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“EU E MEU MUNDO”: OFICINA COM PESSOAS QUE VIVEM COM HIV/AIDS

“I AND MY WORLD”: WORKSHOP WITH PEOPLE LIVE WITH HIV/AIDS

“YO Y MI MUNDO”: TALLER CON PERSONAS QUE VIVEN CON VIH/SIDA

RESUMO

Relata-se oficina com oito pacientes soropositivos, instados a representarem seu mundo utilizando objetos intermediários, com o objetivo de ensejar a representação, a observação e a contemplação, fora de si, do seu mundo. Os resultados apontam o benéfico uso da metodologia psicodramática, propiciando a emersão de sentimentos, emoções e sua tratativa, numa oportunidade vivencial coletiva, entre companheiros de uma luta orgânica e social. Indubitavelmente, o psicodrama favoreceu o fortalecimento das relações interpessoais, o atingimento dos objetivos da oficina e o prosseguimento, com firmeza, do seu uso.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; HIV

ABSTRACT

This article reports a workshop with eight HIV-positive patients, who were asked to represent their world using intermediate objects, with the objective of encouraging the representation, observation and contemplation, outside of themselves, of their world. The results point to the beneficial use of psychodramatic methodology, propitiating the emergence of feelings, emotions, and their treatment, in a collective experiential opportunity, among companions in an organic and social struggle. Undoubtedly, psychodrama favored the strengthening of interpersonal relationships, the achievement of the workshop’s objectives, and the firm continuation of its use.

KEYWORD
Psychodrama; HIV

RESUMEN

Reportase taller comportamental, con ocho pacientes HIV positivos, instados a representar su mundo utilizando objetos intermediarios. Objetivo: proporcionar representación, observación y contemplación, fuera de sí mismos, de su mundo. Los resultados apuntan al uso beneficioso de la metodología psicodramática, favoreciendo la emersión de sentimientos, emociones y su tratamiento, en una oportunidad experiencial colectiva, entre compañeros de una lucha orgánica y social. Sin duda, el psicodrama y su metodología favorecieron el fortalecimiento de las relaciones interpersonales, la consecución de los objetivos del taller y la continuación, con firmeza, de su uso.

PALABRAS CLAVE
Psicodrama; VIH

INTRODUÇÃO

Numa referência histórica, tendo por causa o vírus da imunodeficiência humana (HIV), a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids1 1 A Fundação Oswaldo Cruz (2009, p. 24), em seu Manual de Redação, recomenda que se escreva com inicial maiúscula “Nomes de doenças quando derivados de nome próprio ou formados por sigla: doença de Chagas, mal de Parkinson, Aids (Acquired Immunodeficiency Syndrome) ...”. Mas isso não é unanimidade. Órgãos internacionais como a UNAIDS, mencionam Aids sempre com letras maiúsculas (AIDS). ) surgiu no Brasil na década de 1980 (Rodrigues, 2021Rodrigues, K. (2021). Controle de epidemia que tornou Brasil referência mundial sofre declínio: Estudo analisa as causas do retrocesso da política nacional de Aids, considerada modelo na história da saúde global. Casa de Oswaldo Cruz. Recuperado de: http://www.coc.fiocruz.br/index.php/pt/todas-as-noticias/1993-controle-de-epidemia-que-tornou-brasil-referencia-mundial-vive-declinio.html
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), constituindo um panorama obscuro de interrogações e incertezas, tanto para os sujeitos adoecidos, como para os cientistas, pesquisadores e profissionais de saúde que os cuidavam.

Ao surgirem os primeiros sintomas e consequente diagnóstico, a pessoa vivendo com HIV/Aids (PVHA) se deparava com um decreto de morte e poucas chances de vida. Cabe alertar que, na atualidade, a sigla adotada pelo Ministério da Saúde para pessoas vivendo com HIV é PVHIV, com base na decisão da UNAIDS2 2 A UNAIDS se identifica como líder no esforço global para acabar com a AIDS como uma ameaça à saúde pública até 2030, como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. (The Joint United Nations Programme on HIV/AIDS). A autora, assim como alguns profissionais de saúde que trabalham diretamente com tais pacientes, mantém o uso da sigla PVHA, enfatizando que a Aids pertence ao contexto do HIV e, sendo assim, garante-se acesso e tratamento adequados aos doentes de Aids.

Arantes (2019, p. 42)Arantes, A. C. Q. (2019). A morte é um dia que vale a pena viver. Sextante. ressalta que as pessoas iniciam seu calvário desde o momento do diagnóstico de uma doença grave. A morte anunciada possibilita um encontro rápido com o sentido da vida, e também a angústia de talvez não ter tempo de vivenciar esse encontro.

A articulista se introduziu no mundo da Aids ao se sensibilizar e compartir a dor vivida por uma amiga de trabalho e sua família, há trinta e quatro anos, quando dois de seus irmãos foram diagnosticados positivamente. A isso sucedeu o rápido, cruel e inevitável (à época) desenvolvimento da doença, conduzindo ao aumento do sofrimento dos sujeitos e às suas mortes.

Em 2000, ingressou como voluntária no Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ), do Estado do Ceará, considerado referência (Sombra, 2022Sombra, D. (2022). Reconhecido por atendimento humanizado, Hospital São José celebra 52 anos de assistência. Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA). Recuperado de: https://www.saude.ce.gov.br/2022/03/31/reconhecido-por-atendimento-humanizado-hospital-sao-jose-celebra-52-anos-de-assistencia/ Acesso em: 9 jan. 2023.
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) high-performing rated hospital, hospital de ensino, inclusive para tratamento de doenças tropicais como raiva, leishmaniose e hanseníase.

No auge da epidemia de HIV/Aids no Ceará, o HSJ era o único lugar no estado onde havia atendimento aos acometidos pela síndrome. Inicialmente, a abordagem hospitalar consistia no acolhimento a um grupo restrito de pacientes, cadastrados e acompanhados por aquela unidade de saúde. Com o aumento dos casos, novos centros foram criados e a demanda foi mais distribuída, deixando de ser exclusiva do HSJ. Totalizavam, em 2022, trinta e um Serviços de Atenção em Saúde (SAEs) para PVHA do estado do Ceará (SESA, 2022Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA). (2022). Serviços de Atenção em Saúde para PVHA do Estado do Ceará - Município de Fortaleza. SESA. Recuperado de: hthttps://www.saude.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/9/2021/12/SAE-HIV.pdf Acesso em: 9 jan. 2023.
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).

A união de forças entre o serviço social do HSJ e um grupo de voluntários sensibilizados com a situação dos pacientes, que já realizava trabalhos de atenção e acolhimento, fundou, em 26 de julho de 1993, a Associação de Voluntários do HSJ (AVHSJ, 2022Associação de Voluntários do Hospital São José de Doenças Infecciosas (AVHSJ). (2022). Quem somos. AVHSJ. Recuperado de: https://avhsj.org.br/aavhsj/. Acesso em: 9 jan. 2023.
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). Em 1996, os trabalhos do Grupo de Apoio Girassol foram iniciados com voluntários organizados para oferecerem apoio emocional aos internados com HIV/Aids e seus acompanhantes no HSJ.

Como missão, a associação efetiva atendimento humanizado aos portadores de HIV/Aids e prevenção em infecções sexualmente transmissíveis (ISTs)/HIV/Aids para a população, realizando palestras instrutivas em empresas, comunidades, shoppings, feiras e em outros eventos públicos. Como visão, objetiva ser uma organização não governamental (ONG) reconhecida em caráter nacional por defender os direitos humanos e garantir a dignidade dos portadores de HIV/Aids no Ceará.

A AVHSJ orienta, apoia e assiste as pessoas afetadas pelo vírus do HIV/Aids e seus familiares. Seus projetos primam pelo acolhimento, pela promoção da adesão ao tratamento, ao desenvolvimento e à capacitação com cursos profissionalizantes, além de atuarem na prevenção palestrando sobre ISTs/Aids.

As ações se baseiam em solidariedade, garantia da dignidade plena, da luta por cidadania e respeito a todos os cidadãos. Integrante da coordenação do Fórum de ONG/Aids do Ceará, atua com criticidade participativa nos atos políticos nas questões que envolvem essa problemática social. Conta com sessenta e cinco voluntários amorosos e dedicados, que atuam nos diversos projetos que a associação desenvolve junto à sociedade.

Quarenta e dois anos após o início da epidemia da Aids no Brasil, esta pesquisadora é testemunha, em sua vivência nos corredores do HSJ, da mudança do perfil da PVHA, visão resultante de vinte e dois anos como integrante da AVHSJ, exercendo plantões e ações, dentro e fora do HSJ.

Os dezesseis primeiros foram dedicados a plantões junto a pacientes internados e seus acompanhantes. Em 2016, passou a realizar oficinas comportamentais, intentando cuidar afetiva e emocionalmente de tais pacientes. Num ambiente seguro para expressão de sentimentos, espontaneidade e autoconhecimento, tem favorecido a aquisição e o aperfeiçoamento de habilidades relacionais, autoestima e crescimento, aos interessados em evoluir a qualidade de suas relações interpessoais empoderar seu eu, fortificar-se perante a si e aos outros.

Com os resultados positivos das pesquisas científicas, a descoberta e a evolução das terapêuticas de tratamento com os antirretrovirais, o paciente soropositivo tem uma perspectiva favorável de sobrevida, principalmente quando inicia o acompanhamento médico precocemente, adere à medicação adequada, respeita e considera as recomendações. Polejack e Seidl (2010, p. 1202)Polejack, L & Seidl, E. M. F. (2010). Monitoramento e avaliação da adesão ao tratamento antirretroviral para HIV/aids: Desafios e possibilidades. Ciência & Saúde Coletiva. 15(suppl 1), 1201–1208. https://doi.org/10.1590/S1413-81232010000700029
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consubstanciam que, em dez anos, os tratos terapêuticos, com maximização do leque de variadas combinações, transformaram a infecção pelo HIV, de doença avassaladora, que na maioria das vezes levava a pessoa infectada à morte, a uma doença crônica, controlável nos recantos geográficos mundiais, onde a tratativa antirretroviral é acessível e real, redundando em significativo aumento da qualidade de vida dos soropositivos.

Na lente das relações sociais, dos aspectos biológicos, orgânicos, afetivos e emocionais, o mundo das PVHAs é um caleidoscópio. Essa variância, eivada de surpresas boas e ruins, incertezas, indagações, decepções, descobertas positivas e negativas, vivências múltiplas que as inquietam, forma um perfil característico de sua existência.

Tais indivíduos, desde seu diagnóstico, vivem momentos ímpares e necessitam de suporte profissional em múltiplas áreas, concomitantemente ou não, que os auxiliam em sua saga de sobrevivência, hoje — após quatro décadas —, já longa e promissora, diferente de quando a pandemia da Aids surgiu.

As constantes internações, longas passagens em Centros de Terapia Intensiva, lentas recuperações até ocorrência da alta, já não acontecem com frequência. Os falecimentos tendem a ocorrer quando há falha do paciente nos cuidados necessários ao seu tratamento, ou retardo na internação, reduzindo as chances de salvamento.

Na perspectiva sociológica, relacional, apesar da massiva quantidade de informações orientativas, significativa parcela da sociedade ainda se posiciona de forma preconceituosa ao se relacionar com PVHAs. Assim, crescem as instituições (AVHSJ – Associação de Voluntários do Hospital São José; CRC – Casa de Retaguarda Clinica da AVHSJ; Grupo de Apoio Girassol, da AVHSJ; RNPVHA – Rede Nacional de PVHA; GESTOS; GTP – Grupo de Trabalho Positivo; Grupo de Ações Positivas; GASP – Grupo de Apoio a Pessoas Soropositivas e muitas outras) voltadas aos esclarecimentos e às tratativas sociais, visando a qualidade de vida dos soropositivos, suas famílias e amigos, e o incremento de seu bem-estar, em contrapartida ao enfraquecimento e ao empobrecimento pessoal/social que se enveredam ao adoecer.

Isso posto, a oficina tem como objetivo geral oportunizar aos participantes a representação, observação e contemplação, fora de si, do seu mundo; e, de modo específico, propiciar a auto e heteropercepção, facultar o autodesenvolvimento, favorecer a emersão e ressignificações de conteúdos emocionais e enriquecer o relacionamento interpessoal.

MÉTODO

Este relato de experiência investigatória revela uma abordagem assentada na ciência e teoria (embasamento) todo o tempo, visando a mescla da dinâmica livre e qualitativa das expressões humanas do ser, como sói acontecer na Psicologia. No esforço de expressar graficamente, apresenta-se a Fig. 1.

Figura 1
Pilares do perfil investigatório.

A Fig. 1 sintetiza o perfil investigatório do artigo e seus quatro pilares: 1. Socionomia, teoria guarda-chuva dos estudos morenianos, pode-se dizer assim, tendo como fundamento o relacionamento interpessoal, dando margem às interações entre o indivíduo e o coletivo e às benesses sociais advindas dessa prática; 2. Psicodrama, como metodologia de intervenção e profícuo cabedal; 3. Oficina, como ambiente/contexto prático e concreto criados para vivência; e uso das quatro; 4. Técnicas Psicodramáticas e Objetos Intermediários, que constituíram o rico ferramental aplicado.

Pereira (2009, p. 1)Pereira, E. (2009). Tecendo diálogos entre socionomia e psicologia comunitária. Revista Brasileira de Psicodrama, 17(1), 69–85. asserta que a socionomia:

Através de sua visão de homem como ser relacional e de sua vasta gama de recursos técnicos utilizada no trabalho com grupos, possibilita a transformação gradual dos indivíduos e dos grupos, pois atua sobre a vivência dos conflitos e potencialidades de resolução dos mesmos. Mostra-se, portanto, um forte e eficaz instrumento pedagógico e de mobilização grupal.

A autora é psicodramatista há muitos anos, e não poderia deixar de utilizar o método psicodramático como suporte técnico, considerando sua diversidade de recursos. A música como elemento introdutório, na fase de aquecimento, visou a construção de um ambiente relaxante e propício a união, vinculação entre os participantes e revelação espontânea de seus conteúdos emocionais.

A oficina teve como objetivo ensejar aos participantes a representação, a observação e a contemplação, fora de si, do seu mundo. E, de modo específico, propiciar a auto- e a heteropercepção; promover o autodesenvolvimento; favorecer a emersão e as ressignificações de conteúdos emocionais, e enriquecer o relacionamento interpessoal.

Rosas e Carioca (2017)Rosas, E. V. B. & Carioca, J. M. G. (2017). Significações atribuídas ao ócio nas oficinas psicodramáticas numa organização não governamental. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(2), 37–46. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170020
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comentam que as vivências grupais permitem a imersão e a emersão de conteúdos significativos às pessoas e ao grupo, e são mais eficazes se comparadas a outros recursos educativos, por atingirem o campo emocional, além do auditivo e do verbal.

Os objetos intermediários são facilitadores da emersão de sentimentos, reduzindo os estados de alerta, preservando a intimidade do participante e expondo-o ao mínimo, uma vez que vê fora de si os seus conteúdos, fazendo-o entender com mais clareza seus significados.

Rojas-Bermúdez (1980, p. 100-101)Rojas-Bermúdez, J. G. (1980). Introdução ao Psicodrama. Mestre Jou., arrola oito classificações referentes a qualidades dos objetos intermediários: existência real e concreta, inocuidade, maleabilidade, transmissibilidade, adaptabilidade, assimilabilidade, instrumentalidade e identificabilidade.

Correlacionando os conceitos de Bermúdez com o artigo, a existência real e concreta estampou-se nas figuras a seguir material exposto para manuseio e escolha, que mostra a diversidade de objetos disponibilizados ao grupo.

A inocuidade, pela suscetibilidade e volta à infância, com jogos de encaixe, peças, animais e bonecas coloridas, que levaram os sujeitos a sua infantilidade para brincarem descompromissadamente, sem prejuízo, alerta de segurança, ameaça a sua integridade ou possibilidade de julgamento e crítica ao seu jeito de ser e viver.

A maleabilidade, a flexibilidade, a adaptabilidade e a transmissibilidade dos itens, que compuseram a brinquedoteca oferecida, viabilizaram a concretização das ideias dos manipuladores para construção dos seus mundos. A assimilabilidade, a instrumentalidade e a identificabilidade ocorreram com a intimidade, a identificação e o reconhecimento de conteúdos próprios associados ao manipular os objetos expostos.

A oficina propriamente dita

De acordo com as fases da metodologia psicodramática, a sessão foi planejada, organizada e realizada em 2019, com a participação de oito pessoas soropositivas não internadas, com a doença controlada, possuindo várias deles carga viral indetectável, isto é, intransmissível, passível de não contaminação. Tal quadro clínico modifica sobremaneira a qualidade de vida desses portadores, facultando uma vida mais feliz, já que podem se relacionar amorosa e intimamente, de maneira mais relaxada, sem preocupação em transmitir outros vírus aos seus companheiros soropositivos, ou contaminar, nos casos de casais sorodiscordantes.

Seguindo a metodologia do psicodrama, arquitetou-se a oficina em três fases: planejamento, desenvolvimento e compartilhamento.

Planejamento

A organização e o programa da oficina foram feitos com antecedência, estabelecendo-se um tempo previsto para cada atividade, totalizando duas horas.

O grupo era aberto; assim, em qualquer encontro, puderam ser inseridos novos participantes, sempre tendo como proposta aproximar pessoas, formar laços de interação e soerguimento pessoal.

Inicialmente foram distribuídos os crachás identificados pelos nomes que os sujeitos elegeram; a mediadora se apresentou, fez um introito comunicando as regras éticas necessárias ao desenvolvimento do trabalho, destacando o sigilo a ser preservado quanto aos assuntos ali tratados. Concedeu-se espaço para levantamento de expectativas e esclarecimento de dúvidas àqueles que desejaram se pronunciar.

Logo após, tocou-se música calma, relaxante, acompanhada de expressão corporal para promover o despertar do grupo, a espontaneidade e os primeiros laços afetivos. Considerada, pela avaliadora, a satisfatoriedade do nível de aquecimento, passou-se à segunda fase.

Desenvolvimento

Nessa oficina, intitulada “Eu e meu mundo”, o grupo era formado por oito sujeitos. Solicitou-se que todos se sentassem no chão, numa roda, exibindo-se no centro o material a ser usado (peças bem variadas, jogos de encaixe, animais, aves, flores, bonecas e outras peças de tamanho e cores diferenciadas) — os objetos intermediários.

Fez-se, então, o seguinte convite: manipulem à vontade, observem, toquem, mexam nas peças. Utilizem aquelas que mais lhe chamam a atenção. Na sequência, formulou-se a consigna: Cada um vai construir, à sua frente, o seu mundo, com a quantidade de peças que quiser e usar o tempo que necessitar. Quando terminarem, avisem.

Antes que iniciassem tal atividade, seguindo as orientações da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, que dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, foram consultados sobre o registro em fotografia, das representações de mundo construídas por cada um, preservando-se os rostos e as identidades, caso fossem utilizados em publicação e/ou eventos científicos, com o que todos concordaram. Não foi assinado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), por inexistir risco humano, e a facilitadora psicóloga estar presente e apoiando toda a oficina.

A Fig. 2 mostra os objetos intermediários espalhados e disponíveis no chão, no centro da roda formada pelas pessoas.

Figura 2
Material exposto para manuseio e escolha.

Esse conjunto de recursos vem crescendo há anos. É volumoso, variado, de diversas cores, tipos, tamanhos, pesos e texturas, que instigam o contato e ideias a quem o manipula. Quem usa sempre o elogia, pela variedade de opções.

Findadas as construções individuais, foi recolhido o que não utilizado, permanecendo cada um, à sua frente, com suas representações. O grupo foi, então, orientado à terceira fase.

Compartilhamento

As pessoas foram convidadas a apresentar suas obras, expressar o significado das peças utilizadas, responder as perguntas suscitadas e contar como se sentiram durante e ao final de sua execução. A ordem de apresentação ficou à vontade de cada um. Os resultados obtidos são trazidos na sessão seguinte.

RESULTADOS

Figuram aqui os registros fotográficos, feitos pela mediadora, das representações elaboradas, respeitando-se a identidade dos participantes, sem mostrar rostos, e as narrativas dos oito autores, aqui denominados por letras de “A” a “H”, correspondentes às Figs. 3 a 10.

Apresentação da obra: Relato do participante A

Figura 3
Representação do mundo do participante A.

Sou esse dinossauro, forte, grande, que manda em todos os soldados. Mata quem quer, abate os valentões que o enfrentam. Minha vida é assim. Meu mundo é agressivo. Tenho que ser forte e decidido. Já sofri muito sendo portador de HIV/Aids. Quase morri internado em terapia intensiva. Foram meses para eu sair do coma e voltar a ter uma vida fora do hospital. Aprendi com o sofrimento. Fiquei marcado com muitas mortes de colegas que vi, magoado com muita gente que me rejeitou, abandonou e agrediu por eu ser soropositivo. Consegui me fortalecer e hoje me vejo agressivo, mas não tão frágil como já fui. Os grupos de convivência, como esse, me ajudam bastante.

Sobre a atividade:

Achei interessante pegar as peças, escolher, descobrir e saber o que fazer com elas. Fiz com facilidade. Gostei.

Apresentação da obra: Relato do participante B

Figura 4
Representação do mundo do participante B.

Tento fazer de meu mundo uma fortaleza, mesmo colorida e alegre. Gosto de animais e acho importante ter segurança. Já fui muito atacada. Hoje dou valor à segurança, aprecio as coisas limpas, organizadas, tudo direitinho.

Sobre a atividade:

Achei legal. Lembrei de meu tempo de criança, quando jogava, brincava. Foi bom voltar a esse tempo. Fiz com facilidade e bem rápido. Os soldadinhos, os animais pequenos me chamaram mais atenção. Achei interessantes essas peças quadradas, coloridas que se encaixam bem entre si, ficam fortes. Estou aí dentro, seguro, escondido. Não apareço. As peças coloridas, com bolas são gostosas de mexer. Gostei muito.

Apresentação da obra: Relato do participante C

Figura 5
Representação do mundo do participante C.

Gosto de dinossauros, criaturas com rabo, boca e pescoço grande. Animais pequenos e grandes, que vão crescer. Acho interessante répteis, anfíbios e gado, também. Montei meu mundo com peças fortes, crescentes, que podem subir mais alto. Eu quero crescer, melhorar, ficar mais forte, evoluir. Mas não é só força, é ser gente, ter sentimento. Tô cansado de falsidade, traição, inveja. Coloquei um coração preto, que é o meu, marcado com meus sofrimentos, e uma almofada, para descansar. Peças que indicam amor e carinho. O dinossauro maior pode ser eu.

Sobre a atividade:

Achei gostoso construir meu mundo, forte, colorido. Encaixando as peças me senti bem. Fiz facilmente.

Apresentação da obra: Relato do participante D

Figura 6
Representação do mundo do participante D.

Me chamou atenção os ratos, os dinossauros de diversos tamanhos, os insetos, mamíferos e os carrinhos. Sou esse ratão preto, que comanda os outros animais. O muro colorido representa nossa casa. Saímos, voltamos, sempre juntos. Partilhamos o que temos. Gosto de quem gosta de mim. Somos unidos. Chega de gente falsa, traíra.

Sobre a atividade:

Achei bom fazer essa atividade. Com facilidade achei as peças que queria. Ficou bom o meu mundo. Representei bem.

Apresentação da obra: Relato do participante E

Figura 7
Representação do mundo do participante E.

Gosto de frutas, verduras, aprendi, com a doença, a comer melhor. Também gosto de pequeninos objetos. Sou o gato, dizendo: sejam bem-vindos meus amigos. Tem seis almofadinhas enfileiradas, organizadas, esperando amigos chegarem, os verdadeiros, é claro! Perdi diversos, que se diziam amigos, mas não eram. Gosto de gente, mas não muito barulhenta. Sou mais de ficar junto, ouvindo música, conversando baixo. Sou discreta.

Sobre a atividade:

Achei bom fazer, ficou fácil, fiz rápido. Não tive dificuldade em escolher as peças. Vi, peguei e usei. Aliás, sou prática e não complico a vida, pois já é muito complicada. Gosto de ser meiga, observadora.

Apresentação da obra: Relato do participante F

Figura 8
Representação do mundo do participante F.

Fiz tudo montadinho, encaixadinho, separado, organizado. Sou assim. Gosto de cores, principalmente verde, vermelho, amarelo. Construí a frente de um castelo e outras coisas lá dentro, espaçadas. Estou observando o que fiz. Não me representei. É como estivesse voando, por cima, apreciando. Observo bastante as pessoas, aquelas às quais posso confiar, falar de minha vida. Descobri que não são todas que podem ouvir o que preciso dizer. Prefiro ficar distante desses indivíduos, para não sofrer mais do que já sofri.

Sobre a atividade:

Fiz facilmente. Achei que as peças se encaixam bem, com facilidade. Fica um trabalho bonito, embora simples. Gosto das coisas simples. Foi bom. Gostei de fazer e falar do meu mundo.

Apresentação da obra: Relato do participante G

Figura 9
Representação do mundo do participante G.

Sou essa cobra, que envolve e quer controlar todo mundo. Gosto de gente, de animais. Tenho vários amigos, parentes, todos comigo e que me apoiam. No início tinha medo, escondia, tinha dificuldade de falar que era soropositivo. Agora, não mais. Quem quiser e gostar de mim vai ficar comigo, outros não.

Sobre a atividade:

Gostei das peças, mas muito mais das bonecas, dos bichinhos. Achei bom fazer. Legal, ficou bonito.

Apresentação da obra: Relato do participante H

Figura 10
Representação do mundo do participante H.

Essa é minha vida – uma bagunça só. Quando está começando a arrumar, eu desarrumo. Conheço uma pessoa da rua, que não tem eira nem beira, boto dentro de casa, divido e dou o que tenho, passa a ser meu companheiro. Tira e acaba tudo que tenho e depois vai embora. Fica tudo uma bagunça. Daí começo tudo de novo, até arranjar outro homem do tipo. Não foi a primeira nem será a última vez que perco pessoas e coisas que consigo adquirir. Mais difícil foi perder minha saúde, por pouco não morrer, ser distratada e magoada por parentes, pessoas que se diziam amigas. Assim continuo, vou vivendo. Aprendi esse jeito de sobreviver.

Sobre a atividade:

Gostei de fazer isso. Foi rápido e fácil. Fui a primeira a terminar. Nenhuma peça tem significado. Pode ser qualquer coisa. Eu tô aí no meio, misturada, não sei onde, afogada de tanto problema, tanta bagunça.

Encerramento da oficina

Decorridas duas horas, após os relatos de todos os sujeitos, a facilitadora orientou para auxiliarem a guardar em embalagens separando as peças semelhantes do acervo.

Para fechar o encontro, indagou dos sujeitos como estavam se sentindo, se compararem sua chegada e o momento da saída. Todos se manifestaram, dizendo que saíam diferentes, sentindo-se bem, satisfeitos em terem participado e com vontade de irem a futuras oficinas.

Nesse ponto, fez-se o encerramento, agradecendo a presença e colaboração de todos, recolheram-se os crachás e formulou-se o convite para se dirigirem ao refeitório, para o lanche que os esperava.

DISCUSSÃO

Com base no conteúdo coletado, alguns tópicos merecem ser registrados e confirmados com o referencial teórico. São eles, dialogando com os autores referenciados:

O coletivo facilita o surgimento e incremento de laços que aproximam as pessoas

É notório e irrefutável como é profícua a oportunidade de trabalhar em grupo. Confirmam Rosas e Carioca (2017)Rosas, E. V. B. & Carioca, J. M. G. (2017). Significações atribuídas ao ócio nas oficinas psicodramáticas numa organização não governamental. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(2), 37–46. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170020
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quando dizem que o formato de vivência grupal favorece o surgimento de conteúdos significativos mais eficazes se comparado a outros recursos educativos, por atingirem o campo emocional, além do auditivo e do verbal. Essa realidade já foi comprovada também em outras oficinas desenvolvidas pela autora.

Confirmou-se o dito por Pereira (2009, p. 1)Pereira, E. (2009). Tecendo diálogos entre socionomia e psicologia comunitária. Revista Brasileira de Psicodrama, 17(1), 69–85., quanto à socionomia que tem a perspectiva de homem como ser de relações, a extensa gama de ferramental técnico aplicada no trabalho com grupos, que insta à sensibilização gradativa de indivíduos e grupos ao vivenciarem seus conflitos e potenciais resolutivos. Caracteriza-se robusto e eficaz instrumento da pedagogia e de incitação à mudança individual evidenciando a força grupal.

Tal assertiva é largamente constatada no percurso profissional da autora, nas diversas oficinas que realizou, com esse e outros grupos.

O luto por perdas de relações e pessoas

Um aspecto presente nas narrativas da maioria dos participantes da oficina, objeto de estudo desse escrito, é o sofrimento. As dores que sofreram deixaram em seu íntimo cicatrizes de etiologia plural, de vivências fortes em sua trajetória vital, que os tornaram calejados. Tudo passou e eles conseguiram reagir, mas marcas indeléveis permanecem em seus corações.

Esses depoimentos exemplificam, com clareza, o dito por Strauch (2017)Strauch, V. R. F. (2017). Ressignificação da morte na abordagem psicodramática: Perdas e ganhos no luto. Revista Brasileira de Psicodrama, 25(1), 49–58. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20170006
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, quando valoriza os lutos como aprimoramentos para a vida, momentos de forte mudança e desenvolvimento pessoal. A morte é vivenciada como perda singular de pessoas próximas ou distantes do sujeito.

Não só nessa oficina, como em outras, o sofrimento com o luto é evidenciado. Assim como o é nas oitivas de pacientes internados, carentes e necessitados de atenção, que compartilham conteúdos significativos com o voluntário plantonista, que disponibiliza seu ouvido amigo, respeitoso e ético. A solidariedade e a empatia formam a força de quem ajuda.

Arantes (2019)Arantes, A. C. Q. (2019). A morte é um dia que vale a pena viver. Sextante. menciona que a empatia possibilita colocarmo-nos no lugar do outro sentindo sua dor, seu sofrimento. Adiciona o sentimento de compaixão que ultrapassa a empatia e nos leva a compreender o sofrimento do outro e a transformá-lo. Reforça que precisamos ser capazes de entender a dor que captamos do sentimento alheio, e transformar tal sofrimento em algo que faça sentido.

Facilidade e prazer em representar seu mundo

Outro ponto a ser enaltecido é o uso da coletânea disponibilizada, face sua variedade, sua simplicidade e suas lembranças de brinquedos de criança, que incitou à construção das obras e suscitou a expressão de sentimentos, emoções e conteúdos afetivos dos participantes, ratificando o que diz Rojas-Bermúdez (1970, p. 100-101)Rojas-Bermúdez, J. G. (1980). Introdução ao Psicodrama. Mestre Jou. quanto às qualidades dos objetos intermediários, que instigam a emersão de sentimentos e emoções, nunca vistos e sentidos pelo sujeito, sem expor e ameaçar sua intimidade.

Ganhos dos sujeitos

Vale frisar sobre o bem-estar a que os participantes se referiram no encerramento da oficina. Saírem melhor do que entraram evidencia as contribuições coletivas, individuais e subjetivas do encontro. Alguns falaram que, ao chegarem à oficina, estavam duvidosos se seria bom ou válido irem. Não se sentiam motivados, mas, durante e após as atividades propostas, o entusiasmo chegou, envolvendo-os, dando-lhes vontade de participar, falar de si e ouvir os companheiros. Compartilharam que se arrependeriam caso não tivessem aproveitado essa oportunidade.

Aqueles que estavam pela primeira vez disseram que fariam o possível para ir sempre que pudessem e convidariam colegas. Sentirem-se bem em ter falado de significados valiosos de sua vida é por demais instigante ao prosseguimento das oficinas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É motivante a possibilidade de psicodramatizar, adotar e atuar livre e espontaneamente com o despojamento moreniano.

É realizador ouvir depoimentos que estimulam o continuar do trabalho e das oficinas na AVHSJ, face o atingimento dos objetivos geral e específicos claramente narrados. Os resultados obtidos mostram o crescer gradual do participante, no seu tempo, ritmo, volume e tamanho.

Quanto aos sujeitos atuantes, entregadores de seus valiosos conteúdos emocionais, indubitável ficou que saíam da oficina de forma diferente, levando seus ganhos subjetivos, sentindo-se bem por compartilharem momentos importantes de sua vida. Ao entenderem e conhecerem melhor a si e ao outro, mostrarem, assistirem e ouvirem histórias personificadas, com fio condutor comum a todos — a realidade vivida do sofrimento e dor em ser soropositivo —, levaram momentos especiais, vividos isoladamente e revividos com seus companheiros, sendo visíveis os ganhos de cada um.

A facilitadora tem forte e inquestionável convicção de que aprende com a forma de viver das PVHAs, cresce como pessoa que vê e sente, em cada vivência, sua missão de cuidar sendo cumprida, e agradece pela confiança, pela abertura e pelo ensejo oportunizados.

Inquestionavelmente, a metodologia psicodramática permitiu o melhoramento das relações interpessoais, o atingimento dos objetivos da oficina, justificando a continuidade, com firmeza, do seu uso.

Há intenções de estender as atuações psicodramáticas a outras representações sociais, comunidades específicas e âmbitos públicos do estado do Ceará, na medida que profissionais dessas áreas suscitem a possibilidade de cooperar com sua participação.

  • 1
    A Fundação Oswaldo Cruz (2009, p. 24)Fundação Oswaldo Cruz. (2009). Manual de Redação da Fiocruz. Coordenadoria de Comunicação Social / Presidência da Fiocruz. Recuperado de: https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/manual_redacao_fiocruz.pdf. Acesso em: 9 jan. 2023.
    https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.i...
    , em seu Manual de Redação, recomenda que se escreva com inicial maiúscula “Nomes de doenças quando derivados de nome próprio ou formados por sigla: doença de Chagas, mal de Parkinson, Aids (Acquired Immunodeficiency Syndrome) ...”. Mas isso não é unanimidade. Órgãos internacionais como a UNAIDS, mencionam Aids sempre com letras maiúsculas (AIDS).
  • 2
    A UNAIDS se identifica como líder no esforço global para acabar com a AIDS como uma ameaça à saúde pública até 2030, como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

AGRADECIMENTOS

A autora desse artigo registra agradecimentos à AVHSJ – Associação de Voluntários do Hospital São José e a todos os sujeitos envolvidos nessa pesquisa, sem os quais não seria possível esse escrito.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Não aplicável.
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

REFERÊNCIAS

Editado por

Editora de seção: Rosely Cubo. https://orcid.org/0000-0002-5379-4372

CONFLITO DE INTERESSE

Nada a declarar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2022
  • Aceito
    13 Dez 2022
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