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Multifuncionalidade de mesmo: relação entre função e ordenação morfossintática1 1 Este artigo retoma e reelabora parte dos resultados da dissertação denominada O uso de mesmo em cartas do português brasileiro dos séculos XVIII, XIX e XX, desenvolvida por Ana Carolina Teixeira Peres (2020), sob a orientação de Erotilde Goreti Pezatti (UNESP/SJRP).

Multi-functionality of mesmo: Relationship between function and morphosyntactic ordering

RESUMO

Este estudo investiga o uso de mesmo no português brasileiro, tomando como suporte teórico a Gramática Discursivo-Funcional, desenvolvida por Hengeveld e Mackenzie (2008). A proposta consiste em investigar a multifuncionalidade desse item linguístico, relacionando-a às camadas propostas por esse modelo teórico, tendo como hipótese a de que propriedades pragmática ou semântica determinam a codificação no Nível Morfossintático com relação à posição na unidade sintática (oração ou sintagma). Para tanto, utiliza como universo de pesquisa cartas particulares e cartas oficiais extraídas do corpus do Projeto para a História do Português Brasileiro (https://sites.google.com/site/corporaphpb). O objetivo consiste em verificar se os diferentes usos são morfossintaticamente codificados pela posição no domínio do sintagma ou da oração. Os resultados revelam que mesmo, no Nível Interpessoal, escopa Subatos, indicando a categoria pragmática Ênfase ou a função pragmática Contraste e ocupa as posições inicial (PI) ou final (PF) do sintagma; já no Nível Representacional, atua como núcleo ocupando sempre a posição medial (PM), como operador de identidade, posiciona-se à esquerda do sintagma (PI+1), e como modificador de Estado de Coisas, assume posições adjacentes à palavra verbal.

Palavras-chave:
Funcionalismo; Ordem de constituintes; Mesmo; Multifuncionalidade

ABSTRACT

This study investigates the use of mesmo in Brazilian Portuguese, taking as theoretical support Functional Discourse Grammar, developed by Hengeveld and Mackenzie (2008). The proposal consists of investigating the multi-functionality of this linguistic item, relating it to the layers proposed by this theoretical model, with the hypothesis that the pragmatic or semantic aspect determines the codification of the Morphosyntactic Level in relation to the position in the syntactic unit (clause or phrase). Therefore, it uses private letters and official letters extracted from the corpus of the Project for the History of Brazilian Portuguese (https://sites.google.com/site/corporaphpb) as a research universe. The objectives are to verify if the different uses are morphosyntactically codified by the position they occupy in the phrase or clause domain. The results reveal that mesmo, at the Interpersonal Level, scopes Subatos, indicating the pragmatic category Emphasis or the pragmatic function Contrast and occupies the initial (PI) or final (PF) positions of the phrase; at the Representational Level, it acts either as a nucleus, always occupying the medial position (PM), or as an identity operator, positioning itself to the left of the phrase (PI+1), or even as a State of Affairs modifier, occupying, in this case, positions adjacent to the verbal word.

Keywords:
Functionalism; Word order; Mesmo; Multifunctionality

Apresentação

Este artigo investiga a multifuncionalidade de mesmo, no português brasileiro, tomando como aparato teórico o modelo da Gramática Discursivo-Funcional (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008HENGEVELD, Kees; MACKENZIE, John Lachlan. Functional Discourse Grammar: a typologically-based theory of language structure. Oxford: Oxford University Press, 2008.), e como universo de pesquisa, cartas particulares e oficiais extraídas do corpus do PHPB, projeto coordenado por Ataliba Teixeira de Castilho.

Na literatura linguística, os estudiosos (por exemplo ROCHA LIMA (1976ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.), NEVES (2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000.), AZEREDO (2008AZEREDO, José Carlos de. Gramática houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008.), SANTOS-AMORIM (2008SANTOS-AMORIM, Neide Correia. O item linguístico mesmo no português do Brasil colonial e imperial: usos e funções. In: XV Congresso Internacional, Montevidéu, 2008. Anais [...]. Montevidéu: Asociación de linguística y filologia de América Latina (ALFAL), 2008.)), concordam que, além de seu valor pronominal, mesmo tem valor de realce, reforço; não aliam, no entanto, os diferentes usos à posição que ele ocupa, se no sintagma, se na oração, se antes ou depois do elemento escopado, como mostram as ocorrências de (1) a (3).

  1. (1) Pode ser aplicado sôbre todos os assoalhos, sejam eles novos ou mesmo muito velhos . [1AnunXX2MG]

  2. (2) Você mesmo conhece muitas pessoas que tem Caderneta, e qualquer delas pode dizer por que você deve abrir a sua. [1AnunXX2CE]

  3. (3) A cobicia fez mesmo com que mui-| tos d’elles tem se atrevido em substituir o iodureto de ferro por IATRIOLO !!! (1AnunXIX2PBPARTE1)

Considerando que as escolhas pragmáticas e semânticas do falante são refletidas na forma morfossintática, optamos pelo modelo da Gramática Discursivo-Funcional (GDF), uma vez que esse aparato teórico apresenta uma arquitetura modular, com uma organização descendente, pois entende que um modelo de gramática será mais eficaz quanto mais sua organização se assemelhar ao processamento linguístico no indivíduo. Assim, a construção de expressões linguísticas se inicia na intenção do Falante, no seu objetivo comunicativo e termina na articulação das expressões linguísticas. Isso implica que o ponto de vista desse modelo é o Falante, e parte, portanto, da produção para a interpretação.

A proposta deste estudo consiste em investigar a multifuncionalidade desse constituinte, relacionando-a às camadas propostas pela GDF, com o objetivo de verificar as posições que mesmo ocupa no domínio de unidades morfossintáticas (Oração ou Sintagma), e se os diferentes usos estão relacionados à posição dentro do sintagma e da oração.

Como universo de pesquisa, tomam-se ocorrências reais de uso, extraídas do corpus do Projeto para a História do Português Brasileiro, que se encontra catalogado na Plataforma de Corpora, uma sistematização de todos os materiais editados pelos membros do Projeto. Esse material está disponibilizado na página https://sites.google.com/site/corporaphpb. Do Corpus Mínimo Comum, delimitamos como universo de análise cartas particulares e oficiais, com a pressuposição de que, nesse gênero, encontraríamos um número suficiente de ocorrências relacionadas tanto ao Nível Representacional quanto ao Interpessoal, principalmente devido ao caráter de maior proximidade das cartas particulares, o que nos permitiria abstrair generalizações com segurança; o que, de fato, se confirmou, já que foram coletadas 837 ocorrências, sendo 544 em cartas particulares e 293 em cartas oficiais do corpus mínimo manuscrito, o que nos proporciona segurança na sistematização dos resultados da análise. É necessário destacar que, para o momento, não é de nosso interesse a comparação entre os dois tipos de cartas.

Tabela 1:
Número de ocorrências

O texto encontra-se dividido em cinco seções. A seção 1 traz uma breve revisão do tratamento dado a mesmo na literatura; em 2, são apresentados os pressupostos teóricos da teoria que serve de base para o estudo. Na seção 3, constam a análise e a apresentação dos resultados. Essas seções são seguidas pelas considerações finais, que sintetizam os resultados, fazendo uma sistematização do uso de mesmo no português brasileiro (PB).

Mesmo na literatura linguística

Nas gramáticas de referência, mesmo tem sido considerado pronome demonstrativo. Para Rocha Lima (1976ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.) e Neves (2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000.), esse item tem valor demonstrativo de identidade e reforço, conforme exemplificado em (4) e (5). Neves (2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000.) observa ainda que mesmo pode indicar identidade idêntica, como em (6). Azeredo (2008AZEREDO, José Carlos de. Gramática houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008.), por sua vez, afirma que esse item tem a função de pronome com determinação remissiva, quando o “conceito, objeto ou ser designado pelo SN é conhecido do interlocutor ou faz parte da situação comunicativa ou do texto”. Ainda segundo Azeredo, mesmo é utilizado no discurso quando o interlocutor sente a necessidade de fazer comparações totais, como em (7).

  1. (4) “E a natureza assiste, /Na mesma solidão e na mesma hora triste, /À agonia do herói e à agonia da tarde.” (ROCHA LIMA, 1976ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976., p. 295)

  2. (5) Eu próprio (ou própria) falei à mesma pessoa que nos tem procurado. (ROCHA LIMA, 1976ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976., p. 295)

  3. (6) Ela MESMA não sabia de si, o que faria logo, onde estaria amanhã. (PV) (NEVES, 2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000., p. 492)

  4. (7) O ministério usou o mesmo slogan da campanha anterior. (AZEREDO, 2008AZEREDO, José Carlos de. Gramática houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008., p. 257)

Bechara (2009BECHARA, Evanildo. Moderna gramática da língua portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2009., p. 228) observa que “Mesmo pode corresponder a dois vocábulos latinos: idem (identidade) e ipse (reforço). No primeiro caso, denota identidade e reclama a presença do artigo ou de outro demonstrativo. Disse as mesmas coisas”. Já no sentido de ipse, “emprega-se junto a substantivo ou pronome e equivale a próprio, em pessoa (em sentido próprio ou figurado): Ela mesma se condenou”.

Santos-Amorim (2009SANTOS-AMORIM, Neide Correia Santanna de. O item linguístico mesmo: confrontando usos e funções no português do Brasil. 2009. 228f. Tese (Doutorado em Linguística e ensino. Área de Concentração: Gramática do Uso) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009., p. 75), em sua tese de doutorado, denominada O item linguístico mesmo: confrontando usos e funções no português do Brasil, esclarece que mesmo “aporta na língua portuguesa como pronome demonstrativo expressando reforço ou denotando semanticamente ‘identidade’, aquilo que é repetido, ‘igual’, fazendo referência a algo já enunciado ou conhecido no evento comunicativo”. Em seu trabalho sobre as funções e usos de mesmo no Brasil colonial e imperial, Santos-Amorim (2008SANTOS-AMORIM, Neide Correia. O item linguístico mesmo no português do Brasil colonial e imperial: usos e funções. In: XV Congresso Internacional, Montevidéu, 2008. Anais [...]. Montevidéu: Asociación de linguística y filologia de América Latina (ALFAL), 2008., p. 6) afirma que “nas cartas coloniais e imperiais [...] o item mesmo apresenta-se expressando valores anafóricos, estabelecendo relações coesivas em diferentes situações de usos adnominais e nominais.” Ainda segundo Santos-Amorim (2008SANTOS-AMORIM, Neide Correia. O item linguístico mesmo no português do Brasil colonial e imperial: usos e funções. In: XV Congresso Internacional, Montevidéu, 2008. Anais [...]. Montevidéu: Asociación de linguística y filologia de América Latina (ALFAL), 2008., p. 6), quando categoria de referência adnominal, mesmo “apresenta-se flexionado e anteposto a um substantivo precedido de artigo, atribuindo-lhe uma qualidade e, ao mesmo tempo, identificando e fazendo referência a algo já, explicitamente, mencionado ou conhecido no texto”; e quando categorizado como referência nominal, mesmo é marcado com “valor de substantivo ou nome nos textos, desempenhando, igualmente, papéis referenciais anafóricos. Essa substantivação é marcada, no discurso, pela presença do artigo definido que lhe é anteposto (o mesmo), estratégia conhecida como nominalização (cf. KOCH, 2006, p. 90).”

Dantas et al. (2018DANTAS, Maria Leuziedna et al. Gramaticalização do item linguístico mesmo: funções polissêmicas do uso. ID on line Revista de Psicologia, v. 12, n. 41, p. 1096-1108, jul. 2018., p. 1102), em seu estudo intitulado “Gramaticalização do item linguístico mesmo: funções polissêmicas do uso”, afirmam que mesmo apresenta certa ambiguidade quanto ao uso adnominal e adverbial, já que “como valor adnominal, aparece modificando um pronome (nomes) e como valor adverbial, verificamos uma relação duvidosa, que não permite justificá-lo como invariável.” (DANTAS et al., 2018DANTAS, Maria Leuziedna et al. Gramaticalização do item linguístico mesmo: funções polissêmicas do uso. ID on line Revista de Psicologia, v. 12, n. 41, p. 1096-1108, jul. 2018., p. 1104). Quando trata do seu valor adnominal, o estudo aponta que mesmo pode modificar pronomes pessoais e substantivos com o intuito de enfatizar uma relação de identidade, tendo então um valor anafórico nominal e um valor dêitico quando modifica um pronome ou advérbio. Já com seu valor adverbial, segundo as autoras, pode apresentar valores restritivos, inclusivos, concessivos e de premissa. Com isso, Dantas e colaboradores (2018DANTAS, Maria Leuziedna et al. Gramaticalização do item linguístico mesmo: funções polissêmicas do uso. ID on line Revista de Psicologia, v. 12, n. 41, p. 1096-1108, jul. 2018., p. 1106/1107) concluem que mesmo “apresenta uma polissemia de usos” e que essa polissemia está relacionada “às pressões argumentativas do falante na tentativa de veicular as estratégias que giram em torno do grau de informatividade representacional e de pressuposicionalidade das sentenças.”

Pereira e Görski (2016PEREIRA, Ivelã; GÖRSKI, Edair. A multifuncionalidade do item “mesmo” e sua(s) possível(is) trajetória(s) de gramaticalização. Guavira Letras, Três Lagoas, n. 22, p. 31-47, jan./jun. 2016., p. 38), ao tratarem da multifuncionalidade de mesmo, distinguem categorias funcionais, que denominam ‘macrocategorias’, uma vez que, dentro delas (ou entre elas), há outras funções mais específicas, chamadas de “categorias primárias”, além de funções híbridas, ainda mais específicas, denominadas “microcategorias”. As ‘macrocategorias’ são referência/anáfora, concomitância, articulação textual, reforço e inclusão/exclusão. Dentro de cada ‘macrocategoria’ existem funções mais específicas, como referência atributiva, nominal, concomitância temporal, reforçador identitário etc., e funções ainda mais específicas, que podem ser: reforçador argumentativo, inclusão/articulação textual de concessividade, concessividade condicional, entre outras.

Como se nota, esse item linguístico tem chamado a atenção de muitos estudiosos por sua multifuncionalidade. Entretanto, os estudiosos não estabelecem uma relação clara entre o seu papel e a posição assumida por ele em unidades morfossintáticas. Como já observado, é isso que este estudo propõe: esclarecer os diferentes usos de mesmo, aliando-os à posição que ocupam na unidade linguística de que faz parte, uma vez que, para a GDF, a ordenação, uma propriedade morfossintática, reflete as formulações interpessoais e semânticas.

A Gramática Discursivo-Funcional e a ordenação de constituintes

A GDF é uma teoria que tem como objetivo descrever e esclarecer as propriedades formais das unidades linguísticas, de um modo descendente: origina-se na intenção do falante, ou seja, no seu objetivo comunicativo, e vai em direção à articulação das expressões linguísticas, passando, então, pela semântica, sintaxe e morfologia. Segundo os autores, o modelo descendente baseia-se na “suposição de que um modelo de gramática será mais eficaz quanto mais sua organização se assemelhar ao processamento linguístico no indivíduo” (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008HENGEVELD, Kees; MACKENZIE, John Lachlan. Functional Discourse Grammar: a typologically-based theory of language structure. Oxford: Oxford University Press, 2008., p. 1-2).2 2 This is motivated by the assumption that a model of grammar will be more effective the more its organization resembles language processing in the individual.

Há quatro componentes que participam do processamento das línguas naturais durante a interação verbal: um Componente Gramatical e três Componentes não gramaticais: Conceitual, Contextual e de Saída, conforme mostra a Figura 1.

Figura 1:
Arquitetura geral da GDF

O Componente Conceitual se encarrega da intenção comunicativa do falante e das conceitualizações dos eventos extralinguísticos; é considerado a “força motriz” por trás de todo o Componente Gramatical. Já o Componente de Saída é responsável por gerar as informações fornecidas pelo Componente Gramatical, sendo entendido como uma interpretação das expressões do Componente Gramatical. O Componente Contextual, por sua vez, contém informações sobre o conteúdo e a forma do discurso precedente, bem como as do contexto real perceptível em que ocorre o evento de fala e das relações sociais entre os participantes, que são relevantes para muitos processos gramaticais (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008HENGEVELD, Kees; MACKENZIE, John Lachlan. Functional Discourse Grammar: a typologically-based theory of language structure. Oxford: Oxford University Press, 2008., p. 6).

O modelo de estruturação da gramática, proposto por Hengeveld e Mackenzie (2008HENGEVELD, Kees; MACKENZIE, John Lachlan. Functional Discourse Grammar: a typologically-based theory of language structure. Oxford: Oxford University Press, 2008.), é estruturado hierarquicamente em camadas, e cada um dos níveis de representação é organizado de uma maneira própria. Dentro desse esquema, representado na Figura 1, a GDF distingue quatro níveis interatuantes de organização na seguinte ordem hierárquica: o Nível Interpessoal, o Nível Representacional, o Nível Morfossintático e o Nível Fonológico. Trata-se do componente gramatical de uma teoria mais abrangente da interação verbal, que interage com componentes não-linguísticos do processo de comunicação.

Na organização hierárquica da GDF, a estrutura geral das camadas dentro de cada nível é constituída de um núcleo representado por uma variável (v1), que é restringida por um núcleo (possivelmente complexo) que toma a variável como argumento e pode ser restringida por um modificador (σ). A camada pode ser especificada por um operador (π) e ter uma função (Փ). Núcleos e modificadores são estratégias lexicais, enquanto operadores e funções representam estratégias gramaticais. A diferença entre operadores e funções é que função sempre relaciona uma unidade a outras unidades dentro da camada, enquanto operadores se aplicam somente a uma unidade em si mesma. Núcleos e modificadores constituem estratégias lexicais, ou seja, pertencem ao léxico de uma língua particular, e fazem referência ao mundo extralinguístico, enquanto operadores e funções são categorias propriamente linguísticas.

O Nível Interpessoal trata dos aspectos formais da unidade linguística que refletem seu papel na interação entre Falante e Ouvinte. Na interação cada participante tem um objetivo em mente, que determina a estratégia adotada pelo Falante para obter o seu propósito comunicativo. Nesse nível, todas as unidades relevantes de comportamento comunicativo são formalizadas em termos de sua função comunicativa. A unidade de análise hierarquicamente mais alta nesse nível é o Movimento (M). Um Movimento pode conter um ou mais Atos Discursivos (A). Um Ato Discursivo consiste em uma Ilocução (F), um ou mais Participantes do ato de fala (P) e o Conteúdo Comunicado (C) apresentado pelo falante. O Conteúdo Comunicado, por sua vez, pode conter um número variável de Subatos Atributivos (T), que expressam a tentativa do Falante de evocar uma propriedade, e Subatos Referenciais, que constituem a tentativa do Falante de evocar um referente, ou seja, um conjunto nulo, único ou múltiplo de entidades.

No Nível Representacional, diferentemente do Nível Interpessoal, são tratados os aspectos semânticos das unidades linguísticas que envolvem tanto o modo como a língua se relaciona ao mundo extralinguístico que ela descreve quanto aos significados de unidades lexicais simples e complexas, independentemente do modo como essas unidades são usadas na comunicação. Nesse nível, descrevem-se as unidades linguísticas em termos de sua categoria semântica. Enquanto o Nível Interpessoal trata da evocação, o Representacional lida com a denotação. Conteúdos Proposicionais (p), unidades mais altas do Nível Representacional, são construtos mentais, que podem conter um ou mais Episódios (ep), que, por sua vez, constituem conjuntos de Estados de Coisas tematicamente coerentes, no sentido de que apresentam unidade ou continuidade de Tempo (t), Lugar (l) e Indivíduos (x). Estados de Coisas (e) incluem eventos e estados que se caracterizam por serem localizados no tempo e avaliados em termos de seu estatuto factual. Um Estado de Coisas contém uma Propriedade Configuracional (f), que tem natureza composicional e abrange uma combinação de unidades semânticas que não estão em relação hierárquica entre si, como Indivíduo (x), Lugar (l), Tempo (t), Maneira (m), Quantidade (q) e Razão.

O Nível Morfossintático, por outro lado, trata dos aspectos estruturais de uma unidade linguística. Juntamente com o Nível Fonológico, cuida da codificação das distinções interpessoais e representacionais. Em vista dessa função, muito do que ocorre no Nível Morfossintático é funcionalmente motivado: princípios de ordenação são motivados pelos princípios de Iconicidade, Integridade de Domínio e Preservação de Relações de Escopo. Entretanto, deve-se levar em conta que esse nível tem seus próprios princípios de organização, que podem não ser funcionalmente motivados. A camada mais alta do Nível Morfossintático é a Expressão Linguística (Linguistic Expression - Le), ou seja, qualquer conjunto de pelo menos uma unidade morfossintática; se houver mais de uma unidade dentro da Expressão Linguística, elas terão as mesmas propriedades morfossintáticas. As unidades que se combinam para formar a Expressão Linguística são: Orações, Sintagmas e Palavras.

O Nível Fonológico, por sua vez, é responsável pelos aspectos de codificação que não ocorrem no Nível Morfossintático. Ele recebe o input - alguns já na forma fonêmica - dos outros três níveis e provê o input para o Componente de Saída. Enquanto o Componente de Saída lida com questões relacionadas a frequência, intensidade, duração, o Nível Fonológico - sendo gramatical - é ‘digital’, e contém representações de fonemas que são baseadas em oposições fonológicas binárias.

A ordenação de constituintes na GDF

Na GDF, a ordenação de constituintes está relacionada ao Nível Morfossintático, cuja tarefa é tomar o input duplo vindo dos níveis Interpessoal e Representacional e fazê-lo emergir numa única representação estrutural, que, por sua vez, se converterá, no Nível Fonológico, num construto fonológico, que será, finalmente, o input para o articulador, o Componente de Saída de todo o modelo. Dada a sistemática organização descendente da GDF, a ordenação de constituintes se inicia com a expressão morfossintática das partes hierarquicamente organizadas nos níveis Interpessoal e Representacional, partindo das camadas mais altas, passando pelas mais baixas até chegar ao conteúdo e moldes de predicação. O Nível Morfossintático contém padrões para moldes hierárquicos e não-hierárquicos. Posições obrigatórias nos padrões para as quais não há material disponível vindo dos níveis Interpessoal e Representacional serão preenchidas com elementos vazios (dummies)3 3 Elementos vazios (dummies) ou suporte são palavras gramaticais introduzidas no Nível Morfossintático em resposta a configurações particulares dos níveis Interpessoal ou Representacional (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008, p. 401). .

Como já fica subentendido, são hierárquicos os constituintes que subordinam outros constituintes ou são a eles subordinados; o que significa, em termos do modelo, que pertencem a camadas diferentes. Na ordenação hierárquica, que é baseada em considerações de escopo, são atribuídas posições com fluxo descendente a elementos hierarquicamente relacionados. Os não-hierárquicos, por outro lado, pertencem à mesma camada e têm o mesmo estatuto dentro da oração. Na ordenação não-hierárquica, que se baseia em considerações de alinhamento, os elementos de configuração relacional, tais como os de relação predicado-argumento ou de núcleo-modificador, são ordenados com base em suas propriedades pragmáticas, semânticas e/ou morfossintáticas, dependendo da língua sob consideração.

A GDF considera a existência de quatro posições absolutas (PI, P2, PM e PF), que não são obrigatórias para todas as línguas, e várias posições relativas derivadas dessas quatro. Assim, as línguas podem fazer uso da posição inicial (PI) e suas expansões para a direita, da segunda posição (P2) e suas expansões para a direita, da posição final (PF) e suas expansões para a esquerda e da posição medial (PM) e suas expansões para a direita, para a esquerda ou para ambas as direções, conforme graficamente representado em (8).

A colocação de constituintes começa pelo Nível Interpessoal, com o posicionamento de funções, modificadores e operadores de Movimentos em lugares apropriados, e termina com o posicionamento de Operadores e Modificadores de Propriedades Configuracionais de Estados de Coisas. Dentro de cada grupo, as funções são expressas antes de Operadores e Modificadores, uma vez que são externas às unidades às quais se aplicam, obedecendo assim ao Princípio de Iconicidade das unidades hierarquicamente relacionadas.

Conforme Pezatti (2014PEZATTI, Erotilde Goreti. A ordem das palavras no português. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.), em português, no processo de colocação de elementos em posições apropriadas, há apenas três posições já disponíveis, PI, PM e PF. As duas posições periféricas (PI e PF) são psicologicamente salientes, enquanto a posição medial é menos saliente e depende do número de constituintes que uma oração pode conter. As posições relativas (PI+n, PM+/-n e PF-n) só podem ser preenchidas quando a posição absoluta já estiver preenchida.

Vários fatores podem interferir na determinação da ordenação de constituintes: fatores relativos às funções pragmáticas e à referenciação associam-se ao Nível Interpessoal; os relacionados às funções semânticas e à designação, ao Representacional; e os relacionados às funções sintáticas e à complexidade estrutural do item linguístico, ao Morfossintático.

Se em uma língua a ordenação de constituintes é direcionada por funções pragmáticas, a colocação desses constituintes deve preceder a de outros constituintes, e tem preferência pelas posições marginais da oração, como em (9), em que o constituinte o macarrão, com função pragmática Tópico, ocupa a posição inicial da oração.

O uso de mesmo no português brasileiro

Como já adiantado, foram coletadas um total de 837 ocorrências. A análise dos dados mostrou que mesmo pode operar nos dois níveis de formulação, propostos pela GDF: no Nível Interpessoal (NI) e no Nível Representacional (NR), com consequências na codificação do Nível Morfossintático (NM), conforme resume a Tabela 2.

Tabela 2:
Número de ocorrências em cada nível.

A Tabela 2 mostra que mesmo opera predominantemente no Nível Representacional, com 66,6% dos casos, o que indica que seu uso é primeiramente semântico, conforme ficará claro adiante. Os resultados serão apresentados em duas seções: a primeira trata de mesmo no Nível Interpessoal, e a segunda, no Nível Representacional.

Mesmo interpessoal

O Nível Interpessoal, como vimos, trata dos aspectos formais da unidade linguística que refletem seu papel na interação entre Falante e Ouvinte. Na interação cada participante tem um objetivo em mente, que determina a estratégia adotada pelo Falante para obter o seu propósito comunicativo. Do total de ocorrências (837), 279 (33,3%) constituem estratégias desse nível, ou seja, mesmo é utilizado na interação entre os participantes para indicar intensificação de uma camada ou para indicar o desejo do Falante de realçar diferenças particulares entre dois ou mais Conteúdos Comunicados ou entre um Conteúdo Comunicado e informações contextualmente disponíveis. Trata-se, no primeiro caso, da categoria Ênfase e no segundo, da função pragmática Contraste. Como mostra a Tabela 3, do total geral (837), mesmo indicando Ênfase, corresponde a 28,5%, enquanto mesmo contrastivo corresponde a apenas 4,7%. Já dos 279 casos do Nível Interpessoal, a maioria (85,6%) constitui casos de Ênfase, e apenas 14,3%, dos casos indicam a função pragmática Contraste. Vejamos cada caso.

Tabela 3:
Uso de mesmo no Nível Interpessoal

Ênfase

Na literatura linguística, como vimos, os estudiosos (ROCHA LIMA, 1976ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.; NEVES, 2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000.; AZEREDO, 2008AZEREDO, José Carlos de. Gramática houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008.; BECHARA, 2009BECHARA, Evanildo. Moderna gramática da língua portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2009.; SANTOS-AMORIM, 2009SANTOS-AMORIM, Neide Correia Santanna de. O item linguístico mesmo: confrontando usos e funções no português do Brasil. 2009. 228f. Tese (Doutorado em Linguística e ensino. Área de Concentração: Gramática do Uso) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009.; DANTAS et al. 2018DANTAS, Maria Leuziedna et al. Gramaticalização do item linguístico mesmo: funções polissêmicas do uso. ID on line Revista de Psicologia, v. 12, n. 41, p. 1096-1108, jul. 2018.; PEREIRA; GÖRSKI, 2016PEREIRA, Ivelã; GÖRSKI, Edair. A multifuncionalidade do item “mesmo” e sua(s) possível(is) trajetória(s) de gramaticalização. Guavira Letras, Três Lagoas, n. 22, p. 31-47, jan./jun. 2016.; entre outros) afirmam que mesmo pode indicar reforço, conforme exemplificam as ocorrências (10) e (11), extraídas do corpus.

  1. (10) “Muito difícil... mesmo para um ale- | mão” disse-me o frade. (CARparticularXX1PE)4 4 Essa ocorrência permite outra leitura, a de que mesmo escopa difícil. No entanto, o conteúdo da carta como um todo conduz para a interpretação de que mesmo escopa alemão.

  2. (11) Adoro! || Muitíssimo mesmo! (1CARpessoaisXX2SC)

A GDF considera esse uso de mesmo uma estratégia utilizada pelo Falante, com a finalidade de intensificar um constituinte ou uma expressão linguística inteira, para assim atingir seu propósito comunicativo. A essa estratégia interpessoal denomina-se Ênfase. Por ser uma maneira de salientar constituintes, e exatamente por isso, é comumente confundida com Foco. Para a GDF, no entanto, Foco e Ênfase configuram diferentes estratégias linguísticas pertencentes ao Nível Interpessoal. Enquanto Foco é uma função pragmática de seleção de informação nova, avaliada como essencial para ser integrada à informação pragmática do destinatário e se aplica à camada do Conteúdo Comunicado, a categoria pragmática Ênfase intensifica um constituinte de qualquer camada do Nível Interpessoal. A análise aqui efetuada revela que a Ênfase marcada por mesmo é produtiva, visto que ocorre em 28,5% (239) do total geral das ocorrências, e em 85.6% das ocorrências neste nível.

Essa categoria interpessoal marcada por mesmo, nos dados analisados, se aplica sempre a Subatos Referenciais. É comum o uso de mesmo para intensificar Subatos de Referência que representam um dos participantes do discurso, ou seja, a primeira (Falante) ou segunda pessoa (Ouvinte) do discurso, conforme exemplificam respectivamente (12) e (13). Nesse caso, sempre se posiciona em PF do Sintagma, como mostram (12a) e (13a).5 5 Cl (clause) = Oração; Xp (X phrase) = qualquer tipo de Sintagma.

(12)
Recebi hoje tua prezada cartinha que res = pondo: Quando me pediste cylindros para phonographo, o meio que tinha era o Fiquer, então dei ordem que te mandasse alguns para escolher, dias depois o Brigue recebeu, ahi eu mesmo fui lá escolhi alguns , e dei ordem que te despachasse. (CARparticularXIX2SP)
(13)
É isto que me autoriza a fazer um pequeno reparo sobre a palavra grafada enfesado por Torga mas que o correto é enfezado, conformevocê mesmo verifico u (2CARpessoaisXX2SC)

Já as ocorrências em (14), (15) e (16) exemplificam casos de Ênfase sobre Subatos de Referência, que constituem uma forma de ação comunicativa do Falante para evocar um referente externo à interação.

(14)
Aqui mesmo no Município há alguns hermistas principalmente em Bom Jesus estou procurando remover o chefe é o Antonio Ernesto de Oliveira anulado pelo Gerente da Fabrica Mazagão (...) (2CARparticularXX1RJCéliaLopes)
(15)
desta sorte foi nesta Praça cento etantas reclutas sem que fosse necessario prender hum unico Pay por todos com parecerem, efaria mais seos houvesse; isto mesmo he o que Vossa Senhoria deve praticar nessa cidade, eno cazo que os Pays não obedeção castigalos conforme lheparecer justo: Deus (1CARoficialXVIII2PB)

Observe que, nas ocorrências (12), (13), (14) e (15), o Sintagma que contém mesmo ocupa a posição inicial (PI) da Oração, e mesmo, a posição após o núcleo nominal, ou seja, a final (PF) do Sintagma.

Essas ocorrências nos permitem concluir que mesmo enfático ocupa sempre a posição final (PF) do Sintagma. Em outras palavras, a ordenação no Sintagma codifica a Ênfase em Subatos marcada por mesmo.

A entidade evocada pelo Subato de Referência pode, no Nível Representacional, ser de qualquer categoria semântica. Assim, em (14), a entidade enfatizada é aqui, que indica a categoria semântica de Lugar (l); em (15), a Ênfase recai sobre isto, uma proforma que retoma um conteúdo proposicional (p).

Quando, no entanto, a entidade evocada pelo Subato Referencial indica a categoria semântica indivíduo (x), entidade de primeira ordem (concreta, tangível), que pode ser localizada no espaço e avaliada em termos de sua existência, ocorre o processo morfossintático de concordância, ou seja, mesmo assume a forma do gênero e do número da entidade evocada, conforme atestam as ocorrências (16) e (17): em (16) assume a forma de masculino na 3ª pessoa do plural, e em (17) concorda com a 2ª pessoa do discurso no singular.

  1. (16) como devia a sua carta, emquanto disse que | tinha nos Indios, jurisdiçaõ temporal, e espiri- | tual, a saber que a temporal naõ hera jurisdiçaõ, | mas somente humpoder, como de curador, eadmi- | nistradordaquelles miseráveis, que senaõ sabem | governar asi mesmos ; (...) (CARoficiaisXVIII1RN)

  2. (17) Com effeito sempre mandei| moer moer sem meação as| cannas do Pitta - que regulava| por umas 4 tarefas, ficando| mel para o Engenho, e acucar| dos escravos, quando elles por| si mesmo plantavão - Diga| por si mesmo , por que algumas| pretas querião gosar do favor| quando as cannas erão plantadas| por gente forra com o nome| dellas. (1CARparticularXIX2BAFeira)

Como mostra a análise, quando marcador de Ênfase dentro do sintagma, mesmo ocupa a posição após o núcleo a que enfatiza, ou seja, a posição PF do sintagma, como representado no Quadro 1.

Quadro 1:
Posição de mesmo enfático

Função pragmática Contraste

Mesmo, no entanto, pode, ainda no Nível Interpessoal, assinalar uma função pragmática. Na GDF, a Pragmática é uma dimensão do Nível Interpessoal, que trata do modo como os falantes modelam as suas mensagens em relação às expectativas que têm do estado mental do ouvinte, ou seja, que partes de uma unidade linguística serão apresentadas como salientes, quais serão escolhidas como ponto de partida do falante e quais serão consideradas compartilhadas pelo falante e pelo ouvinte. A influência desses aspectos sobre a estrutura das unidades linguísticas é rotulada de função pragmática. Esse modelo teórico considera três funções pragmáticas, Tópico, Foco e Contraste. De interesse para o momento é a função Contraste. Essa função assinala o desejo do Falante de realçar diferenças particulares entre dois ou mais Conteúdos Comunicados, ou entre um Conteúdo Comunicado e informações contextualmente disponíveis.

No corpus analisado foram encontradas ocorrências que indicam o uso de mesmo para assinalar a função pragmática Contraste, adicionando uma informação a outra pressuposta ou já mencionada. A esse tipo específico Pezatti (2014PEZATTI, Erotilde Goreti. A ordem das palavras no português. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.) denomina Contraste Expansivo:

Há casos em que o Falante pressupõe que o Destinatário dispõe de uma informação que não está completa, por isso ele acrescenta outra informação que considera importante o Destinatário conhecer. Essa estratégia de acréscimo de informação, denominada por Dik (1989) de foco Expansivo, é, na verdade, um Contraste, uma vez que estão envolvidas duas informações. (p. 109).

Os números revelam que o uso de mesmo para realçar diferenças particulares entre dois ou mais Conteúdos Comunicados ou entre um Conteúdo Comunicado e informações contextualmente disponíveis não é muito produtivo, uma vez que corresponde a apenas 4,7% (40) do total de ocorrências, e a 14,3% de ocorrências do Nível Interpessoal.

As ocorrências (18) e (19) exemplificam esses casos. Em todos eles, é possível verificar o acréscimo de uma informação a outra já existente, permitindo inclusive a substituição de mesmo por inclusive/também, partículas identificadoras da função Contraste Expansivo, conforme se vê em (18a) e (19a).

  1. (18) Meu Amigo. Já te escrevi longamente| pelo correio. OCandido Mendes ahi vai de=|pois da derrota vergonhoza, que soffreo, e de=|pois de lançar mão de todos os meios immo=|raes de que se lembrou, não dispensando| mesmo o das letras falsas! Ao Euzebio| escrevi nesse sentido mandando-lhe alguma cou=|za, que prova este ultimo crime. (1CARparticularXIX2BAFeira)

  2. (18a) não dispensando [inclusive o das letras falsas]

  3. (19) Deos queira não haja novidades, e que tanto você e sua família como todos os nossos amigos estejão em paz com saude efelicidade. Esta corte, emesmo to-da a Província goza de sucego e properidade assim como as Provincias limítrofe, só o Rio Grande he que se acha ainda ameaçado da anarchia, posto que já tenha tomado posse da Prezidência oJoze de Araujo Ribeiro, foi porem no Rio Grande e ate oprezente não seguio para Porto Alegre, (12CARparticularXIX1Rumeu)

  4. (19a) Esta corte e [também toda a província] goza de sossego

Como marcador de função pragmática, mesmo ocupa, dentro do sintagma, a posição anterior ao núcleo a que escopa, ou seja, a posição absoluta (PI), conforme representado em (18 b) e (19 b).

(18b) PI PM mesmo o das letras falsas (19b) PI PM mesmo toda a província Fonte: elaboração própria

Como se pode constatar, ao indicar a função pragmática Contraste, mesmo se posiciona em PI do sintagma antes da unidade que escopa, conforme mostra o Quadro 2.

Quadro 2:
Posição de mesmo contrastivo

Esta análise permite concluir que mesmo, quando atua no Nível Interpessoal, escopa sempre Subatos Referenciais, marcando Ênfase ou a função pragmática Constraste. Morfossintaticamente ocupa uma posição absoluta do sintagma. Como marcador de Ênfase, coloca-se em posição final do sintagma (PF), mas, como marcador da função Contraste, se coloca na posição inicial do sintagma (PI). Esses resultados estão resumidos no Quadro 3.

Quadro 3:
Posição de mesmo interpessoal

Mesmo no Nível Representacional

Como observado na descrição do modelo teórico, o Nível Representacional trata dos aspectos semânticos das unidades linguísticas. A sua unidade mais alta é o Conteúdo Proposicional (p), que pode conter um ou mais Episódios (ep), que por sua vez são conjuntos de Estados de Coisas. Um Estado de Coisas é caracterizado por uma Propriedade Configuracional (f) que contém uma combinação de unidades semânticas, como Indivíduo (x), Lugar (l), Tempo (t), Maneira (m), Quantidade (q) e Razão. Nesse nível, mesmo pode escopar um núcleo nominal ou uma propriedade configuracional, núcleo de um Estado de Coisas, conforme demonstramos a seguir.

Os números da Tabela 4 mostram que mesmo é muito produtivo nesse nível, uma vez que corresponde a 66,6% (558) do total de ocorrências (837), e desempenha três papéis distintos: marcador de identidade idêntica (386), proforma anafórica (142) e modificador de Estado de Coisas (30). Vejamos cada um.

Tabela 4:
Uso de mesmo no Nível Representacional

Operador de identidade idêntica

A análise dos dados aponta que mesmo, no nível semântico, é também usado para determinar e especificar a identidade de uma entidade referida anteriormente, a que, acompanhando Neves (2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000., p.492), denominamos marcador de identidade idêntica. Os números revelam ser esse uso muito produtivo, já que corresponde a 46,1% do total geral de ocorrências, e a 69,1% do total de ocorrências no Nível Representacional.

A entidade retomada por mesmo pode ser de diferentes categorias semânticas, conforme se verifica nas ocorrências em (20), um indivíduo; (21) e (22), tempo. Nesse caso, indica a propriedade ‘idêntico’ a um núcleo nominal já referido, respectivamente Correia, dia e mês em (20), (21), (22).

  1. (20) Além disto Corre neste Juizo outra cauza, em que odito Morgado por seo Procurador pedio a Vossa Senhoria, que mandase omencionado Correia prestar hua fiança, quando estava servindo de Juis Ordinario nesta Cidade edeferindo lhe Vossa Senhoria aconteceo, que o mesmo Correia anaõ prestarse, e- por este motivo requereo a Procurador, (...) (1CARoficialXVIII2PB)

  2. (21) Mamãe espera-os em Santo Antonio a 20 deste e creio que Tuda e mando não no mesmo dia , nás [sic] iremos por 22 ou 23 bem assim o Bento. (CARparticularXIX2SP)

  3. (22) Venho informar que os referidos map- | pas vos foram remettidos no dia 30 | do mesmo mez de Maio acompanhados | de um officio que recebeu o nº 3, cuja re- | messa consta da factura da correspon- | dencia da Agencia Postal desta cida- | de, conforme pude verificar pessoal- | mente hoje n’a quella Repartição. (CARoficiaisXX1RN)

Nesse caso é sempre antecedido pelo operador de identificabilidade. Na GDF, o operador de identificabilidade, vem do Nível Interpessoal, já que indica ser ou não identificável [+/-id] para o Ouvinte, e [+/-s] ser ou não específico [s] para o Falante. Nesse uso de mesmo, esse operador é sempre [+id +s], uma vez que é pressuposto ser identificável para o Ouvinte (destinatário da carta) e específico para o Falante (emissor da carta), e se manifesta como o artigo definido ‘o’, no Nível Morfossintático.

Como marcador de núcleo idêntico, no Nível Morfossintático, mesmo é um constituinte sintagmático, que se coloca na posição imediatamente anterior ao núcleo do sintagma a que pertence, ou seja, a posição PI+1 do sintagma, já que a PI estará sempre ocupada pelo artigo definido, conforme mostram (20a), (21)a e (22a).

Np PI PI+1 PM (20a) o mesmo Correia (21a) o mesmo dia (22a) o mesmo mês Fonte: elaboração própria.

Proforma Anafórica

Nesse nível, mesmo pode ainda retomar anaforicamente referentes do Nível Representacional. Para Neves (2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000., p.492), “anáfora é quando a referência é feita a algum elemento que está na porção anterior do texto”. Para a autora “o que a palavra anafórica faz é recuperar semanticamente um elemento que já estava no texto, com todas as informações de que ele já se revestia.” Bechara (2009BECHARA, Evanildo. Moderna gramática da língua portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2009.), por sua vez, afirma que:

do ponto de vista semântico, os pronomes estão caracterizados porque indicam dêixis (“o apontar para”), isto é, estão habilitados, como verdadeiros gestos verbais, como indicadores, determinados ou indeterminados, ou de uma dêixis contextual a um elemento inserido no contexto [...]. A dêixis será anafórica se aponta pra um elemento já enunciado ou concebido [...]. (p. 195)

Como anafórico, mesmo ocorre em 142 casos do Nível Representacional, correspondente a 25,4%, e a 16,9% do total geral de ocorrências. Sendo uma proforma, assume o núcleo de um constituinte da predicação, retomando entidades denotadas no contexto anterior. Nesse caso, também é antecedido pelo operador de identificabilidade [+id +s], do Nível Interpessoal. Nas ocorrências (23) e (25), mesmo retoma um local já citado anteriormente: em (23) refere-se a ‘porto’, e em (25), a ‘prédio’. Já em (24), mesmo exerce sua função de proforma retomando um Estado de Coisas.

  1. (23) Os moradores da dita Vila de Curitiba, podem trazer nos Seos proprios animaes os effeitos das Suas agriculturas ao porto que os re = cebem a Embarcaçoens que os transportaõ para fora, e no mesmo socorrerem-se , naõ só dos vibres das nossas Lavouras que Lá naõ tem como saõ aguas-ardentes; (CARoficialXVIII2PR)

  2. (24) Tuda felizmente fortaceleu-se, aproveitando bastante a estada de alguns dias em casa de Prima Marequinha. Muito desejo que Sophia goze de saude, e que o mesmo aconteça a você. Muitas saudades minhas e de Tuda. Do amigo affectu<oso> Alvaro (CARparticularXIX2SP)

  3. (25) Cumpre-me levar ao conhecimento de V. S. que, | tendo esta Prefeitura, em fins de 1914, cedido a | Repartição Geral dos Telegraphos um predio | encravado na Rua Capitão-mor Galvão desta | cidade para nelle funccionar a estação tele- | graphica, correndo as despezas com a conser- | vação do mesmo por conta desta Repartição, | em virtude desta prefeitura nada cobrar de | aluguel, e, como essa Repartição vem se | recuzando custear as despezas com a sua | conservação desde aquella data, apresso- | me em chamar para o caso a preciosa at- | tenção de V. S. (CARoficiaisXX1RN)

Como núcleo do sintagma nominal, mesmo, no Nível Morfossintático, se coloca sempre na posição PM, seja qual for posição do sintagma na oração, com a palavra gramatical, que representa o operador de identificabilidade, ocupando a posição PI do sintagma nominal, como mostra o Quadro 5, representando a ocorrência (24). Nas ocorrências (23) e (25), o sintagma nominal que tem mesmo como núcleo pertence a um sintagma adposicional, respectivamente introduzido pelas preposições em e de, conforme se observa no Quadro 6.

Quadro 5:
Mesmo núcleo de Np
Quadro 6:
Mesmo núcleo de Np de Adp.

A análise mostra que, como marcador de identidade idêntica e como proforma, mesmo pertence sempre à camada do sintagma nominal (Np), até quando compõe um sintagma preposicional (Adp), como em (23) e (25).

Como operador de identidade idêntica, independentemente da categoria semântica, posiciona-se em PI+1, uma vez que a posição absoluta PI se encontra ocupada pelo artigo definido, que representa o operador de identificabilidade [+id +s]; já, quando proforma de núcleo nominal, ocupa a posição própria de núcleo, a PM.

Esses resultados estão representados no Quadro 7.

Quadro 7:
Mesmo como palavra gramatical

É possível, portanto, concluir que as diferentes posições que mesmo assume na unidade sintática a que pertence refletem seu papel semântico: como marcador de identidade idêntica e de proforma anafórica.

Modificador de Estado de Coisas

Ainda no Nível Representacional, mesmo pode representar um constituinte opcional, que indica a real ocorrência de um Estado de Coisas. Estado de Coisas (e) é uma entidade de segunda ordem, que pode ser localizada no tempo e avaliada em termos de seu estatuto de realidade. Nesse papel, constitui-se como Modificador de um Estado de Coisas, denominado pela GDF como modificador Realidade. Foram encontradas, no córpus sob análise, 30 ocorrências com esse papel, número correspondente a 5,3% de casos do NR e a 3,5% do total geral de ocorrências (837).

Quando modificador Realidade, mesmo permite ser parafraseado por “de fato”, conforme se observa nas ocorrências (26a) e (30a).

  1. (26) Este ano disanimaram mesmo , acho que estão com mais intuziasmo com os festejos da Semana Santa, não é? (CARparticularXX1MG)

  2. (26a) Este ano desanimaram de fato,

  3. (27) algumas paysagens de quem | viu mesmo a paysagem. (CARparticularXX1PE)

  4. (27a) algumas paisagens de quem viu de fato a paisagem.

  5. (28) E se por acaso queira mesmo traduzir o Monólogo, estou pronto a facilitar-lhe qualquer informação. (2CartaspessoaisXX2SC)

  6. (28a) E se por acaso queira de fato traduzir o Monólogo, estou pronto ...

  7. (29) estou mesmo convencido que não posso | aqui ficar, se fôr a isso forçado, só o | farei por necessidade (...) (2CARparticularXIX2RJ)

  8. (29a) estou de fato convencido que não posso aqui ficar

  9. (30) Eu adoro poesias. Sou mesmo muito romântica. (1CartaspessoaisXX2SC-carta12)

  10. (30a) Eu adoro poesias. Sou de fato muito romântica

Como modificador de núcleo do Estado de Coisas, mesmo ocupa uma posição na Oração e não no Sintagma. No domínio da Oração, os resultados indicam que esse modificador se posiciona sempre nos domínios da Propriedade Configuracional, mais especificamente, adjacente à palavra verbal (Vw), independentemente de essa palavra ser o próprio predicado, como (26) e (27), um auxiliar modal como em (28), ou cópula, como em (29) e (30).

PI PM-1 PM (26) este ano desanimaram mesmo

PM-1 PM PM+1 (27) viu mesmo a paisagem…

PM-1 PM PM+1 (28) queira mesmo traduzir…

PM-1 PM PM+1 (29) estou mesmo convencido…

PM-1 PM PM+1 (30) sou mesmo muito romântica

A análise permite concluir que a posição assumida por mesmo na camada da Oração está fortemente relacionada à formulação no Nível Representacional; ou seja, à Propriedade Configuracional (predicação): assume sempre a posição absoluta PM, já que, como modificador, é um constituinte hierárquico, deixando para a palavra verbal (propriedade, auxiliar ou cópula) a posição PM-1, conforme se representa no Quadro 8.

Quadro 8:
Posição de mesmo como modificador de Estado de Coisas

Em resumo, diferentemente de mesmo interpessoal que opera apenas na camada do Sintagma, mesmo representacional pode compor tanto a camada do Sintagma Nominal (Np) quanto a da Oração (Cl).

Como componente do sintagma nominal (Np), se assinalar identidade idêntica ocupará a posição PI+1, uma vez que a absoluta PI está sempre preenchida pelo operador de identificabilidade, oriundo do Nível Interpessoal; se for proforma, ocupará sempre a posição do núcleo do sintagma.

Já como modificador de propriedade lexical, é um constituinte hierárquico e, como tal, tem prioridade sobre os configuracionais, assumindo então a posição absoluta PM, nos domínios da Oração, empurrando a palavra verbal (Vw), que é configuracional, para a posição PM-1.

Para sintetizar, a análise dos dados sob a perspectiva da GDF revela que as posições assumidas por mesmo dependem de sua funcionalidade, interpessoal ou semântica, e, consequentemente, da camada em que opera. Assim, mesmo interpessoal, por escopar Subatos, assume posições na camada do Sintagma, indicando a função pragmática Contraste ou a categoria pragmática Ênfase, colocando-se respectivamente em PI ou PF.

Semanticamente mesmo pode assinalar identidade idêntica de um núcleo nominal, ou retomar um núcleo nominal já expresso no contexto. Em ambos os casos, age na camada do Sintagma: no primeiro caso, ocupa sempre a posição PI+1; como proforma, ocupa sempre a posição do núcleo do Sintagma (PM). Nesse nível, mesmo pode ainda ser usado como modificador de Estado de Coisas, assumindo a posição absoluta PM, adjacente à palavra verbal.

Considerações finais

Um dos objetivos deste estudo, como já apontado, consiste em determinar as posições que, no Nível Morfossintático, mesmo ocupa dentro da unidade sintática (Sintagma ou Oração), verificando, se os diferentes usos são morfossintaticamente codificados pela posição no domínio da Oração e do Sintagma.

Os resultados revelam que as diferentes posições assumidas por mesmo dependem de sua funcionalidade, interpessoal ou semântica, e da camada em que age, como hipotetizamos.

No Nível Interpessoal, pode consistir em indicador de Ênfase ou marcador da função pragmática Contraste. Como marcador de Ênfase, apresenta as propriedades de operador, já que constitui uma estratégia gramatical que se aplica à camada do Subato, intensificando-a. Como função pragmática Contraste, apesar de pouco produtivo, realça não diferenças, mas similaridades particulares entre dois ou mais Subatos. Em outras palavras, mesmo, como operador ou como função pragmática, constitui traços abstratos do Nível Interpessoal que se manifesta morfossintaticamente como palavra gramatical na camada do Sintagma.

No Nível Representacional, no entanto, mesmo tem propriedades de operador quando é usado para indicar que a entidade retomada é idêntica à anteriormente apresentada. Como núcleo de sintagma, mesmo detém as propriedades dos pronomes, ou seja, retoma anaforicamente um referente já dado. Já, ao restringir um Estado de Coisas indicando sua real ocorrência, mesmo assume as propriedades de modificador, manifestando-se como palavra lexical, introduzida no Nível Representacional. O Quadro 9 resume esses resultados.

Quadro 9:
Uso de mesmo no NI e NR.

Esses usos nos diferentes níveis se refletem, no Nível Morfossintático, por meio da posição que mesmo ocupa na unidade sintática em que opera. O operador de Ênfase e o marcador de função pragmática Contraste agem na camada do Sintagma, assumindo, no entanto, posições distintas em torno do núcleo do sintagma: PF acolhe o operador de Ênfase, e PI, o marcador de Contraste, conforme Quadro 10.

Quadro 10:
Posição de mesmo interpessoal.

Também atuam na camada do Sintagma o operador de identidade idêntica e a proforma anafórica, oriundos do Nível Representacional. A proforma anafórica representa o núcleo do sintagma e, como tal, assume a posição PM. O marcador de identidade idêntica é sempre antecedido do operador de identificabilidade, que, por ser do Nível Interpessoal, tem prioridade, e assume a posição absoluta PI, restando ao marcador semântico a posição relativa PI+1.

O modificador semântico de Realidade, por seu turno, atua na camada da Oração, uma vez que age sobre a Propriedade Configuracional, núcleo do Estado de Coisas. Seu domínio de ação é o predicado, por isso toma como escopo a palavra verbal, que pode ser o verbo pleno, o auxiliar ou a cópula.

As posições de mesmo do Nível Representacional estão resumidas no Quadro 11.

Quadro 11.
Posição de mesmo semântico

Embora não tenha sido a preocupação primeira deste estudo, a quantificação das ocorrências revela alguns dados que apontam aspectos importantes. Pelos números coletados, podemos concluir que mesmo é primeiramente um constituinte semântico, já que ocorre em 66,6% dos casos no NR, predominantemente como marcador de identidade idêntica (69,1%), depois como proforma de núcleo nominal (25,4%) e somente 7,7% como modificador de Estado de Coisas. Seu uso interpessoal corresponde a 33,3% do total de ocorrências, sendo a maioria indicadora de Ênfase (85,6%), ficando a função pragmática Contraste com apenas 14,3%.

Conforme vimos na resenha da literatura sobre o tema, Dantas et al (2018DANTAS, Maria Leuziedna et al. Gramaticalização do item linguístico mesmo: funções polissêmicas do uso. ID on line Revista de Psicologia, v. 12, n. 41, p. 1096-1108, jul. 2018., p.1106/1107) concluem que mesmo “apresenta uma polissemia de usos” e que essa polissemia está relacionada “às pressões argumentativas do falante na tentativa de veicular as estratégias que giram em torno do grau de informatividade representacional e de pressuposicionalidade das sentenças.” Em outras palavras, implicitamente as autoras reconhecem que mesmo age em dois níveis, no Representacional, quando dizem que as estratégias “giram em torno do grau de informatividade representacional”, e no Interpessoal, já que a polissemia de usos “está relacionada às pressões argumentativas do falante”.

Santos-Amorim (2009SANTOS-AMORIM, Neide Correia Santanna de. O item linguístico mesmo: confrontando usos e funções no português do Brasil. 2009. 228f. Tese (Doutorado em Linguística e ensino. Área de Concentração: Gramática do Uso) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009., p. 75), por seu turno, afirma que mesmo em princípio é pronome demonstrativo que expressa reforço ou denota “semanticamente ‘identidade’, aquilo que é repetido, ‘igual’, fazendo referência a algo já enunciado ou conhecido no evento comunicativo”. Também expressa valores anafóricos, estabelecendo relações coesivas em diferentes situações de usos adnominais e nominais.

De modo geral, no entanto, os pesquisadores descrevem os vários usos, mas raramente conseguem distingui-los com clareza, reconhecendo ambiguidades, relações duvidosas, que não permitem explicações satisfatórias para a multifuncionalidade de mesmo. (DANTAS et al., 2018DANTAS, Maria Leuziedna et al. Gramaticalização do item linguístico mesmo: funções polissêmicas do uso. ID on line Revista de Psicologia, v. 12, n. 41, p. 1096-1108, jul. 2018., p. 1104).

Consideramos que, neste estudo, conseguimos detectar e explicar os diferentes usos de mesmo, relacionando-os aos dois níveis de formulação e às diferentes camadas em que operam, descrevendo suas propriedades, que se refletem na codificação morfossintática.

Utilizando um modelo teórico como o da Gramática Discursivo-Funcional, cumprimos a proposta a que nos dispusemos e alcançamos os objetivos, que, apesar de pouco ambiciosos, fornecem uma explanação adequada sobre um fenômeno difícil de ser tratado, justamente por causa de sua multifuncionalidade.

REFERÊNCIAS

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  • BECHARA, Evanildo. Moderna gramática da língua portuguesa 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2009.
  • DANTAS, Maria Leuziedna et al Gramaticalização do item linguístico mesmo: funções polissêmicas do uso. ID on line Revista de Psicologia, v. 12, n. 41, p. 1096-1108, jul. 2018.
  • HENGEVELD, Kees; MACKENZIE, John Lachlan. Functional Discourse Grammar: a typologically-based theory of language structure. Oxford: Oxford University Press, 2008.
  • NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português São Paulo: Editora UNESP, 2000.
  • PEREIRA, Ivelã; GÖRSKI, Edair. A multifuncionalidade do item “mesmo” e sua(s) possível(is) trajetória(s) de gramaticalização. Guavira Letras, Três Lagoas, n. 22, p. 31-47, jan./jun. 2016.
  • PERES, Ana Carolina Teixeira. O uso de mesmo em cartas do português brasileiro dos séculos XVIII, XIX e XX 2020. 202 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos). Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, UNESP- Câmpus de São José do Rio Preto. 2020
  • PEZATTI, Erotilde Goreti. A ordem das palavras no português São Paulo: Parábola Editorial, 2014.
  • ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
  • SANTOS-AMORIM, Neide Correia. O item linguístico mesmo no português do Brasil colonial e imperial: usos e funções. In: XV Congresso Internacional, Montevidéu, 2008. Anais [...]. Montevidéu: Asociación de linguística y filologia de América Latina (ALFAL), 2008.
  • SANTOS-AMORIM, Neide Correia Santanna de. O item linguístico mesmo: confrontando usos e funções no português do Brasil. 2009. 228f. Tese (Doutorado em Linguística e ensino. Área de Concentração: Gramática do Uso) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009.

Notas

  • 1
    Este artigo retoma e reelabora parte dos resultados da dissertação denominada O uso de mesmo em cartas do português brasileiro dos séculos XVIII, XIX e XX, desenvolvida por Ana Carolina Teixeira Peres (2020PERES, Ana Carolina Teixeira. O uso de mesmo em cartas do português brasileiro dos séculos XVIII, XIX e XX. 2020. 202 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos). Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, UNESP- Câmpus de São José do Rio Preto. 2020), sob a orientação de Erotilde Goreti Pezatti (UNESP/SJRP).
  • 2
    This is motivated by the assumption that a model of grammar will be more effective the more its organization resembles language processing in the individual.
  • 3
    Elementos vazios (dummies) ou suporte são palavras gramaticais introduzidas no Nível Morfossintático em resposta a configurações particulares dos níveis Interpessoal ou Representacional (HENGEVELD; MACKENZIE, 2008HENGEVELD, Kees; MACKENZIE, John Lachlan. Functional Discourse Grammar: a typologically-based theory of language structure. Oxford: Oxford University Press, 2008., p. 401).
  • 4
    Essa ocorrência permite outra leitura, a de que mesmo escopa difícil. No entanto, o conteúdo da carta como um todo conduz para a interpretação de que mesmo escopa alemão.
  • 5
    Cl (clause) = Oração; Xp (X phrase) = qualquer tipo de Sintagma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2021
  • Aceito
    10 Dez 2021
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