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Zumbido em uma população ribeirinha exposta ao metilmercúrio

Tinnitus in a riverside population exposed to methyl-mercury

Resumos

Objetivo

: Estudar a prevalência de zumbido, verificando se há associação entre a queixa desse sintoma e o teor de mercúrio e mensurar seu impacto na qualidade de vida.

Métodos

: Estudo seccional em toda a população do Lago do Puruzinho, localizada na margem esquerda do Rio Madeira, cidade de Humaitá, Estado do Amazonas, Brasil. Todos os residentes maiores de 18 anos, de ambos os gêneros, foram submetidos à anamnese, avaliação otorrinolaringológica e exame audiológico. Os indivíduos que apresentaram queixa de zumbido responderam à versão traduzida do questionário Tinnitus Handicap Inventory (THI). Também foram pesquisados os teores de mercúrio total no cabelo desses indivíduos. Resultados: Para análise dos resultados sobre a queixa de zumbido, os sujeitos foram divididos em dois grupos quanto à presença ou não de zumbido. O Grupo 1 foi composto por indivíduos que apresentaram queixa de zumbido e o Grupo 2, por indivíduos sem zumbido. Foi observado que 40% dos indivíduos apresentaram escores do THI compatíveis com handicap leve. A análise da associação da presença de zumbido com os teores de mercúrio total no cabelo mostrou que ambos os grupos apresentaram níveis elevados de mercúrio, porém não ocorreram diferenças entre os grupos.

Conclusão

: Um quarto dos ribeirinhos apresentou queixa de zumbido e exposição significativa ao mercúrio, mas não houve associação entre o zumbido e os níveis elevados de mercúrio.

Zumbido; Mercúrio; Perda auditiva; Saúde pública; Questionários


Purpose

: To study the association between the prevalence of tinnitus and mercury exposure and measure the influence of tinnitus on the quality of life.

Methods

: We conducted a cross-sectional study of men and women aged above 18 years residing in the Lake Puruzinho region, which is located on the left bank of the Rio Madeira, Humaita city, Amazonas state, Brazil. All subjects underwent anamnesis, otorhinolaryngologic evaluation, and an audiology test. Individuals who experienced tinnitus completed the translated Tinnitus Handicap Inventory (THI). We also examined the levels of total mercury in the hair of these individuals.

Results

: To analyze the results regarding the prevalence of tinnitus, the subjects were divided into two groups according to the presence or absence of tinnitus. Group 1 was composed of subjects with tinnitus and Group 2 was composed of subjects without tinnitus. Consequently, 40% of individuals had scores consistent with mild handicap according to the THI. The analysis of the association between tinnitus and levels of total mercury in hair samples showed that both groups had high levels of mercury. However, this finding was not significantly different between groups.

Conclusion

: Herein, 25% of the subjects complained of tinnitus and significant exposure to mercury; however, there was no association between the prevalence of tinnitus and high levels of mercury.

Tinnitus; Mercury; Hearing loss; Public health; Questionnaires


INTRODUÇÃO

A extração do ouro com o uso não controlado do mercúrio nos processos de mineração acarreta sérios problemas de contaminação ambiental e de exposição humana. A região da Amazônia ocupa lugar de destaque nesse cenário ( 1Blacksmith Institute’s; Green Cross Switzerland. The world’s worst toxic pollution problems: the top ten of the toxic twenty. (Report 2011). New York: Blacksmith Intitute’s; [2011?]. Disponível em: http://www.worstpolluted.org/2012-report.html
http://www.worstpolluted.org/2012-report...
) . Esse metal representa grave ameaça à saúde humana por ser altamente bioacumulativo e provocar diversos efeitos nocivos à saúde ( 2Passos CJ, Mergler D. Human mercury exposure and adverse health effects in the Amazon: a review. Cad Saúde Pública. 2008;24(Suppl 4):s503-20. , 3Kehrig HA, Seixas TG, Baêta AP, Malm O, Moreira I. Inorganic and methylmercury: do they transfer along a tropical coastal food web? Mar Pollut Bull. 2010;60(12):2350-6. ) .

Dentre as populações que sofrem o maior impacto relacionado à contaminação ambiental por mercúrio, estão aquelas que se alimentam basicamente de peixes contaminados, especialmente as comunidades ribeirinhas. As populações ribeirinhas da Bacia Amazônica, como as do Lago do Puruzinho, têm como principal fonte de proteína o consumo de peixes ( 4Fonseca MF. O isolamento geográfico como interferente em avaliações neurológicas de possíveis efeitos tóxicos do metilmercúrio [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2007. ) (média de 406 g/dia ( 5Oliveira RC, Dórea JG, Bernardi JVE, Bastos WR, Almeida R, Manzatto, AG. Fish consumption by traditional subsistence villagers of the Rio Madeira (Amazon): impact on hair mercury. Ann Hum Biol. 2010;37(5):629-42. ) ), principal via de exposição ambiental ao metilmercúrio.

O metilmercúrio pode causar danos cerebrais, diminuição da coordenação motora com alteração da fala e do andar, parestesia, ataxia, neurastenia, tremores, falta de equilíbrio, sensação de fraqueza, fadiga, dificuldade de concentração, diminuição do campo visual e da audição, além de outros efeitos, tais como a teratogenia, podendo levar até a morte ( 6Goyer RA, Clarkson TW. Toxic effects of metals. In: Klaassen CD, editor. Casarett and Doull’s toxicology: the basic science of poisons. 6 a. ed. New York: McGraw-Hill; 2001. p. 834-7. ) .

Uma revisão sistemática dos estudos publicados a respeito dos efeitos do mercúrio relacionados ao sistema auditivo periférico e/ou central evidenciou que o mercúrio é ototóxico e induz ao dano periférico e/ou central. A perda auditiva é um sintoma frequente em indivíduos expostos ao mercúrio, podendo apresentar, também, sintomas vestibulares de origem central e periférica ( 7Hoshino ACH, Ferreira HP, Malm O, Carvalho RM, Câmara VM. A systematic review of mercury ototoxicity. Cad Saúde Pública. 2012;28(7):1239-47. ) .

A exposição ao metilmercúrio durante o período gestacional pode influenciar no desenvolvimento do sistema auditivo. O atraso da onda III do potencial evocado auditivo de tronco encefálico (PEATE) foi considerado como biomarcador de uma exposição pré-natal por meio da alimentação de frutos do mar contaminados ( 8Rice DC, Gilbert SG. Exposure to methyl mercury from birth to adulthood impairs high-frequency hearing in monkeys. Toxicol Appl Pharmacol. 1992;115(1):6-10. ) . Outro estudo sugere que a persistência do prolongamento da latência interpicos I-III indica que a exposição prévia intrauterina ao metilmercúrio é irreversível, sugerindo uma alteração do sistema auditivo central em nível de tronco encefálico ( 9Murata K, Weihe PL, Budtz-Jørgensen E, Jorgensen PJ, Grandjean P. Delayed brainstem auditory evoked potential latencies in 14-year-old children exposed to methylmercury. J Pediatr. 2004;144(2):177-83. ) .

O zumbido pode ocorrer devido à lesão e/ou desarranjo funcional no sistema auditivo neurossensorial, seja originário na orelha interna ou das vias auditivas centrais. A perda auditiva é frequente nos pacientes que apresentam a queixa de zumbido, porém, alguns casos não referem dificuldades na audição, mas se queixam de zumbido ( 1010 Person OC, Feres MCLC, Barcelos CEM, Mendonça RR, Marone MR, Rapaport BP. Zumbido: aspectos etiológicos, fisiopatológicos e descrição de um protocolo de investigação. Arq Med ABC. 2005;30(2):111-8. ) .

O zumbido pode também estar associado a outros fatores, como emocionais, odontológicos, alterações de coluna cervical ou metabólicos ( 1111 Jastreboff PJ. Phantom auditory perception (tinnitus): mechanisms of generation and perception. Neurosci Res. 1990;8(4):221-54. ) . Aproximadamente 17% da população é afetada por esse sintoma, dos quais 15% a 25% apresentam interferência em sua qualidade de vida ( 1212 Sanchez TG, Bento RF, Miniti A, Cârnara J. Zumbido: características e epidemiologia. Experiência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rev Bras Otorrinolaringol. 1997;63(3):229-35. ) .

Uma vez que não existe um método objetivo para a detecção da presença do zumbido e tampouco para a determinação do grau de severidade do sintoma, o uso dos questionários na avaliação do paciente com zumbido é essencial ( 1313 Jastreboff MM, Jastreboff PJ. Questionnaires for assessment of the patients and treatment outcome. In: Hazell JWP, editor. Proceedings of the 6th International Seminar; 1999 Sep 8. Cambridge (UK): editora; 1999; p. 487-90. ) . Esses questionários para avaliação dos efeitos funcionais são compostos por vários itens que avaliam o impacto do zumbido em diversos aspectos da vida diária ( 1414 Meikle MB, Stewart BJ, Griest SE, Henry JA. Tinnitus outcomes assessment. Trends Amplif. 2008;12(3):223-35. ) .

Um desses questionários é o Tinnitus Handicap Inventory (THI) ( 1515 Newman CW, Jacobson GP, Spitzer JB. Development of the Tinnitus Handicap Inventory. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1996;122(2):143-8. ) , posteriormente traduzido para o português ( 1616 Ferreira PEA, Cunha F, Onishi ET, Branco-Barreiro FCA, Ganança FF. Tinnitus handicap inventory: adaptação cultural para o Português brasileiro. Pró-Fono R Atual Cient. 2005;17(3):303-10. ) .

Na revisão da literatura, não foram encontrados estudos que avaliaram o zumbido em populações expostas ao mercúrio. Assim, o objetivo principal deste estudo exploratório foi pesquisar a prevalência de zumbido em uma população ribeirinha exposta ambientalmente ao mercúrio, verificando se há associação com os níveis de mercúrio total em amostras de cabelo e mensurar o impacto do zumbido na qualidade de vida desses indivíduos.

MÉTODOS

O estudo considerou os aspectos éticos recomendados pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre Pesquisa envolvendo seres humanos, incluindo entre outros, a obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos indivíduos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob o nº 79/2011.

Trata-se de um estudo seccional realizado em março de 2012, em que foi avaliada a queixa de zumbido entre todos os ribeirinhos de ambos os gêneros, maiores de 18 anos, nascidos e residentes na comunidade do Lago do Puruzinho, localizada na margem esquerda do Rio Madeira, cidade de Humaitá, Estado do Amazonas, Brasil.

Essa população vive basicamente da agricultura de subsistência e pode ser considerada exposta ao metilmercúrio porque tem como fonte de proteína animal, na dieta, o peixe e, em menor escala, mamíferos e aves. Essa localidade foi definida como um laboratório para estudos ambientais e considerada modelo de população ribeirinha da Bacia do Rio Madeira ( 4Fonseca MF. O isolamento geográfico como interferente em avaliações neurológicas de possíveis efeitos tóxicos do metilmercúrio [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2007. ) .

Toda a avaliação foi realizada em 41 indivíduos, 20 do gênero masculino e 21 do gênero feminino, com idades entre 18 e 68 anos. O propósito da pesquisa foi avaliar toda a comunidade, independentemente das variáveis gênero e idade. Os critérios de exclusão abrangeram os pacientes que não puderam realizar a audiometria convencional, ou que apresentaram perda auditiva do tipo condutiva ou mista ( 1717 Silman S, Silverman CA. Auditory diagnosis: principles and applications. San Diego: Singular; 1997. Basic audiologic testing; p. 44-52. ) , uma vez que esse tipo de perda está correlacionado a doenças de orelha externa e média e exposição ao mercúrio está associada a perdas auditivas neurossensoriais ( 1818 Lima ERZ, Colon JC, Souza MT. Alterações auditivas em trabalhadores expostos a mercúrio. Rev CEFAC. 2009;11(supl 1):62-7. ) .

A anamnese constituiu-se de questões relativas a dados pessoais, estado de saúde geral, atividade profissional, escolaridade, alimentação, tempo de residência na comunidade, presença de doenças como hipertensão e diabetes, hábitos como tabagismo, etilismo, compulsão por doces, ingestão de café, chocolate, medicações em uso, dentre outros fatores que pudessem estar correlacionados com a presença do zumbido. A análise da presença ou não de alterações da articulação temporomandibular, além da história clínica do indivíduo relacionada a cirurgias otológicas, doenças do ouvido, perda auditiva, presença ou não de zumbido e históricos de problemas auditivos na família também foi realizada.

Nos indivíduos que relataram zumbido, aplicou-se a versão traduzida do Tinnitus Handicap Inventory (THI) ( 1616 Ferreira PEA, Cunha F, Onishi ET, Branco-Barreiro FCA, Ganança FF. Tinnitus handicap inventory: adaptação cultural para o Português brasileiro. Pró-Fono R Atual Cient. 2005;17(3):303-10. ) , composto por 25 questões, que poderiam ser respondidas como “sim” (4 pontos), “às vezes” (2 pontos) e “não” (nenhum ponto) ( 1919 Dias A, Cordeiro R, Corrente JE. Incômodo causado pelo zumbido medido pelo Questionário de Gravidade do Zumbido. Rev Saúde Pública. 2006;40(4):706-11. ) . No valor final da somatória, tem-se um escore que varia de 0 a 100 e quanto maior o escore, maior é a repercussão do zumbido na qualidade de vida do paciente. A classificação do handicap do zumbido pode ser “discreto” (de 0 a 16 pontos), “leve” (de 18 a 36), “moderado” (de 38 a 56), “severo” (de 58 a 76), ou “catastrófico” (de 78 a 100). O questionário foi aplicado por um único entrevistador e o conteúdo lido para o entrevistado.

Foi realizada a otoscopia e avaliada qualquer alteração no meato acústico externo, como a presença de cerume, que pudesse vir a comprometer a realização do exame audiológico.

O exame audiológico consistiu na realização da audiometria tonal por meio do audiômetro (AC-33 Interacoustics®, Denmark), na faixa de frequência entre 500 Hz e 8000 Hz ( 2020 Glorig A, Davis H. Age, noise and hearing loss. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1961;70:556-74. , 2121 Albernaz PM, Albernaz LGM, Albernaz Filho PM. Otorrinolaringologia prática. 10ª ed. São Paulo: Sarvier; 1981. ) . Foram adotados os critérios que consideram os padrões normais da audição limiares auditivos tonais de 500 Hz a 8000 Hz, inferiores ou iguais a 15 dBNA ( 2020 Glorig A, Davis H. Age, noise and hearing loss. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1961;70:556-74. , 2121 Albernaz PM, Albernaz LGM, Albernaz Filho PM. Otorrinolaringologia prática. 10ª ed. São Paulo: Sarvier; 1981. ) .

Na análise da imitância acústica pelo imitanciômetro (AT235 Interacoustics®, Denmark), timpanometria tipo A e reflexos acústicos contralaterais presentes bilateralmente nas freqüências de 500 Hz a 4000 Hz, foram considerados como padrão de normalidade ( 2222 Jerger J. Clinical experience with impedance audiometry. Arch Otolaryngol. 1970;92(4):311-24. ) .

Foram realizadas avaliações de colesterol total e suas frações, de dosagem do hormônio tireoestimulante (TSH) e de tiroxina livre – T4 livre, em amostras de sangue, e aferida a pressão arterial e diastólica, para avaliar o diagnóstico diferencial de outras doenças que pudessem estar associadas com a queixa de zumbido.

Por se tratar de exposição ao metilmercúrio, foram analisados os teores totais de mercúrio em amostras de cabelo. A análise do mercúrio total no cabelo foi feita por meio da técnica de espectrofotometria de absorção atômica por geração de vapor frio (Flow Injection Mercury System, FIMS-400 da Perkin Elmer®), pelo laboratório de Biogeoquímica Ambiental Wolfgang C. Pfeiffer, da Universidade Federal de Rondônia. A dosagem de mercúrio foi realizada em 22 indivíduos que consentiram com a pesquisa.

A coleta de todos os dados foi realizada na mesma semana. Por se tratar de um estudo de prevalência, foi utilizado o programa SPSS, versão 14.0, para a análise estatística dos dados.

RESULTADOS

Os sujeitos foram divididos em dois grupos, quanto à queixa ou não de zumbido. O Grupo 1 foi composto por dez indivíduos que apresentaram queixa de zumbido e o Grupo 2 foi composto por 31 indivíduos sem zumbido. Este estudo demonstrou que 25% dos ribeirinhos avaliados na comunidade do Puruzinho apresentaram a queixa de zumbido.

A análise da associação da presença de zumbido com os teores de mercúrio total no cabelo mostrou que ambos os grupos apresentaram níveis elevados, em comparação aos valores de referência indicados pela Organização Mundial de Saúde, que são de até 6,0 µg.g -1 , como limite para as pessoas expostas a esse metal ( 2323 World Health Organization. Environmental health criteria 1: mercury [internet]. Geneva, 1976 [Acesso em: 26 set 2012]. Disponível em: http://www.inchem.org/documents/ehc/ehc/ehc001.htm#sthash.Ls2QkL4q.el1fWlLq.dpuf
http://www.inchem.org/documents/ehc/ehc/...
) , porém não ocorreu diferença significativa entre os grupos (Tabela 1).

Tabela 1
. Teores de mercúrio total em cabelos na população ribeirinha da comunidade do Puruzinho

Ao investigar o handicap do zumbido, ainda no Grupo 1, observou-se que, entre os indivíduos que apresentaram zumbido, a pontuação do THI variou de 4 a 84, com média de 36,8. Foi observado que 4 (40%) sujeitos apresentaram escores do THI compatíveis com handicap leve, 3 (30%) com handicap discreto, 2 (20%) com handicap catastrófico, 1 (10%) com handicap severo. Nenhum dos indivíduos apresentou handicap moderado (Figura 1).

Figura 1
Distribuição dos resultados do THI nos indivíduos com zumbido

Ao relacionar a presença de zumbido e perda auditiva, em ambos os grupos, observou-se que nos indivíduos com zumbido houve ocorrência maior de audiometria alterada (20%), caracterizada pela perda auditiva nas frequências altas (6000 e 8000 Hz) (Tabela 2).

Tabela 2
. Distribuição da presença ou não de zumbido segundo o resultado da audiometria

Dentre as variáveis que poderiam causar confundimento, como alto consumo de cafeína, hipertensão, diabetes, ingestão de álcool, fumo, disfunção temporomandibular, uso de medicações ototóxicas, problemas cervicais, traumatismo cranioencefálico e alterações otológicas, não houve diferença entre os grupos.

No tocante aos resultados dos exames laboratoriais, a dosagem do hormônio tireoestimulante (TSH) e da tiroxina livre – T4 livre apresentaram-se normais. O colesterol total e suas frações apresentaram-se nos valores de referência, indicando, também, não associação com a queixa do zumbido (valor de p não significativo).

DISCUSSÃO

O zumbido é um transtorno prevalente, que permanece mal compreendido pelos profissionais da saúde. É um problema mundial que afeta milhões de pessoas ( 2424 Lim JJBH, Lu PKS, Koh DSQ, Eng SP. Impact of tinnitus as measured by the tinnitus inventory among tinnitus sufferers in Singapure. Med J 2010;51(7):551-7. ) .

A presença do zumbido pode ser responsável por falhas no raciocínio, na memória e na concentração. Essas alterações podem prejudicar as atividades de lazer, o repouso, a comunicação, o ambiente social e doméstico, repercutindo na esfera psíquica, provocando irritação, ansiedade, depressão e insônia, interferindo diretamente na qualidade de vida ( 1212 Sanchez TG, Bento RF, Miniti A, Cârnara J. Zumbido: características e epidemiologia. Experiência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rev Bras Otorrinolaringol. 1997;63(3):229-35. ) .

Tendo em vista que qualquer situação clínica capaz de alterar a fisiologia da via auditiva pode relacionar-se ao zumbido, foram investigadas possíveis variáveis de confundimento, através do questionário e dos exames laboratoriais, que não apresentaram correlação quanto à presença ou ausência do zumbido. Especificamente em relação à audição, alterações no sistema auditivo consequentes da perda auditiva induzida por ruído (PAIR), trauma acústico, presbiacusia e ototoxicidade poderiam relacionar-se a esse sintoma ( 1010 Person OC, Feres MCLC, Barcelos CEM, Mendonça RR, Marone MR, Rapaport BP. Zumbido: aspectos etiológicos, fisiopatológicos e descrição de um protocolo de investigação. Arq Med ABC. 2005;30(2):111-8. ) . O fato de não terem sido encontradas diferenças entre os que apresentavam e os que não apresentavam a queixa de zumbido para outras alterações que também poderiam relacionar-se a ele, é relevante, porque alterações metabólicas, cardiovasculares, neurológicas, farmacológicas, odontológicas e psicológicas também devem ser consideradas na avaliação do paciente com zumbido ( 1212 Sanchez TG, Bento RF, Miniti A, Cârnara J. Zumbido: características e epidemiologia. Experiência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rev Bras Otorrinolaringol. 1997;63(3):229-35. ) .

Nosso estudo demonstrou que 25% dos indivíduos apresentaram zumbido e na maior parte dos ribeirinhos, com grau leve de impacto na qualidade de vida. A correlação entre o grau da perda auditiva medido pela audiometria e o nível de incômodo do zumbido está relacionada à forma como o paciente encara o seu zumbido e não a alguma medida física ou anatômica ( 2525 Ferreira LMBM, Ramos Júnior AN, Mendes EP. Caracterização do zumbido em idosos e de possíveis transtornos relacionados. Rev. Bras. Otorrinolaringol. 2009;75(2):245-48. ) .

A inclusão de medidas de autoavaliação psicometricamente robustas de percepção de restrição de atividade e de limitação/participação em protocolos clínicos continuarão a ser de grande valor na prática clínica em audiologia, otologia e otoneurologia ( 2626 Newman CW, Sandridge SA, Bolek L. Development and psychometric adequacy of the screening version of the tinnitus handicap inventory. Otol Neurotol. 2008;29(3):276-81. ) .

Os teores de mercúrio total no cabelo encontrados na comunidade do Lago do Puruzinho foram compatíveis com estudos em outras populações ribeirinhas da bacia do Rio Madeira, que apresentaram níveis elevados de exposição a esse metal ( 2727 Bastos WR, Lacerda LD. A contaminação por mercúrio na Bacia do Rio Madeira: uma breve revisão. Geochim Brasil. 2004;18(2):99-114. ) .

As evidências sobre a exposição ocupacional ao mercúrio são indiscutíveis. Entretanto, seus efeitos sobre a população geral ainda são pouco explorados, pois, geralmente, a intoxicação por poluentes químicos se dá de forma crônica, não existindo um quadro clínico clássico para a maioria das substâncias ( 2828 Câmara VM, Tambellini AT. Considerações sobre o uso da epidemiologia nos estudos em saúde ambiental. Rev Bras Epidemiol. São Paulo. 2003;(6)2:95-104. ) .

Na literatura, estudos descrevem limiares auditivos dentro dos padrões de normalidade e, mesmo assim, presença de alteração no potencial auditivo evocado, com aumento de latência entre os picos das ondas III e V ( 9Murata K, Weihe PL, Budtz-Jørgensen E, Jorgensen PJ, Grandjean P. Delayed brainstem auditory evoked potential latencies in 14-year-old children exposed to methylmercury. J Pediatr. 2004;144(2):177-83. ) e o acometimento do processamento auditivo central, com desempenho inferior ao esperado ( 2929 Dutra MDS, Monteiro MC, Câmara VM. Avaliação do processamento auditivo central em adolescentes expostos ao mercúrio metálico. Pró-Fono R Atual Cient. 2010;22(3):339-44. ) , indicando que o efeito neurotóxico do mercúrio no sistema nervoso auditivo central é mais significativo que no nível periférico.

Vale considerar que este estudo é inédito na avaliação exclusiva da prevalência do zumbido associado ao mercúrio, afastando possíveis fatores causais.

Considerando-se que a exposição crônica ao mercúrio pode ser responsável por efeitos ototóxicos e neurotóxicos, assim como a presença elevada de queixa de zumbido dessa população ribeirinha, recomenda-se uma abordagem complexa da área da saúde coletiva para promover ações preventivas no campo da saúde ambiental. Por se tratar de um estudo seccional, toda a população foi analisada em um único momento do tempo, ou seja, o momento da coleta, e os resultados não comprovaram associação do mercúrio com a queixa de zumbido.

Os níveis elevados de mercúrio no cabelo verificados nesta pesquisa constituem-se em modelo potencial para estudos de monitoramento de sintomas clínicos e subclínicos. Importante ressaltar que este estudo foi inicial e exploratório, podendo servir, portanto, como referência para novas análises de outras populações expostas ao metilmercúrio e na investigação do zumbido como queixa da intoxicação a médio e longo prazo.

Como limitações do estudo, pode-se citar o número reduzido da população, a referência de algumas das doenças que poderiam estar associadas ao zumbido e a dificuldade de encontrar um grupo controle em uma população ribeirinha que não estivesse exposta ao mercúrio.

CONCLUSÃO

A comunidade do Lago do Puruzinho apresentou alta prevalência de queixa de zumbido. Entretanto, não foi verificada associação entre a queixa de zumbido e os teores de mercúrio pesquisados. Mensurando o impacto do zumbido na qualidade de vida, a maior parte dos ribeirinhos apresentou handicap de grau leve.

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  • Trabalho realizado no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva – IESC – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  • Esta pesquisa foi financiada pelo projeto INCT para Pesquisa Translacional em Saúde e Ambiente na Região Amazônica (Edital MCT/CNPq n o 015/08 – Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2013
  • Aceito
    06 Jan 2014
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