanças nos estímulos obtidos na criação deste protocolo, bem como no sistema de identificação de erros, atribuição de escores e obtenção de notas de corte populacionais.

CONCLUSÃO

O protocolo desenvolvido contém tarefas consideradas padrão ouro para a avaliação da apraxia de fala pela literatura internacional, o que torna esse instrumento de grande relevância para o diagnóstico desse distúrbio em falantes do português brasileiro.

  • Trabalho realizado na Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: CNPQ (102609/2021-7, 123592/2021-6).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2022
  • Aceito
    20 Mar 2023
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