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DECOLONIZANDO O CONCEITO DE RECONHECIMENTO (EU-TU)

DECOLONIZING THE CONCEPT OF RECOGNITION (ME-YOU)

DECOLONIZANDO EL CONCEPTO DE RECONOCIMIENTO (YO-TÚ)

RESUMO

O presente estudo é uma análise crítica acerca da aplicação teórica e prática do psicodrama. Propõe novas elaborações ao repensar conceitos e práxis da socionomia que contribuam com o seu tema principal: a inclusão. Por isso, é apresentada a urgência em desconstruir o homem universal — cisgênero, heterossexual, branco, cristão — no movimento psicodramático para que todas as pessoas possam passar por um reconhecimento do eu e do tu de modo mais verdadeiro, sem as armadilhas impostas por uma branquitude colonizadora, produtora e reprodutora de uma realidade de expectativas e ideais que favorece a manutenção de seus privilégios.

PALAVRAS-CHAVE
Matriz de identidade; Conserva cultural colonial; Branquitude; Psicodrama

ABSTRACT

The present study is a critical analysis about the theoretical and practical application of Psychodrama. It proposes new elaborations by rethinking concepts and praxis of socionomy that contribute to its main theme: inclusion. Therefore, the urgency of deconstructing the universal man—cisgender, heterosexual, white, Christian—in the psychodramatic movement is presented, so that every person can go through the phases of self and other recognition in a genuine way, without the whiteness colonizing imposed traps, which produces and reproduces a white reality of expectations and ideals that favors the maintenance of its privileges.

KEYWORDS
Matrix of identity; Colonial culture conserve; Whiteness; Psychodrama

RESUMEN

El presente estudio es un análisis crítico sobre la aplicación teórica y práctica del Psicodrama. Propone nuevas elaboraciones repensando conceptos y praxis de la socionomía que contribuyen a su tema principal: la inclusión. Es así como hablo de la urgencia de deconstruir al hombre universal — cisgénero, heterosexual, blanco, cristiano — en el movimiento psicodramático, para así lograr que todas las personas puedan transitar por un verdadero reconocimiento del “yo” y del “tú”, sin las trampas que impone una blanquitud colonizadora, productor y reproductor de una realidad de expectativas e ideales que favorece el mantenimiento de sus privilegios.

PALABRAS CLAVE
Matriz de identidade; Conservación cultural colonial; Blancura; Psicodrama

PSICODRAMA E DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA

Ao se pensar em uma sociedade excludente, é possível percebê-la, fundamentada pela teoria psicodramática, adoecida como um todo, precisando de colo e cuidado. Interpretando Moreno, a patologia é originada pela carência de ações inclusivas, o que gera sofrimentos individuais e grupais despertados por esse lugar de ser e se sentir excluída(o). Sendo assim, não se pode pensar em uma pessoa adoecida isoladamente, e sim em relações sociais enfermas contribuindo para a angústia individual e coletiva.

A desigualdade social está diretamente relacionada à exclusão, porém ter maior ou menor poder aquisitivo não justifica ou finda essa situação, pois há variantes para que a desigualdade e a exclusão se consolidem. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2020). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2020. Estudos e pesquisas: informações demográficas e socioeconômicas. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101760.pdf. Acesso em: 28 jun. 2022.
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, o Brasil está entre os dez países mais desiguais do mundo. Desse modo, é possível considerar um grande abismo econômico dividindo determinados grupos de pessoas dentro de um mesmo contexto social.

Como a intenção é questionar a prática psicodramática, será que, no psicodrama, existem recursos suficientes para se atuar neste cenário de abismos que separam determinados grupos sociais? Quem são as(os) clientes que chegam à procura de um acolhimento? Há sintomas sociais interferindo no desenvolvimento de sua espontaneidade-criatividade? Como o psicodrama pode contribuir para essa análise social sem reproduzir o discurso hegemônico? É possível abdicar de um homem universal ou de conceitos universais para dar conta desse abismo que separa, exclui e mata? Mecanizar o trabalho no resgate da espontaneidade, criatividade e sensibilidade da(o) cliente sem considerar os sintomas sociais — gênero, classe, território, raça — que atravessam a sua vida, é medicar, naturalizar, controlar e alienar.

Naffah Neto (1979)Naffah Neto, A. (1979). Psicodrama: Descolonizando o imaginário. Brasiliense. faz crítica a Moreno por não ter apontado em suas contribuições teóricas a visão histórica e os determinantes econômicos e ideológicos da constituição e reprodução da sociedade de classes. O autor compreende que, para um projeto transformador das relações sociais, é necessário mudanças na infraestrutura econômica da sociedade.

Mesmo assim, Moreno criou uma teoria das relações humanas e uma microssociologia que pode ser sentida e analisada como um tipo de revolução, e que se potencializa quando absorve as contribuições marxistas (Nery, 2010Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: Caminho das relações humanas. (3. ed.). Ágora.). Para além das contribuições emancipacionistas, o psicodrama também aumenta sua potencialidade ao dedicar estudos e possibilidades de encontros com as teorias do feminismo negro e anticolonial.

A via dos afetos foi o terreno sociométrico fértil para o desenvolvimento de um novo nível de consciência política e social, e, de acordo com Nery (2010)Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: Caminho das relações humanas. (3. ed.). Ágora., Moreno priorizou a situação econômica e afetiva do grupo, não a situação econômica de classes.

Miseravelmente, subsistimos em uma sociedade capitalista que nos permitirá ter uma vida de maior ou menor qualidade a partir de nossa renda econômica. Tal reflexão não parte do critério de se uma pessoa se alimenta de modo saudável, por exemplo, mas se ela tem poder aquisitivo para a compra de alimento, roupa de frio ou pagar um aluguel. São questões básicas de sobrevivência que, dentro de uma perspectiva capitalista, somente são alcançadas pelo viés do financeiro.

Para complementar esta discussão, ou até mesmo a indignação, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) divulgou em janeiro de 2022 que R$ 5.997,14 é o valor ideal do salário mínimo necessário para pessoas brasileiras; esse valor é praticamente cinco vezes maior que o salário mínimo nominal, sendo atualmente R$ 1.212,00 (Pesquisa nacional..., 2022Pesquisa nacional de cesta básica de alimentos: Salário mínimo nominal e necessário. (2022). Dieese - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo. Acesso em: 20 fev. 2022.
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).

Há, também, os trabalhos informais em que, segundo dados de análise do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2020). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2020. Estudos e pesquisas: informações demográficas e socioeconômicas. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101760.pdf. Acesso em: 28 jun. 2022.
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do ano de 2019, a população preta e parda (47,4%) estava mais inserida em ocupações informais quando comparada à população branca (34,5%). O desemprego da população negra ou parda (13,6%) era maior que o da população branca (9,2%), ainda que possuam o mesmo nível escolar. Pessoas brancas ganhavam, em média, 69,3% mais que pessoas pretas ou pardas. Os 10% com maiores rendimentos são compostos por 70% da população branca, enquanto os 10% com menores rendimentos são compostos por 77% da população preta ou parda, possuindo o rendimento domiciliar per capita médio de R$ 112,00 (Campos, 2020Campos, A. C. (2020). Agenciabrasil.ebc.com.br. IBGE: informalidade atinge 41,6% dos trabalhadores do país em 2019: população preta ou parda estava mais inserida em ocupações informais. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-11/ibge-informalidade-atinge-416-dos-trabalhadores-no-pais-em-2019. Acesso em: 20 jul. 2021.
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).

A representação de pessoas negras como socialmente inferiores era uma situação real na ordem social de escravização. Quando essa ordem econômica e social é substituída pelo capitalismo, buscaram-se novos elementos para atribuir a essas pessoas qualidades negativas, com o objetivo de manter seu espaço de participação social nos mesmos limites estreitos da antiga ordem social (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (2. ed). Graal.).

O que vivemos na atualidade são conservas culturais coloniais impulsionando os racismos e etnocídios. A atualidade conservada promove o abismo econômico entre as pessoas e, atrelada à desigualdade social, está a desigualdade de raça e de gênero. Essas desigualdades vão além daquela(e) que recebe uma renda digna, mas de quem terá a oportunidade de acessar determinados espaços de poder, ou até mesmo o direito de se manter viva(o) por cobrar R$ 200,00 de diárias de trabalho não pagas (Coelho, 2022Coelho, H. (2022). Moïse foi morto após cobrar R$ 200 de diárias de trabalho não pagas, diz comissão da Alerj. G1 - O portal de notícias da Globo. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/02/01/moise-foi-morto-apos-cobrar-diarias-de-trabalho-nao-pagas-diz-comissao-da-alerj.ghtml. Acesso em: 7 mar. 2022.
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).

Neste momento, os questionamentos se transformam: como decolonizar a ação do método e da teoria psicodramática? Qual nosso nível de consciência social para nos despirmos de um trabalho colonizador, esse que medica e aliena? Será que nossa crítica nos permite confrontar a conserva cultural colonial que elabora o sofrimento de um(a) cliente ocasionado pelo racismo sem amordaçá-la/o como — apenas — uma crise de ansiedade? Conserva cultural colonial está sendo empregue para designar e nomear de onde partem e como trafegam algumas violências cristalizadas na nossa atualidade.

PSICODRAMA E O RECONHECIMENTO DO PRIVILÉGIO BRANCO

Souza (1983)Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (2. ed). Graal. discorre sobre a experiência de como tonar-se negro numa sociedade branca, de classe e ideologia dominantes brancas.

De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Esse olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica na decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos. (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (2. ed). Graal., p. 17)

Para a autora, a ascensão social de pessoas negras está relacionada à história da construção de sua emocionalidade. Ao serem tratadas como submissas, essas pessoas precisam se livrar de tudo aquilo que as definia econômica, política e socialmente como inferior. Por não possuírem outra concepção positiva de si mesmas, as pessoas negras foram obrigadas a ter o branco como modelo de identidade e de ascensão social.

A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior.

(Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (2. ed). Graal., p. 19)

Ascensão social é a mobilidade de um agente ou de um grupo social, possibilitando a mudança na sua classe social para outra socialmente considerada superior. Nesta análise, classe social está sendo entendida como a estratificação em termos de posição nos processos sociais de dominação, produção e ideologização. Não está sendo relacionada somente à instância econômica, mas também à relação dos agentes com o poder e com os valores éticos e estéticos (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (2. ed). Graal.).

Será que há uma produção científica psicodramática responsável em dar suporte para compreender o contexto social que se dá o desenvolvimento emocional-relacional das(os) clientes que não seja permeado por universalismos? Lembrando que esse contexto se caracteriza por ser excludente e arraigado por conservas culturais coloniais de ideologias e expectativas brancas. É de grande importância para a(o) psicodramatista questionar, individualmente ou coletivamente, sobre seu comprometimento ético, teórico, metodológico, político e social para que seja possível dar continuidade ao projeto psicodramático de inclusão iniciado por Moreno.

Questionar é experimentar o caos, dar espaço para o novo e para o desconforto. Quem se finda a atuar exclusivamente com o tripé do psicodrama de modo acrítico, escolhe o conforto, o medicamento, a opressão e a alienação. O conforto da(o) psicodramatista legitima o discurso hegemônico.

A construção do papel de psicodramatista passa por um ritual institucional e social. Há a existência de instituições que oficializam tais títulos. Frequentemente esses espaços formadores não se atinam em promover uma atuação crítica e firme na desconstrução de um discurso autoritário e de práticas automatizadas, e sim agindo como se nada estivesse acontecendo ao redor, reproduzindo uma atitude alienada e afastada (Merengué, 2020Merengué, D. (2020). Descolonizando o psicodrama: Clínica e política. In A. M. Dedomenico & D. Meregué (Eds.), Por uma vida espontânea e criadora: Psicodrama e política (pp. 37–59). Ágora.).

Segundo a análise crítica de Schucman (2012)Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. [Tese de Doutorado em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-21052012-154521/publico/schucman_corrigida.pdf. Acesso em: 8 ago. 2021.
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, a qual veste como uma luva para pensar a prática psicodramática, dentro da psicologia social, uma das contribuições que uma pessoa branca pode realizar pela e para a luta antirracista é denunciar os privilégios simbólicos e materiais que estão postos nessa identidade. Quando a autora caracteriza a sua produção acadêmica como um ato político, me inspiro a dizer o mesmo:

[...] dizer que me expor como também pertencente ao grupo opressor e denunciar o racismo que já foi parte de minha identidade e contra o qual hoje luto conscientemente para desconstruir é romper o silêncio chamado pela psicóloga Maria Aparecida Bento de “pacto narcísico” entre brancos, e que necessariamente se estrutura na negação do racismo e desresponsabilização pela sua manutenção.

(Schucman, 2012Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. [Tese de Doutorado em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-21052012-154521/publico/schucman_corrigida.pdf. Acesso em: 8 ago. 2021.
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, p. 13).

Durante os atendimentos, a questão do privilégio pode entrar como tema na clínica, e essa análise ser discutida e trocada com a(o) cliente, sendo ela(e) privilegiada(o) em determinado contexto ou não. Como Schucman (2012)Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. [Tese de Doutorado em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-21052012-154521/publico/schucman_corrigida.pdf. Acesso em: 8 ago. 2021.
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, escolher pela quebra do silêncio, e se recusar a se aliar ao pacto narcísico da branquitude na relação diretora-cliente, é, não (re)atualizar as ações de estruturas racistas da(o) paciente. Por quê romper o silêncio na clínica, ou em qualquer outro contexto envolvendo o psicodrama gera desconforto? Por que as preferências pelos finais felizes nas dramatizações? Pode ser que todas as repostas levem à um lugar semelhante. Tanto em supervisões, em congressos, em aulas, pode ser identificado colegas do movimento psicodramático afirmando que não há espaço na clínica para abordar a temática do machismo ou do racismo.

Mesmo em atendimentos com pessoas não brancas, o pacto narcísico pode ocorrer. O(a) diretor(a) atua conservado(a) nas lógicas do grupo opressor, reproduzindo o discurso hegemônico e realizando uma direção nivelada. No primeiro caso, a aliança ocorre entre psicodramatista e cliente — excluindo/inferiorizando os não brancos, e, na segunda análise, a aliança se dá entre psicodramatista e pessoas brancas. Neste último caso, a pessoa assistida permanece sendo excluída mesmo estando em configuração terapêutica bipessoal ou grupal. É importante ressaltar que a reflexão está sendo feita a partir do papel de direção de pessoas brancas. Também é possível refletir acerca da imaturidade emocional do(a) diretor(a), o(a) qual é incapaz de realizar o reconhecimento do tu, aprisionada no seu “euísmo” narcísico.

UNIVERSALISMOS E O SUFOCAMENTO DE EXISTÊNCIAS

A psicanalista Souza (1983)Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (2. ed). Graal. refere-se ao Ideal de Ego do negro como sendo um Ideal de Ego branco. Segundo a autora, o negro é aquele que nasce e sobrevive mergulhado numa ideologia que lhe é exigida pelo branco como ideal a ser alcançado, e que passa a lutar para desempenhar esse modelo. Quando questiona como se constrói o Ideal de Ego do negro, tal indagação leva ao seguinte questionamento: como se dá o desenvolvimento emocional — matriz de identidade — de pessoas não brancas em uma realidade de ideologia branca? Sendo possível acrescentar: de ideologia cis-heteronormativa e branca.

Malaquias (2020)Malaquias, M. C. (2020). Psicodrama e relações étnico-raciais: Diálogos e reflexões. Ágora., preocupada com a responsabilidade prática-teórica psicodramática acerca das relações raciais, reflete em sua escrita Psicodrama e Negritude no Brasil que as experiências de grupoterapia viabilizadas pelo Teatro Experimental do Negro favoreceram um espaço de catarse e reflexão das sequelas de um passado escravizado. Conforme a autora, dessas raízes, encontram-se vivências da falta de um lugar próprio e de uma identidade negra fragmentada devido a uma história de não existência — da(o) negra(o) — como pessoa.

Para Fonseca (2008)Fonseca, J. S. (2008). Psicodrama da Loucura: Correlações entre Buber e Moreno. (7 ed.). Ágora., as psicoterapias constituem-se em instrumentos coadjuvantes do processo de reconhecimento do eu — para os não psicodramatistas, o reconhecimento do eu é uma fase do desenvolvimento emocional e relacional da criança.

Todos sabem que a criança diante do espelho, em uma fase mais precoce, não se reconhece: é o nenê, indefinido. Mais tarde toma consciência de que a imagem refletida é ela mesma, reconhece-se. Passa a desempenhar seu próprio papel, existe como individualidade. Sente-se o centro do mundo. Você pode perceber que uma criança que ainda não se reconheceu como indivíduo usa a terceira pessoa (ele ou ela) para referir-se a si mesma. Assim o fazem, também, alguns povos primitivos. Constantemente o homem está nesse processo de autoconhecimento, que nunca chega totalmente ao seu fim, pois é inesgotável

(Fonseca, 2008Fonseca, J. S. (2008). Psicodrama da Loucura: Correlações entre Buber e Moreno. (7 ed.). Ágora., pp. 120-121).

Que se torne possível, neste momento, refletir acerca do descuido sobre universalizar a categoria de gênero homem, ou até mesmo incluir todas as pessoas dentro desse homem universal — o que não deixa de ser parte da herança machista e colonial. Almeida (1988)Almeida, W. C. (1988). Psicoterapia aberta: Formas do encontro. (2 ed.). Ágora. lembra que — dentro de uma compreensão fenomenológica — não é concebível enquadrar o homem concreto e singular em classificações, categorias e modelos teóricos generalizados; Kilomba (2019)Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., que a utilização do masculino genérico para designar a humanidade reduz automaticamente a existência de mulheres à não existência; e Fanon (2020)Fanon, F. (2020). Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu Editora., no seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, discorre — dolorosamente — no que se refere aos abismos existentes entre o homem cisgênero negro do homem cisgênero branco, separados pelas dessemelhanças sociais, culturais, políticas, étnicas, econômicas e psicológicas.

“Assim o fazem, também, alguns povos primitivos” (Fonseca, 2008Fonseca, J. S. (2008). Psicodrama da Loucura: Correlações entre Buber e Moreno. (7 ed.). Ágora., p. 120), associar os povos originários ao desenvolvimento emocional de uma criança, reforça o dessaber colonial no imaginário coletivo (relações transferenciais e coinconscientes). Além de uma possível brecha para a interpretação de uma cultura infantilizada, entende-se também que tais povos precisam evoluir ou civilizar-se, do mesmo modo como ensinaram as escolas, novelas, propagandas, discursos e projetos de políticos colonialistas. Segue-se o etnocídio epistêmico cometido pela conserva cultural colonial, a de resumir 305 etnias brasileiras em uma única narrativa, tendo como o originador dessa história de apagamento o homem, colono, branco, cisgênero, heterossexual e cristão. Para Kilomba (2019)Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., o racismo opera por meio discursivo, em uma cadeia de palavras e imagens que, por associação, tornam-se equivalentes: africano-África-selva-selvagem-primitivo-inferior-animal-macaco.

De acordo com o professor Kununimi Guyra Morantin, um dos únicos professores indígenas da rede estadual de São Paulo, é necessário desconstruir os estereótipos coloniais que recaem sobre a vida dos povos originários. Relata sobre a maioria dos colégios seguirem tratando a questão indígena da mesma maneira como ele aprendeu há décadas: um modelo romantizado, do “índio” morador da floresta, pelado, que se pinta de tinta guache e com uma peninha na cabeça (Marques, 2019Marques, J. (2019). Dia do Índio precisa desfazer rótulos, diz professor indígena de SP. Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/dia-do-indio-precisa-desfazer-rotulos-diz-professor-indigena-de-sp.shtml#:~:text=Ainda%20segundo%20o%20professor%2C%20cujo,que%20recaem%20sobre%20os%20%C3%ADndios. Acesso em: 8 ago. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
).

Segundo relato do professor supracitado:

Temos 305 etnias indígenas no Brasil. São 305 povos, totalmente desconhecidos, a serem apresentados aos alunos. Temos a literatura, a mitologia, a história de criação, o grafismo, as 274 línguas. A escola precisa passar a ter uma metodologia com mais sintonia com a realidade do povo índio hoje, que luta para existir no país que ele mesmo construiu.

(Marques, 2019Marques, J. (2019). Dia do Índio precisa desfazer rótulos, diz professor indígena de SP. Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/dia-do-indio-precisa-desfazer-rotulos-diz-professor-indigena-de-sp.shtml#:~:text=Ainda%20segundo%20o%20professor%2C%20cujo,que%20recaem%20sobre%20os%20%C3%ADndios. Acesso em: 8 ago. 2021.
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, para. 3)

Para a professora Inaye Gomes Lopes — guarani-kaiowá — reconhecer sua cultura e sua história nos conteúdos curriculares é uma questão central para os povos originários. “Há uma lacuna enorme na nossa formação. A gente sabe tudo sobre a Europa e nada sobre o que aconteceu na América antes dos karaí” (Castro, 2019Castro, T. (2019). A educação pelo olhar guarani. Cenpec. Disponível em: https://www.cenpec.org.br/. Acesso em: 8 ago. 2021.
https://www.cenpec.org.br/...
, para. 23). Karaí significa não indígena na variante kaiowá da língua guarani.

Temos que nos assumir mais como povo, como nação. Escrever, ensinar, educar com olhar mais brasileiro, mais indígena, mais negro. Somos nós que vamos dar esse tom. Tem hora que me vejo colonizando meus alunos. É importante observar isso.

(Castro, 2019Castro, T. (2019). A educação pelo olhar guarani. Cenpec. Disponível em: https://www.cenpec.org.br/. Acesso em: 8 ago. 2021.
https://www.cenpec.org.br/...
, para. 20)

No parágrafo anterior é apresentado o relato do educador Anastácio Peralta envolvendo educação e saberes indígenas, professor guarani-kaiowá e coordenador de Assuntos Indígenas da Prefeitura de Dourados (MS).

Este trabalho é enriquecido com contribuições de professores indígenas para demonstrar a complexidade de certos conceitos, dentro das ciências humanas, serem partilhados por tamanho único. Carecemos de tamanhos e cores diferentes, precisamos nos reconhecer e reconhecer o outro de verdade, não a partir do meu espelho e da história etnocida, machista e racista que nos foi contada.

ESCURECER — E DIVERSIFICAR — A MATRIZ DE IDENTIDADE

O presente artigo tem a intenção de semear novas perspectivas de desenvolvimento emocional para o psicodrama, para que o torne mais inclusivo e imerso em reflexões críticas e decoloniais. É desfrutado da tele e da sensibilidade para dar forma a esse corpo-escrito que nasce de inquietações.

Contavam que (quando era pequena) falava muito sozinha, tinha amigos invisíveis, falava muito na frente do espelho: era uma sensação de me sentir, de me reconhecer, de identidade minha. Falava comigo mesma, me achava muito feia, me identificava como uma menina negra, diferente: não tinha nenhuma menina como eu. Todas as meninas tinham o cabelo liso, o nariz fino. Minha mãe mandava eu botar pregador de roupa no nariz pra ficar menos chato. Depois eu fui sentindo que aquele negócio de olhar no espelho era uma coisa ruim. Um dia eu me percebi com medo de mim no espelho! Tive uma crise de pavor. Foi terrível. Fiquei um tempo grande assim: não podia me olhar no espelho com medo de reviver aquela sensação (Luísa).

(Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (2. ed). Graal., p. 35)

Gonçalves (2021)Gonçalves, J. F. (2021). Racismo e asfixia: A respiração de combate de Frantz Fanon, Eric Garner e George Floyd. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/racismo-e-asfixia/. Acesso em: 7 mar. 2022.
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reflete que, para Fanon, os efeitos do racismo causam no negro um desvio existencial, sentimento de inferioridade e sentimento de inexistência; a compreensão de mundo racista e colonial nega a própria existência dos negros. Para exemplificar, o jornalista elucida as próprias palavras do psicanalista:

Qualquer ontologia se torna irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada. ... A ontologia, quando se admite de uma vez por todas que ela deixa de lado a existência, não nos permite compreender o ser negro. Pois o negro uma vez colonizado já não precisa ser negro, mas precisa sê-lo diante do branco. ... O negro não tem resistência ontológica aos olhos do branco.

(Gonçalves, 2021Gonçalves, J. F. (2021). Racismo e asfixia: A respiração de combate de Frantz Fanon, Eric Garner e George Floyd. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/racismo-e-asfixia/. Acesso em: 7 mar. 2022.
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, p. 57)

Em uma vivência marcada pelo racismo e pela herança colonial, Fanon (2020)Fanon, F. (2020). Pele Negra, Máscaras Brancas. Ubu Editora. denuncia que o negro se define absolutamente em relação ao branco, mas a recíproca não é verdadeira, pois o branco não precisa se definir em relação ao negro. O psicanalista, ainda segundo Gonçalves (2021)Gonçalves, J. F. (2021). Racismo e asfixia: A respiração de combate de Frantz Fanon, Eric Garner e George Floyd. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/racismo-e-asfixia/. Acesso em: 7 mar. 2022.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/r...
, movimenta a experiência vivida do negro contrária à filosofia hegeliana — a qual cada ser é definido pelo reconhecimento que recebe do outro ser. Fanon, em Gonçalves (2021)Gonçalves, J. F. (2021). Racismo e asfixia: A respiração de combate de Frantz Fanon, Eric Garner e George Floyd. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/racismo-e-asfixia/. Acesso em: 7 mar. 2022.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/r...
, manifesta que a reciprocidade do reconhecimento foi destruída e impossibilitada pela nefasta história do colonialismo e do racismo.

[Quando eu era criança] quando pessoas negras olhavam para mim, eu sabia que tinha algo a ver com elas, mas não queria porque eu não queria ser vista como uma Neger, como elas eram. Eu pensava que havia algo muito errado com isso. Havia todas essas imagens terríveis de pessoas negras nos livros, por exemplo… ou na televisão, nas notícias, nos jornais, basicamente em todos os lugares. Em toda parte… Ainda hoje, isso é tão… Então, quando criança eu não queria ser como elas e, ao mesmo tempo, eu era uma delas, e eu sabia disso. Uma situação difícil… (Alicia).

(Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., p.152).

Segundo Kilomba (2019)Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., essa passagem retrata a luta à qual as pessoas negras são submetidas, uma luta para se identificar com o que se é, mas não como se é visto no mundo ideológico branco — uma ameaça. Alicia, quando criança, tinha medo de reconhecer as outras pessoas negras, não por causa do que elas eram, negras, mas por como a negritude era reconhecida no mundo fantasioso do branco. Para a autora, a criança é forçada a criar uma concepção alienada com a negritude, e apenas imagens positivas — não idealizadas — da negritude construídas pelo próprio povo negro, na cultura visual e na literatura, poderão descontruir essa alienação. Em contrapartida, crianças crescem com a mensagem de que a branquitude é tanto a norma quanto superior (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó.).

... Eu morava no Alto Pinheiros, era o colégio dominicano, até um colégio muito bom. E tinha as freiras elas davam aula pras crianças e as mães de uma favela, exatamente em cima do colégio, que era um terreno grande ali no Alto de Pinheiros. Então, as mães chegavam de carro com as suas branquinhas, bonitinhas, e as outras mães com os pretinhos da favela, ficavam alinhadas fora da escola com as crianças, esperando; porque depois que entravam as brancas, as freiras davam de comer, ofereciam prato de comida também pras faveladas. Então eu me lembro disso, nunca mais vou esquecer… Bianca minha filha, dois anos e meio, disse: “mãe, que que é essa gente ai?” Eu disse: “ah, minha filha, essa gente mora ali naquelas casinhas feias, e as freiras fazem uma coisa muito bonita: dão aula pras crianças aprenderem a ler e escrever, ensinam as mães a cozinhar, trabalhar, pra elas poderem ter uma condição de sair dessas casas e morar de um jeito melhor.” Então ela ouviu e: “Mãe, como é que é? Então, eles estudam, eles começam a trabalhar e ai melhora. E ai vão fazer casas de tijolos…e vai fazendo a casa assim, a parede vai subindo, e quando chegar no telhado, eles já ficaram brancos?

(Schucman, 2012Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. [Tese de Doutorado em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-21052012-154521/publico/schucman_corrigida.pdf. Acesso em: 8 ago. 2021.
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, p. 96).

A partir da análise de Schucman (2012)Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. [Tese de Doutorado em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo]. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-21052012-154521/publico/schucman_corrigida.pdf. Acesso em: 8 ago. 2021.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, a narrativa da criança acerca da possível mudança de cor de uma pessoa negra apresenta que, para além das condições socioeconômicas de ascensão social, ainda faltará à pessoa negra o efeito da branquitude. Desse modo, a classe não pode ser o único diferenciador de desigualdades quando se trata de brancos e não brancos. Também é possível identificar o racismo discursivo na qual segue-se as cadeias de associações de palavra como: branco-dinheiro-beleza-casa-superioridade e negro-pobre-feiura-favela-inferioridade. O que faz com que a criança esteja impossibilitada de realizar o reconhecimento do tu, de modo real, é o racismo, e o comportamento sócio-histórico-cultural de que pessoas brancas permaneçam se relacionando e compreendendo o mundo baseado em sua imagem-espelho-euísmo-narcisismo.

Para Kilomba (2019)Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., existe uma corrente de mecanismos de defesa do ego, primeiramente apresentado por Paul Gilroy, pelos quais pessoas brancas passam para, enfim, tornarem-se conscientes de sua própria branquitude e perpetuantes do racismo: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação. A negação funciona de modo inconsciente para a resolução de conflitos emocionais por meio da recusa em admitir os aspectos mais desagradáveis da realidade externa. A recusa de reconhecer a verdade — negação — é seguida por dois outros mecanismos de defesa: cisão e projeção. Desse modo, a pessoa nega que ela(e) possua tais sentimentos, vivências ou pensamentos, afirmando que “outra” pessoa os tenha. Exemplo: “Eu não sou racista”. Após a negação vem a culpa, sendo um estado emocional com que a pessoa vivencia o conflito de ter feito algo que acredita ser “errado” ou que não deveria ser feito. Nessa fase, a pessoa está preocupada com as consequências. A vergonha é o medo do ridículo, opera quando ela falha em alcançar um ideal de comportamento estabelecido por si mesma.

Segundo Kilomba (2019)Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., o sujeito branco toma consciência de que a percepção das pessoas negras acerca da branquitude pode ser diferente de suas percepções de si mesmo; conforme a branquitude é compreendida como um grupo privilegiado, a vergonha pode ser o resultado desse conflito. O reconhecimento ocorre no momento em que o sujeito branco reconhece a sua branquitude e/ou seu racismo. É quando finalmente a pessoa reconhece a realidade de seu racismo ao aceitar a percepção e a realidade de “outras(os)”. Esta fase é a passagem da fantasia para a realidade, é nos compreender e compreender as(os) “outras(os)” como realmente são. A fase da reparação pode ser entendida como a negociação do reconhecimento, sendo o ato de reparar o mal causado pelo racismo por meio da mudança de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário; em outras palavras, por meio do abandono dos privilégios.

Segundo Kilomba (2019)Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó., as fases descritas acima apresentam a consciência sobre o racismo como um processo psicológico que exige trabalho, pois mesmo no nível adulto, para os não negros, todas as pessoas negras são consideradas idênticas — a(o) negra(o) (Malaquias, 2004Malaquias, M. C. (2004) Revisitando a africanidade brasileira: Do teatro experimental do negro, de Abdias do Nascimento ao protocolo negro-branco, de Moreno. [Monografia, Sociedade de Psicodrama de São Paulo].).

Malaquias (2004)Malaquias, M. C. (2004) Revisitando a africanidade brasileira: Do teatro experimental do negro, de Abdias do Nascimento ao protocolo negro-branco, de Moreno. [Monografia, Sociedade de Psicodrama de São Paulo]. é uma referência psicodramática que se dedicou em ampliar a compreensão a respeito do protocolo negro-branco demonstrado por Moreno, no qual, a partir de uma dramatização, a personagem “Sra. Branca” tratou os Cowleys — uma família negra — como se todos os negros fossem iguais. A partir desse recorte, torna-se evidente o processo de identificação subjetiva (projeção de um sentimento ou pensamento, geralmente irreal, em outra pessoa) descrita por Moreno. A identificação subjetiva também pode ser verificada coexistente às relações transferenciais e/ou estruturadas por manifestações racistas.

Amparado às contribuições de Malaquias (2004)Malaquias, M. C. (2004) Revisitando a africanidade brasileira: Do teatro experimental do negro, de Abdias do Nascimento ao protocolo negro-branco, de Moreno. [Monografia, Sociedade de Psicodrama de São Paulo]., pode-se perceber a identificação subjetiva apresentada no parágrafo superior como também coexistente ao pacto narcísico da branquitude — uma realidade fantasiosa, sustentada pela sensação de superioridade das pessoas brancas. Por isso, a importância de uma teoria, metodologia, formações e direções comprometidas com a cocriação de relações télicas, é por meio da tele que serão alcançadas as experiências reais no plano individual e coletivo; contribuindo, assim, para construções de identificação objetiva, no qual teremos a compreensão real de uma vivência ou de um sentimento, e que seremos capazes de reconhecer e reparar, de alguma maneira, o racismo.

DECOLONIZANDO O CONCEITO DE RECONHECIMENTO (EU-TU)

Para Fonseca (2008)Fonseca, J. S. (2008). Psicodrama da Loucura: Correlações entre Buber e Moreno. (7 ed.). Ágora., o reconhecimento do tu, embora diferente do reconhecimento do eu por questões didáticas, são fases-conceitos que pertencem ao mesmo processo. Simultaneamente, quem está se reconhecendo como pessoa está também no processo de reconhecer o outro, identificando o tu. Nesta fase, a pessoa estaria descobrindo o corpo do outro, comparando as anatomias e se questionando do porquê das diferenças.

Realizando uma análise macrossociológica e socionômica, ao ampliar as contribuições de Fonseca (2008)Fonseca, J. S. (2008). Psicodrama da Loucura: Correlações entre Buber e Moreno. (7 ed.). Ágora., pode-se refletir acerca de uma branquitude de desenvolvimento emocional imaturo, aprisionada em seu euísmo por não reconhecer a pessoa negra fora do seu espelho constituído por estéticas e expectativas de uma realidade exclusivamente branca (e cis-heteronormativa). Por esse motivo, a importância de se escurecer — e diversificar — a matriz de identidade, em outras palavras, repensá-la de modo que a torne mais inclusiva e didática, reconhecendo e reparando as conservas culturais coloniais que excluem as pessoas não brancas — não cisgênero, não cristãs e não heteronormativas.

Por um reconhecimento do eu verdadeiro, no qual nós, pessoas brancas, possamos reconhecer os nossos privilégios, a nossa branquitude e abdicar deste lugar de colonizadoras(es) — na clínica, academia, escola, hospital etc. É por esse caminho que nos lançamos à possibilidade de experienciarmos o encontro cósmico, e, segundo Moreno, precisamos nos familiarizar com o “verdadeiro papel vital de uma família negra, não intelectualmente, não só como vizinhos, mas também num sentido psicodramático, vivendo-o e elaborando-o conjuntamente neste palco.” (Moreno, 1975, citado em Malaquias, 2004Malaquias, M. C. (2004) Revisitando a africanidade brasileira: Do teatro experimental do negro, de Abdias do Nascimento ao protocolo negro-branco, de Moreno. [Monografia, Sociedade de Psicodrama de São Paulo]., p. 444).

Ao reconhecermos nossa branquitude, estaremos aptos a reconhecer a negritude ou aquela(e) que se difere do nosso mundo de privilégio branco. Quebrar nosso espelho nos tornará mais competentes para estarmos trabalhando, ou nos relacionando de maneira geral, com as pessoas não brancas.

Desse modo, pode-se compreender a importância de se trabalhar o processo de reconhecimento da branquitude e da negritude, como inseparáveis ao processo de reconhecimento do eu e do tu. Essa afirmação é sustentada a partir da coparticipação de Malaquias (2004)Malaquias, M. C. (2004) Revisitando a africanidade brasileira: Do teatro experimental do negro, de Abdias do Nascimento ao protocolo negro-branco, de Moreno. [Monografia, Sociedade de Psicodrama de São Paulo]., a qual aponta que pessoas negras passaram a perceber que, a saída da situação de colonizado seria a retomada de si mesmo. Essa retomada é compreendida pela “aceitação de sua herança sócio-cultural que, de antemão, deixaria de ser considerada inferior. A esse retorno chamamos negritude”, que “enquanto movimento, a negritude desempenhou historicamente seu papel emancipador” (Mungaga, 1986, citado em Malaquias, 2004Malaquias, M. C. (2004) Revisitando a africanidade brasileira: Do teatro experimental do negro, de Abdias do Nascimento ao protocolo negro-branco, de Moreno. [Monografia, Sociedade de Psicodrama de São Paulo]., p. 6).

Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas, é também e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.

(Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (2. ed). Graal., pp. 17-18)

O questionamento do conceito de reconhecimento atravessado pelo pensamento decolonial emerge a partir da identificação de um mundo contemporâneo que opera a partir de projetos colonialistas — conserva cultural colonial —, nos quais se expandem para os mais variados campos (subjetivos e objetivos) de construção. “Uma vez que a máscara da modernidade é retirada e a lógica da colonialidade aparece por de trás dela, entram em cena as respostas decoloniais” (Damázio, 2011, p. 108, citado em Squeff et al., 2021Squeff, T. C.; Corrêa, B. G.; Santos, A. V. C. (2021). O reconhecimento dos povos originários no Brasil: Uma abordagem decolonial. In P. H. B. Rocha, J. L. Q. Magalhães & S. G. Teixeira (Orgs.), Decolonialidade a partir do Brasil (pp. 126–138). Dialética.). E, segundo Mignolo (2008), referenciado por Squeff et al. (2021)Squeff, T. C.; Corrêa, B. G.; Santos, A. V. C. (2021). O reconhecimento dos povos originários no Brasil: Uma abordagem decolonial. In P. H. B. Rocha, J. L. Q. Magalhães & S. G. Teixeira (Orgs.), Decolonialidade a partir do Brasil (pp. 126–138). Dialética., é com base nessa transformação que o pensamento decolonial pode ser compreendido como um movimento de resistência à lógica da colonialidade/modernidade, seria o aprender a desaprender.

São mais de 500 anos com a epistemologia ocidental dominando as maneiras de conhecer e conceber o mundo. Por esse conhecimento ser considerado como o único validável, anula outras formas de saberes e de conhecimento - estando presentes em todas as áreas de instituições da sociedade. Superar a hegemonia do pensamento e da matriz colonial, é um trabalho difícil, é romper com as conservas culturais coloniais para passar a compreender a atualidade a partir da necessidade de “práticas interculturais e híbridas para superar os resultados universalistas introduzidos pela modernidade” (Squeff, Corrêa e Santos, 2021Squeff, T. C.; Corrêa, B. G.; Santos, A. V. C. (2021). O reconhecimento dos povos originários no Brasil: Uma abordagem decolonial. In P. H. B. Rocha, J. L. Q. Magalhães & S. G. Teixeira (Orgs.), Decolonialidade a partir do Brasil (pp. 126–138). Dialética., p. 135).

Deste modo, pode-se compreender o trabalho de inclusão da perspectiva decolonial – a qual está veementemente empenhada na inclusão da cosmovisão dos povos originários - aproximando-se do pensamento moreniano, pois; as correntes filosóficas se encontram pelo trabalho de inclusão dos demais agentes históricos – aquelas/es que tiveram sua espontaneidade-criatividade impedida e a sua narrativa sufocada (Squeff, Corrêa e Santos, 2021Squeff, T. C.; Corrêa, B. G.; Santos, A. V. C. (2021). O reconhecimento dos povos originários no Brasil: Uma abordagem decolonial. In P. H. B. Rocha, J. L. Q. Magalhães & S. G. Teixeira (Orgs.), Decolonialidade a partir do Brasil (pp. 126–138). Dialética.).

CONCLUSÃO

Para finalizar, essa trajetória é percorrida na tentativa de contribuir para que a teoria-metodológica psicodramática nos proporcione um maior amparo para atuarmos dentro de uma realidade de tamanha diversidade. Para que sejamos leais ao projeto de inclusão moreniano, ressignificando, escurecendo o psicodrama e, para alguns, abdicando do conforto do exercício (de poder!) da prática. Mas, também, com o propósito genuíno de gerar questionamentos, como as inquietações apresentadas ao longo desta escrita, para semear novas contribuições.

O corpo da branquitude psicodramática que escolhe se ausentar dos debates e estudos acerca das relações etnorraciais, é o mesmo corpo que provocou a fala “I can’t breath” emitida pelas vítimas de sufocamento Garner e Floyd, sendo “uma frase poderosa por se situar num lugar indefinível entre a vida e a morte, entre a asfixia e a respiração, entre a metonímia e a metáfora, entre a opressão física e a opressão social” (Gonçalves, 2021Gonçalves, J. F. (2021). Racismo e asfixia: A respiração de combate de Frantz Fanon, Eric Garner e George Floyd. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/racismo-e-asfixia/. Acesso em: 7 mar. 2022.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/r...
, p. 57). Essa direção leviana, atua reproduzindo abruptamente a zona liminar fanoniana entre a existência e a não existência, entre o ser e o não ser, entre a asfixia e a respiração da pessoa não branca em consultórios, formações, escolas, empresas ou espaços públicos.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Nenhum conjunto de dados foi gerado ou analisado durante o estudo atual.
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editora de seção: Luzia Lima-Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2022
  • Aceito
    07 Jun 2022
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