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Adaptação transcultural para o português Brasileiro do Vocal Congruence Scale e Transgender Congruence Scale

RESUMO

Objetivo

realizar a adaptação transcultural dos instrumentos Vocal Congruence Scale (VCS) e o Transgender Scale Congruence (TSC) para o português brasileiro.

Método

o estudo foi desenvolvido em duas etapas: adaptação transcultural e pré-teste. 1. Adaptação transcultural: foi composta por uma equipe de dois fonoaudiólogos e dois não-fonoaudiólogos, sendo responsáveis pela tradução para o português (um fonoaudiólogo e um não-fonoaudiólogo nativos do português brasileiro - PB e falantes do inglês), de modo independente, com posterior consenso realizado pelos pesquisadores; retrotradução para o inglês (um fonoaudiólogo e um não-fonoaudiólogo nativos do inglês e falantes do PB); análise da versão final por um comitê (um tradutor, um metodologista, e três fonoaudiólogos). 2. Etapa de pré-teste: os instrumentos foram aplicados em 38 indivíduos transgêneros (29 mulheres trans, 2 travestis e 7 homens trans), sendo acrescido na chave de resposta a opção “não aplicável”. Os dados foram analisados de forma descritiva e inferencial.

Resultados

No processo de adaptação transcultural do VCS houve ajustes em cinco itens do questionário, quatro deles quanto à forma e um quanto ao conteúdo. Para o TSC também foram necessários ajustes quanto a forma em cinco itens. No pré-teste, para todos os itens dos instrumentos, a opção não aplicável apresentou proporção significativamente menor que as opções da chave de resposta dos instrumentos. Por fim, foi obtida uma versão traduzida e adaptada para o português dos dois instrumentos.

Conclusão

Os instrumentos foram transculturalmente adaptados para o português brasileiro e nomeados como Escala de Congruência Vocal e Escala de Congruência da Pessoa Transgênero.

Descritores:
Pessoas Transgênero; Estudos de Gênero; Voz; Inquéritos e Questionários; Processo de Tradução

ABSTRACT

Purpose

to carry out the cross-cultural adaptation of the Vocal Congruence Scale (VCS) and the Transgender Scale Congruence (TSC) instruments into Brazilian Portuguese.

Methods

the study was developed in two stages: cross-cultural adaptation and pre-test. 1. Cross-cultural adaptation: it was composed of a team of two speech therapists and two non-speech therapists, being responsible for the translation of the instruments into Portuguese (a speech therapist and a non-speech therapist native to Brazilian Portuguese - BP and English speakers, independently, with subsequent consensus achieved by the researchers; back-translation of the instruments into English (a speech therapist and a non-speech therapist who are native speakers of English and speakers of BP); analysis of the final version by a committee (a translator, a methodologist, and three speech therapists). Data were analyzed descriptively and inferentially.

Results

In the cross-cultural adaptation process of the VCS there were adjustments in five items of the questionnaire, four of them in terms of form and one in terms of content. necessary adjustments regarding form in five items. In the pre-test, for all VCS and TSC items, the non-applicable option had a significantly lower proportion than the instrument response key options (p<0.001, for all). Finally, a translated and adapted version for Brazilian Portuguese of the Vocal Congruence Scale (VCS) and the Transgender Scale Congruence (TSC) instruments was obtained.

Conclusion

The VCS and TSC were transculturally adapted to Brazilian Portuguese and named as Vocal Congruence Scale and Transgender Person Congruence Scale.

Keywords:
Transgender People; Gender Studies; Voice; Surveys and Questionnaires; Translation Process

INTRODUÇÃO

A transgeneridade tem sido um desafio na clínica vocal principalmente pelo fato de a intervenção fonoaudiológica sobre os aspectos vocais e de comunicação ser uma abordagem relativamente recente na Fonoaudiologia, com um quantitativo ainda limitado de estudos com evidência científica. Muitas mulheres e homens transgêneros, travestis e não-binários procuram o atendimento fonoaudiológico para adequar suas vozes ao gênero de sua identificação, visto que, a voz pode anunciar sua transgeneridade. Isso tem sido elencado como um fator de risco para sua existência social, em virtude da violência de gênero e transfobia sofridas rotineiramente por esta população(11 Hancock AB, Stutts HW, Bass A. Perceptions of gender and femininity based on language: implications for transgender communication therapy. Lang Speech. 2015;58(3):315-33. http://dx.doi.org/10.1177/0023830914549084. PMid:26529899.
http://dx.doi.org/10.1177/00238309145490...
). Sendo assim, a congruência voz-gênero favorece as relações sociais das pessoas transgêneros.

Estudos sobre a população trans tem sido mais frequentes nas duas últimas décadas, abordando temáticas sobre a percepção de gênero(11 Hancock AB, Stutts HW, Bass A. Perceptions of gender and femininity based on language: implications for transgender communication therapy. Lang Speech. 2015;58(3):315-33. http://dx.doi.org/10.1177/0023830914549084. PMid:26529899.
http://dx.doi.org/10.1177/00238309145490...

2 Houle N, Levi SV. Effect of phonation on perception of femininity/Masculinity in transgender and cisgender speakers. J Voice. 2021;35(3):497.e23-37. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2019.10.011. PMid:31848063.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2019....
-33 Brandon M, Bent T. How intonation and articulation cues impact gender perception for cisgender and transgender speakers. J Acoust Soc Am. 2021;150(4):312.); parâmetros vocais marcadores de gênero(33 Brandon M, Bent T. How intonation and articulation cues impact gender perception for cisgender and transgender speakers. J Acoust Soc Am. 2021;150(4):312.

4 Kim HT. Vocal feminization for transgender women: current strategies and patient perspectives. Int J Gen Med. 2020;13:43-52. http://dx.doi.org/10.2147/IJGM.S205102. PMid:32104050.
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-55 Gelfer MP, Tice RM. Perceptual and acoustic outcomes of voice therapy for male-to-female transgender individuals immediately after therapy and 15 months later. J Voice. 2013;27(3):335-47. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.07.009. PMid:23084812.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2012....
); efeitos da terapia fonoaudiológica na percepção de gênero(66 Gelfer MP, Bennett Q. Speaking fundamental frequency and vowel formant frequencies: effects on perception of gender. J Voice. 2013;27(5):556-66. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.11.008. PMid:23415148.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2012....

7 Gelfer MP, Van Dong BRV. A preliminary study on the use of vocal function exercises to improve voice in male-to-female transgender clients. J Voice. 2013;27(3):321-34. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.07.008. PMid:23159032.
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-88 Hancock AB, Garabedian M. Transgender voice and communication treatment: a retrospective chart review of 25 cases. Int J Lang Commun Disord. 2013;48(1):54-65. http://dx.doi.org/10.1111/j.1460-6984.2012.00185.x. PMid:23317384.
http://dx.doi.org/10.1111/j.1460-6984.20...
), e, autopercepção vocal de pessoas trans(99 Hancock A, Krissinger J, Owen K. Voice perceptions and quality of life of transgender people. J Voice. 2011;25(5):553-8. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2010.07.013. PMid:21051199.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2010....

10 Schmidt JG, Goulart BNG, Dorfman MEKY, Kuhl G, Paniagua LM. Voice challenge in transgender women: trans women self-perception of voice handicap as compared to gender perception of naïve listeners. Rev CEFAC. 2018;20(1):79-86. http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620182011217.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620182...

11 Barra BGA, Gusmão ÚMDAS, Araújo ANBD. Autopercepção vocal de pessoas transexuais. Rev CEFAC. 2020;22(4):e4819. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216/20202244819.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216/2020...

12 Santana EJ, Barbosa LJ, Irineu RA, Ribeiro VV. Autopercepção vocal de mulheres e homens trans. Res Soc Dev. 2022;11(7):e17111729640. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i7.29640.
http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i7.296...
-1313 Dornelas R, Guedes-Granzotti R, Souza AS, Jesus AKB, Silva K. Qualidade de vida e voz: a autopercepção de pessoas transgênero. Audiol Commun Res. 2020;25:e2196. http://dx.doi.org/10.1590/2317-6431-2019-2196.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-6431-2019...
).

A autopercepção vocal dessa população tem sido útil para obtenção de informações sobre como o indivíduo entende e se identifica com sua voz, e qual o impacto dela nos diversos cenários de sua vida. Com essa finalidade têm-se o Trans Woman Voice Questionnaire - TWVQ (1414 Dacakis G, Davies S, Oates JM, Douglas JM, Johnston JR. Development and preliminary evaluation of the transsexual voice questionnaire for male-to-female transsexuals. J Voice. 2013;27(3):312-20. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2012.11.005. PMid:23415146.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2012....
,1515 Santos HH, Aguiar AG, Baeck HE, Van Borsel J. Translation and preliminary evaluation of the Brazilian Portuguese version of the Transgender Voice Questionnaire for male-to-female transsexuals. CoDAS. 2015;27(1):89-96. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014093. PMid:25885202.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2015...
), um questionário que busca mensurar as percepções e experiências relacionadas à voz para mulheres trans.

Uma das metas das pessoas em transição de gênero é transformar sua voz e seu corpo para ficar congruente com o gênero de sua identificação. Pouco tem se investigado sobre como uma voz incongruente pode alterar a expressão da identidade e a própria satisfação do indivíduo com sua vida. Além disso, não se conhece de que maneira uma voz considerada incongruente por uma pessoa impacta negativamente aspectos sociais, emocionais e físicos(1616 Crow KM, van Mersbergen M, Payne AE. Vocal congruence: the voice and the self measured by interoceptive awareness. J Voice. 2021;35(2):324e15. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2019.08.027. PMid:31558332.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2019....
). O Vocal Congruence Scale (VCS) foi desenvolvido nos EUA e busca avaliar até que ponto a voz de um indivíduo é congruente com o senso de identidade(1616 Crow KM, van Mersbergen M, Payne AE. Vocal congruence: the voice and the self measured by interoceptive awareness. J Voice. 2021;35(2):324e15. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2019.08.027. PMid:31558332.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2019....
) e oferece, por meio de um questionário, uma mensuração da satisfação vocal. Porém, não há uma versão do instrumento em português brasileiro.

A congruência corporal vem sendo também muito explorada por ser a transformação corporal uma das metas dessa população. Corpo e voz são, portanto, aspectos associados e importantes para a expressão de uma pessoa, independentemente do gênero. As estratégias da transformação dos corpos podem variar entre uso de hormônios; aplicações de silicone industrial; realização de cirurgias plásticas e de cirurgias laríngeas, entre outros recursos cuja escolha é mediada pelas vontades pessoais e subjetividades em negociação com necessidades profissionais e condições socioeconômicas para adquiri-las(1717 Rocon PC, Sodré F, Zamboni J, Rodrigues A, Roseiro MCFB. O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde? Interface Comunicacao Saude Educ. 2017;22(64):43-53. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0712.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
,1818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.803/GM de de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; Brasília; 2013.). Tais modificações buscam facilitar a congruência da imagem à identidade de gênero e a aceitação social da pessoa trans.

A compreensão do grau de congruência entre a aparência física e a identidade das pessoas transgêneros proporcionaria aos pesquisadores e aos clínicos que atendem essa população uma percepção da medida em que os indivíduos transgêneros percebem que seus atributos físicos ajudam ou interferem na vivência de sua identidade social, de forma autêntica. Para mensurar o conforto dos indivíduos transgêneros com a identidade e a aparência foi proposto e validado, também nos EUA, o Transgender Scale Congruence (TSC)(1919 Kozee HB, Tylka TL, Bauerband LA. Measuring transgender individuals’ comfort with gender identity and appearance: development and validation of the transgender congruence scale. Psychol Women Q. 2012;36(2):179-96. http://dx.doi.org/10.1177/0361684312442161.
http://dx.doi.org/10.1177/03616843124421...
). Este protocolo também não possui versão em português brasileiro.

Considerando-se a importância de compreender a percepção de congruência de gênero nas pessoas trans, bem como o fato de que não havia ferramentas com essa finalidade para serem utilizados no Brasil, torna-se importante realizar a adaptação transcultural desses dois instrumentos, um passo inicial para avaliar melhor as necessidades dessa população. Baseado nos argumentos apresentados, entende-se que esses instrumentos poderão auxiliar no diagnóstico e, também, propiciar a oferta de tratamentos que melhorem a congruência vocal e corporal do sujeito transgênero, além da realização de pesquisas para obtenção de evidências para auxiliar essa população.

Desta forma, este estudo tem como objetivo realizar a adaptação transcultural para o português brasileiro do Vocal Congruence Scale e Transgender Congruence Scale.

MÉTODO

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Taubaté - UNITAU, sob parecer 5.292.773 e CAAE 55653922.8.0000.5501. O estudo seguiu a Resolução CNS 466/12, e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido. Trata-se de um estudo de natureza metodológica e delineamento transversal.

As etapas de adaptação transcultural dos questionários Transgender Scale Congruence e do Vocal Congruence Scale seguiram as recomendações do Scientific Advisory Committee (SAC) do Medical Outcomes Trust (2020 Lohr KN. Assessing health status and quality-of-life instruments: attributes and review criteria. Quality of life Research. 2002;(11):193-205.) e de Pernambuco et al.(2121 Pernambuco L, Espelt A, Magalhães HV Jr, Lima KC. Recomendações para elaboração, tradução, adaptação transcultural e processo de validação de testes em Fonoaudiologia. CoDAS. 2017;29(3):e20160217. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172016217. PMid:28614460.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2017...
). A adaptação transcultural foi composta pelas etapas de tradução, síntese, retrotradução, revisão pelo comitê de especialistas e pré-teste.

O tamanho amostral para as etapas de tradução, síntese, retrotradução e revisão pelo comitê de especialista seguiu o determinado pelo Scientific Advisory Committee (SAC) do Medical Outcomes Trus (2020 Lohr KN. Assessing health status and quality-of-life instruments: attributes and review criteria. Quality of life Research. 2002;(11):193-205.). O tamanho da amostra para o pré-teste seguiu a determinação de ser acima de 30 participantes do Consensus- based Standards for the selection of health Measurement INstruments (COSMIN)(2222 Mokkink LB, Terwee CB, Patrick DL, Alonso J, Stratford PW, Knol DL, et al. The COSMIN study reached international consensus on taxonomy, terminology, and definitions of measurement properties for health-related patient-reported outcomes. J Clin Epidemiol. 2010;63(7):737-45. http://dx.doi.org/10.1016/j.jclinepi.2010.02.006. PMid:20494804.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jclinepi.201...
).

Para a etapa de tradução foram convidados para participar um fonoaudiólogo especialista em voz e um tradutor sem conhecimento sobre o construto, ambos nativos do PB (idioma alvo) e falantes do inglês (idioma fonte). Eles foram instruídos a realizar, de forma individual, a tradução para o português brasileiro. Em seguida, as versões foram confrontadas pelos pesquisadores e foi elaborada uma versão de síntese com base na concordância entre os tradutores. Nos casos em que não houve concordância, os pesquisadores optaram pela escolha da opção dos revisores que melhor se adequava ao PB correntemente falado, mantendo o conceito da versão original. Essa versão foi retrotraduzida por um fonoaudiólogo especialista em voz e um tradutor sem conhecimento na área pesquisada, nativos do inglês (idioma fonte) e falantes do PB (idioma alvo).

Em seguida, um comitê formado por cinco profissionais especialistas em voz, sendo um tradutor, um metodologista, e três fonoaudiólogos, compararam a versão retrotraduzida com a original e analisaram a equivalência semântica, conceitual, idiomática, experiencial, cultural e operacional dos instrumentos VCS e TSC.

Ao final dessas etapas foram obtidas as versões adaptadas transculturalmente para o português brasileiro dos dois instrumentos, que foram submetidas ao pré-teste com a população-alvo. Nessa etapa foi necessário a participação de 38 pessoas trans.

Os critérios de inclusão para a participação no pré-teste foram ser brasileiro/a, transgênero/a, de ambos os gêneros, com idade entre 18 e 59 anos, com ou sem uso de hormônio, com ou sem acompanhamento fonoaudiológico. Foram excluídos deste estudo os indivíduos com diagnóstico médico de alterações de vias aéreas inferiores, indivíduos que residiam no Brasil mas não eram nativos brasileiros, brasileiros que não residiam no Brasil atualmente, analfabetos, e indivíduos com presença de déficit cognitivo autorreferido que o impedisse de responder adequadamente o que lhe foi solicitado neste estudo.

Os/as participantes foram recrutados/as por meio da divulgação do estudo em mídias sociais, juntamente com o link para participação. A coleta de dados foi realizada online pela plataforma Survey Monkey. Os participantes que acessaram o link da plataforma foram orientados a ler e, em caso de concordância em participar, assinarem digitalmente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os participantes que assinaram o TCLE tiveram acesso ao material da coleta de dados. A coleta de dados foi composta por um questionário de caracterização da amostra com os critérios de elegibilidade elaborado pelos autores, e pelas versões transculturalmente adaptadas do VCS e do TSC.

Nos instrumentos VCS e TSC em português brasileiro foi acrescida na chave de resposta a opção “não aplicável”. Os participantes foram orientados a assinalar essa opção quando o item não estivesse adequado para sua cultura, ou se não fosse possível compreendê-lo. Caso isso acontecesse, a afirmativa deveria ser modificada até que não houvesse dificuldades na compreensão, tanto por deficiências linguísticas, quanto culturais.

Para a etapa de tradução e adaptação transcultural foi utilizado o Teste Binomial, no qual foi realizada a comparação da proporção de respostas “não aplicável” e de respostas obtidas pela escala de Likert presentes na chave de resposta original do instrumento: 0 - nunca, 1 - quase nunca, 2 - às vezes, 3 - quase sempre, 4 - sempre. Utilizou-se o software SPSS 25.0 e foi estabelecido o nível de significância de 5%.

RESULTADOS

Houve concordância na tradução e retrotradução de todas as opções da chave de resposta dos questionários VCS e TSC.

Na etapa de tradução dos itens do VCS houve discordância de forma entre os dois tradutores nos itens 1, 2, 6 e 7: item 1.“Parecia que minha voz me pertencia”/“Parecia que minha voz pertencia a mim”; item 2. “Parecia que minha voz estava funcionando normalmente”/“Parecia que minha voz estava saindo como ela normalmente sai”; item 6. “Eu estava pensando sobre como minha voz soava”/“Eu estava pensando na maneira como minha voz saía”; item 7. “Eu sinto como se minha voz soasse clara”/“Eu sinto como se minha voz saísse com clareza”. Houve discordância quanto ao conteúdo apenas do item 5: “Estou satisfeito(a) pela forma como minha voz soou”/“Estou satisfeito(a) com minha voz”. Entende-se que a omissão da palavra “sounded” da versão original do inglês modifica o conteúdo da frase: “I am satisfied with how my voice sounded”.

Para a síntese das versões traduzidas, os pesquisadores elaboraram um consenso, havendo necessidade de ajuste da forma de apresentação dos itens 1, 2, 6 e 7 e do tempo verbal de todos os itens. Na versão original em inglês do VCS não existia nenhuma frase de apoio antes da apresentação dos itens, e o tempo verbal do questionário estava no passado. Após o consenso foi inserida a frase inicial: “Quando eu me comunico com as pessoas”, e transformado o tempo verbal para o presente do indicativo. Para o item 5 houve discordância do conteúdo, os pesquisadores entenderam que era necessário considerar o termo “sounded”: “Fico satisfeito(a) com o som da minha voz”.

Na etapa da retrotradução do VCS houve discordância quanto a forma em todos os itens entre os tradutores. Quanto ao conteúdo, houve discordância apenas no item 9 - “I feel that my voice accurately reflects my sense of humor”/“I feel my voice reflects my mood in a correct way”. O termo “accurately/precisamente” e “correct way/maneira correta” ainda que semelhantes, dizem coisas diferentes. Optou-se por omitir os referidos termos, visto que a palavra “reflect/reflete” contempla a necessidade da frase: “Sinto que minha voz reflete como está meu humor”.

A versão final do VCS após reunião do comitê de fonoaudiólogos especialistas obteve ajustes nos itens 1, 4, 8, 9 e 10 (Quadro 1).

Quadro 1
Processo de adaptação transcultural do Vocal Congruence Scale e do Transgender Scale Congruence para o português brasileiro

No questionário TSC houve discordância quanto à forma na etapa de tradução para os itens 2, 4, 6, 7 e 10: item 2. “Eu sinto uma unidade entre minha identidade de gênero e meu corpo”/“Eu experimento um senso de unidade entre meu gênero e meu corpo”; item 4. “Geralmente me sinto confortável com a forma como os outros percebem minha identidade de gênero quando olham para mim”/“Eu geralmente me sinto confortável com a maneira que os outros percebem minha identidade de gênero quando olham para mim”; item 6. “A aparência do meu corpo atualmente não representa minha identidade de gênero”/“A maneira que meu corpo atualmente aparenta não representa minha identidade de gênero”; item 7. “Estou feliz com a forma como minha aparência expressa minha identidade de gênero”/“Eu estou feliz com a maneira que minha aparência expressa minha identidade de gênero”; item 10. “Eu não tenho orgulho da minha identidade de gênero”/“Eu não estou orgulhoso(a) da minha identidade de gênero”.

No consenso foram resolvidas as discordâncias e simplificados os itens, elaborando versões de síntese: item 2. “Eu sinto que existe uma unidade entre meu gênero e meu corpo”; item 4. “Eu geralmente me sinto confortável como os outros percebem minha identidade de gênero ao olharem para mim”, item 6. “A aparência atual do meu corpo não representa minha identidade de gênero”; item 7. “Eu estou feliz com a maneira que minha aparência expressa minha identidade de gênero”; e item 10. “Eu não me orgulho da minha identidade de gênero”.

Na etapa de retrotradução do TSC houve discordância quanto à forma nos itens 2, 3, 4, 6 e 11; item 2. “I feel that my gender and my body connected with each other”/“I feel there is a unity between my gender and my body”; item 3. “My physical appearance adequately expresses my gender identity”/“My physical appearance expresses in an adequate way my gender identity”; item 4. “I generally feel comfortable with how other people notice my gender identity and look at me”/“Normally I feel comfortable about how others perceive my gender identity when they look at me”; item 6. “The actual appearance of my physical body is not an accurate representation of my gender identity”/“My actual appearance does not represent my gender identity”; item 11. “I am happy with my gender identity”/“I am happy about the gender identity I possess”.

Na versão final após a reunião do comitê de especialistas ocorreu ajustes nos itens 1, 3, 4, 6, 7, 8 e 9 (Quadro 1).

Na etapa de pré-teste, para todos os itens da VCS e TSC, a opção não aplicável apresentou proporção significativamente menor que as opções da chave de resposta habitual dos instrumentos (p<0,001, para todos), conforme mostra a Tabela 1.

Tabela 1
Comparação da proporção de itens com respostas habituais e da proporção de itens com resposta não aplicável nos testes Voice Congruence Scale e Transgender Scale Congruence

DISCUSSÃO

A adaptação transcultural de um questionário é a etapa inicial do processo de validação, essencial para que esse instrumento possa ser utilizado em uma língua e cultura diferente daquela em que foi criado(2323 Aaronson N, Alonso J, Burnam A, Lohr KN, Patrick DL, Perrin E, et al. Assessing health status and quality-of-life instruments: attributes and review criteria. Qual Life Res. 2002;11(3):193-205. http://dx.doi.org/10.1023/A:1015291021312. PMid:12074258.
http://dx.doi.org/10.1023/A:101529102131...
).

Após as etapas de tradução, síntese dos pesquisadores, retrotradução e consenso dos especialistas foi necessária a realização de ajustes nos itens dos instrumentos para os tornarem compreensíveis à cultura brasileira. A versão original em inglês do VCS utiliza-se o tempo verbal no passado, em virtude de o questionário estar inserido em uma pesquisa que objetivava identificar a percepção da pessoa logo após a realização de uma tarefa de fala. Observou-se a necessidade de correção do tempo verbal, transformando-o para o presente do indicativo.

Foi necessária também a inserção na versão em português do VCS da frase introdutória “Quando eu me comunico com as pessoas...” antes de todos os itens, para facilitar a compreensão do respondente. Desta forma, foi possível articular os itens à comunicação.

A simplificação de itens, omissão de termos que não faziam diferença na construção da frase, e a substituição de vocábulos no TSC também se fizeram necessárias.

No pré-teste constatou-se que todos os itens dos dois instrumentos se aplicavam e estavam compreensíveis para a população trans. No VCS a opção não-aplicável foi marcada por um único indivíduo para os itens 1, 4, 6 e 7: item 1. “Sinto que a voz é minha”; item 4. “Sinto que controlo minha voz”; item 6. “Fico pensando como minha voz soa”; item 7. “Sinto que minha voz é clara”.

No TSC uma pessoa marcou não-aplicável para os itens 2, 5, 9 e 10: item 2. “Eu sinto que existe unidade entre meu gênero e meu corpo”; item 5. “Meu corpo físico representa minha identidade de gênero”; item 9. “Eu sinto que minha mente e corpo são consistentes um com o outro”; item 10. “Eu não me orgulho da minha identidade de gênero”. Neste mesmo questionário, dois participantes assinalaram não-aplicável para os itens 6, 11 e 12: “A aparência do meu corpo não representa minha identidade de gênero”, “Eu estou feliz com minha identidade de gênero”, “Eu aceito minha identidade de gênero”. Contudo, essa foi uma situação isolada e tais respostas não expressaram a reação geral dos respondentes ao instrumento. Portanto, novos ajustes não foram considerados necessários. A adaptação transcultural, realizada neste estudo, produziu as versões em PB de ambos os questionários, que são aplicáveis e de fácil compreensão para a pessoa trans, contribuindo para uma avaliação fonoaudiológica mais específica e adequada. As versões finais aqui apresentadas passarão pelas próximas fases do processo de validação, para confirmação do número de itens e fatores, e análise das propriedades psicométricas dos instrumentos. Com a conclusão desse processo, os instrumentos estarão prontos para uso clínico e em pesquisa com a população trans.

CONCLUSÃO

Na adaptação transcultural para o português brasileiro dos protocolos VCS e TSC foram necessários ajustes para que os instrumentos ficassem adequados ao português brasileiro. As versões transculturalmente adaptadas dos protocolos foram denominadas Escala de Congruência Vocal e Escala de Congruência da Pessoa Transgênero. Ambos os instrumentos mostraram ser de fácil compreensão e podem ser utilizados na clínica e na pesquisa para analisar a compreensão da percepção de congruência de gênero, vocal e corporal, vivenciada pelas pessoas trans.

  • Trabalho realizado no Centro de Estudos da Voz - CEV - São Paulo (SP), Brasil.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2023
  • Aceito
    21 Maio 2023
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