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A fluência na afasia progressiva primária logopênica

Resumos

Esta pesquisa é um estudo de caso que tem como objetivo analisar, longitudinalmente, a fluência de um sujeito com Afasia Progressiva Primária (APP) Logopênica. O método de análise baseou-se em sete sessões de atendimento fonoaudiológico de uma paciente com 61 anos de idade, diagnosticada com APP. Os dados foram analisados de forma qualitativa, a partir da Neurolinguística Enunciativo-Discursiva. Os resultados sugerem que a paciente apresentava a variante Logopênica da APP, com as seguintes características: fala com estrutura gramatical reservada, manutenção da compreensão de palavras isoladas e de frases preservadas, durante a conversação na interação dialógica. As dificuldades de fluência referiram-se às ocorrências de repetição em palavras longas e menos cotidianas, parafasias fonológicas, pausas disfluentes e anomia. A análise também apontou modificação progressiva nos sintomas, com aumento do número de repetições e alteração de sua forma de ocorrência. Essas modificações parecem indicar uma relação inversamente proporcional entre fluência de fala e avanço da doença, em que a fluência tende à deterioração. Esse cenário assume aspecto relevante na linguagem do sujeito na medida em que influencia na sua interação e papel social, ou seja, quanto menos fluente é o discurso, mais essa condição afeta sua posição de falante.

Descritores
Afasia; Afasia progressiva primária logopênica; Linguagem; Neurolinguística; Neuropsicologia


This research is a case report which aims to perform a longitudinal analysis of fluency of a subject with Primary Progressive Aphasia (PPA), Logopenic variant. The method of analysis was based on seven speech therapy sessions of a 61-year-old patient diagnosed with PPA. The data was analyzed qualitatively in light of Enunciative-Discursive Neurolinguistics. The results showed that the patient has the logopenic variant of PPA, with the following characteristics: preservation of speech grammar structure, preserved comprehension of single words and phrases during conversation in dialogical interaction. Speech flow difficulties were marked by occurrences of repetitions of longer and more unusual words, phonological paraphasias, non-fluent pauses and anomies. The analysis also pointed to a progression of symptoms, with increasing number of repetitions of different forms of occurrence. These modifications suggest an inversely proportional relationship between oral fluency and disease progression in which speech flow tends to decay. This scenario is relevant for subjects' language because it influences their social interaction, i.e., the less fluent their speech, the more affected they are as speakers.

Aphasia; Primary progressive aphasia-logopenic; Language; Neurolinguistic; Neuropschology


INTRODUÇÃO

A Afasia Progressiva Primária (APP) é caracterizada pela deterioração progressiva da linguagem, a partir de uma atrofia gradual, que pode permanecer isolada à linguagem por até dez anos(1. Mesulam MM. Primary progressive afasia: A dementia of the language network. Dement Neuropsychol. 2013;7(1):2-9.). A APP é considerada parte de um grupo de doenças neurodegenerativas raras, dentre elas, as degenerações frontotemporais, que aparecem entre 45 e 70 anos de idade. Embora os subtipos de Afasia Progressiva já tenham sido descritos há mais de 100 anos, nos casos estudados por Pick, Sérieux, Dejerine, Franceschi, and Rosenfeld(1. Mesulam MM. Primary progressive afasia: A dementia of the language network. Dement Neuropsychol. 2013;7(1):2-9.,2. Baumann T, Tolnay M, Monschc A. Aphasie primaire progressive: mémoire sans parole. Forum Med Suisse. 2009;9(37):646-50.), foi apenas a partir da década de 80 que iniciaram-se os estudos mais sistemáticos sobre o tema.

Em 1982, o neurologista Mesulan foi um dos pioneiros a pesquisar sobre o fenômeno. Na descrição de seis casos iniciais de APP(3. Mesulam MM. Slowly progressive aphasia without generalized dementia. Ann Neurol. 1982;11(6):592-8. doi:10.1002/ana.410110607.), destacou a presença inicial da alteração de linguagem no quadro clínico, estando ausentes sinais de comprometimento cognitivo global, isto é, demência. A descrição moderna da APP(4. Espert E, Gadea M, Villalba A. Afasia progresiva primaria: 20 anos de história (1982-2002). In: II Internacional Congress of Neuropsychology in the Internet; 2003. [Acesso em: 30 maio 2014]. Disponível em: www.serviciodc.com./congreso/congress/pass/conferences/Espert.html
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), como uma entidade clínica à parte das demências degenerativas, suscitou debate na literatura a respeito da sua legitimidade como síndrome diferenciada. Assim, devido ao seu caráter progressivo e às semelhanças com outras doenças demenciais em estágio inicial, observa-se a recorrência do uso da expressão "processo demencial", na sua definição(4. Espert E, Gadea M, Villalba A. Afasia progresiva primaria: 20 anos de história (1982-2002). In: II Internacional Congress of Neuropsychology in the Internet; 2003. [Acesso em: 30 maio 2014]. Disponível em: www.serviciodc.com./congreso/congress/pass/conferences/Espert.html
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).

Não há um consenso na literatura quanto à classificação das síndromes ou subtipos de APP(5. Senaha ML, Caramelli P, Brucki SM, Smid J, Takada LT, Porto CS et al. Primary progressive afasia: classification of variants in 100 consecutive Brazilian cases. Dement Neuropsychol. 2013;7(1):110-21.). No entanto, quatro variantes principais ganham destaque: Afasia Progressiva Primária Agramática (APPA), Afasia Progressiva Primária Semântica (APPS), Afasia Progressiva Primária Mista (APPM) e Afasia Progressiva Primária Logopênica (APPL). A APPL, tema de nosso estudo, é associada a danos nas primeiras circunvoluções do lobo temporal esquerdo e, por isto, tem sido, dentre as variantes citadas, a mais associada à Demência de Alzheimer (DA), por apresentar sintomas similares a esta.

A imprecisão quanto à delimitação da APP, em relação à DA, pode levar a até 15% de erros nos diagnósticos, devido à baixa frequência de casos e à ambiguidade etiológica entre as duas doenças(4. Espert E, Gadea M, Villalba A. Afasia progresiva primaria: 20 anos de história (1982-2002). In: II Internacional Congress of Neuropsychology in the Internet; 2003. [Acesso em: 30 maio 2014]. Disponível em: www.serviciodc.com./congreso/congress/pass/conferences/Espert.html
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), porque, tanto quadros de APP, quanto de Demência de Alzheimer, apresentam dificuldades de nomeação no estágio inicial da doença(6. Antunes EB, Bruna L, Jessica R, Helena N, Sara C, Sara S. Afasia progressiva primária e variantes. Rev Fac Ciências Saúde. 2010;(7): 282-93.). No entanto, na comparação dos aspectos neurais e endofenótipos entre DA e APPL, é possível diferenciar ambas(7. Leyton C, Hodges JR. Towards a clearer definition of logopenic progressive aphasia. Curr Neurol Neurosci Rep. 2013;13(11):1-7. doi:10.1007/s11910-013-0396-6.).

A fluência de fala tem sido apontada como sendo um dos aspectos facilitadores para a diferenciação entre a APP e as demências, no processo investigativo da doença(6. Antunes EB, Bruna L, Jessica R, Helena N, Sara C, Sara S. Afasia progressiva primária e variantes. Rev Fac Ciências Saúde. 2010;(7): 282-93.). Observa-se que, na APPL, tanto a gramática quanto a compreensão mantêm-se relativamente preservadas. Contudo, a fala de sujeitos com APPL é marcada por hesitações constantes, com pausas anômicas longas, repetições patológicas de sentenças(4. Espert E, Gadea M, Villalba A. Afasia progresiva primaria: 20 anos de história (1982-2002). In: II Internacional Congress of Neuropsychology in the Internet; 2003. [Acesso em: 30 maio 2014]. Disponível em: www.serviciodc.com./congreso/congress/pass/conferences/Espert.html
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) e dificuldades de escolhas fonológicas(2. Baumann T, Tolnay M, Monschc A. Aphasie primaire progressive: mémoire sans parole. Forum Med Suisse. 2009;9(37):646-50.). A dificuldade fonológica, o esforço atribuído ao acesso lexical e a inabilidade de repetição de sentenças parecem ser resultado de danos no giro temporal posterior esquerdo, ou, mais especificamente, de um afinamento desta área, característica da síndrome(7. Leyton C, Hodges JR. Towards a clearer definition of logopenic progressive aphasia. Curr Neurol Neurosci Rep. 2013;13(11):1-7. doi:10.1007/s11910-013-0396-6.).

Ressalte-se que a fluência é entendida, nesses casos, como o resultado da produção de palavras por minuto. Neste sentido, a velocidade de busca e o acesso lexical mostram-se relevantes na classificação das variantes da APP, sendo a APPA, denominada, também, como APP Não Fluente (APPNF) e a APPS, como APP Fluente (APPF). Ou seja, produção de vocabulário por minutos (entendida como fluência) mostra-se consistentemente baixa nos subtipos Logopênica e Gramatical e alta, ou excessiva, no subtipo Semântico e a nomeação de objetos pode ser a dificuldade mais significante no exame neuropsicológico(4. Espert E, Gadea M, Villalba A. Afasia progresiva primaria: 20 anos de história (1982-2002). In: II Internacional Congress of Neuropsychology in the Internet; 2003. [Acesso em: 30 maio 2014]. Disponível em: www.serviciodc.com./congreso/congress/pass/conferences/Espert.html
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). Embora o subtipo Logopênica não esteja caracterizado como uma APPF, observa-se que a fluência, vista sob uma perspectiva discursiva, é um dos fatores relevantes para o diagnóstico da variante, uma vez que o discurso de pacientes com APPL é marcado por hesitações e pausas que interrompem "o fluxo da conversação e dão à fala uma qualidade não fluente"(7. Leyton C, Hodges JR. Towards a clearer definition of logopenic progressive aphasia. Curr Neurol Neurosci Rep. 2013;13(11):1-7. doi:10.1007/s11910-013-0396-6.). Estudos longitudinais(8. Gorno-Tempini ML, Hillis AE, Weintraub S, Kertesz A, Mendez M, Cappa SF et al. Classification of primary progressive aphasia and its variants. Neurology. 2011;76(11):1006-14. doi:10.1212/WNL.0b013e31821103e6.), principalmente em relação à variante logopênica de APP, podem contribuir para a compreensão da progressão da doença.

A fluência, portanto, é um aspecto da linguagem importante na caracterização e no diagnóstico da APP e tem sido concebida de maneira quantitativa, com foco na produção. Não há estudos que analisem a fluência na APP a partir de uma perspectiva dialógica e de forma qualitativa. Por esse motivo, este estudo, realizado a partir da neurolinguística enunciativo-discursiva(9. Coudry MIH, Freire FMP, Andrade MLF, Silva MA. Caminhos da neurolinguística discursiva: teorização e práticas com a linguagem. Campinas: Mercado das Letras; 2010.), pode trazer aprofundamento teórico para a área, considerando que, nessa teoria, analisa-se o discurso dos sujeitos em contextos significativos de produção, assim como seu trabalho sobre a língua. Sendo assim, o objetivo desse trabalho foi analisar, longitudinalmente, a fluência de um sujeito com APPL.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

Este estudo trata da análise qualitativa e longitudinal do caso de Roberta (nome fictício), funcionária contábil aposentada, com 61 anos de idade e nível escolar técnico. Roberta foi diagnosticada, inicialmente, com Demência de Alzheimer (DA), em 2011, e, apenas em março de 2012, recebeu o diagnóstico de APP. A paciente apresenta queixa de dificuldade para articular a fala e dificuldade de encontrar palavras.

Os resultados dos exames clínicos de RM (03/03/2011), EEG (06/07/2011) e SPECT (26/09/2011), indicaram, respectivamente: (1) "pequena imagem com baixo sinal em T2, localizada em situação justacortical no giro frontal médio do lado direito, relacionada à calcificação ou depósito crônico de hemossiderina"; (2) "irregularidade e desorganização do ritmo de base, com padrão misto de frequências e ampla variabilidade na amplitude, modulado por uma atividade teta, reativo à abertura ocular e fechamento dos olhos. A hiperventilação provocou resposta lenta bilateral, inespecífica"; (3) "hipoperfusão, grau acentuado, na projeção anterior do lobo temporal esquerdo e, em grau moderado, nas projeções do terço médio médio e posterior, ipsilateralmente; hipoperfusão, grau leve, na projeção do córtex occipital esquerdo".

A coleta de dados foi realizada de modo transversal, entre março de 2012 e março de 2014 e ocorreu no Hospital Universitário (HU) de uma universidade federal do Brasil. Os episódios destacados neste estudo são provenientes das gravações de sessões de fonoaudiologia clínica, realizadas a partir da perspectiva na Neurolinguística Enunciativo-Discursiva. Os dados, que compreendem quatro episódios de leitura e três episódios de fala espontânea, foram transcritos e analisados de forma qualitativa, apresentando, contudo, frequência de eventos que mostram suas ocorrências. Para transcrição dos dados, foram utilizadas as seguintes normas(1010 . Marcuschi L. Análise da conversação. 5a ed. São Paulo: Ática; 2003.): (( )) para inserir comentários do investigador; + para marcar cada 0,5s de pausa; ( ) para informar a duração de pausas longas, maiores de 1,5s; ---- para silabação; :para marcar alongamento de vogal e ", para marcar interrogação.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob parecer 21084913.6.0000.012. Tanto a paciente quanto seu responsável assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Leitura


Dado 1: Episódio 1L (5/4/2012). Contexto: Roberta realizou uma leitura em voz alta sobre uma manchete da revista Isto é.


Dado 2: Episódio 2L (20/9/2012) (5 meses depois). Contexto: Leitura em voz alta de uma reportagem sobre o vinho.


Dado 3: Episódio 3L (13/11/2013) – (1 ano e 7 meses depois). Contexto: Leitura em voz alta da crônica "A Princesa e o Sapo".


Dado 4: Episódio 4L (15/3/2014) (2 anos depois). Contexto: Leitura do texto informativo "A água no mundo".

Fala espontânea


Dado 5: Episódio 1F (5/4/2012). Contexto: Conversa sobre a manchete lida, referente ao estresse que as crianças sofrem por sobrecarga de atividades.


Dado 6: Episódio 2F (13/11/2013) (1 ano e 7 meses depois). Contexto: Conversa espontânea com as terapeutas, após um período de ausência na clínica. R fala como está no momento.


Dado 7: Episódio 2F (15/3/2014) (2 anos depois). Contexto: Conversa espontânea.

DISCUSSÃO

Por meio da análise dos quatro episódios de leitura, observou-se que a leitura de Roberta foi marcada por repetições e silabações, que, embora não sejam previsíveis quanto à sua ocorrência, mostram certa sistematicidade. Analisando com mais detalhes as repetições, percebe-se que elas constituem-se como disfluências frequentes na leitura e apresentaram as seguintes características(1111 . Ribeiro DC. Afasia progressiva primária: um estudo de caso [trabalho de conclusão de curso] Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2014.): a) Parte de palavras, como "cum cumprem", (episódio 1L T1), "li liberar", "gor (+) gordura", (episódio 2L, T8), "contem (+) contemplava", "na natureza", "be belo" (episódio 3L, T2), "tam também", "respei respeito", "meno (3.0) menores" (episódio 4L T2), dentre outras; b) Palavras inteiras, como "mundo (+) mundo" (episódio 1L, T1), "maravilhoso (+) maravilhoso", "era era", "construir (+) construir" (episódio 3L, T2), "vem vem" (episódio 4L, T2), dentre outras; c)Enunciados, como "diz o químico diz o químico" (episódio 2L, T8), "ela se deparou (+) ela se deparou", ", lavar as (+) lavar as" (episódio 3L, T2), "bem es (+) bem estar" (episódio 4L, T2), dentre outras.

As repetições de parte de palavra e palavra inteira foram as mais frequentes, com ocorrência ascendente, durante o curso de síndrome (Figura 1). Estes dois tipos de repetição são diretamente proporcionais ao tempo da APP, ou seja, quanto mais avançada é a síndrome, maior é ocorrência dessa disfluência.

Figura 1
Tipo de repetição em palavra

O ritmo de leitura de Roberta permaneceu inalterado nos dados, mas sua velocidade de leitura mostrou-se, perceptualmente, mais lenta nos episódios 3 e 4, do que nos episódios anteriores. Em todos os episódios observou-se grande número de pausas.

Verificou-se, também, que, se em 2012 as disfluências em palavras complexas e/ou irregulares ou enunciados com palavras complexas e/ou irregulares constituíram mais de 50% das ocorrências de disfluências, em 2014 não chegaram a 20% (Figura 2).

Figura 2
Tipo de palavra repetida

Em relação aos aspectos fonológicos, foi possível observar que as repetições ocorreram diante de fonemas com traço de anterioridade (+anterior), com predominância em fonemas de traço + consonantal, sonoro (Figura 3). Neste sentido, Roberta tendeu a apresentar maior dificuldade de elaboração em fonemas com esses traços, de maneira que, como veremos adiante, no discurso espontâneo, as ocorrências de parafasias também tenderam a ocorrer diante desse contexto fonológico.

Figura 3
Contexto fonológico de repetição

Com relação à fala espontânea, Roberta apresentou fala inteligível, mostrando que sua linguagem oral ainda está preservada. Relatou, com precisão, as atividades de sua neta e demonstrou fala bastante fluente no episódio 5. Nos episódios 6 e 7, notou-se, diferente do episódio 5, que Roberta apresentou dificuldades com a manutenção da fluência de fala, de maneira que lançou mão de pausas mais longas e de repetições, para conseguir elaborar seu enunciado. Exceto quanto às repetições de parte de palavra, como em "pa parei", no episódio 6, T5, as disfluências de Roberta, incluindo as pausas, não pareceram relacionar-se a um tipo de palavra, mas mostraram-se estar mais relacionadas à uma funcionalidade enunciativa, como estratégias linguísticas. A literatura tem categorizado esses aspectos como reparos prospectivos e retrospectivos, que evidenciam o esforço do falante na elaboração do que será dito(1212 . Barbosa BT. O fenômeno do reparo na fala. Veredas. 1999;4(1):91-109.): Reparos prospectivos de falha de memória (anomia), com pausas, como em "(3.0) ela::: comprou (+) comprou um aparelho pra (+) choquinho assim (+); Reparos retrospectivos de correção de parafasias, como em "nãonão estou falando (2.0), não não estou fazendo"; "troço tro trocaas palavras". Observou-se, ainda que, para manutenção da fluência, Roberta apoiou-se no enunciado do outro para construção do seu próprio enunciado (episódio 7F, turnos 17-18): (IV: e é difícil? R: ahã é difícil), recorrendo, por vezes, ao seu interlocutor.

Outra observação do ponto de vista qualitativo, que parece apontar para um quadro de agravamento, são as alterações das repetições. Diferente de 2012 e 2013, em 2014 a participante passou a repetir mais vezes a mesma parte de palavra, palavra inteira e a parte de enunciado, como, por exemplo, "ati ati ati atividades", "esco escos (+) escos escovamos", "líqui líqui líquidos", "cli cli climáticas", "nas nas nas" e "quando bebemos (+) quando (+) quando bebemos" (episódio 4L, T1). Observou-se que as disfluências ocorreram tanto em palavras regulares, quanto em palavras complexas e irregulares. Porém, a ocorrência das disfluências em enunciados com palavras complexas e/ou irregulares foram mais representativas nos primeiros episódios, constituindo mais de 50% das ocorrências de disfluências.

A análise qualitativa das habilidades de leitura e fala espontânea e dialógica de Roberta revelaram características de uma APPL já na fase inicial da doença(4. Espert E, Gadea M, Villalba A. Afasia progresiva primaria: 20 anos de história (1982-2002). In: II Internacional Congress of Neuropsychology in the Internet; 2003. [Acesso em: 30 maio 2014]. Disponível em: www.serviciodc.com./congreso/congress/pass/conferences/Espert.html
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). Além da lesão apresentada na neuroimagem, que condiz com a localização descrita na literatura - lesões no giro angular e nas primeiras circunvoluções temporais esquerdas(1313 . Assal F, Paquier CR. L'aphasie (primaire) progressive: un diagnostic simple ou complexe? Schweiz Arch Neurol Psychiatr. 2009;160(7):275-9.) -, Roberta exibiu fala com estrutura gramatical preservada, manutenção da compreensão de palavras isoladas e de frases preservadas, durante a conversação, na interação dialógica. Além disso, apresentou maior dificuldade em palavras longas, tanto na linguagem oral(7. Leyton C, Hodges JR. Towards a clearer definition of logopenic progressive aphasia. Curr Neurol Neurosci Rep. 2013;13(11):1-7. doi:10.1007/s11910-013-0396-6.), quanto na leitura, preferindo ler sílaba a sílaba, ao invés da palavra inteira. Da mesma forma, palavras menos cotidianas foram listadas entre as repetições e dificuldades de leitura(7. Leyton C, Hodges JR. Towards a clearer definition of logopenic progressive aphasia. Curr Neurol Neurosci Rep. 2013;13(11):1-7. doi:10.1007/s11910-013-0396-6.).

Os dados acima apontam que, a medida em que o quadro de Roberta avançava, durante os dois anos de diagnóstico, suas disfluências aumentaram e tenderam a ocorrer cada vez mais em palavras regulares, evidenciando uma degeneração progressiva do seu sistema linguístico, no que se refere à modalidade de leitura. Contudo, não podemos analisar a fala de Roberta apenas em termos de deficit. Acrescente-se, ainda, que as repetições e a silabação, ao mesmo tempo que evidenciaram essa deterioração da linguagem, revelaram um trabalho de Roberta sobre a língua. Neste sentido, ressaltamos o conceito de linguagem utilizado pela Neurolinguística Enunciativo-Discursiva(9. Coudry MIH, Freire FMP, Andrade MLF, Silva MA. Caminhos da neurolinguística discursiva: teorização e práticas com a linguagem. Campinas: Mercado das Letras; 2010.), que entende a linguagem como um trabalho entre os interlocutores para que se possa construir e interpretar sentidos. Roberta realizou um trabalho epilinguístico sobre a língua(1414 . Geraldi JW. Portos de passagem. 6th ed. São Paulo: Martins Fontes; 2013.), hesitando, reelaborando, negociando "gestos articulatórios" para a leitura e demonstrando, assim, a relação do sujeito com a própria linguagem. Roberta demonstrou manter a consciência de suas dificuldades, admitindo sua inabilidade em pronunciar algumas palavras. O aumento dessas dificuldades, contudo, não impediu que Roberta conseguisse compreender o texto, mas a colocou em um lugar de aprendiz, mas um aprendiz que "trabalha" sobre a língua, conforme suas próprias palavras: "parece que eu estou aprendendo a falar"(1515 . Santana AP, Berberian, AP, Martins DAF. Letramento e demência de Alzheimer. In: Moura H, Mota MB, Santana AP. Cognição, léxico e gramática. Florianópolis: Insular; 2012. p. 155-73.). Desta forma, observa-se que as disfluências de Roberta na fala evidenciaram, também, a função estratégica enunciativo-discursiva e demonstraram, na verdade, o seu trabalho epilinguístico sobre a língua. Por meio das disfluências, Roberta manteve seu fluxo enunciativo, fazendo-se entender ao outro(1111 . Ribeiro DC. Afasia progressiva primária: um estudo de caso [trabalho de conclusão de curso] Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2014.).

COMENTÁRIOS FINAIS

A análise longitudinal da Afasia Progressiva Logopênica, durante dois anos, permitiu observar modificação qualitativa e quantitativa nos sintomas, com aumento do número de repetições (na fala, escrita e leitura) e com alteração de sua forma de ocorrência (na leitura). Essas modificações parecem sugerir uma relação inversamente proporcional entre fluência de fala e avanço da doença, em que a fluência tende à deterioração. Esse cenário assume relevância na linguagem do sujeito, na medida que influencia na sua interação e seu papel social, pois quanto menos fluente é o discurso, mais essa condição afeta sua posição de falante.

Outro ponto que parece chamar mais a atenção nos deficits de linguagem são os aspectos relacionados à disfluência de fala. Essa disfluência manifesta-se por meio de repetições, anomias, pausas longas e frequentes e dificuldades de acesso lexical e fonológico (parafasias e permuta fonológica). Vista deste ângulo, a disfluência de fala, exprime mais do que uma baixa produtividade de palavras em espaço de tempo, revela um emaranhado de dificuldades e sintomas linguísticos que induzem o sujeito à uma fala disfluente e, ao mesmo tempo, revelam estratégias e condições para a continuidade da produção de fala, mesmo que com mais lentidão, já que ampliam o tempo de elaboração e reelaboração linguística. Neste sentido, esta pesquisa indica que entender a disfluência do sujeito com APPL pode ser primordial para a melhor compreensão da linguagem em funcionamento, sua avaliação e processo terapêutico.

REFERÊNCIAS

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  • Trabalho realizado no Curso de Fonoaudiologia, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Florianópolis (SC), Brasil, a partir do Trabalho de Conclusão de Curso de uma das autoras, intitulado Afasia Progressiva Primária: um estudo de caso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2015
  • Aceito
    17 Ago 2015
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