Acessibilidade / Reportar erro

Deslizamentos de posição subjetiva em enunciados tidos como ecolálicos de uma criança com Distúrbio de Linguagem: um estudo de caso

RESUMO

Sob ótica linguístico-discursiva de orientação francesa, foram investigadas marcas de subjetividade numa cadeia de enunciados tidos como ecolálicos, ancorados na estrutura linguística recorrente X quer Y?. No interior de uma sessão de fonoterapia, essa cadeia foi produzida por J., uma criança do sexo feminino, com 10 anos de idade à época da coleta dos dados, com diagnóstico fonoaudiológico de distúrbio de linguagem e diagnóstico médico de psicose precoce. Um conjunto de flutuações linguísticas indiciaram um deslizamento de posição subjetiva na cadeia analisada. Tais flutuações envolveram elementos sintáticos, lexicais, semânticos, morfológicos e prosódicos. Discursivamente, as flutuações deixaram rastros de um deslizamento de posição subjetiva, ou seja, de sujeito falado (cê quer Y?) para falante/desejante (eu quero Y.) na cadeia formada por esses enunciados. Desse modo, enunciados tidos como ecolálicos podem dar pistas do desejo do sujeito em sua relação com o O/outro, por meio de suas flutuações linguísticas e de seus deslizamentos discursivos. Portanto, embora não irrompam de forma convencional, tais enunciados podem mostrar possibilidades de mudanças de posição subjetiva. Por conseguinte, uma contribuição da investigação relatada à clínica de linguagem é a de que, no setting terapêutico, pode haver escuta para enunciados que, em primeira instância, poderiam ser tidos como colados/enraizados no dizer do outro. Na clínica de linguagem é possível, então, dar lugar a novos/outros sentidos a tais enunciados, de maneira a favorecer a constituição do sujeito da/na linguagem a partir de enunciados frequentemente interpretados como esvaziados de subjetividade.

Descritores:
Linguagem Infantil; Distúrbio de Linguagem; Ecolalia; Linguística; Fonoaudiologia

ABSTRACT

Within a linguistic-discursive framework, subject markers in a chain of utterances considered to be echolalia based on the recurring linguistic structure does X want Y? were investigated. This chain was produced during a speech therapy session by J., a female child, 10-years-old at the time of data collection, and with a speech-language pathology diagnosis of language disorder and a medical diagnosis of early psychosis. A set of linguistic fluctuations indicated a sliding of the subject position in the analyzed chain. Such fluctuations involved syntactic, lexical, semantic, morphological and prosodic elements. Discursively, the fluctuations left traces of a sliding of the subject position in the chain formed by these utterances, from a spoken subject (do you want Y?) to a speaking/desiring one (I want Y.). In this way, utterances considered echolalia can provide clues, via their linguistic fluctuations and discursive slippages, about the subject's desire in their relationship with the O/other. Given this, although they do not emerge in a conventional way, such utterances can demonstrate possibilities for changes in subject position. A contribution of the present research for clinical practice involving language in therapeutic settings therefore, was to highlight a listening to utterances, which could be seen as connected/grounded in the speech of the other. In clinical practice involving language, it is possible to create space for new/other senses for utterances, to allow the constitution of the subject of/in language, based on utterances often interpreted as being devoid of subjectivity.

Keywords:
Child Language; Language Disorder; Echolalia; Linguistics; Speech Therapy

INTRODUÇÃO

Em contextos patológicos que envolviam, por exemplo, distúrbios de linguagem, as chamadas ecolalias foram inicialmente vistas como “[...] produções desprovidas de sentido, apenas como um eco, semelhante à fala de um papagaio: uma repetição sem intenção comunicativa, sem interlocutores [...] uma repetição vazia, descontextualizada [...].”(11 Kanner L. Problems of nosology and psychodinamics in early infantile autism. Am J Orthopsychiatry. 1949;19(3):416-26. PMid:18146742.:416). Posteriormente, passaram a ser investigadas sob diferentes abordagens(22 Oliveira MT. Quem fala nessa voz? [dissertação]. São Paulo: Pontíficia Universidade Católica de São Paulo; 2001.).

Predominam abordagens que as relacionam a questões de natureza pragmática, comunicativa ou de interação social(33 Freitas FAF, Montenegro ACA, Fernandes FDM, Delgado IC, Almeida LNA, Alves GÂS. Communicative skills of children with autistic spectrum disorder: clinical and family perception. Rev CEFAC. 2021;23(4):e1521. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216/20212341521.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216/2021...

4 Hage SVR, Hter LYSY, Fernandes FDM. Social Communication and pragmatic skills of children with Autism Spectrum Disorder and Developmental Language Disorder. CoDAS. 2021;34(2):e20210075. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20212021075. PMid:34932641.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2021...
-55 Balestro JI, Fernandes FDM. Percepção de cuidadores de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo quanto ao perfil comunicativo de seus filhos após um programa de orientação fonoaudiológica. CoDAS. 2019;31(1):e20170222. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018222. PMid:30843922.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2018...
). Mas também, a partir de um escopo enunciativo e multimodal da linguagem, as ecolalias podem ser vistas enquanto metáfora, em sua relação com os gestos no autismo(11 Kanner L. Problems of nosology and psychodinamics in early infantile autism. Am J Orthopsychiatry. 1949;19(3):416-26. PMid:18146742.,66 Barros I, Fonte R, Souza A. Ecolalia e gestos no autismo: reflexões em torno da metáfora enunciativa. Forma y Función. 33(1):173-89. http://dx.doi.org/10.15446/fyf.v33n1.84184.
http://dx.doi.org/10.15446/fyf.v33n1.841...
). Podem, ainda, a partir da relação sujeito/linguagem, ser entendidas como repetições de segmentos sonoros que levariam a mudanças na verbalização(77 Moraes MEA, Carvalho GMM. Repetição em aquisição de linguagem: notas sobre o espelhamento sonoro infantil e a ecolalia no autismo. Signótica. 2022;34:e70277. http://dx.doi.org/10.5216/sig.v34.70277.).

Vê-se, pois – fato que este último estudo permite exemplificar –, que só mais recentemente encontra-se, em sua investigação, um olhar voltado para o sujeito que, para além das ecolalias, “fala nessa voz”(22 Oliveira MT. Quem fala nessa voz? [dissertação]. São Paulo: Pontíficia Universidade Católica de São Paulo; 2001.:2), olhar que produz um significativo deslocamento na trajetória de investigação de falas tidas como ecolálicas.

Aproximando-se deste último olhar e afastando-se do lugar teórico-metodológico que as vê como ecos do dizer do(s) outro(s), propôs-se investigar a maneira como tais falas poderiam ser interpretadas sob um ponto de vista linguístico-discursivo de orientação francesa, cujas características serão destacadas mais à frente. Nessa proposta, foram buscadas possíveis marcas de subjetividade em enunciados com estrutura linguística recorrente no funcionamento linguístico-discursivo de J. – uma criança com diagnóstico fonoaudiológico de distúrbio de linguagem e diagnóstico médico de psicose precoce.

Na expressão linguístico-discursivo, o linguístico é entendido como a organização estrutural dos elementos dos diferentes planos da língua. Privilegiou-se, dessa organização, os planos sintático, semântico, morfológico e fonológico (em seu componente prosódico) das falas tidas como ecolálicas. Nessa mesma expressão, o discursivo é entendido como um processo de produção de sentidos, “[...] cuja especificidade reside no tipo de materialidade de sua base, a saber, a materialidade linguística [...].”(88 Pêcheux M, Fuchs C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: Gadet F, Hak T, organizadores. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp; 1990. p. 179.:179), materialidade que se mostra sob forma de enunciados. Destaque-se, porém, que o componente prosódico do plano fonológico da língua, além de manter estreitas relações com os componentes sintático e semântico da língua, indicia, em um processo discursivo, aspectos da subjetividade.

O que se toma aqui por enunciado não é uma unidade estrutural da língua. Em outras palavras, o enunciado não se confunde com a organização sintática de uma sentença ou de uma oração; ele é a sua materialização concreta e única num processo discursivo. Nesse processo, ele irrompe como “[...] um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados [...]”(99 Bakhtin MM. Os gêneros do discurso. In: Bakhtin MM. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes; 1992. cap. 3, p. 291.:291) – o que significa dizer que um enunciado não se inicia em si mesmo, já que se ancora numa rede de enunciados anteriormente produzidos.

Por fim, a concepção de sujeito subjacente à presente abordagem é a de que ele é constituído pelo O/outro, na/pela linguagem (88 Pêcheux M, Fuchs C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: Gadet F, Hak T, organizadores. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp; 1990. p. 179.,1010 Authier-Revuz J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad Estud Lingüíst. 1990;19:25-42. https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.8636824.
https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.86368...
,1111 Pêcheux M. Análise automática do discurso. In: Gadet F, Hak T, organizadores. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp; 1990. p. 163-252. ). Nessa perspectiva, o sujeito não é o do empirismo, já que não é entendido como a fonte do (seu) discurso, mas como seu suporte e efeito(1010 Authier-Revuz J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad Estud Lingüíst. 1990;19:25-42. https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.8636824.
https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.86368...
). Ainda sobre o sujeito, “[...] é sempre e ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e do inconsciente [...] atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação”(1212 Henry P. A ferramenta imperfeita — língua, sujeito e discurso. Campinas: Unicamp; 1992. p. 188-189.:188-189).

No Outro (ideologia e inconsciente) está o lugar "[...] da verdade sobre o sintoma e o desejo"(1313 Tfouni LV. Entre a análise do discurso e a psicanálise, a verdade do sujeito — análise de narrativas orais. Rev Invest – Ling. 2005;18(2):1-15.:5). Assim, não será negligenciado, na presente investigação, o desejo do sujeito, marcado a partir de deslizamentos no (seu) processo discursivo. Destaque-se, porém, que o Outro, num processo discursivo, vem linguisticamente marcado. Trata-se, nesse caso, da instância que se pode entender como o “outro”, a saber, o indivíduo que, interpelado em sujeito pela linguagem no processo discursivo, se configura como o interlocutor linguisticamente marcado nesse processo. Em síntese, o "outro" corresponde à alteridade que é, de algum modo, mostrada no fio do discurso.

Dentre as características linguístico-discursivas que justificam o interesse pelas marcas de subjetividade no funcionamento de enunciados com estrutura linguística recorrente na criança sob investigação, estão o fato de não se observarem, neles, as marcas linguísticas que mais frequentemente remetem aos indícios de constituição subjetiva observados em crianças sem dificuldades na aquisição da linguagem: a primeira pessoa pronominal, como em eu, meu, me, mim, comigo. Com efeito, nos enunciados que se esperariam como declarativos de J., observa-se a prevalência pronominal de segunda pessoa (ao invés daquela de primeira pessoa) sob forma interrogativa. Desse modo, enunciados que, convencionalmente, se esperaria emergir no discurso de J. como quero ir embora, quero dormir, quero água emergem como cê quer ir embora? cê quer dormir? cê quer água?. Eventualmente, a convencional e esperada forma em primeira pessoa de seus enunciados desloca-se para a terceira pessoa – como a menina quer bolo? em lugar de eu quero bolo.

Nesses enunciados, em termos sintáticos, sua estrutura recorrente é X quer Y. Nessa estrutura, o primeiro e o terceiro elemento tanto podem faltar, quanto podem sofrer variações lexicais ao longo da produção discursiva. Mantém-se, porém, como invariantes, as seguintes características linguísticas: semântica, volitiva no verbo querer; morfológica, no presente do indicativo desse verbo; e prosódica, no contorno entonacional interrogativo do enunciado. Dada a presença recorrente dessa configuração linguística nos enunciados de J, interroga-se: discursivamente, seria possível observar rastros de um deslizamento de posição subjetiva, ou seja, de sujeito falado (cê quer Y?) para falante/desejante (eu quero Y.) na cadeia formada por esses enunciados?. Se sim, como tal deslizamento se efetuaria?

A hipótese subjacente a tal interrogação é a de que a cadeia de enunciados com estrutura linguística recorrente de J. (tradicionalmente chamados de ecolálicos) comporia uma sequência na qual os enunciados não seriam apenas “ecos” do dizer do outro, mas uma manifestação/marca de subjetividade na produção discursiva.

Destaque-se que dois estudos se voltaram para a produção discursiva da criança J., buscando, como neste, seus indícios linguístico-discursivos de subjetividade. Em um deles(1414 Bonatto J, Chacon L. Indícios de subjetividade na fala de uma criança psicótica: um olhar para as hesitações. Revista Distúrbios da Comunicação. [Internet]. 2012 [citado em 2022 Dez 13];24(2):185-97. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/114713
http://hdl.handle.net/11449/114713...
), foram as hesitações que se mostraram como tais indícios; já no outro(1515 Coelho NF. Características dos enunciados dispersos de uma criança com diagnóstico fonoaudiológico de distúrbio de linguagem [dissertação]. Cidade São José do Rio Preto: Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista; 2012.), foram marcas de recusa que a indiciaram. Contudo, acredita-se que enunciados com estruturas linguísticas recorrentes, como as que compõem o objeto da presente investigação, poderiam fornecer outros (e diferentes) indícios de subjetividade no discurso de J, ampliando-se a compreensão da maneira como, de forma não convencional, a subjetividade pode ser mostrada em quadros clínicos como os de J.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

A presente investigação foi desenvolvida de acordo com os seguintes procedimentos éticos: parecer da Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (FFC/UNESP), sob número 0138/2010; e assinatura, pelo responsável, de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com modelo fornecido pelo Centro de Estudos em Educação e Saúde da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (CEES/UNESP).

Foram utilizados registros – filmado e transcrito – de uma sessão de fonoterapia com cerca de 40 minutos, de uma criança (identificada, nos dados, como J.) do sexo feminino, com 10 anos de idade à época da coleta dos dados. A sessão passou por três procedimentos de transcrição: (i) por um primeiro transcritor; (ii) por uma revisão dessa transcrição por esse mesmo transcritor e pelo supervisor do acompanhamento do percurso clínico da criança; e, por fim, (iii) por um terceiro revisor, que incorporou à transcrição especialmente informações sobre a situação imediata em que se desenvolvia a sessão de terapia. Tais informações incluíam, por exemplo, gestos, expressões faciais e informações prosódicas básicas. A transcrição final foi feita de acordo com as normas propostas para o Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta de São Paulo (Projeto NURC/SP), que investiga o português falado. De acordo com tais normas: + corresponde a pausa silenciosa; ? corresponde à entoação interrogativa; (( )) corresponde a comentários do transcritor; : corresponde a alongamentos; / corresponde a interrupções; ( ) se refere a momentos de fala ininteligível para o transcritor ou a dúvidas na transcrição; e, por fim, [ ] corresponde a sobreposição de vozes.

A criança recebeu diagnóstico fonoaudiológico de distúrbio de linguagem e diagnóstico médico de psicose precoce. À época da coleta dos dados, ela estava, há três anos e meio, em terapia fonoaudiológica. Na condução terapêutica, sustentada por uma visão clínica de orientação pragmática, as sessões visavam a "reestruturação" das manifestações linguísticas da criança. Nessa visão, pautavam-se por estratégias como atividades lúdicas que envolvessem brincadeiras de “faz de conta”, que simulavam situações convencionais do cotidiano nas quais a linguagem compareceria. É o caso, por exemplo, da sessão aqui em análise, baseada na brincadeira de "faz de conta" de dar banho em um bebê.

Sobre o diagnóstico fonoaudiológico de Distúrbio de Linguagem, para além de alterações no plano formal da língua, J. apresentava, principalmente, alterações em aspectos discursivos da linguagem. Quanto a esses aspectos, sobretudo a relação eu/(O)outro se mostrava fragilizada, fato que se podia observar, em sua produção discursiva, por: (i) ausência de primeira pessoa pronominal; (ii) dispersão da cadeia sintagmática; (iii) retorno de enunciados (não necessariamente presentes na cena terapêutica). Dentre esses enunciados, destacam-se aqueles com estrutura linguística recorrente, do tipo X quer Y?, apresentada anteriormente. Portanto, dado esse destaque, é na/pela irrupção desses enunciados que foram resgatados os indícios de subjetividade que neles se manifestariam.

DISCUSSÃO

Retomam-se, aqui, as perguntas norteadoras da investigação: discursivamente, seria possível observar rastros de um deslizamento de posição subjetiva, ou seja, de sujeito falado (cê quer Y?) para falante (eu quero Y.) na cadeia formada por esses enunciados?. Se sim, como tal deslizamento se efetuaria?

Relembre-se que, na estrutura X quer Y?, o primeiro e o terceiro elementos poderiam faltar. Se preenchidos, na posição X, ocorreriam flutuações entre segunda e terceira pessoa, com predomínio da segunda pessoa. Já na posição Y, ocorreriam elementos verbais (como dormir ou escrever) ou elementos nominais como (água). Como se pode observar, faltariam ou variariam os elementos que poderiam ocupar as posições X e Y e se manteriam (i) o elemento volitivo verbal quer e (ii) a entonação interrogativa do enunciado.

Apresenta-se, no Quadro 1, um recorte da sessão de terapia que se analisará, no qual, privilegiadamente, irrompem enunciados com essa estrutura. Tais enunciados, no quadro, são destacados em negrito.

Quadro 1
Recorte de sessão de terapia com diferentes irrupções de enunciados com estrutura X quer Y?

Observe-se, no quadro, a primeira emergência de um enunciado com a estrutura em questão, a saber: cê quer dormir? (enunciado 37). Trata-se daquele que alimentará uma cadeia de enunciados nos quais as flutuações de elementos linguísticos nas posições que acompanham o verbo permitem detectar o deslizamento de posição subjetiva. A cena em análise desenvolveu-se em torno do objeto discursivo fazer o bebê dormir. Assim, em grande medida, ela pode ter favorecido a irrupção desse enunciado. Também elementos não verbais podem estar na base de tal irrupção, já que, da cena, constavam uma pequena cama e um pequeno travesseiro.

Mas destaque-se, também, a participação do interlocutor T (o outro linguisticamente marcado nesse processo discursivo) na irrupção da cadeia de enunciados com a estrutura linguística em análise. Com efeito, tal enunciado, que poderia ter tido, por parte de T, uma escuta como eu [J] quero dormir, foi escutado como T, cê quer dormir?, ao que J. recebe como retorno de T.: isso ... eu não vou dormir agora ... cê vai dormir agora?. Dada essa não escuta à sua "fala de desejo", J. responde com riso e afastamento da cama. T., por sua vez, mantendo sua não escuta, sugere a J. que a boneca seja colocada para dormir, provavelmente, tentando operacionalizar o cumprimento de seu plano terapêutico – o faz de conta do cuidado rotineiro de um bebê – da perspectiva teórico-clínica que orienta o seu cumprimento, a da abordagem chamada de pragmática.

A não escuta à "fala de desejo" de J., aliada a elementos contextuais do processo discursivo, podem estar na base da irrupção de mais outro dos enunciados com a estrutura aqui em análise: quer água? (enunciado 47). Nesse enunciado, ocorre o apagamento da posição X e uma flutuação lexical na posição Y, de dormir (um verbo) para água (um substantivo). Irrompe, logo a seguir, nova enunciação do enunciado quer água? (enunciado 49). O deslizamento, na produção discursiva, entre cê quer dormir? e quer água? pode ter se dado, novamente, em função de outra não escuta, por parte de T., para a "fala de desejo" de J. Observa-se, a propósito, que, na cena, T. volta a chamar a atenção para a boneca, dada sua não escuta para o fato de que o enunciado quer água? poderia estar ligado, contextualmente, ao cuidado com a boneca. Desse modo, o deslizamento entre os dois enunciados pode ter se dado também em função de elementos não verbais da cena terapêutica. Fazia parte dela uma banheira e um kit de banho de brinquedo. Observe-se, a propósito, que, logo em seguida à nova enunciação de quer água?, J. pega um brinquedo do chão, pertencente ao kit de banho, ação que sugere associação entre esse enunciado e a banheira de brinquedo presente no espaço físico da sessão de terapia – ou, em termos linguísticos, um indício de associação semântica entre banheira e água.

A continuidade da não escuta à "fala de desejo" de J. faz com que novo enunciado com a mesma estrutura irrompa na cadeia: cê quer isquevrê? (enunciado 51). Esse enunciado de J. recebe como retorno, por parte de T., a seguinte resposta: não a gente não vai escrever hoje ... hoje eu não trouxe papel:: pra escrever:: ... nem um lá::pis. Observa-se nova flutuação no elemento lexical que preenche a posição Y: de água (um substantivo) para escrever (um verbo). Destaque-se que, no espaço físico em que a cena se desenvolvia, havia uma mesinha e uma cadeirinha infantil, elementos não verbais que teriam desencadeado conexões com uma atividade de escrita, tal como desenvolvida em contexto escolar.

Mais uma vez, a não escuta por parte de T. parece provocar nova irrupção de enunciado com a mesma estrutura – cê quer água? (enunciado 53) –, igualmente com flutuação no preenchimento lexical da posição Y, a saber, de escrever (um verbo) para água (um substantivo). Trata-se, uma vez mais, de um enunciado que irrompe no processo discursivo como mais uma "fala de desejo" não escutada desse (seu) lugar.

Finalmente, depois de uma sequência de enunciados (53 a 58) em que o objeto discursivo fazer o bebê dormir se mostra em conflito com o objeto dar banho no nenê, irrompe, no dizer de J., um enunciado que, embora discursivamente conectado à cadeia que vinha se desenvolvendo, rompe a estrutura linguística que sustentava os enunciados que a constituíam: eu vou dormir Mila ... quê que cê tá fazendo? É o momento em que, linguística e discursivamente, se mostra o deslizamento de posição subjetiva: de sujeito falado (pelo outro) a sujeito falante (de si mesmo) eu. Sustentam, ainda, esse deslizamento: (i) a flutuação lexical entre o verbo querer e a locução verbal ir dormir; (ii) a flutuação das características morfológicas do verbo (presente) e da locução (futuro); e, ainda, (iii) a flutuação de suas características semânticas (respectivamente, de volitiva a afirmativa).

Algumas observações devem ser feitas a propósito da irrupção dos enunciados com estrutura linguística X quer Y? destacados acima. O percurso do caso clínico da criança mostrou que enunciados com essa estrutura ocorreram em todas as cenas terapêuticas acompanhadas. Destaque-se, ainda, que tais enunciados irromperam mesmo em cenas terapêuticas nas quais aparentemente nenhum objeto físico nelas presente justificaria sua irrupção. Por conseguinte, a emergência de enunciados com estrutura X quer Y? tanto pode ter sido mobilizada por elementos verbais e não verbais que ecoavam na cena quanto pelo já-dito/já-vivido que a ancorava, ou, talvez e principalmente, pela conjunção entre o que se desenvolvia na cena em análise e ecos das demais cenas (não somente terapêuticas) que compunham a memória discursiva da criança J.

Reforça-se, pois, como um enunciado não se inicia em si mesmo, mas irrompe como um elo de uma cadeia de enunciados(99 Bakhtin MM. Os gêneros do discurso. In: Bakhtin MM. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes; 1992. cap. 3, p. 291.) num processo discursivo. Afinal, também um processo discursivo não se inicia em si mesmo, já que se estabelece sobre um discursivo prévio (o interdiscurso), composto, no caso em análise, não apenas do conjunto de cenas terapêuticas entre J e T. mas, também, de múltiplas cenas (não terapêuticas) de que J. era convocada a participar em sua vida diária. Assim, os enunciados que irromperam na cena destacada seriam “[...] a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo [...].”(88 Pêcheux M, Fuchs C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: Gadet F, Hak T, organizadores. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp; 1990. p. 179.:167), o que reforça o fato de que, conforme antecipado, o sujeito não é a fonte do (seu) discurso, mas seu suporte e efeito(1010 Authier-Revuz J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad Estud Lingüíst. 1990;19:25-42. https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.8636824.
https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.86368...
).

Por meio de flutuações entre elementos linguísticos que compõem a estrutura X quer Y?, de algum modo relacionadas a elementos verbais e não verbais da cena terapêutica e, como se acabou de destacar, também possivelmente à memória discursiva, a cadeia de enunciados destacada mostrou o deslizamento da posição subjetiva de J. Esse deslizamento não se deu de modo linear/progressivo, como se viu na descrição do recorte. Diferentemente, as flutuações lexicais acompanhavam, por exemplo: (i) desdobramentos não favorecidos no processo discursivo por (muito) pouca negociação de sentidos entre T. e J.; (ii) conflitos de objetos discursivos; e, ainda, (iii) movimentos que mesclavam ecos de outros enunciados da cena e elementos não verbais que a compunham. Trata-se de flutuações que "construíam" o deslizamento discursivo desejado – que, do enunciado de partida ao enunciado de chegada, se pode, linguisticamente, sintetizar por deslocamentos: lexical (querer / ir dormir); semântico (volitivo / afirmativo); morfológico (presente / futuro); prosódico (interrogativo / declarativo); e pronominal (eu / você). Nessa conjunção, sobretudo os deslocamentos semântico e pronominal mostram, privilegiadamente, um possível rastro do desejo do sujeito, marcado, em seus pontos extremos, pelo caráter volitivo e afirmativo dos verbos, e pela mudança gramatical de pessoa, ou seja, a explicitação linguística, convencional, da subjetividade.

É o que se vê em eu vou dormir Mila, em que as marcas de primeira pessoa apontam o assujeitamento de J. à posição de sujeito falante/desejante, e a continuidade do enunciado ... quê que cê tá fazendo? possibilita identificar um possível estranhamento da criança em relação à sua própria fala – o que, complementarmente, pode fornecer mais um indício de sua mudança de posição subjetiva. Assim, se vistos sob perspectiva linguístico-discursiva como a assumida no estudo aqui em relato, enunciados tidos como ecolálicos podem mostrar, por sua suposta repetibilidade estrutural (mas não discursiva) um percurso de deslizamento de posição subjetiva.

COMENTÁRIOS FINAIS

Acredita-se que a investigação relatada tenha fornecido elementos para a interpretação de que uma cadeia de enunciados tidos como ecolálicos (por sua estruturação linguística recorrente) pode, ao mesmo tempo, mostrar rastros de sua ancoragem (i) em elementos contextuais de uma cena terapêutica e (ii) numa rede interdiscursiva que a torna possível. Nessa sua ancoragem, a cadeia pode, ainda, mostrar indícios de subjetividade, se sua irrupção for entendida como uma "fala de desejo" na qual podem ser identificados deslizamentos de posição subjetiva.

No entanto, mostrou-se bastante singular (e complexo) o funcionamento da estrutura X quer Y? nas sessões de terapia da criança J. – razão da presente proposta de investigá-lo. Como se pôde observar, as flutuações linguísticas na cadeia de enunciados com estrutura linguística recorrente mostrou que a “[...] deriva [está] sempre pronta a se instalar no discurso, fruto de uma subjetividade fragilmente constituída [...].”(1515 Coelho NF. Características dos enunciados dispersos de uma criança com diagnóstico fonoaudiológico de distúrbio de linguagem [dissertação]. Cidade São José do Rio Preto: Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista; 2012.:9). Mas também o movimento mostrado dessa deriva pode indiciar deslizamentos de posição subjetiva na produção discursiva, uma vez que configura um “[...] lugar logicamente desestabilizado e marcado pela tensão entre o dito e o não-dito, [...]”(1313 Tfouni LV. Entre a análise do discurso e a psicanálise, a verdade do sujeito — análise de narrativas orais. Rev Invest – Ling. 2005;18(2):1-15.:27).

A presente exposição – acredita-se – pode trazer contribuições para a literatura e para a clínica fonoaudiológica que se volta para questões de linguagem. Como se procurou mostrar, estruturas linguísticas recorrentes podem, nos enunciados por elas sustentados, dar pistas do desejo do sujeito em sua relação com o O/outro, por meio de suas flutuações linguísticas e de seus deslizamentos discursivos. Portanto, embora não irrompam de forma convencional, tais deslizamentos podem mostrar possibilidade de mudanças de posição subjetiva. Por conseguinte, uma contribuição à clínica de linguagem oferecida a partir da investigação de enunciados ancorados por estruturas linguísticas recorrentes pode ser observada, na medida em que, no setting terapêutico, pode haver escuta para enunciados que, em primeira instância, poderiam ser tidos como colados/enraizados no dizer do outro. Na clínica de linguagem, é possível, então, dar lugar a novos/outros sentidos a tais enunciados, de maneira a favorecer a constituição do sujeito da/na linguagem a partir de enunciados frequentemente interpretados como esvaziados de subjetividade.

Assim, nos quadros de crianças com distúrbios de linguagem por implicações de natureza psicótica, a Fonoaudiologia pode ir além das análises estruturais/formais e avançar para a significação (verbal e não verbal) propriamente dita. Como se procurou demonstrar, um olhar linguístico-discursivo como aquele aqui proposto, para além de analisar descontextualizadamente expressões com estruturas que poderiam ser interpretadas como ecolálicas, permite analisá-las em relação à complexidade de sua irrupção num processo discursivo.

  • Trabalho realizado no Programa de Pós-graduação em Fonoaudiologia, Universidade Estadual Paulista – UNESP - Marília (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processo 305639/2021-8); e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

REFERÊNCIAS

  • 1
    Kanner L. Problems of nosology and psychodinamics in early infantile autism. Am J Orthopsychiatry. 1949;19(3):416-26. PMid:18146742.
  • 2
    Oliveira MT. Quem fala nessa voz? [dissertação]. São Paulo: Pontíficia Universidade Católica de São Paulo; 2001.
  • 3
    Freitas FAF, Montenegro ACA, Fernandes FDM, Delgado IC, Almeida LNA, Alves GÂS. Communicative skills of children with autistic spectrum disorder: clinical and family perception. Rev CEFAC. 2021;23(4):e1521. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216/20212341521
    » http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216/20212341521
  • 4
    Hage SVR, Hter LYSY, Fernandes FDM. Social Communication and pragmatic skills of children with Autism Spectrum Disorder and Developmental Language Disorder. CoDAS. 2021;34(2):e20210075. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20212021075 PMid:34932641.
    » http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20212021075
  • 5
    Balestro JI, Fernandes FDM. Percepção de cuidadores de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo quanto ao perfil comunicativo de seus filhos após um programa de orientação fonoaudiológica. CoDAS. 2019;31(1):e20170222. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018222 PMid:30843922.
    » http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018222
  • 6
    Barros I, Fonte R, Souza A. Ecolalia e gestos no autismo: reflexões em torno da metáfora enunciativa. Forma y Función. 33(1):173-89. http://dx.doi.org/10.15446/fyf.v33n1.84184
    » http://dx.doi.org/10.15446/fyf.v33n1.84184
  • 7
    Moraes MEA, Carvalho GMM. Repetição em aquisição de linguagem: notas sobre o espelhamento sonoro infantil e a ecolalia no autismo. Signótica. 2022;34:e70277. http://dx.doi.org/10.5216/sig.v34.70277.
  • 8
    Pêcheux M, Fuchs C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: Gadet F, Hak T, organizadores. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp; 1990. p. 179.
  • 9
    Bakhtin MM. Os gêneros do discurso. In: Bakhtin MM. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes; 1992. cap. 3, p. 291.
  • 10
    Authier-Revuz J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad Estud Lingüíst. 1990;19:25-42. https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.8636824
    » https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.8636824
  • 11
    Pêcheux M. Análise automática do discurso. In: Gadet F, Hak T, organizadores. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp; 1990. p. 163-252.
  • 12
    Henry P. A ferramenta imperfeita — língua, sujeito e discurso. Campinas: Unicamp; 1992. p. 188-189.
  • 13
    Tfouni LV. Entre a análise do discurso e a psicanálise, a verdade do sujeito — análise de narrativas orais. Rev Invest – Ling. 2005;18(2):1-15.
  • 14
    Bonatto J, Chacon L. Indícios de subjetividade na fala de uma criança psicótica: um olhar para as hesitações. Revista Distúrbios da Comunicação. [Internet]. 2012 [citado em 2022 Dez 13];24(2):185-97. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/114713
    » http://hdl.handle.net/11449/114713
  • 15
    Coelho NF. Características dos enunciados dispersos de uma criança com diagnóstico fonoaudiológico de distúrbio de linguagem [dissertação]. Cidade São José do Rio Preto: Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista; 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2022
  • Aceito
    04 Jul 2023
Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia Al. Jaú, 684, 7º andar, 01420-002 São Paulo - SP Brasil, Tel./Fax 55 11 - 3873-4211 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@codas.org.br