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PSICODRAMA E IMAGENS SIMBÓLICAS: AUTOPERCEPÇÃO E CRIATIVIDADE NO ENFRENTAMENTO DE CONFLITOS

PSYCHODRAMA AND SYMBOLIC IMAGES: SELF-PERCEPTION AND CREATIVITY IN FACING CONFLICTS

PSICODRAMA E IMÁGENES SIMBÓLICAS: AUTOPERCEPCIÓN Y CREATIVIDAD EN EL ENFRENTAMIENTO DE CONFLICTOS

RESUMO

A intervenção psicodramática realizada de forma virtual em tempos de pandemia (2020–2022) tem por objetivo trabalhar a expressividade da comunicação de um professor no âmbito pessoal e profissional utilizando imagens simbólicas como recurso. Busca, ao trabalhar os níveis de dramatização, revisitar o locus da perda da espontaneidade, promover ampliação de sua autopercepção e criatividade para poder enfrentar seus conflitos interrelacionais. Reconhecer ainda, a possibilidade da boa comunicação existente em papel amplamente desenvolvido poder ressoar nos papéis que estão em formação ou revelem conflitos.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama Interno; Pandemia; Realidade Suplementar

ABSTRACT

The psychodramatic intervention carried out virtually, in times of a pandemic (2020–2022), aims to work on the expressiveness of a teacher’s communication in the personal and professional scope using symbolic images as a resource. When working on the dramatization levels, he seeks to revisit the locus of the loss of spontaneity, to promote the expansion of his self-perception and creativity, in order to be able to face his interrelational conflicts. He also recognizes the possibility that good communication existing in a widely developed role can resonate in roles that are in formation or reveal conflicts.

KEYWORDS
Internal Psychodrama; Pandemic; Supplementary Reality

RESUMEN

La intervención psicodramática realizada de manera virtual, en tiempos de pandemia (2020–2022), tiene como objetivo trabajar la expresividad de la comunicación de un docente en el ámbito personal y profesional utilizando como recurso las imágenes simbólicas. Al trabajar los niveles de dramatización, busca revisitar el locus de la pérdida de espontaneidad, promover la ampliación de su autopercepción y creatividad, para poder enfrentar sus conflictos interrelacionales. Reconocer también la posibilidad de que la buena comunicación existente en un rol ampliamente desarrollado pueda resonar en roles que están en formación o revelan conflictos.

PALABRAS CLAVE
Psicodrama Interno; Pandemia; Realidad Suplementaria

INTRODUÇÃO

Estamos em 2022 vivendo há dois anos um singular momento da humanidade: a pandemia por coronavírus, que já ocasionou milhões de mortes e tem, além dos diversos efeitos físicos e emocionais, refletido no aspecto interrelacional por demandar isolamento social, medida que busca elidir sua propagação.

Em virtude do isolamento, novas formas de funcionamento foram adotadas em quase todos os segmentos de atividade, tanto pessoal quanto profissional (Meet, Zoom, lives, salas de espera virtuais, aulas, treinamentos e demais trabalhos em home office). A demanda de atendimento pelo recurso virtual se estendeu aos consultórios médicos, às escolas (em aparelhamento para esse novo momento), mas também aos atendimentos virtuais demandantes de treinamentos que eram usualmente presenciais.

Pela forma como a comunicação (ato ou efeito de comunicar, de se expressar, capacidade de transmitir mensagens, sentimentos, ideias etc.) é utilizada no desempenho de um papel, pessoal ou profissional, há reflexos nas interações humanas, no ambiente, e impacto no clima tanto relacional, doméstico, social e organizacional, definindo sua preponderante importância. Espera-se, portanto, que todas as portas de nosso corpo — os cinco sentidos físicos e percepções decorrentes — estejam totalmente abertas para essa nova realidade, para que não fiquemos à margem da empregabilidade, do conhecimento, do autoconhecimento, da assistência à saúde física e mental; entre outros aspectos cuja diversidade o momento abarca e se reflete na importância da comunicação ampliada consideravelmente.

Nós psicodramatistas somos privilegiados quanto a esse novo momento, pois podemos, dentro dos métodos, técnicas e recursos da metodologia criada por Jacob Levy Moreno (1889–1974), promover evolução, produtividade, em meio a essa adversidade pandêmica com novas formas de expressividade.

A metodologia psicodramática é completa — envolve corpo mente e ação. Nesse momento pandêmico foi mais uma vez desafiada e respondeu de forma positiva e plena. Exemplificamos com a prática e conclusão deste trabalho, efetuado em âmbito virtual, utilizando o psicodrama, suas etapas, técnicas e, ainda, o nível de realização psicodramático simbólico, com imagens definidas pelo protagonista (associadas a seus papéis conflitivos e respectivos complementares).

O protagonista é desafiado a responder, com um certo grau de adequação, a uma nova situação ou, com uma certa medida de novidade, a uma antiga situação [...] a fim de mobilizá-las e dar-lhes forma, necessitam de um transformador e catalizador, uma espécie de inteligência que opera aqui e agora, hic et nunc, a espontaneidade... opera não só na dimensão das palavras, mas em todas as outras formas de expressão, como a atuação, a interação, a fala, a dança, o canto e o desenho

(Moreno, 1946/2006, p. 36-37).

Contextualizado o atual momento, será exemplificado na prática com o método psicodramático realizado para atender um professor com mais de trinta anos de atuação profissional, em fase de mudança de vida e carreira, com dificuldade identificada na comunicação, autopressionado pela próxima assunção do papel de terapeuta, por estar se formando em Psicologia, e também com manifesta dificuldade na expansão de sua rede de relações, seu átomo social (configuração dos papéis exercidos), em que pese a tomada de novos papéis no palco da existência.

METODOLOGIA

Imagens simbólicas: Moreno e Maria Alicia Romaña

O recurso dos objetos intermediários faz-se oportuno quando não há a utilização de egos auxiliares para que o atendimento psicodramático bipessoal possa intensificar resultados — unir o diretor psicodramatista ao seu complementar protagonista — como afirma Perazzo (2018)Perazzo, S. (2018). O mito da cadeira vazia. Revista Brasileira de Psicodrama, 26(1), 102–107. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180020
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180...
. E, podemos acrescentar:

  • Imagens simbólicas são recursos que dão produtividade ao atendimento. Podem ser utilizadas de diversas formas: apresentadas pelo diretor psicodramatista e criadas ou escolhidas pelo protagonista;

  • No psicodrama, neste caso com um único protagonista, a ação por meio de um iniciador, a exemplo das imagens simbólicas, possibilitam o “readestramento” da espontaneidade estimulando o aumento da criatividade, e, segundo Moreno (1946/2006, p. 160)Moreno, J. L. (2006). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1946), sair dos estados de “conserva cultural”1 1 Assim como o evidente declínio da função criadora do homem, ao enfrentar os problemas de nosso tempo, nos obrigou a proceder a uma análise e reavaliação da conserva cultural, também nos vimos forçados a dirigir nossa atenção para os fatores de espontaneidade e criatividade, de um novo ponto de vista. O problema consiste em substituir um sistema de valores desgastado e obsoleto, dentre as conservas culturais, por um novo sistema de valores mais adequado com as circunstâncias de nossa época: o complexo espontaneidade-criatividade tele e adequação. quando, pelo automatismo, se deixa de pensar sobre o que foi ou está sendo realizado no aqui-e-agora das ações e dramatizações;

  • Imagens foram utilizadas na etapa de aquecimento específico do protagonista facilitando sua saída da normose (patologia da normalidade) que gera as conservas ou as situações repetidas inadequadas de que nos fala Moreno impedindo de se ir além, ficando numa zona que favorece estagnação por inação, ausência de evolução no fazer, no agir (Weil et al., 2014Weil, P., Leloup, J.-Y. & Crema, R. (2014). Normose: A patologia da normalidade. Vozes.);

  • Quando a escolha de imagens acontece de forma livre (criativa e espontânea) e o Eu se projeta nas imagens que o protagonista elege e nas características que dá às imagens internas e suas representações possuem movimento, vida, plasticidade, a definição de suas características bem como sua interpretação, cabe unicamente a seu criador. Exemplo: pertencendo ao reino hominal não voamos no concreto sem o recurso de equipamentos apropriados; mas, em imagens de anjos, visualizações criativas, psicodrama interno e sonhos isso pode acontecer:

No esforço de interpretação das imagens fixas, acompanhadas ou não de textos, a leitura das mesmas se abre em leque para diferentes interpretações a partir daquilo que o receptor projeta de si, em função de seu repertório cultural, de sua situação econômica, de seus preconceitos, de sua ideologia, razão porque as imagens sempre permitirão uma leitura plural

(Kossoy, 2003Kossoy, B. (2003). Fotografia & história. 2. ed. Ateliê Editorial., p. 115).

Nosso cérebro límbico2 2 O termo límbico corresponde a um adjetivo que dá o valor de relativo ou pertencente ao limbo, ou seja, remete para o conceito de margem. O sistema límbico compreende todas as estruturas cerebrais que estejam relacionadas, principalmente, com comportamentos emocionais e sexuais, aprendizagem, memória, motivação, mas também com algumas respostas homeostáticas. contém a memória das imagens obtidas desde o início de nossa existência, desde a fase pré-verbal. É um processador que guarda, com o auxílio da visão, desenhos, gravuras, livros e revistas e seus personagens também de cinema e teatro, heróis e vilões; o que nos impressiona do contato com a natureza e participando de rituais sociais religiosos etc.

Pela visão, dentre os cinco sentidos físicos, captamos 83% das informações de “como aprendemos” e é importante meio de explorar a percepção do ambiente, valioso recurso de aprendizagem, autopercepção, de escolhas que fazemos, auxiliando a definir o que nos faz ou não sentido (Lovelock et al., 2011Lovelock, C., Wirtz, J. & Hemzo, M. (2011). Marketing de serviços. Pearson Education.).

Moreno (1946/2006, p. 365)Moreno, J. L. (2006). Psicodrama. Cultrix. (Obra original publicada em 1946) afirma que “o método de ativação de imagens auxilia... no processo de aprender a ser espontâneo” e temos assim uma indicação de caminho neutro que possibilita ver com os olhos do outro, um iniciador mental e subjetivo, para dar nascimento ao concreto, um fio de Ariadne na busca de novas saídas do labirinto de questionamentos pessoais e profissionais, a exemplo do comunicador que interage trocando de olhar com seu interlocutor nos papéis desempenhados. Acrescenta ainda que a espontaneidade é tal qual “luz que se acende em uma sala, e todos os contornos ficam claros, nítidos” (Moreno, 1934/1992Moreno, J .L. (1992). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama (A. R. Faria, D. L. Rodrigues & M. A. Kafur, Trad.). Dimensão. (Obra original publicada em 1934), p. 150-151). Propicia, portanto, o reconhecimento de sombras ou dos pontos de atenção para que o desenvolvimento da percepção ocorra.

Garrido Martin (1996)Martín, E. G. (1996). Psicologia do encontro: J. L. Moreno. Ágora. aponta a metodologia moreniana, em sua antropologia, como possibilidade de saúde e de cura na dimensão relacional do indivíduo quando a espontaneidade é manifestada adequadamente. Caso contrário, se a espontaneidade adoece, também adoece a dimensão relacional, ocasionando inadequação de respostas pelo papel desempenhado.

A pedagoga Maria Alicia Romaña sistematizou metodologicamente as possibilidades de dramatização em três níveis que expressam conteúdos intrapsíquicos e psicossociais do protagonista: simbólico, de fantasia (imaginário) e real. Trabalhando com imagens nessa prática, a dramatização ocorre no nível de realização simbólica: sentimentos, expectativas sensações ou outros similares. No nível simbólico imagens corporais, gestos, objetos, gravuras etc. são usados para expressar ideias, conhecimento, sentimentos e ajudam o protagonista a agir (Romaña, 2019Romaña, M. A. R. (2019). Pedagogia psicodramática e educação consciente: Mapa de um acionar educativo (A. R. Dias, Trad.). Associação Entre Nós.).

Na socionomia e no psicodrama, Moreno dá o direito ao ser humano de estar investido de um plus de realidade ao transitar na vida, nas relações, nos mais diversos papéis e, chama decerto montante de megalomania normal, levando em conta que cada um de nós busca sempre se apoderar de nossa verdade psicodramática e poética (Marineau, 1992Marineau, R. F. (1992). Jacob Levy Moreno: 1889-1974: pai do psicodrama, da sociometria e da psicoterapia de grupo. Ágora.).

A esse plus de realidade, com criatividade e imaginação, Gottlieb e Perazzo (2016, p. 176)Gottlieb, L., Perazzo, S. (2016). Psicodrama: Apontamentos e criação. FiloCzar. afirmam:

Por esta razão, primeiro, a realidade suplementar pode ser definida como um plano de atuação constante de nossa imaginação e fantasia, campo de atuação de nossa criatividade, intercruzando constantemente o plano de nossa realidade cotidiana, modificando-o e tendo a espontaneidade como motor propulsor de nosso trânsito simultâneo entre os dois planos, na verdade, nunca paralelos. O que importa é a permeabilidade de trânsito de um plano para o outro.

Isso posto, no intento da expressividade do comunicador protagonista atendido e na aquisição de seu autodomínio, o trabalho foi alicerçado na sua espontaneidade e na busca de saúde relacional no desempenho de seus papéis, utilizando imagens como recurso, a prática da realidade suplementar na dramatização e no psicodrama interno.

De acordo com Naffah Neto (1997, p. 215)Naffah Neto, A. (1997). Descolonizando o imaginário. Plexus., Moreno define o indivíduo saudável da seguinte forma:

São é o indivíduo espontâneo-criativo, capaz de relações télicas, continuamente lançado no presente e podendo retomar e transformar suas formas de existir em relação a cada situação vivida; são é o indivíduo capaz de catalisar a imaginação com vista à transformação da realidade.

As técnicas no psicodrama e o corpo

O ser humano é um todo integrado (corpo, mente e emoção, na ação). Cabe, portanto, observar na aplicação das técnicas ressonâncias que resultam no corpo.

Genericamente, pode-se exemplificar com a utilização da técnica do espelho em que um protagonista tem a oportunidade de melhor se perceber quando outra pessoa participante do trabalho, diretor ou ego auxiliar, respeitosamente, coloca-se em determinada postura física, reproduzindo sua ação, para que tome mais consciência de si, de sua expressividade obtendo insights de como é percebido pelos demais.

O corpo é nossa memória mais antiga, em permanente correlação com nossas emoções no interrelacional. Identifica rapidamente quando superamos (ou não) uma situação negativa vivenciada. Exemplo: se formos feridos emocionalmente por algo dito ou feito por alguém, posteriormente não basta dizer racionalmente que superamos; se, quando a pessoa se aproximar, nosso corpo a repelir, indicando que, em algum nível, continua fechado ou bloqueado emocionalmente para a possibilidade de nova ocorrência da situação passada.

Quando focamos no simbolismo do corpo, atenção plena deve ser dada ao que ocorre no ventre do protagonista. O ventre é visto por diversas filosofias como nosso centro, lugar de transformação — recebe o alimento (externo ao corpo), transforma, absorve e se desfaz do que não pode mais acrescentar. Igualmente, cabe acompanhar essa correlação durante o processo de afloramento da expressividade na comunicação, atentos ao simbolismo do corpo e às palavras de Leloup (2003, p. 97)Leloup, J.-Y. (2003). O corpo e seus símbolos: Uma antropologia essencial. Vozes.: é ao nível do ventre que uma transformação é possível.

No caminho da anamnese e hermenêutica do Ser, técnicas como o solilóquio (falar o que pensa e o que sente como se estivesse falando consigo mesmo) e a concretização possibilitam aprofundar o conhecimento dos papéis como vivenciados, acompanhando as manifestações corporais; o solilóquio ao dar voz aos papéis complementares; a concretização por representar os papéis psicodramaticamente por meio de imagens; as ressonâncias no corpo, por permitirem medir a assertividade dos aquecimentos, evolução da expressividade da comunicação entre o diretor e o comunicador protagonista e dele no palco da vida.

O encontro no atendimento

Durante o trabalho psicodramático e em um único encontro virtual, de aproximadamente duas horas devido à pandemia, nas dramatizações, cujo foco foi trazido pelo protagonista, e concomitantemente acompanhadas pelo diretor psicodramatista, a ressonância no corpo e na mente das ações por ele empreendidas individualmente, incluindo seus papéis complementares, que embora figurem em cenas e visualizações exercidas no imaginário, são produtos de vínculos vivos que objetivam conteúdos gravados na memória.

No atendimento, o cuidado foi o de considerar tanto as etapas do método (aquecimentos, dramatização e compartilhamento) como a introdução de recursos para liberar a espontaneidade, respeitando as fases da matriz de identidade:

  • reconhecimento do Eu pelo protagonista (com jogo de apresentação de si, do seu corpo, na infância);

  • seguindo para a percepção além de si, a do outro (Eu-Tu) por meio de imagens simbólicas auto eleitas com características dadas a si e a seus complementares;

  • evoluindo para a eleição de frases representativas da comunicação relacional entre ele e os outros (Eu-Eles) — forma como o protagonista se percebe e sente as relações em papéis para si conflitivos, nos quais se vê isolado.

A queixa do protagonista no seu autodiagnóstico, foi assim descrita:

  • Apatia nas interações, particularmente no seu papel de aluno de Psicologia, gerando impacto negativo no seu átomo social, de tal forma que a expansividade de sua rede não ocorria, mesmo assumindo novas frentes de atuação de estudo, prática e convívio;

  • Tinha capacidade para ouvir processar e compreender o contexto vivenciado, pois levava em conta a diversidade de seu conhecimento formal e vivencia profissional (âmbito nacional e internacional), mas questionava sua falta de habilidade para interagir com alguns de seus papéis complementares, para poder: expressar-se de diversas formas (ir além de poucas expressões faciais de aceite ou desagrado — comunicação não verbal), revelando o desejo de argumentar com coerência diante de situações para si conflitantes, promover autodefesa, atuar de forma positiva e não combativa, ser visto pela postura nem como isolado, nem como agressivo;

  • “Perde” na primeira infância a espontaneidade que lhe era natural quando os pais “o julgaram exibido”, passando a usar uma “capa de invisibilidade”. Sentimento que gera: “frustração”;

  • Usuário dessa capa de invisibilidade acreditava que “evitaria os prejuízos de se colocar”, de sofrer dor emocional “por incompreensão e não aceitação; de ser visto como portador de conhecimento insuficiente ou inadequado”;

  • O corpo do protagonista se encontrava com excesso de peso (físico e emocional). Garganta bloqueada “como se tivesse uma corda apertando” (sensação), “com uma nuvem negra ao redor” (imagem interna).

Foi considerando também os fios que formam o tecido de sua realidade particular, como informada pelo protagonista, tais como:

  • Papéis sociais (professor, liderado pelo diretor de sua escola, irmão, terapeuta em formação, estudante, mãe/pai dos filhos por separação do cônjuge);

  • Expressividade com dificuldade na comunicação verbal e não verbal (postura);

  • Preocupação com “julgamentos alheios”, imaginados sobre sua pessoa;

  • Desempenho: familiar, social, escolar, espiritual e profissional revelando papéis inadequados.

ATENDIMENTO COM O MÉTODO PSICODRAMÁTICO ON-LINE

Aquecimento específico

Há que se considerar que o protagonista já vinha sendo aquecido para trabalhar com imagens anteriormente, no aquecimento inespecífico, portanto não foi necessário utilizar grande variedade de recursos e objetos intermediários para encontrar o foco da expressividade como comunicador, sendo que, na maior parte do tempo, trabalhou com sua própria memória e com o imaginário.

O fio de Ariadne — que guiou o diretor psicodramatista pelo labirinto das ações e emoções do protagonista — começou a se formar quando o protagonista se apresentou pelo recurso da elaboração de imagem em desenho aos 7 anos de idade como uma criança de braços e pernas abertos para a vida, atuante, com tudo iluminado ao redor: “como se tivesse um self inclusivo e evoluído”. Informou que não se sente mais dessa forma. A imagem que surgiu resume o que não conseguia expressar.

Como o conjunto de papéis desempenhados possibilitam a exteriorização da personalidade no contexto interacional, o aquecimento do protagonista foi se aprofundando e passou a desvelar papéis e relações também pelo simbólico.

Para tanto, utilizou imagens de personagens internos representativos de como via a si e a seus complementares nos quatro papéis que elegeu revisitar: 1) Liderado, em relação ao seu papel de professor, com o diretor (líder) da escola onde trabalha; 2) Irmão, com um dos dois irmãos que tem; 3 e 4) Atendente numa casa espírita versus dois companheiros de prática espiritual.

Revisitar papéis é importante para Gonçalves et al. (1988, p. 74)Gonçalves, C. S., Wolff, J. R. & Almeida, W. C. (1988). Lições de psicodrama. Ágora. porque “o modo de ser, a identidade de um indivíduo decorre dos papéis que complementa ao longo de sua existência e de suas experiencias, com as respostas obtidas na interação social, por papéis que complementam o seu”.

O cliente elegeu como complementares personagens representativos de heróis, vilões, figuras de história em quadrinhos ou de gibis. Associou características aos personagens que são significativamente representativos da forma de se colocar no mundo.

Personagens e suas características foram informando ao diretor psicodramatista a percepção que o protagonista tinha de si nos papéis escolhidos e de seus complementares. As características dadas a si mesmo foram positivas (alegre, saltitante, impulsivo, engraçado, “olhar holístico para a complexidade das relações” etc.). As características dadas aos seus papéis complementares eram de natureza variada (como persistente, desengonçado, psicopata).

A seguir, foi solicitado ao protagonista que assumisse os papéis de seus complementares e verbalizasse frase por cada representante de papel complementar ao seu, resumindo as relações como estão atualmente.

Após as etapas descritas, seu corpo apresentava sensações concentradas no ventre, “no plexo solar”, traduzidas na imagem de uma bola leve fluída, que se move. Essa fluidez e mobilidade com ausência de ansiedade deu informação concreta ao diretor psicodramatista para prosseguir pela manifestação de um estado de espontaneidade presente, que facilita insights (compreensão) e possível transformação, catarse (libertação) em sua conduta.

Dramatização

Seguimos com múltiplas cenas. Primeiro, o protagonista foi motivado a reconstruir sua “capa de atuação real”, que facilitava, a seu ver, sua invisibilidade, por meio de um psicodrama interno. Com total liberdade de ação e visualização das características para a nova capa, a exemplo de cor, peso, tecido, manifestou-se a abertura das portas sensoriais — corpo-mente-ação — que se conectam. A nova capa construída passou a ter ressonância com o estado corporal do protagonista no “aqui-e-agora”, que, além de multicolorida e leve, tinha igualmente fluidez e movimento como seu plexo solar.

Vestido com a nova capa, relaxado fisicamente com provável reflexo nas suas crenças (conservas) e julgamentos, o protagonista passou a vivenciar cenas internas de natureza relacional, com expressividade para seus papéis complementares numa realidade suplementar, ampliada em relação ao que vivenciou até o momento.

Resultou dessas cenas a revisão das frases construídas para três dos quatro papéis eleitos originalmente (irmão e dois complementares companheiros de prática espiritual com distintas funções). Não alterou as frases ditas originalmente em solilóquio por seus complementares para representar o vínculo, mas não há anestesiamento, falta de ação, há efetiva complementaridade. Exemplo: se a frase dita pelo irmão determinava “se soltar” — e isso antes era visto pelo protagonista como uma atitude agressiva para com ele —, agora estava disposto a “se soltar dançando”.

Com relação aos papéis restantes (dos quatro escolhidos de início) — em específico o de professor liderado pelo diretor da escola — decidiu atuar de forma distinta: em nova cena interna, fez um círculo ao redor de seu líder, diretor da escola em que leciona (psicopata, como caracterizou) com os outros três personagens seus e os papéis complementares já trabalhados. Além deles e também no círculo uma “sacerdotisa” que o representa (com olhar holístico para a complexidade das relações), para interagir com esse Líder “num campo energético sutil”.

O protagonista informou estar com a nova capa (chamada de protetora): primeiro “retirando energias densas existentes no Líder” depois “as existentes entre ambos”.

Ao final, em vez do costumeiro receio de se expor, interagiu se comunicando de forma assertiva (objetiva sem ser agressivo): rememorou junto ao Líder sua longa contribuição no papel de docente, “os muitos anos de reconhecido trabalho”; pelo feedback positivo recebido dos pais de seus alunos, exemplificou sua atuação, sua capacidade de perceber diferentes perfis e tendências pessoais, promover agregação no grupo de alunos, “ver o copo sempre meio cheio ao invés de meio vazio”.

O protagonista detalhou ainda os meios criativos que utiliza para manter a atenção e a motivação dos alunos para que interajam em aula virtual — não fiquem omissos com suas câmeras e áudios fechados em decorrência da pandemia. Relembrou os resultados que obtém favorecendo a concretização do elevado conceito que a escola detém há mais de cinquenta anos, traduzido no slogan: “atentos ao tipo de cidadão que vamos entregar para a sociedade”.

Compartilhamento

Após ter reconhecido sua longa prática de trabalhar com a formação do ser humano no papel de docente, declarou-se confortável para atuar em futuro próximo no papel de psicoterapeuta (psicólogo) pois percebeu que “não parte do zero nessa missão de alavancar o outro sob seus cuidados” e, se somos sempre melhores naquilo que praticamos mais, argumentou, está nesse caminho há mais de trinta anos.

Igualmente, reviu a memória indelével de ser julgado como “exibido” pelos pais, figuras primárias e significativas de sua história, harmonizando-se com eles.

O corpo do protagonista, após a dramatização no seu papel de liderado, compartilhou que não tem mais a bola na região do plexo solar ou, como ele definiu, na região de autopoder, agora exercido. Ele afirmou que veste a capa que o protege e fortalece, para atuar sem anestesiamento. Ao fim, decidiu que utilizará sua nova capa para atuar dali por diante em sua realidade social.

Saindo do labirinto

Na busca da reconexão da expressividade de comunicador, com papéis desempenhados, e de dirimir conflitos interrelacionais existentes foi necessário ao protagonista refazer o caminho até a origem do anestesiamento (locus da perda da espontaneidade), que relembra a cena histórica com os pais, chave da trava existente.

As etapas trabalhadas foram:

  • Aquecimentos para a espontaneidade: baixar níveis de ansiedade e defesas até conseguir se comunicar, adaptar-se à realidade mutável por assunção de novos papéis;

  • Uso de recursos para promover novos insights pelas imagens (compreensão diferente da atual) estimulando a criatividade, proporcionando autonomia como comunicador que interage com os demais papéis: de professor, irmão, companheiro espiritual e particularmente o de liderado;

  • Expressões para desvelar questões nas interrelações como comunicador (refletidas em frases representativas dos papéis com inatividade);

  • Fazê-lo tomar consciência de si pelos efeitos físicos e emocionais na interrelação (Eu-Tu) que prejudicam seu status sociométrico, sua aceitação;

  • Proporcionar o imaginar, fantasiar de forma protegida suas novas interações (utilização do psicodrama interno — ambiente privado de movimentação de fatos traduzidos em cenas no palco interno da imaginação); dando liberdade para tomar iniciativas e aceitar ou recusar estímulos que lhe fossem sugeridos nas atuações com os papéis complementares conflitivos;

  • Poder utilizar a potência de comunicador existente no papel de professor longamente exercido, também nos papéis que eram conflitivos (liderado, irmão, companheiro de fé);

  • Promoção de saúde ao Eu pela espontaneidade, e reconexão do corpo que sente, pensa e se comunica de forma integrada em seus papéis.

Os recursos utilizados no ambiente virtual (on-line) foram:

  • Desenho elaborado de imagens internas do protagonista, com seu simbolismo: que dá as características de expressão no mundo, a si e aos seus papéis complementares;

  • Frases, como definição do status quo das relações no aqui-e-agora; reformuladas depois da dramatização;

  • Múltiplas cenas, com o psicodrama interno, interagindo com seus papéis complementares conflitivos intermediado pela potência da “sacerdotisa” imaginada.

DISCUSSÃO

O protagonista reviu e ressignificou sua atuação, pôde ampliar conhecimentos e autoconhecimento e dar respostas novas e adequadas nas suas interrelações, por meio de positiva expressividade na forma de se colocar, formando uma unidade harmônica entre sua comunicação verbal e não verbal. Ele pôde também se libertar da capa de invisibilidade para o comportamento atual de isolamento e inação no papel de comunicador e nos papéis sob reflexão; obter redução da angústia existencial, facilitada pelas imagens de forma cooperativa — ora criando (desenho na autoapresentação), ora simbolizando e/ou interpretando as imagens definidas para si e seus papéis complementares —, foi se permitindo parar com o automatismo dos diálogos internos e externos repetidos e crenças decorrentes, e pôde seguir para o terreno favorável de novos diálogos construídos pela autocompreensão, autoaceitação e consequente transformação (imagens e realidade suplementar) de dentro para fora.

Refletiram-se no corpo do protagonista concretamente as características da nova capa tecida nas dramatizações efetuadas. Vestido com a “nova capa protetora em substituição à de invisibilidade”, pode atuar com seu papel mais conflitivo de liderado e exercitar o autopoder. Fortalecido na expressividade de comunicador, antevê a harmonização e positivas concretizações futuras para seu papel de terapeuta como psicólogo em formação.

O paciente deixou de ignorar suas sensações e deu nome ao que sentia. Seu corpo refletiu bem-estar e espontaneidade como ponte de cura em sentido amplo; luz que, como afirma Moreno, demostra onde estão os contornos sombrios, a existência de paradigmas e conservas. Ele retomou para si a potência, o conceito concretizado na imagem de autoapresentação aos sete anos: de ter “um self inclusivo e evoluído”.

Minha tese é que o locus do self está na espontaneidade … quando a espontaneidade está a zero o self está a zero. Conforme declina a espontaneidade, murcha o self. Quando a espontaneidade cresce, o self se expande. Se for ilimitado o potencial da espontaneidade, o potencial do self é ilimitado. Uma é função do outro (Moreno, 1923/1984Moreno, J. L. (1984). O teatro da espontaneidade (M. S. Mourão Neto, Trad.). Summus. (Obra original publicada em 1923), p. 20-21).

A multiplicidade de cenas ocorridas de forma protegida (psicodrama interno) possibilitou antever-se em novas interações e diálogos. O caminho resultou tanto na ressignificação de acontecimentos passados como possibilitou que o que é saudável no aqui e agora (competências, valores, motivadores) em papel desenvolvido (positivamente reconhecido de professor) ressoe nos papéis em desenvolvimento.

Frases definidas inicialmente representativas da interrelação com seus papéis complementares foram reformuladas, a saída do labirinto pela reconstrução da nova “capa”, com abertura às novas formas de se comunicar, através das imagens que nesses tempos de pandemia, no virtual, formam excelente recurso de trabalho.

Pode-se bem dizer que o psicodrama enriquece o paciente com uma experiencia nova e alargada da realidade, uma “realidade suplementar” pluridimensional, um ganho que ressarce, pelo menos em parte, o sacrifício que ele teve que fazer durante o trabalho de produção psicodramática (Moreno, 1959/1999Moreno, J.L. (1999). Psicoterapia de grupo e psicodrama (J. C. V. Gomes, Trad.). 3. ed. Livro Pleno. (Obra original publicada em 1959), p. 104).

Retomando questão colocada de início: é possível pela metodologia psicodramática ressoar competências de um papel desenvolvido para outros em desenvolvimento? Sim, é possível e, especificamente neste caso, em que a competência reconhecida de comunicador no papel de docente passará a ser usada na de liderado e, ainda, no papel de facilitador nas aulas de Psicologia requerido ao protagonista depois desse encontro, com adequada desenvoltura como terapeuta no laboratório de práticas inerentes a essa formação.

CONCLUSÃO

Essa metodologia vai efetivamente além do seu tempo e abarca nesse momento de pandemia a diversidade de papéis desempenhados, em situações novas que nos são apresentadas como psicodramatistas, pelos nossos complementares protagonistas, por permitir criar respostas espontâneas e adequadas em qualquer situação.

A prática do psicodrama confirma que somos melhores no que praticamos mais e que a repetição no agir, no desempenho de papéis quebra conservas inadequadas, modifica posturas relacionais engessadas, liberando a espontaneidade, a criatividade, os fatores tele, a adequação e a expressividade na comunicação, desde que o diretor psicodramatista focalize a origem (matriz) do problema, favorecendo ao protagonista sua compreensão (insight) e a libertação (catarse), como foi trabalhado com o professor que carregou durante anos a capa da invisibilidade e construiu a nova capa protetora, num atendimento virtual.

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    Assim como o evidente declínio da função criadora do homem, ao enfrentar os problemas de nosso tempo, nos obrigou a proceder a uma análise e reavaliação da conserva cultural, também nos vimos forçados a dirigir nossa atenção para os fatores de espontaneidade e criatividade, de um novo ponto de vista. O problema consiste em substituir um sistema de valores desgastado e obsoleto, dentre as conservas culturais, por um novo sistema de valores mais adequado com as circunstâncias de nossa época: o complexo espontaneidade-criatividade tele e adequação.
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    O termo límbico corresponde a um adjetivo que dá o valor de relativo ou pertencente ao limbo, ou seja, remete para o conceito de margem. O sistema límbico compreende todas as estruturas cerebrais que estejam relacionadas, principalmente, com comportamentos emocionais e sexuais, aprendizagem, memória, motivação, mas também com algumas respostas homeostáticas.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editora de seção: Amanda Castro. https://orcid.org/0000-0002-8666-4494

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2022
  • Aceito
    07 Fev 2023
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