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Habilidades de processamento auditivo central e exame pericial de comparação de locutor

RESUMO

Objetivo

descrever quais são as habilidades auditivas do processamento auditivo central mais frequentes, relatadas por um grupo de especialistas para a realização do exame de Comparação de Locutor, tradicionalmente realizado por peritos forenses.

Métodos

estudo prospectivo, descritivo, com análise quantitativa e qualitativa. Os dados foram obtidos por meio de um consenso de especialistas. Participaram da reunião cinco fonoaudiólogos, sendo dois especialistas em audiologia, dois especialistas em voz e uma fonoaudióloga perita. A reunião foi realizada de forma virtual e síncrona, com duração de uma hora e 30 minutos. As tarefas realizadas durante o exame de Comparação de Locutor foram consideradas a partir de um protocolo disponível na literatura. As especialistas em fonoaudiologia receberam explicações a respeito de cada uma das tarefas e foram solicitadas a discutir sobre quais as habilidades do processamento auditivo central estariam envolvidas na execução de cada uma delas.

Resultados

sete habilidades foram consideradas na reunião dos especialistas como imprescindíveis para as tarefas realizadas no exame de Comparação de Locutor. A ordenação temporal foi a habilidade mais citada, podendo estar presente em seis tarefas, e a tarefa de transcrição do material de fala foi mencionada como sendo a que necessita de mais habilidades do processamento auditivo central.

Conclusão

Sete habilidades foram consideradas na reunião dos especialistas como imprescindíveis para as tarefas realizadas no exame de Comparação de Locutor. A ordenação temporal foi a habilidade mais citada, podendo estar presente em seis tarefas e a tarefa de transcrição do material de fala foi mencionada como sendo a que necessita de mais habilidades do processamento auditivo central

Palavras-chave:
Percepção auditiva; Fala; Percepção da fala; Reconhecimento de voz; Qualidade de voz

ABSTRACT

Purpose

to describe which abilities of central auditory processing are more frequently related for the group of specialists to the performance of the speaker comparison test (CL), traditionally performed by forensic experts.

Methods

a prospective, descriptive study with quantitative and qualitative analysis and data were obtained through a consensus of experts. Five speech therapists participated in the meeting, two specialists in audiology (EA), two specialists in voice (VS), and an expert speech therapist (FP). The meeting was held virtually and synchronously, lasting 1 hour and 30 minutes. The tasks performed during the Speaker Comparison (LC) exam were considered from a protocol available in the literature. The AEs received explanations about each of the tasks and were asked to discuss which auditory processing skills (ACP) would be involved in the performance of each of them.

Results

seven PAC skills were considered in the experts' meeting as essential for the tasks performed in the CL exam. Temporal ordering was the most cited skill, being present in six tasks, and the speech material transcription task is the one that requires more skills from the PAC.

Conclusion

Seven PAC skills were considered in the experts' meeting as essential for the tasks performed in the CL exam. Temporal ordering was the most cited skill, being present in six tasks, and the speech material transcription task is the one that requires more skills from the PAC.

Keywords:
Auditory perception; Speech; Speech perception; Voice recognition; Vocal quality

INTRODUÇÃO

A ciência forense é multidisciplinar e tem como papel principal fornecer informações baseadas em conhecimento técnico-científico especializado, com valor probatório em investigações judiciais(11 Haack S. Irreconcilable differences: the troubled marriage of Science and Law. Law Contemp Probl. 2009;7(1):1-23.,22 Velho JA, Geiser GC, Espindula A, editors. Ciências Forenses - Uma introdução às principais áreas da criminalística. 3. ed. Campinas: Millenium Editora; 2017. Cap. 1, Introdução às ciências forenses; p. 1-18.). Recentemente, o conhecimento em ciência forense tem sido de maior interesse para a fonoaudiologia, principalmente após o reconhecimento da perícia fonoaudiológica como uma das especialidades da profissão. Dentre os exames periciais em registros de áudio, destaca-se o exame de Comparação de Locutor (CL). Esta tarefa, considerada complexa, envolve a análise de materiais de fala com o objetivo de determinar se esses materiais advêm de um mesmo indivíduo(33 Gonçalves CS, Brescancini CR. Considerações sobre o papel da sociofonética na comparação forense de locutores. Language and Law/Linguagem e Direito. 2014;1(2):67-87.), a partir da análise de propriedades da voz/fala. O material de fala, geralmente, é dividido entre material questionado (MQ - aquele em que não se conhece a identidade do indivíduo) e material padrão (MP - aquele em que se conhece a identidade do indivíduo). Diversos desafios permeiam a realização desse exame, sendo o primeiro deles a diferença na coleta de cada material, visto que o MQ pode ser obtido em contextos adversos, com ruído ambiental excessivo ao fundo, ou por meio de gravação telefônica.

Entende-se que para a realização da CL são necessários conhecimentos técnicos avançados em áreas da linguística, como fonética acústica, articulatória, sociolinguística e da fonoaudiologia, como o julgamento perceptivo-auditivo da qualidade da voz. Estudo com peritos de todo o mundo revelou que a combinação de métodos (análise acústica, perceptivo-auditiva e automática) para a realização da tarefa de Comparação de Locutores é a mais utilizada(44 Gold E, French P. International practices in forensic speaker comparison. Int J Speech Lang Law. 2011;18(2):293-307. http://dx.doi.org/10.1558/ijsll.v18i2.293.
http://dx.doi.org/10.1558/ijsll.v18i2.29...
).

Tendo em vista que diversos procedimentos da análise acústica e do julgamento perceptivo-auditivo têm como premissa uma refinada análise auditiva do material, considera-se que a via auditiva pode ter grande relação com o desempenho dos peritos forenses ao realizar essa tarefa. Especificamente, as habilidades do processamento auditivo permitem que o sujeito reconheça e interprete as informações auditivas que recebe(55 Balen SA, Bretzke L, Mottecy CM, Liebel G, Boeno MRM, Gondim LMA. Resolução temporal de crianças: comparação entre audição normal, perda auditiva condutiva e distúrbio do processamento auditivo. Rev Bras Otorrinolaringol. 2009;75(1):123-9. https://doi.org/10.1590/S0034-72992009000100020.
https://doi.org/10.1590/S0034-7299200900...
), de forma que essas habilidades tornam-se imprescindíveis para a realização desses procedimentos de forma confiável. Até o presente momento, não foram encontrados estudos que busquem relacionar as habilidades auditivas com as atividades forenses, mais especificamente, a CL.

O objetivo desta comunicação foi descrever quais são as habilidades auditivas do processamento auditivo central (PAC) mais frequentes, relatadas por um grupo de especialistas para a realização do exame de Comparação de Locutor, tradicionalmente realizado por peritos forenses.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo prospectivo, descritivo, com análise quantitativa e qualitativa e os dados foram obtidos por meio de um consenso de especialistas. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal da Paraíba - UFPB, com o parecer nº 4.937.815/2021. Participaram da reunião cinco fonoaudiólogos, sendo dois especialistas em audiologia (EA), dois especialistas em voz (EV) e uma fonoaudióloga perita (FP). A composição da amostra foi realizada por conveniência e a inclusão dos EA se deu a partir da definição dos seguintes critérios: atuação clínica e no ensino na área de PAC há, pelo menos, dez anos, garantindo conhecimento avançado no tópico a ser discutido. Os participantes EV e FP não atuavam na área do PAC, mas tinham como critérios de inclusão a atuação nas áreas de voz (EV) e perícia (FP), assegurando, assim, diferentes olhares sobre o assunto a ser discutido. A temática e o objetivo de produzir o consenso foram apresentados previamente aos especialistas, por e-mail, junto com o convite para participação. A reunião, realizada de forma virtual e síncrona, foi gravada por um dos membros do grupo de especialistas e teve duração definida previamente de uma hora e 30 minutos. Não houve possibilidade de os participantes discutirem posteriormente o conteúdo da reunião. Todas os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

As tarefas realizadas durante o exame de Comparação de Locutor (CL) foram consideradas a partir de um protocolo disponível na literatura(66 Barbosa PA, coord. Análise Fonético-Forense em tarefa de comparação de locutor. Campinas: Millenium Editora; 2020. 192 p.) e divididas didaticamente em oito, após discussão entre a equipe de pesquisa (EV e FP), a saber: a) analisar, de forma preliminar, perceptivo-auditivamente o material de fala; b) avaliar a velocidade de fala; c) transcrever o material de fala; d) compreender um trecho de fala com ruído de fundo; e) avaliar a presença de sobreposição de vozes; f) comparar as propriedades acústicas de fonemas semelhantes; e) identificar fenômenos idiossincráticos; g) avaliar a qualidade vocal; h) avaliar aspectos prosódico-acústicos.

A seguir, as EA receberam explicações sobre cada uma das tarefas e foram solicitadas a discutir sobre quais as habilidades do processamento auditivo(77 ASHA: American Speech-Language-Hearing Association. (Central) auditory processing disorders — the role of the audiologist [Position Statement] [Internet]. 2005 [citado em 2022 Abr 5]. Disponível em: https://www.asha.org/policy
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) estariam envolvidas na execução de cada uma delas. Além disso, as especialistas também indicaram qual seria o treinamento necessário para desenvolver ou aprimorar tais habilidades. As respostas foram dadas em consenso pelas especialistas e, quando as opiniões divergiam, havia busca por consenso após discussão sobre o assunto. No entanto, não foram encontrados pontos de discordância que não pudessem ser resolvidos durante a reunião. As tarefas de CL foram apresentadas de forma detalhada pelos EV e pela FP antes do início da discussão, e dúvidas sobre os procedimentos das tarefas de Comparação de Locutor foram sanadas de forma imediata durante as discussões na reunião.

RESULTADOS

Os resultados indicaram que, a partir da opinião de todos os especialistas, 7 habilidades do PAC estão envolvidas nas tarefas de CL: fechamento, figura-fundo, resolução temporal, ordenação temporal, integração binaural, separação binaural e memória auditiva. A habilidade que mais frequentemente foi considerada nas diferentes tarefas foi a ordenação temporal (6 vezes). A tarefa que, segundo as especialistas, necessita de mais habilidades do PAC para a sua execução é a transcrição do material de fala (5 habilidades).

O Quadro 1 apresenta as tarefas do exame de CL e as habilidades do PAC relacionadas a elas.

Quadro 1
Tarefas do exame de Comparação de Locutor e as habilidades do processamento auditivo central relacionadas a elas

DISCUSSÃO

O exame de CL é considerado complexo, pois abrange a realização de diversos procedimentos que necessitam de conhecimento teórico/prático prévio em nível avançado, para a conclusão de suas diversas etapas de análise. Somada aos desafios intrínsecos aos do exame de CL, como a obtenção do material de fala, está a multidimensionalidade da voz, que pode ser afetada por diferentes aspectos durante sua produção, como os anatomofisiológicos e os psicossociais, tornando-a um fenômeno complexo e variável e que deve ser analisada de forma abrangente. A avaliação perceptiva é considerada o padrão-ouro de avaliação da voz e possibilita a identificação e quantificação das características vocais(88 Coelho AC, Medved DM, Brasolotto AG. Hearing loss and the voice. In: Bahmad F Jr, editor. Update on hearing loss. London: InTech; 2015. vol. 1, p. 103-28. http://dx.doi.org/10.5772/61217.
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,99 Behlau M, Madazio G, Oliveira G. Functional dysphonia: strategies to improve patient outcomes. Patient Relat Outcome Meas. 2015;6:243-53. http://dx.doi.org/10.2147/PROM.S68631. PMid:26664248.
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).

O conhecimento desses processos permite inferir que a informação auditiva é crucial para a análise da qualidade vocal e, consequentemente, para a realização do exame de CL. Assim, as habilidades auditivas podem ser consideradas como ponto-chave desse processo, contribuindo para a melhor execução do exame e para a produção de evidências mais qualificadas.

Oito habilidades auditivas são elencadas pela literatura atual(1010 Gielow I, Paoliello KBG, Faria D. Disfonia e processamento auditivo central. In: Lopes L, Moreti F, Ribeiro LL, Pereira EC. Fundamentos e atualidades em voz clínica. Rio de Janeiro: Thieme Revinter Publicações; 2019. p. 181-191.) e a opinião das especialistas evidenciou, neste estudo, que quase todas elas estão intrinsicamente relacionadas a diversos dos procedimentos envolvidos na CL, o que ressalta a importância do aprimoramento/treinamento dessas habilidades.

A transcrição do material de fala parece ser a etapa em que mais habilidades auditivas são recrutadas. Destaca-se que esta etapa é básica e fundamental a todo exame de CL. Falhas nesta etapa podem comprometer outras etapas do processo, pois implicam a consideração inadequada daquilo que se ouve com aquilo que se verifica em um espectrograma, por exemplo.

A ordenação temporal foi a habilidade auditiva que mais esteve presente nas diferentes tarefas analisadas, sendo descrita como importante para as tarefas de comparação da velocidade de fala entre o material questionado e o material padrão, transcrição fonográfica e/ou fonética, comparação das características acústico-articulatórias de um mesmo fonema produzido pelo locutor em diferentes contextos, identificação de fenômenos idiossincráticos, análise da qualidade vocal e análise dos parâmetros prosódico-acústicos das amostras analisadas. Essa habilidade envolve a percepção e o processamento de dois ou mais estímulos auditivos na ordem em que ocorrem no tempo e está relacionada à velocidade de processamento(77 ASHA: American Speech-Language-Hearing Association. (Central) auditory processing disorders — the role of the audiologist [Position Statement] [Internet]. 2005 [citado em 2022 Abr 5]. Disponível em: https://www.asha.org/policy
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). O julgamento perceptivo-auditivo da qualidade vocal, por exemplo, necessita da comparação de diferentes aspectos e da gradiência destes, por meio da detecção de elementos como rugosidade, soprosidade, tensão, mas também de pitch e loudness (1010 Gielow I, Paoliello KBG, Faria D. Disfonia e processamento auditivo central. In: Lopes L, Moreti F, Ribeiro LL, Pereira EC. Fundamentos e atualidades em voz clínica. Rio de Janeiro: Thieme Revinter Publicações; 2019. p. 181-191.).

Cabe destacar que, para os resultados da reunião de especialistas, não foram levantados aspectos referentes aos testes de PAC e suas padronizações. As respostas dessa reunião tiveram como base a experiência das especialistas que dela participaram e precisam de validação de outros especialistas, o que se pretende realizar na sequência deste estudo.

CONCLUSÃO

Sete habilidades do PAC foram consideradas na reunião dos especialistas como imprescindíveis para as tarefas realizadas no exame de CL. A ordenação temporal foi a habilidade mais citada, podendo estar presente em seis tarefas e a tarefa de transcrição do material de fala foi mencionada como sendo a que necessita de mais habilidades do PAC.

  • Trabalho realizado na Universidade Federal da Paraíba – UFPB – João Pessoa (PB), Brasil.
  • Financiamento: Nada a declarar.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Haack S. Irreconcilable differences: the troubled marriage of Science and Law. Law Contemp Probl. 2009;7(1):1-23.
  • 2
    Velho JA, Geiser GC, Espindula A, editors. Ciências Forenses - Uma introdução às principais áreas da criminalística. 3. ed. Campinas: Millenium Editora; 2017. Cap. 1, Introdução às ciências forenses; p. 1-18.
  • 3
    Gonçalves CS, Brescancini CR. Considerações sobre o papel da sociofonética na comparação forense de locutores. Language and Law/Linguagem e Direito. 2014;1(2):67-87.
  • 4
    Gold E, French P. International practices in forensic speaker comparison. Int J Speech Lang Law. 2011;18(2):293-307. http://dx.doi.org/10.1558/ijsll.v18i2.293
    » http://dx.doi.org/10.1558/ijsll.v18i2.293
  • 5
    Balen SA, Bretzke L, Mottecy CM, Liebel G, Boeno MRM, Gondim LMA. Resolução temporal de crianças: comparação entre audição normal, perda auditiva condutiva e distúrbio do processamento auditivo. Rev Bras Otorrinolaringol. 2009;75(1):123-9. https://doi.org/10.1590/S0034-72992009000100020
    » https://doi.org/10.1590/S0034-72992009000100020
  • 6
    Barbosa PA, coord. Análise Fonético-Forense em tarefa de comparação de locutor. Campinas: Millenium Editora; 2020. 192 p.
  • 7
    ASHA: American Speech-Language-Hearing Association. (Central) auditory processing disorders — the role of the audiologist [Position Statement] [Internet]. 2005 [citado em 2022 Abr 5]. Disponível em: https://www.asha.org/policy
    » https://www.asha.org/policy
  • 8
    Coelho AC, Medved DM, Brasolotto AG. Hearing loss and the voice. In: Bahmad F Jr, editor. Update on hearing loss. London: InTech; 2015. vol. 1, p. 103-28. http://dx.doi.org/10.5772/61217
    » http://dx.doi.org/10.5772/61217
  • 9
    Behlau M, Madazio G, Oliveira G. Functional dysphonia: strategies to improve patient outcomes. Patient Relat Outcome Meas. 2015;6:243-53. http://dx.doi.org/10.2147/PROM.S68631 PMid:26664248.
    » http://dx.doi.org/10.2147/PROM.S68631
  • 10
    Gielow I, Paoliello KBG, Faria D. Disfonia e processamento auditivo central. In: Lopes L, Moreti F, Ribeiro LL, Pereira EC. Fundamentos e atualidades em voz clínica. Rio de Janeiro: Thieme Revinter Publicações; 2019. p. 181-191.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2023
  • Aceito
    25 Out 2023
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