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“Subjetividades-nada”, linguagem e aprendizagem: precisamos de atrapalhar as significâncias

RESUMO

Neste trabalho argumentamos que a possibilidade de existir como ser epistêmico é uma dimensão pouco explorada em pautas reivindicatórias de direitos humanos. Desenvolvemos essa ideia discutindo como uma compreensão das línguas como categorias puras pode afetar estudantes, sobretudo em grupos marginalizados. Em diálogo com narrativas produzidas por Filhos, pseudônimo de uma aluna de um curso pré-universitário voltado para jovens e adultos de classes populares, refletimos sobre os efeitos perfomativos de visões modernistas das línguas, especialmente da língua inglesa. Ao focalizar diferentes momentos interacionais, analisamos como Filhos reconstrói sua trajetória de socialização acadêmica (WORTHAM, 2005) e as ordens de indexicalidade (BLOMMAERT, 2005) que a organizam. Os resultados apontam para encenações ambivalentes, nas quais sentidos de aprendizagem e comunicação são hierarquizados de modo contraditório. Filhos tanto performa uma subjetividade nula de saberes legítimos e incapaz de agir no mundo em língua inglesa, quanto se engaja em práticas translíngues criativas. Essa oscilação indica um aspecto importante em processos educacionais: “é preciso de atrapalhar as significâncias” e de ter olhos para o que pode ser apressadamente considerado menor, ou sem importância. Tal foco investigativo implica um compromisso ético-político com “uma pedagogia das misturas”, conversando diretamente com os direitos linguísticos daquelas/es que socialmente ocupam lugares marginalizados.

Palavras-chave:
Subjetividades; Trajetória de socialização; Pedagogia das misturas; Ordens de indexicalidade

ABSTRACT:

In the present paper, we argue that the right to exist as an epistemic being is a less explored dimension among aspects orienting human rights demands. We build on this idea discussing how a conceptualization of languages as discrete categories may affect students, especially those from marginalized groups. In exchanges with narratives produced by Filhos, a student in a college preparatory course for disadvantaged youths and adults, we reflect on the performative effects of modernist views of language, especially concerning the English language. Focusing on different instants of interaction we observe how Filhos reconstructs her academic trajectory of socialization (WORTHAM, 2015) and the orders of indexicality (BLOMMAERT, 2005) that organize it. The results point in the direction of ambivalent enactments, in which meanings concerning learning and communication are hierarchically organized in contradictory ways. Filhos enacts a subjectivity that is null in terms of legitimate knowledges and unable to perform in the world in the English language, while, at the same time, engaging in creative translingual practices. This fluctuation points to an important aspect of educational processes: “we need to disturb meaningfulness” and to have eyes for what might at first seem minute, or unimportant. Such an investigative focus implies an ethical-political commitment to a “pedagogy of mixtures,” in direct rapport with the linguistic rights of those who occupy socially marginalized positions.

Keywords:
subjectivities; trajectory of socialization; pedagogy of mixtures; orders of indexicality

A exuberância de saberes-ínfimos

Sim, vou falar: é importante aprender cada dia. Como fez falta, muita falta! Eu não sei nem se é para você, não sei quem vai ouvir, mas a importância da gente falar para os filhos estudarem, larga tudo, tudo mesmo por causa do estudo. Eu brigo muito com a minha mãe, porque minha mãe não incentivou o estudo. Não sei a mente dela... Ela também não estudou, ela tem sessenta e cinco anos, nunca foi à escola. Ela aprendeu a ler lendo a Bíblia, entendeu? Porque ela aprendeu foi lendo a Bíblia, conhecendo as palavras. (...) Como eu falei, eu sou mineira, vim de uma comunidade, e as mães das comunidade, e elas querem..., tipo eu, que minha filha, que foi criada sem pai, e coloca alguma coisa ali, e dá tudo o que é caro, tudo que nem pode, porque são pessoas assalariadas, mas ninguém serviu pra estudo. Porque eu tenho pessoas na família, 90% da família do meu pai mora na Rocinha, se você fala assim, “se inscreve no [colégio federal], é boa escola”; “Deus me livre! Estudar o dia inteiro!”; “mas é bom!”. Eu queria poder gritar isso para o mundo, entendeu? E incentivar os filhos a estudar, porque eu falei para minha filha, “vão te tirar tudo, mas o conhecimento ninguém pode tirar. É muito importante! Você não vai ficar rica com estudo, mas você vai ter conhecimento, entendeu?”. Então é isso ( FILHOS, 2019FILHOS, -. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s.), informação verbal 18 18 Entrevista concedida por FILHOS. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s) ).

No começo deste estudo, está o verbo de Filhos 19 19 Esse foi o pseudônimo que a sujeita social deste estudo escolheu, motivada, segundo o trecho acima, pela importância de as mães - sobretudo as de segmentos marginalizados - investirem na educação de seus/suas filhos/as. : mulher negra, mãe solo de uma filha adolescente, natural de Caratinga, MG. Seu dizer-fazer ocorre em uma entrevista, realizada quando Filhos era aluna de um curso pré-universitário, voltado para jovens e adultos de classes populares. Na ocasião, ela tinha quarenta anos, trabalhava como doméstica no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, e era moradora de Curicica, na zona oeste dessa cidade.

Sua narrativa reconstrói uma história de migração. Quando criança, ela e sua família se mudaram para a Rocinha, RJ - uma das maiores favelas do país -, sob a promessa de uma vida melhor na cidade grande, feita pelo patriarca. Ao prosseguir na reconstituição narrativa desse processo de virada em sua vida e na de seus familiares, a voz de Filhos embarga em face das memórias de ressentimento relacionadas ao pai e da infância penosa, atravessada pela fome:

Assim, meu pai, na realidade, ele mentiu para minha mãe. Ele falou que a gente ia vir para uma casa própria, porque as pessoas vivem no interior e têm a ilusão da cidade grande. [...] Na realidade, a gente veio para a cidade grande para passar fome. Meu pai levou a gente para morar dentro da Rocinha em 86. E ali começou uma história triste, né? Porque minha mãe teve que deixar quatro filhos para trabalhar, e a gente e acabou tendo que catar comida no lixo para comer e... [silêncio seguido de choro] ( FILHOS, 2019FILHOS, -. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s.), cf. nota 1).

Embora tenha concluído a Educação Básica, a trajetória estudantil de Filhos foi interrompida por quase três anos em virtude do envolvimento do irmão mais velho no tráfico, que afetou, inclusive, sua segurança e paz no trânsito pela cidade. Como precisou trabalhar na adolescência para ajudar na renda familiar e estudava no período noturno, tinha medo de chegar em casa à noite, porque era vigiada, e não conseguia se concentrar nos estudos. Aos vinte e dois anos, concluiu seus estudos, mas alegou que só o fez pela certificação. Os saberes da escola não tinham como concorrer, em atenção, com os saberes-dramas de suas vivências de mulher negra e periférica:

Aí, eu voltei a estudar, mas eu não aprendi. Eu fui pra escola, mas não aprendi, entendeu? Eu não aprendi matemática, eu não aprendi português, eu não aprendi nada, muito menos o inglês. E aí eu voltei a estudar e terminei com 22 anos, mas na realidade eu só fui para o diploma ( FILHOS, 2019FILHOS, -. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s.), cf. nota 1, grifo nosso).

Nesses curtos trechos da entrevista, as histórias de Filhos - com duas personagens negras anônimas: ela mesma jovem e a sua matriarca - auxiliam-nos a produzir entendimento sobre a circularidade de certos sentidos e práticas sócio-históricas. Por um lado, sua performance narrativa incorpora de modo potente as dores da “negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da vida, [...] segurando a barra familiar praticamente sozinha” ( GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244., p. 231). Reencena, assim, a denúncia que Lélia Gonzalez e outras tantas mulheres negras ativistas vêm, em um uníssono, bradando. Entretanto, em movimento contrário, Filhos se engaja em uma confissão de erro, por assim dizer, afirmando que não aprendeu “nada” na escola. Tal rótulo desqualifica, ou mesmo anula, performativamente o vigor das vivências de Filhos e das aprendizagens por elas propiciadas.

A narrativa de Filhos nos instigou a construir o foco do presente trabalho. Explicamos: como pesquisadoras e docentes com formação em Letras, fomos apresentadas, desde cedo, à ideologia da falta de aptidão para a aprendizagem, resumida em: “Eles não aprendem português, quanto mais inglês” ( MOITA LOPES, 1996MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Eles não aprendem português quanto mais inglês: a ideologia da falta de aptidão para aprender línguas estrangeiras em alunos da escola pública. Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996. p. 63-80. ). A crítica a essa máxima sempre orientou nossas investigações sobre práticas educacionais, em geral, e de ensino-aprendizagem de inglês, em particular 20 20 Cf. OLIVEIRA 2001; 2021; FABRÍCIO 2007; 2017. . O alinhamento de Filhos em concordância com a ideia de déficit cognitivo nos sinalizou a forma insidiosa como esse mito segue circulando. A performance discursiva ensejada por essa crença nos incentivou a aprofundar a compreensão sobre os efeitos subjetivantes que visões de linguagem podem produzir.

Crer-se vazia de saberes e incapaz de aprendizagem - inclusive de uma língua vista como estrangeira - parece-nos um golpe dilacerante no sentido mais rudimentar da dignidade humana, já que usurpa de Filhos o direito de validação de suas práticas discursivas e de sua autoridade como produtora de conhecimentos. Neste trabalho, argumentamos que a possibilidade de existir como ser epistêmico é uma dimensão pouco explorada em pautas reivindicatórias de direitos humanos. Segundo essa direção, o “nada” de que fala Filhos é de grande valor. Longe do entendimento habitual - de vazio, de ausência ou de um não ser - ela propicia outras compreensões, que podem ser detectadas em suas ações discursivas microssituadas. Afinal, como pondera o poeta sul-mato-grossense Manoel de Barros: “as coisas que não têm dimensões são muito importantes” ( BARROS, 2016BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016 [1996]. , p. 42). Logo, “perder o nada é um empobrecimento” ( BARROS, 2016BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016 [1996]. , p. 46). Seguindo essa ótica, buscamos entender como as projeções semióticas de “ subjetividades-nada” constituem fenômenos potentes em sua aparente insignificância.

De acordo com as notas de campo geradas durante a pesquisa por uma de nós - professora de inglês de Filhos - observamos que a estudante frequentemente reciclava compreensões de aprendizagem e de línguas associadas à ideia de fracasso. Em formulações como: “Lá vai dar em nada, ainda mais porque redação é tudo”, relacionada à inscrição no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ela se posicionava como um tipo socialmente reconhecível: aquela incapaz de aprender e se comunicar na língua escrita. De acordo com nossas notas de campo, esse sentido identitário “estável” era recorrente nas performances de Filhos:

Filhos antecipa a incapacidade. Ela falou de incapacidade no questionário e acho que esse tom permaneceu em alguns momentos de nossa conversa. Ela antecipa que não vai entender, então nem lê; ela antecipa que não vai conseguir ter um bom desempenho na prova do ENEM, então nem vai tentar. E é irônico, porque ela própria reconhece a experiência que o curso tem proporcionado, de novos horizontes de aprendizados escolares. No entanto, mesmo assim, ela antecipa o mau desempenho, fazendo referência a experiências anteriores (OLIVEIRA; FABRÍCIO 2019OLIVEIRA, Raquel S. De; FABRÍCIO, Branca F. Notas sobre Filhos. Rio de Janeiro, 2019. 1 nota de campo. ).

Ações como essas eram recorrentes nos discursos encenados por Filhos na entrevista, no questionário e em conversas conduzidas por uma das pesquisadoras, em diferentes momentos. Elas levaram-nos ao construto de trajetória de socialização, desenvolvido por Wortham (2005WORTHAM, Stanton. Socialization beyond the speech event. Jornal of Linguistic Anthropology, v. 15, n. 1, p. 95-112, 2005.), para produzir entendimentos sobre as histórias de Filhos, geradas em entrevista. Conforme esse autor, o conceito se refere a vários eventos interacionais de que uma pessoa participa - conectados intertextual e interdiscursivamente - e que podem produzir tanto um efeito de constância identitária, assim como sinalizar atipicidades no fluxo da constituição de si. Isso porque sentidos sócio-historicamente duráveis e sentidos emergentes em interações locais se emaranham em nossas performances. No caso da investigação aqui reconstruída, a indexicalidade do signo “nada” é negociada nas histórias de Filhos geradas em interações com uma das pesquisadoras. É por esse ângulo que nos voltamos, a seguir, para a análise de trechos da entrevista de Filhos.

“É no ínfimo que eu vejo exuberância” 21 21 BARROS (2016). . O nada nos interessa

Em 2019, Filhos era aluna de um curso pré-universitário voltado para jovens e adultos de classes populares no qual uma de nós atuava como professora de língua inglesa. Tal curso é fruto de um projeto de extensão universitária, cujo público-alvo são moradores/as de favelas, negros/as, pessoas LGBTQIA+ e membros da classe trabalhadora. Trata-se de discentes que precisaram sair da escola, interrompendo seus estudos formais, ou trabalhar logo ao término da Educação Básica, sem poderem ingressar no ensino universitário. As aulas - de diferentes disciplinas - ocorrem à noite, três vezes por semana, em uma escola situada na região sudeste do Rio de Janeiro. Especificamente sobre as aulas de língua inglesa, elas são quinzenais e com dois tempos de cinquenta minutos de duração. Como a proposta do curso é preparar as/os alunas/os para os exames de acesso às universidades, as aulas se centram no desenvolvimento de estratégias de leitura de diferentes textos e gêneros textuais em língua inglesa.

Uma pedagogia translíngue orienta a configuração curricular dessa disciplina. Lopes e Silva (2018LOPES, Adriana C.; SILVA, Daniel do N. e. Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 18, n,3, p. 695-713, 2018.) salientam que, de acordo com os seus princípios, a diferença é avaliada como um recurso legítimo na produção de significados. Considerando o perfil discente do alunado em questão, marcado por saberes forjados em suas vivências fora da escola, o trabalho com a língua inglesa se guia pela possibilidade de estudantes “usarem todo o potencial de seu repertório tanto na compreensão quanto na produção de significados” ( LIBERALI, 2020LIBERALI, Fernanda. O desenvolvimento de agência e a educação multi/bilíngue. In: MEGALE, Antonieta. (org.) Desafios e práticas na educação bilíngue. São Paulo: Fundação Santilhana, 2020. p. 78-91., p. 85). Assim, as preocupações docentes não gravitam em torno do domínio de regras gramaticais, da aquisição de vocabulários dicionarizados ou da memorização de expressões idiomáticas. Ao invés disso, em interação com os textos materializados em língua inglesa, as/os alunas/os são convocadas/os a observar como uma constelação de atividades semióticas conecta sentidos locais e macrossociais.

Nesse contexto, nossa pesquisa visava refletir sobre o desenvolvimento do módulo de língua inglesa em conjunto com um grupo de alunas/os. Apesar da boa recepção do projeto pelas/os discentes, deparamo-nos com alguns obstáculos. Uma das dificuldades para a participação na pesquisa era a grande fluidez do alunado no curso. Várias/os precisavam, frequentemente, vencer o cansaço para conciliar os estudos com o trabalho. Havia, ainda, a prioridade das demandas de suas respectivas famílias, das quais muitas/os eram chefas/es. Além disso, diversas/os alunas/os relatavam a dificuldade para chegar até a escola, onde as aulas se realizavam - vindo ou de suas respectivas casas ou de seus locais de trabalho. O próprio custo financeiro que o curso, mesmo gratuito, acarretava (como dinheiro para o transporte ou alimentação) também era outro elemento complicador para a permanência ou assiduidade discente. Assim, apesar de as cinquenta vagas oferecidas a cada semestre serem rapidamente preenchidas, a cada fim de período a turma contava, usualmente, com a presença numérica modesta de cinco a dez alunas/os em sala de aula.

Na ocasião em que a pesquisa foi apresentada à turma, em 08 de agosto de 2019, apenas metade das/os inscritas/os estava presente. Das/os vinte e quatro alunas/os convidadas/os a participarem do estudo, dezenove deram seu consentimento e preencheram, no mesmo dia, um questionário de perguntas abertas, que auxiliaria, inclusive, na triagem para posterior entrevista. Com base tanto no teor das respostas produzidas nos questionários como na disponibilidade das/os discentes, quatro alunas/os foram entrevistadas/os, incluindo Filhos. Após consulta, elas/es escolheram o local e o horário dos encontros, optando pela escola, onde as aulas aconteciam, e pela realização de encontros por volta de uma hora antes da primeira aula do curso. Para este trabalho, focalizamos apenas as práticas discursivas de Filhos geradas nas aulas, no questionário e na entrevista, ao longo de quatro meses de pesquisa (de julho a outubro de 2019).

As entrevistas realizadas foram semiestruturadas e gravadas em áudio. Pedimos que elas/eles considerassem suas performances como estudantes, tanto na época em que cursaram a Educação Básica como na ocasião da geração de dados. Solicitamos ainda que narrassem as diversas práticas discursivas nas quais se envolviam e refletissem sobre como o inglês se fazia presente em suas vidas. As/Os participantes foram entrevistadas/os uma única vez, e isso ocorreu por algumas razões, segundo as notas de campo. Havia a dificuldade de elas/es disponibilizarem um dia e um horário que não atrapalhassem suas rotinas e compromissos diários (houve situações de cancelamento e adiamento). A própria evanescência de algumas/alguns participantes no curso dificultou também o agendamento de uma nova entrevista, já que, como mencionado anteriormente, algumas/alguns simplesmente paravam de frequentar as aulas e não ficavam mais acessíveis nem mesmo via e-mail ou aplicativo de mensagens.

Por fim, cabe salientar que algumas/alguns discentes mostraram-se pouco à vontade naquele evento interacional. Por um lado, foi possível perceber que a reconstrução de suas histórias produzia algum sofrimento nelas/es. Por outro, compreendemos que a configuração do evento interacional em si pode igualmente ter promovido esse desconforto. Grada Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogá, 2019.) fala das prerrogativas das ditas pesquisas study up, quando pesquisador(a) e participante compartilham de experiências intersubjetivas assemelhadas. As assimetrias entre a entrevistadora e as/os participantes, aquela possivelmente sendo posicionada como uma pesquisadora-professora e como mulher branca de classe média, pode ter contribuído para a co-construção de um contexto pouco confortável para as/os entrevistadas/os na produção de narrativas ou de outras práticas discursivas. A despeito dessas limitações, avaliamos que as performances discursivas geradas nessas únicas entrevistas, em que sujeitas/os refletiam sobre suas intersubjetividades, foram enriquecedoras para a reconstrução de percepções - tanto da pesquisadora quanto das/os participantes - a respeito de experiências de aprendizagem em língua inglesa. Elas permitiram-nos detectar performances de subjetividades em devir contínuo, nas quais se emaranham subjetividades-nada, apoiadas na ideia de falta, e subjetividades-exuberantes, plenas de potência criativa.

“Tem mais presença em mim o que me falta” 22 22 BARROS (2016).

Em resposta a uma das perguntas do questionário de pesquisa - “Como você se sente nessas situações em que o inglês aparece no seu dia a dia?” - muitas/os alunas/os responderam com performances emotivas negativas, tais como “muito constrangida”, “muito nervosa”, “intimidado”, “perdido”, “insuficiente”, “frustrado”, “triste” etc. Dessas respostas, a de uma participante de pronto nos chamou atenção, pois ela se descrevia vazia de saberes em língua inglesa. Essa participante era Filhos. Na brevidade de sua resposta, havia a magnitude de duas palavras impactantes - “incapacitada” e “nada” - usadas para qualificar tanto a própria aluna como seu repertório de saberes em inglês.

A nomeação e predicação dura de Filhos (assim como as de outras/os tantas/os discentes) reciclam um estribilho das várias referências e qualificações negativas que, há anos, vêm constituindo aquelas/es que não seguiram o fluxo linear e previsível da escolarização. Arroyo (2008ARROYO, Miguel .A educação de jovens e adultos em tempos de exclusão. In: UNESCO. Construção coletiva: Contribuições à educação de jovens e adultos. 2. ed. Brasília: UNESCO; MEC; RAAAB, 2008. p. 221-230. ), por exemplo, cita alguns desses termos que, na boca ou na pena de estudiosas/os, docentes e legisladoras/es, ajudam a solidificar sentidos identitários dessas/es alunas/os associados à ausência ou falha. O sociólogo observa referências e adjetivações como “oprimidos, pobres, sem terra, sem teto, sem horizonte” e, ainda, “repetentes, defasados, aceleráveis, analfabetos, candidatos à suplência, discriminados, empregáveis...” ( ARROYO, 2008ARROYO, Miguel .A educação de jovens e adultos em tempos de exclusão. In: UNESCO. Construção coletiva: Contribuições à educação de jovens e adultos. 2. ed. Brasília: UNESCO; MEC; RAAAB, 2008. p. 221-230. , p. 223). É nosso entendimento que tais signos projetam a imagem de subjetividades-nada.

Há também, em contraponto ao que acima mencionamos, estudos que assinalam que as diferentes práticas de letramentos (sobretudo as não-escolares) de que participam muitas dessas pessoas precisam ser reconhecidas não pela ausência, mas pela riqueza simbólica 23 23 Cf. ARROYO (2008); PAIVA (2018). . São, portanto, os sentidos e as funções da educação, singularmente para essas/es discentes tão abastadas/os de narrativas de vida, que precisam ser revistos, como bem pontua Paiva (2018PAIVA, Jane. Uma arqueologia da memória. In: SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Orientações curriculares para a educação de jovens, adultos e idosos (EJAI). Maceió: Editora Viva, 2018. p. 45-77. , p. 55): “[...] ir à escola e aprender a ler e a escrever como leitor/escritor experiente, considerando-se a diversidade de sujeitos e suas experiências e trajetórias de vida”. Extremamente céticas quanto à estabilidade da subjetividade-nada performada por Filhos, em relação ao seu uso de recursos linguísticos do “inglês”, procuramos conhecer algumas das histórias que constituem os sentidos de nulidade e de culpabilização dos grupos marginalizados por seus “desvios” nas performances normativas das línguas.

“Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado” 24 24 GONZALEZ (1984).

“me sinto Incapacitada, pois não sei nada de Inglês so palavras pequenas nas frases inteiras”. Na reconstrução de suas vivências discursivas microssituadas, Filhos nos auxilia a aquilatar o vigor calamitoso de um habitus linguístico, que, no curso lento e longo da história ocidental moderna, orienta muitas/os agentes sociais a imaginarem que a variedade padrão de uma língua institui a sua autenticidade. Suas ponderações conversam com inúmeros estudos sobre a força performativa do ideal de pureza subjacente a noções modernas de Estado-nação, língua e comunidade ( BAUMAN; BRIGGS 2003BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles. Voices of modernity: language ideologies and the politics of inequalities. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. ; CAVALCANTI; MAHER, 2018CAVALCANTI, Marilda; MAHER, Terezinha. Multilingual Brazil: language, resources, identities and ideologies in a globalized world. London: Routledge, 2018.; HELLER; McELHINNY, 2017HELLER, Monica; McELHINNY, Bonnie. Language, capitalism, colonialism: toward a critical history. Toronto: University of Toronto Press, 2017.; MAKONI; PENNYCOOK, 2007MAKONI, Sinfree; PENNYCOOK, Alastair. Desinventing and reconstituing languages. In: MAKONI, Sinfree; PENNYCOOK, Alastair. (org.). Desinventing and reconstituing languages. Clevedon: Multilingual Matters, 2007. p. 1-41. ; MOITA LOPES, 2013MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Como e por que teorizar o português: Recurso comunicativo em sociedades porosas e em tempos híbridos de globalização cultural. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (org.). Português no século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. p. 101-119. ; KROSKRITY, 2000KROSKRITY, Paul V. Regimenting languages: language ideological perspectives. In: KROSKRITY, Paul V. (ed.) Regimes of language: ideologies, policies, and identities. School of American Research Press, 2000., entre outros). Eles apontam que as crenças linguísticas de diversas pessoas reciclam a perspectiva de que línguas são artefatos mentais estáveis e que suas/seus falantes e escritoras/es formam grupos homogêneos. De acordo com Blommaert (2006BLOMMAERT, Jan. Language Ideology. In: Encyclopaedia of Language and Linguistics. Elsevier, 2006. p. 510-522. Disponível em: Disponível em: https://biblio.ugent.be/publication/386180 . Acesso em: 11 abr. 2020.
https://biblio.ugent.be/publication/3861...
, p. 511-512), essa visão de língua se tornou a “mais difundida tanto nos círculos científicos como nos populares” 25 25 A tradução dos textos consultados no original em inglês é de nossa responsabilidade. .

Há séculos, a episteme modernista tem nos instruído a olhar para a linguagem e enxergar nela, de modo inconfundível, um sistema estruturado de regras gramaticais, representacionista e arredio ao mundo social. Em debate provocativo contra os postulados da linguística positivista, Deleuze e Guattari (2011DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011 [1980]. [1980], p. 36), por exemplo, apontam que “a questão das invariantes estruturais [...] é essencial para a linguística. É sob essa condição que a linguística pode reivindicar para si uma pura cientificidade, nada a não ser a ciência..., a salvo de qualquer fator supostamente exterior ou pragmático”. No que concerne ao fenômeno da comunicação, critérios de clareza e exatidão gozam de primazia nos jogos explicativos de muitas crenças linguísticas ocidentais. Fabrício e Moita Lopes (2019FABRÍCIO, Branca F.; MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Transidiomaticity and transperformances in Brazilian queer rap: Toward an abject aesthetics. Gragoatá, Niterói, v. 24, n. 48, p. 136-159, 2019., p. 137) salientam que, segundo essas visões, a eficiência comunicativa repousa no “transporte transparente de sentidos intencionais produzidos nas mentes de indivíduos autônomos”. Crenças dessa natureza se enredam em outras, como a ideia de que transgressões das normas linguísticas contaminam e poluem a linguagem. Um ideal de limpeza linguística converte em sujeira e lixo qualquer infração. Dessa forma, misturas criativas de recursos 26 26 Alim (2016) e Lopes e Silva (2018), inclusive, chamam a atenção para o fato de que, em face da fluidez e mistura semiótica tão manifestas na contemporaneidade, muitas/os estudiosas/os preferem usar recursos linguísticos a usar língua ou mesmo variedade linguística, dada a história que esses termos ainda carregam, repleta de noções de fixidez e pureza. verificadas nos usos efetivos das práticas discursivas são equiparadas a sujidades profanadoras de um cientificismo asséptico com o qual parte da imaginação linguística ocidental se comprometeu.

Como apontado anteriormente, a conceitualização de línguas como entidades puras e homogêneas não é hegemônica, sendo alvo de muitas contestações, sobretudo no momento atual, altamente complexo, diversificado e velozmente mutável. A crítica à episteme modernista se centra no fato de que se trata de uma teorização em total desacordo com as transformações contemporâneas, que impactam os modos como as pessoas se relacionam umas com as outras e encenam suas vidas discursivas. Praticamente tudo - indivíduos, textos, produtos, saberes - transita por espaços simbólicos e/ou físicos ( BLOMMAERT, 2008BLOMMAERT, Jan. Grassroot literacy: writing, identity and voice in Central Africa. Londres: Routledge, 2008. ; FABRÍCIO; MOITA LOPES, 2019FABRÍCIO, Branca F.; MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Transidiomaticity and transperformances in Brazilian queer rap: Toward an abject aesthetics. Gragoatá, Niterói, v. 24, n. 48, p. 136-159, 2019.; JACQUEMET, 2016JACQUEMET, Marco. Language in the age of globalization. In: BONVILLAIN, Nancy. (ed.). The Routledge Handbook of Linguistic Anthropology. London: Routledge, 2016. p. 329-347. ; MOITA LOPES, 2008MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Inglês e globalização em uma epistemologia da fronteira: Ideologia linguística para tempos híbridos. D.E.L.T.A., v. 24, n. 2, p. 309-340, 2008.; RAMPTON, 2009RAMPTON, Ben. Speech Community and Beyond. In: COUPLAND, Nikolas; JAWORSKI, Adam. (org.). The New Sociolinguistics Reader. New York: Palgrave Macmillan, 2009. p. 694-713. ), ocasionando múltiplas recombinações. Cada vez mais, a noção de pureza semiótica se torna uma contradição. Desse modo, as fronteiras das supostas línguas discretas são constantemente atravessadas, a tal ponto que as hibridizações culturais e multissemióticas se configuram, na realidade, como lei, e não como anomalia.

O entendimento de que o funcionamento da linguagem diz respeito a hibridizações e mobilidades semióticas não insinua, entretanto, que as misturas de recursos semióticos e de fragmentos de línguas se dão em uma arena de forças harmoniosas, sem relações assimétricas de poder. É, pois, justamente o contrário. O campo semiótico é uma trincheira, e lutas sociais se travam em seus domínios. Assim, a diferença (que não passa de uma mistura estigmatizada socialmente) é construída como tendo menor reputação em virtude de toda uma conjuntura sócio-histórica, cultural e econômica, que a episteme modernista da linguagem coopera em amparar. Um bom exemplo disso nos é trazido por Lélia Gonzalez. O pretuguês, que materializa a africanização do que se reconhece como português brasileiro, comparece aqui e ali na boca de muitas/os: “[...] acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em , o está em e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês” ( GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244., p. 238, grifo da autora). Todavia, conforme elucida a autora, em bocas negras e pobres, a mistura não tarda a ser depreciada: “É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado” ( GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244., p. 238, grifo da autora).

A crítica da episteme modernista na descrição das línguas coloca em questão não apenas um modo de fazer ciência ou de abordar os fenômenos linguísticos. Ela também reflete sobre a brutalidade implicada na varredura para fora de seu sistema os julgados anátemas da linguagem (variabilidades, híbridos, acasos etc.). Essa construção metafórica de sobras e restos desconsidera as pessoas e suas respectivas vivências sociais: são descartadas como produtoras de detritos linguísticos; nem mesmo são reconhecidas como seres de direitos. De acordo com Bauman e Briggs (2003BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles. Voices of modernity: language ideologies and the politics of inequalities. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. ), quando a modernidade purificou as línguas, ela, automaticamente, instaurou e naturalizou as desigualdades sociais. Os sistemas linguísticos foram historicamente higienizados à custa dos híbridos produzidos por determinados grupos - usualmente, categorias subalternizadas - que passaram a ser desconsiderados ou depreciados. Por ação de arregimentações institucionais (sobretudo, da educação formal), os híbridos legitimados (portanto, elevados à condição de norma e com a sua história de mistura devidamente apagada) se confundiam com as expressões linguísticas de grupos sociais de prestígio, como membros notoriamente masculinos da burguesia e da aristocracia ( ELIAS, 1996ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1996 [1939]. [1939]; STALLYBRASS; WHITE, 1986STALLYBRASS, Peter; WHITE, Allon. The politics and poetics of transgression. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.). Se a norma era a baliza de correção e qualificação humana, quem dela se afastava atestava sua suposta natureza deficitária. O problema, portanto, não foi posto nesse modo de teorizar as línguas, mas na presumida incapacidade cognitiva de determinados grupos, a quem cabia responsabilizar por fracassarem em falar e escrever a decretada língua certa:

Os pobres, as mulheres, a população rural, os não-europeus eram julgados de terem falhado antecipadamente, e suas perceptíveis inabilidades em se engajarem no trabalho de purificação - e de se identificarem com os híbridos de prestígios reivindicados pelos homens modernos da elite - podiam ser localizadas nas profundezas do si mesmo, tornando isso em uma deficiência comportamental, intelectual e moral global da qual eles próprios eram culpados ( BAUMAN; BRIGGS, 2003BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles. Voices of modernity: language ideologies and the politics of inequalities. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. , p. 66).

Um pressuposto no qual também se assenta a episteme modernista das línguas é que há coincidência entre um povo, uma nação e uma língua. Logo, muitos países são usualmente imaginados como territórios monoglotas e homogêneos, por certo sempre à custa das línguas subalternizadas e da legitimidade das hibridizações idiomáticas e semióticas ( LOPES; SILVA, 2018LOPES, Adriana C.; SILVA, Daniel do N. e. Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 18, n,3, p. 695-713, 2018.; PINTO, 2013PINTO, Joana Plaza. Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (org.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola, 2013. p. 120-143.). Se, em um determinado território, vacilar constantemente no uso da variante de prestígio da dita língua materna já degrada a/o falante e escritor(a) à condição de pária daquele idioma, transitar por línguas vistas tradicionalmente como propriedades de outrem traz novos coeficientes de valorações.

Performances linguísticas que se embaralham com línguas associadas ao Norte Global exemplificam bem os julgamentos depreciativos que incidem sobre falantes e escritoras/es que são posicionados na margem. Sobre isso, já nos alertou o intelectual e ativista político martinicano, Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008 [1952]. , p. 36): “Sim, é preciso que eu vigie minha locução, pois também é através dela que serei julgado... Dirão de mim com desprezo: ele não sabe sequer falar o francês!”. Já a feminista chicana Gloria Anzaldúa (2009ANZALDÚA, Gloria. Como domar uma língua selvagem. Cadernos de Letras da UFF, n. 39, p. 297-309, 2009 [1987].) nos legou seus relatos autobiográficos, em que narra suas dolorosas e violentas experiências nos eventos interacionais em que seu inglês mestizo foi açoitado, denunciando os efeitos cortantes de tais experiências para seus sentidos intersubjetivos.

A circulação histórica desses conhecimentos afeta as formas que usuárias/os de línguas pensam, percebem e avaliam os modos de comunicação. Filhos não é exceção. Em sua interação com o questionário de pesquisa e na entrevista com sua professora de inglês, ela recicla o contraste entre incompetência e competência inatas. Ao se autodepreciar como aprendiz, posiciona sua interlocutora como autoridade do saber. Como bem salienta Pierre Bourdieu (1991BOURDIEU, Pierre. Language and Symbolic Power. Cambridge: Polite Press, 1991., p. 53), “todas as práticas linguísticas são medidas em contraste com as práticas legítimas, isto é, as práticas daquelas/es que são dominantes”. No caso de Filhos, nossas notas de campo mostram que a qualificação negativa se aplica aos seus usos tanto de português quanto de inglês - língua que, na contemporaneidade de intensos fluxos semióticos, assume sua faceta bricolada de maneira ainda mais expressiva. Poderiam esses ingleses híbridos, tão insurgentes ao ideal do inglês padrão, ser potências de resistência à visão modernista de língua inglesa e seus falantes idealizados?

“A minha diferença é sempre menos” 27 27 BARROS (2016).

A pluralidade de ingleses no mundo vem ganhando os holofotes, com destaque para o número maior de pessoas que usam essa língua para comunicação internacional em comparação aos países onde o inglês é considerado, nas terminologias tradicionais, a língua materna e onde é a segunda língua ou língua oficial ( GRADDOL, 2006GRADDOL, David. English next. Why global English may mean the end of ‘English as a foreign language’. Plymouth: The British Council, 2006.). Essas reflexões em torno dos ditos ingleses globais são seminais para a compreensão do inglês como um repertório que possibilita a interlocução entre interagentes de diferentes partes do mundo. Jacquemet (2016JACQUEMET, Marco. Language in the age of globalization. In: BONVILLAIN, Nancy. (ed.). The Routledge Handbook of Linguistic Anthropology. London: Routledge, 2016. p. 329-347. ) argumenta que os impactos da globalização nas línguas vêm resultando na criação de mais falantes multilíngues e no aumento de demandas por pessoas com habilidades plurilíngues. Diante da centralidade do inglês no mundo globalizado, ainda é essa a língua que predominantemente tem participação nas interações, onde há mobilidade de vários recursos semióticos.

Se línguas que muito circulam nos mais diferentes espaços - físicos e simbólicos - são as que integram ativamente as misturas semióticas, na contemporaneidade, o inglês tem ação recorrente nas mudanças de várias línguas, cabendo ressalvar que ele próprio é alterado nesse processo. Essas modificações no inglês são valiosas para este estudo, tão interessado nas combinações entre essa língua e os recursos de grupos minoritários e excluídos. Como bem dizem Stallybrass e White (1986STALLYBRASS, Peter; WHITE, Allon. The politics and poetics of transgression. Cambridge: Cambridge University Press, 1986., p. 23), “[...] o que é socialmente periférico pode ser central simbolicamente”. Assim, a resposta de resistência ao inglês hegemônico - o do discurso único, o do monoculturalismo - vem sendo ironicamente o próprio inglês. Por certo, não o mesmo inglês, mas o heterogeneizado, o descentralizado, o das histórias locais, o de pautas vindas da margem (BELL HOOKS, 2017HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017 [1994].; GRADDOL, 2006GRADDOL, David. English next. Why global English may mean the end of ‘English as a foreign language’. Plymouth: The British Council, 2006.; MOITA LOPES, 2008MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Inglês e globalização em uma epistemologia da fronteira: Ideologia linguística para tempos híbridos. D.E.L.T.A., v. 24, n. 2, p. 309-340, 2008.). Mulico e Costa (2021MULICO, Lesliê V.; COSTA, Patrícia Helena da S. Construindo um currículo decolonial com as vozes do sul: inglês como língua de denúncia contra violações de direitos humanos. Gragoatá, Niterói, v. 26, n. 56, p. 1273-1311, 2021. , p. 1276) enfatizam o alcance translocal que movimentos sociais - sobretudo do chamado Sul Global - podem ter se, ao invés de resistirem à língua, fizerem “resistência com a língua” (grifo do autor e da autora), posto que, “no mundo globalizado, saber se comunicar em língua inglesa pode significar a possibilidade de projetar ativismos e denúncias de violações de direitos humanos internacionalmente”.

bell hooks argumenta como, na reconfiguração do inglês do opressor por negras/os africanas/os escravizadas/os, a insurreição já se pronunciava no próprio desvio à matriz normativa:

Isso porque, no uso incorreto das palavras, na colocação incorreta das palavras, havia um espírito de rebelião que tomava posse da língua como local de resistência; Um uso do inglês que rompia com o costume e o sentido padronizados, de tal modo que os brancos muitas vezes não conseguissem compreender a fala dos negros, transformou o inglês em algo mais que a simples língua do opressor (bell hooks, 2017HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017 [1994]., p. 227).

Não se trata de ignorar que a fricção do inglês com outras línguas pode se dar com muito desequilíbrio de forças. Quando esse encontro ocorre com línguas em condições sociolinguísticas mais vulneráveis (em virtude do número reduzido de falantes e/ou de suas configurações ágrafas) o desaparecimento dessas línguas pode ser, inclusive, o resultado. Trata-se, no entanto, de reconhecer que línguas puras, disjuntas e imutáveis são devaneios de uma episteme modernista, de modo que, como bem alerta Jacquemet (2016JACQUEMET, Marco. Language in the age of globalization. In: BONVILLAIN, Nancy. (ed.). The Routledge Handbook of Linguistic Anthropology. London: Routledge, 2016. p. 329-347. ), se não é o caso de as/os falantes terem sido coagidas/os ou aniquiladas/os em prol da adoção de uma nova língua, novos híbridos fatalmente surgirão, hoje com o protagonismo do inglês, ontem e talvez amanhã com o protagonismo de outras línguas.

No empirismo do dia a dia, testemunhamos, então, o inglês se misturando, se instabilizando e se reconfigurando graças a essas mestiçagens. Uma atenção aguçada à pequeneza das vivências prosaicas já rechaça a compreensão reducionista de um imperialismo (inclusive linguístico) dos Estados Unidos. Em tempos de intensos hibridismos, o inglês “passa a ser compreendido também como uma língua de fronteira da qual as pessoas se apropriam para agir na vida social (para viver, amar, aprender, trabalhar, resistir e ser humano, enfim)” ( MOITA LOPES, 2008MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Inglês e globalização em uma epistemologia da fronteira: Ideologia linguística para tempos híbridos. D.E.L.T.A., v. 24, n. 2, p. 309-340, 2008., p. 333).

Algumas experiências ilustram bem a relação entre a aprendizagem de inglês e práticas de resistência. É o caso de Mariluce Mariá, ativista comunitária do conjunto de favelas do Complexo do Alemão (RJ), cujas falas são bem emblemáticas dessa reconfiguração da língua inglesa por vozes subalternizadas em benefício de pautas políticas locais ( ALAB, 2021ALAB - ASSOCIAÇÃO DE LINGUÍSTICA APLICADA DO BRASIL. Live Língua inglesa e direitos humanos: pode o subalterno falar? Youtube, 06 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GwEXRfPx9qE . Acesso em: 08 maio 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=GwEXRfPx...
). Em suas histórias ela destaca a mulher negra e favelada, que, assim como Filhos, teve sua vida marcada pela interrupção dos estudos no tempo regular e pelas experiências da violência na comunidade onde vive.

Ao ser convidada para palestrar na Universidade de Stanford (Califórnia, USA), o inglês hibridizado, improvisado e “intuitivo” de Mariluce - para usar o próprio termo da narradora - viajou e, consigo, pôde levar a outros espaços a denúncia do assassinato de moradores/as de uma favela fluminense pelo próprio Estado. Assim, graças à materialização desses discursos em recursos translíngues, histórias locais de violência puderam alcançar escalas mais amplas e se tornaram audíveis em outras amplitudes. Sua palestra na universidade estadunidense, seus esforços discursivos para obtenção de informações no Aeroporto Internacional de Miami e as interações com as/os estrangeiras/os em sua própria comunidade, quando esteve no comando de sua agência de turismo no Alemão, evidenciam as misturas às quais recorreu na empreitada de tornar a comunicação com o outro possível.

Toda a mistura de recursos semióticos empregada por Mariluce - pedaços de línguas, gestos, tecnologias digitais (como serviços virtuais de tradução acessíveis à mão, via celular), saberes prévios de mundo etc. - corrobora a validade de a/o sujeita/o contemporânea/o se virar com os recursos que tem na negociação de sentidos com a alteridade. Liberali (2020LIBERALI, Fernanda. O desenvolvimento de agência e a educação multi/bilíngue. In: MEGALE, Antonieta. (org.) Desafios e práticas na educação bilíngue. São Paulo: Fundação Santilhana, 2020. p. 78-91.) sublinha, inclusive, o potencial transformador que as práticas translíngues apresentam às/aos discentes de línguas, já que ofertam “a possibilidade de desenvolvimento multimodal para viver sua potencialidade agentiva e seu repertório amplo de experiências únicas em múltiplos contextos” ( LIBERALI, 2020LIBERALI, Fernanda. O desenvolvimento de agência e a educação multi/bilíngue. In: MEGALE, Antonieta. (org.) Desafios e práticas na educação bilíngue. São Paulo: Fundação Santilhana, 2020. p. 78-91., p. 81). Processos translíngues nos convocam, portanto, a pensarmos para além de códigos linguísticos separados. Implicam no agenciamento de toda uma maquinaria multimodal (gestos, entonações, diferentes códigos etc.) na diligência de nos comunicarmos com o outro, ou seja, no empenho de produzirmos sentido em negociação com o outro.

A discussão encaminhada até aqui enfatiza que os constantes trânsitos fronteiriços e a formação de redes de mútua influência nos domínios econômicos, políticos e socioculturais colaboram para ações linguísticas cada vez mais plurais, translíngues e transidiomáticas ( BLOMMAERT, 2005BLOMMAERT, Jan. Discourse: key topics in sociolinguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. ; 2008BLOMMAERT, Jan. Grassroot literacy: writing, identity and voice in Central Africa. Londres: Routledge, 2008. ; 2009BLOMMAERT, Jan. A sociolinguistics of globalization. In: COUPLAND, Nikolas; JAWORSKI, Adam. (ed.). The New Sociolinguistics Reader. New York: Palgrave Macmillan, 2009. p. 560-581. ; 2010BLOMMAERT, Jan. The Sociolinguistics of Globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. ; CANAGARAJAH, 2007CANAGARAJAH, Suresh. After Disinvention: Possibilities for communication, Community and Competence. In: MAKONI, Sinfree; PENNYCOOK, Alastair. (ed.). Desinventing and reconstituing languages. Clevedon: Multilingual Matters, 2007. p. 233-239. ; JACQUEMET, 2005JACQUEMET, Marco. Transidiomatic practices: Language and power in the age of globalization. Language & communication, v. 25, p. 257-277, 2005. ; 2016JACQUEMET, Marco. Language in the age of globalization. In: BONVILLAIN, Nancy. (ed.). The Routledge Handbook of Linguistic Anthropology. London: Routledge, 2016. p. 329-347. ; MOITA LOPES, 2008MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Inglês e globalização em uma epistemologia da fronteira: Ideologia linguística para tempos híbridos. D.E.L.T.A., v. 24, n. 2, p. 309-340, 2008.). As hibridizações são a regra, não a exceção, embora não se possa negar a forte influência que a episteme modernista ainda exerce sobre as crenças contemporâneas acerca das línguas. No que concerne especificamente à língua inglesa, híbridos normativos do inglês (normalmente de matrizes estadunidenses e britânicas) ainda gozam de autoridade em escala planetária, de modo que outras misturas dessas línguas não são habitualmente consideradas válidas. Blommaert (2009BLOMMAERT, Jan. A sociolinguistics of globalization. In: COUPLAND, Nikolas; JAWORSKI, Adam. (ed.). The New Sociolinguistics Reader. New York: Palgrave Macmillan, 2009. p. 560-581. , p. 564) é categórico ao afirmar que “a desigualdade, e não a uniformidade, organiza os fluxos pelo globo” (grifo do autor). Assim, as mestiçagens que não se ajustam ao que se instituiu como o eixo normativo são, com frequência, estigmatizadas.

Referendando uma tradição filosófica, segundo a qual a literalidade de sentido é uma dimensão muito precária da linguagem, para dar conta de toda complexidade envolvida nos processos de significação, Blommaert (2009BLOMMAERT, Jan. A sociolinguistics of globalization. In: COUPLAND, Nikolas; JAWORSKI, Adam. (ed.). The New Sociolinguistics Reader. New York: Palgrave Macmillan, 2009. p. 560-581. ) compreende que a indexicalidade é capital na produção de sentido, posto que qualquer signo semiótico nos convoca sempre ao transbordamento de sua dimensão meramente denotacional. Em outros termos, os processos de construção de sentido dependem tanto do contexto local de enunciação desse signo como dos valores sócio-históricos que se sedimentam na escala macrossocial. Diante disso, é esse mesmo sociolinguista que, por ação de seu construto teórico-analítico de ordens de indexicalidade, nos convoca a olharmos para as mudanças na hierarquização de valores a que os recursos semióticos são submetidos todas as vezes em que viajam por diferentes gradientes escalares. O conceito de ordens de indexicalidade dá saliência à estratificação dos sentidos indexicais associados aos recursos semióticos. Isso porque, em nossos trânsitos em diferentes contextos, as práticas discursivas que animamos sofrem reapreciações constantes, dependendo dos centros de autoridade (normas, instituições, epistemes etc.) em relação aos quais nos orientamos. Lélia Gonzalez, ao tematizar o pretuguês bunda - um legado do quimbundo no repertório brasileiro -, ilustra bem como um recurso semiótico desvalorizado em um imaginário nacional de “ascendência europeia, muito civilizado” ( GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244., p. 238) é reapreciado positivamente em um novo contexto. Torna-se recurso representativo de uma idealizada brasilidade. Conforme ironiza a autora, “[...] de repente bunda é língua, é linguagem, é sentido é coisa” ( GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244., p. 238). Essas valorações diferenciadas, que são atribuídas aos recursos semióticos, interacionalmente estruturam as desigualdades entre as/os interagentes, pois recursos associados às variantes de prestígio gozam, nas racionalizações vigentes sobre as línguas, de maior apreço em comparação aos populares e mestiçados. Como há sempre trabalho de construção identitária nessas hierarquizações semióticas, valores sociais de sucesso, influência e importância passam a ser atribuídos a intersubjetividades que fazem uso do que sócio-historicamente conta como língua, ao passo que outras são depreciadas em virtude de suas performances linguísticas híbridas. Em um esquema dicotômico e essencialista, as/os bem sucedidas/os em produzir pureza linguística encenariam supostas subjetividades-tudo, em oposição às subjetividades- nada, ajuizadas como cognitivamente incapazes.

Especificamente sobre o que se instituiu como língua inglesa, o fato de testemunharmos sua configuração cada vez mais retalhada em um mundo de intensos fluxos não sugere afirmar que os ingleses mestiçados tenham sido içados à posição de autoridade em uma escala mais ampla. Como bem alerta Jacquemet (2005JACQUEMET, Marco. Transidiomatic practices: Language and power in the age of globalization. Language & communication, v. 25, p. 257-277, 2005. ), há, inclusive, ordenações entre as próprias misturas, uma vez que, mesmo que certas práticas transidiomáticas e translíngues já passem por aceitáveis na contemporaneidade, há as hibridizações que “são consideradas inglês errado 28 28 Broken English, no original. ou incompreensível” (p. 266, grifo do autor). Esse mesmo pesquisador (2005; 2016) e outros (como BLOMMAERT 2005BLOMMAERT, Jan. Discourse: key topics in sociolinguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. ; 2009) nos fornecem exemplos empíricos em que um inglês bem conceituado nas sociedades periféricas do sistema mundial se torna um inglês desvalorizado quando deslocado para o centro. As narrativas de Mariluce Mariá, inclusive, são boas ilustrações.

Segundo o que nos conta Mariluce, ela se sentiu invisível em alguns eventos interacionais em sítios estadunidenses. No Aeroporto de Miami, por exemplo, ela alega que seu inglês (retalhado) - atravessado compulsoriamente por suas performances de mulher negra e latino-americana - não foi capaz de angariar o mínimo de atenção necessária dessa/e outra/o interlocutor(a) que, em seu auxílio, poderia conduzi-la à saída. Foi preciso que ela própria recorresse aos seus conhecimentos de mundo e, assim, lograsse êxito em sair dali. Nesses eventos, sua identidade linguística não foi, portanto, considerada, e, por extensão, tampouco ela como sujeita.

Filhos, ao contrário de Mariluce, do Brasil nunca saiu. Todavia, mesmo sem viajar por grandes distâncias físicas, ela narra eventos locais em que o inglês se configurou como um dos vários recursos multissemióticos em operação no processo de construção de sentido.

“Cumé que a gente fica?” 29 29 GONZALEZ (1984).

Conforme já anunciado, buscamos investigar os efeitos que visões modernistas sobre as línguas - em especial, sobre a língua inglesa - produzem nas performances de subjetividades de Filhos, aluna de um curso pré-universitário popular. Já antecipamos que, em suas apreciações acerca de seus saberes em língua inglesa, Filhos os reduz a nada e se alinha como incapacitada em práticas comunicativas em que o inglês é apenas um dos recursos em ação. Também apresentamos parte de sua biografia, em que, ao reconstituir a época quando voltou à escola, Filhos nos informa que ela não aprendeu nada. Um questionamento que nos motivou a conhecer em mais detalhe as histórias de Filhos foi o seguinte: por que ela, essa sujeita contemporânea, que fatalmente esbarra em pedaços de inglês aqui e acolá nas práticas discursivas de que participa, produz narrativas segundo as quais seus saberes nessa língua são totalmente inexistentes? Ponderamos que investigar os centros de autoridade pelos quais Filhos se guia nos parece um caminho interpretativo produtivo.

Começamos com a experiência de Filhos em um curso livre aos dezoito anos. Em entrevista, ela narra que estudou em um curso livre (de abordagem audiolingual) por um período inferior a um semestre. Sua desistência, de acordo com o que informou no questionário, se deu em virtude de sua “dificuldade para memorizar”. Trata-se de uma pista que aponta para um desenho pedagógico orientado por crenças de que a aprendizagem de uma língua se pauta na memorização de estruturas linguísticas. Na breve passagem de Filhos nesse curso audiovisual, durante sua juventude, a sua identidade de aprendiz de língua inglesa foi reduzida à subjetividade-nada:

Ele [o professor] falou, ele foi muito duro, “nossa, você não sabe nada!”. Eu até entendo, às vezes, quando a minha filha entrou no [Colégio Estadual] ano passado, ela teve depressão, né? Ela perdeu 2 kg, e na questão, da forma de falar muito dura mesmo. Ali, eu era jovem, né? Tinha 18, 19 anos. Mas eu parei o curso por causa disso. E eu não podia pagar meu curso. Comecei a fazer no [curso livre]. Eu não cheguei a fazer seis meses com essa questão. Eu fiquei com muita vergonha das crianças falando e eu ficava empacada ali ( FILHOS, 2019FILHOS, -. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s.), Cf. nota 1).

A narrativa que Filhos nos conta, ambientada em uma aula de um curso livre de inglês, nos parece ser uma pista relevante no entendimento da autodepreciação reiterada de suas performances linguísticas. Ela reconstitui um evento interacional envolvendo dois personagens: ela mesma, mais jovem, e o seu professor de inglês. Por ação da citação direta, o ajuizamento do professor acerca de seus saberes em língua inglesa nos é informado: ele os constrói como inexistentes (“nossa, você não sabe nada!”). Filhos, inclusive, reconhece a violência dessa avaliação, quando predica a fala do docente: “Ele falou, ele foi muito duro”.

Tendo em vista que os enunciados que proferimos não inauguram sentidos, mas revitalizam, nas microinterações, os discursos solidificados na sócio-história, compreendemos que o julgamento do professor de inglês de Filhos está longe de ser da ordem do indivíduo. A própria Filhos percebe a recursividade dessa avaliação severa no repertório de sentidos de subjetividades assemelhadas, quando estabelece ponto de tangência entre sua narrativa e as histórias escolares de sua descendência (“Ela [a filha] perdeu 2 kg, e na questão, da forma de falar muito dura mesmo”, grifo nosso). Nesses meses iniciais de socialização acadêmica de Filhos no curso de inglês, é possível que as performances orais 30 30 Nesse trecho e em outros da entrevista, é possível perceber que Filhos entende que saber uma língua equivale a saber falar essa língua (“Eu fiquei com muita vergonha das crianças falando e eu ficava empacada ali”, grifo nosso). Entendemos isso como mais uma pista da episteme modernista, como um centro de autoridade por que Filhos se orienta, posto que a oralidade é vista como a habilidade de primazia na aprendizagem de uma língua, segundo a linguística estruturalista. dela não se aproximassem da variante pura e de prestígio da língua inglesa. Assim, para as ordens de indexicalidade cujo centro de autoridade é a percepção homogeneizante de línguas, os conhecimentos e as performances discursivas de Filhos equivaleram à ausência.

A abreviada declaração do professor - “você não sabe nada!” - é uma ação performativa que, em cooperação com toda uma conjuntura sociodiscursiva micro e macro, projeta Filhos como uma subjetividade-nada. Vemos um enunciado fugaz, mas que, ironicamente, provocou efeitos subjetivantes longevos. A esse respeito, Agha (2007AGHA, Asif. Language and social relations. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 3) ressalta o amplo potencial das insignificâncias temporais, pois, segundo ele, “coisas que duram por segundos podem ter efeitos que duram por anos” 31 31 Vale igualmente pontuar os efeitos subjetivantes que essa episteme produz na própria filha adolescente de Filhos, já que, segundo a narradora, sua saúde mental ficou comprometida. .

Podemos observar, na história acima, a repetição pelo habitus, em que o nexo macro-micro se manifesta à medida que significações historicamente duráveis do que é saber verdadeiramente uma língua se revitalizam “nos aspectos aparentemente insignificantes das coisas, das situações e das práticas da vida cotidiana” ( BOURDIEU, 1991BOURDIEU, Pierre. Language and Symbolic Power. Cambridge: Polite Press, 1991., p. 51). Filhos e seu professor parecem seguir reproduzindo no microencontro uma crença dominante sobre o que conta como inglês. Como efeito colateral, a construção identitária de Filhos como aprendiz fracassada da língua inglesa vai ganhando contornos estáveis. À princípio, parece que outros modos de se conceber as línguas e seus funcionamentos, por não estarem contidos nos repertórios de saberes nem da aluna e nem do docente, operam um looping que torna inquestionável a suposta inabilidade de Filhos de agir no mundo pelo inglês. Entretanto, o looping não atua de forma linear. Pode se movimentar em outras direções, mesmo tropeçando em epistemes modernistas.

Na rota seguida até aqui, o centro de autoridade pelo qual Filhos e o professor se orientam constrói as misturas semióticas como obstáculos ao reconhecimento de presença de língua. Mas há outros caminhos que se entrecruzam. Em suas narrativizações em entrevista, dois exemplos saltam à vista. O primeiro deles segue abaixo, quando ela nos narra um evento do qual participou na cidade onde mora, em que foi solicitada a dar informações a um turista:

Já passou um ali que falou, “Largo das Neves”. Aí você entende: “lá...”. Aí eu falo, “sobe! Vai subindo...”. Eu falo no meu português, “sobe!”, fazendo sempre o sinal dessa forma [mostra em gestos], entendeu? Tem uns que falam assim, que você consegue entender; tem uns que, tipo, querem conversar, aí, você não vai entender. Eu não vou entender, mas esse que, esse foi lá e falou “das Neves”. Tanto que eu conheço Largo das Neves, que é depois do meu trabalho. Aí eu fui e falei, “vai subindo... sobe!”, e faço gesto, mas tem uns que falam, e você não entende. Eu não entendo inglês, então, não vou entender ( FILHOS, 2019FILHOS, -. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s.), Cf. nota 1).

No que se refere à inteligibilidade mútua, a estória que Filhos reencena - um turista pedindo a ela informação sobre direções em um bairro carioca - parece-nos bem-sucedida. A comunicação se efetuou graças a toda a riqueza semiótica e de saberes em operação, envolvendo gestos corporais, pedaços de línguas (português e inglês em trânsito), referências dêiticas e conhecimentos prévios sobre as convenções socioculturais quanto a solicitar e dar direções. É uma construção de sentido que requer esforço conjunto, tanto do turista - possivelmente com repertório restrito em português, sendo ele, sobretudo, o necessitado de informação em um lugar desconhecido - quanto de Filhos, disposta a ajudar. Em suma, Filhos se mostrou competente em uma interação tipicamente contemporânea - portanto translíngue - uma vez que negociou sentido na diferença, em um investimento comunicativo solidário, como deve ser em um mundo de variedades de recursos semióticos ( CANAGARAJAH, 2007CANAGARAJAH, Suresh. After Disinvention: Possibilities for communication, Community and Competence. In: MAKONI, Sinfree; PENNYCOOK, Alastair. (ed.). Desinventing and reconstituing languages. Clevedon: Multilingual Matters, 2007. p. 233-239. ).

Nesse evento narrado, constata-se que não foi o domínio oral de um código linguístico puro que fez com que o estrangeiro possivelmente chegasse ao seu destino, mas a multissemiose desse evento interacional localmente situado, que dependeu - e muito! - do conjunto de saberes de Filhos. Todavia, ao contrário de Mariluce, que se fiou em práticas translíngues para agir no mundo (Cf. seção anterior), Filhos não valoriza essa mixagem de recursos. Sua performance é ambivalente. Por um lado, ela reconhece que é (e pode ser) bem sucedida em práticas interacionais nas quais recursos linguísticos em inglês (também) transitam: “Tem uns que falam assim, que você consegue entender”. Talvez essa seja a chave para entendermos “ele foi muito duro” como uma crítica ao professor. Esse enquadre aproxima a reflexão de Filhos da posição de bell hooks (2017) em sua abordagem transgressora acerca da língua, “que não necessariamente tenhamos de ouvir e conhecer tudo o que é dito, que não precisemos dominar ou conquistar a narrativa como um todo, que possamos conhecer em fragmentos” (p. 232, grifo da autora). Assim, interagir em um mundo plural é “aprender não só com os espaços de fala, mas também com os espaços de silêncio” (p. 232). Subvertendo o nexo imperante, no mundo contemporâneo, não é, pois, Filhos quem precisa tornar seu inglês um reflexo coeso da variante padrão; são as/os habituadas/os a só ouvirem o inglês hegemônico que precisam agora aprender a negociar sentido em práticas discursivas cada vez mais retalhadas, multissemióticas e lacunosas.

Por outro lado, ao decretar para si mesma no agora, assim como em um futuro hipotético, a incapacidade de ação nessa língua (“Eu não entendo inglês, então, não vou entender”), ela desqualifica sua performance comunicativa. Tal contradição talvez possa ser atribuída à própria estrutura interacional geradora dessa narrativa. Existe a possibilidade de Filhos, projetando na entrevistadora-professora sentidos identitários estáveis de mulher branca, classe média e autoridade epistêmica, intuir, com base (também) na sua experiência com o antigo professor do curso livre de inglês, que ela igualmente não reconheceria suas ações discursivas como legítimas. Afinal, a coda de sua história (“Eu não entendo inglês, então, não vou entender”), que dá amparo à ideologia da falta de aptidão para a aprendizagem de inglês, é animada por uma mulher negra, marginalizada, em contexto de pesquisa, diante de sua professora de inglês, que talvez Filhos julgue ser guiada por uma visão de língua pura e coesa. Ressalvamos que não negamos a possibilidade de que, para outras práticas interacionais situadas, o repertório oral de recursos linguísticos em inglês de Filhos pudesse dificultar a inteligibilidade mútua. A performance ambigua de Filhos, oscilando entre uma subjetividade-nula e uma subjetividade-criativa, indica que agir no discurso envolve uma complexidade de ações multissemióticas nas quais o uso de um código é apenas um elemento da cena interacional.

O próximo exemplo que trazemos à baila de igual modo assinala que os saberes de Filhos são avaliados por ela mesma como insignificantes, vistos como precários para que ela possa sair do país. Quando a pesquisadora, em entrevista, recontextualiza a resposta de Filhos a uma das perguntas do questionário, ela explica, então, por que julga saber “nada de inglês”:

Ah, porque... uma palavra é... tipo, uma cor: blue. Eh... hot dog! Mas e uma frase inteira...? Entendeu...? Agora, com a dica de vocês, aí, sim, essa dica de ver ali ... o que você conhece, vai eliminando... essa questão, essa questão de eliminação. Agora eu fico mais atenta nisso. (...) Mas eu não posso já viajar lá, para fora, a questão de eliminação... porque eu quero aprender um pouquinho uma frase completa ( FILHOS, 2019FILHOS, -. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s.), Cf. nota 1).

Nesse trecho, Filhos reentextualiza as práticas discursivas das professoras de inglês do curso pré-universitário popular. Ao citar indiretamente a fala das docentes - “Agora, com a dica de vocês, aí, sim, essa dica de ver ali... o que você conhece” - Filhos reinterpreta um trabalho pedagógico pautado na importância dos processos de contextualização em nossas interações com os textos, em que, dada a exiguidade da dimensão denotacional, os nossos saberes de mundo têm ampla relevância na confecção de sentido. No entanto, apesar de afirmar que esse modo de conceber o funcionamento da linguagem passou a compor suas crenças (“Agora eu fico mais atenta nisso”), seus saberes, nos jogos da significação, permanecem abalizados por ela como impotentes, conforme a adversativa a seguir aponta: “Mas eu não posso já viajar lá, para fora, a questão da eliminação...”.

Visualizamos, novamente, a autoridade que uma concepção estruturalista de língua, reduzida a relações que acontecem no interior de um sistema linguístico, tem nas crenças de Filhos. Uma vez mais, autenticando e revitalizando epistemes modernistas, Filhos aponta que, para ela ser capaz de agir no mundo em inglês, ela precisa primeiro saber articular estruturas menores - como as palavras que cita, “ blue” e “ hot dog” - em unidades superiores, formando, então, “uma frase completa”. Ela renova aqui a forte crença acerca da primazia do código, desconsiderando outros conhecimentos e signos que atuam no processo de produção de sentido. Em outros termos, Filhos julga que, enquanto seu repertório linguístico não galgar até as orações, ela continuará física e socialmente imóvel, sem poder sair de sua vida local e alcançar lonjuras.

Novamente constatamos que percepções de língua apartadas de campos sociopolíticos mais amplos - em que questões econômicas, culturais e identitárias se entrecruzam - retroalimentam a falácia de que o amplo domínio da variante padrão é garantia de mobilidade física e social da/o sujeita/o ( LOPES; SILVA; 2018LOPES, Adriana C.; SILVA, Daniel do N. e. Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 18, n,3, p. 695-713, 2018.; LOVE-NICHOLS, 2018LOVE-NICHOLS, Jessica. “There’s no such thing as a bad language, but…”: Color blindness and teachers’ ideologies of linguistic appropriateness. In: BUCHOLTZ, Mary; CASILLAS, Dolores Inés; LEE;Jin, S. (orgs.). Feeling it: Language, race, and affect in latinx youth learning. Londres: Routledge, 2018. p. 91-111.). Foquemos, por exemplo, no dêitico “lá”, a que Filhos faz referência acima. Ele tem coordenada espacial bem definida, pois se trata do parque temático estadunidense Disneylândia, para onde Filhos, há anos, sonha viajar (como apontam outros trechos da entrevista e notas de campo), e que, no final, justificaria seu aprendizado dessa língua:

Eu quero saber inglês. Eu quero ir para Disney, então, eu tenho que saber alguma coisa. [...] É um sonho de infância que eu tenho, por ter trabalhado em uma empresa de turismo e ver várias pessoas indo à Disney, levando seus filhos. Então eu tenho esse sonho de ir à Disney ( FILHOS, 2019FILHOS, -. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s.), Cf. nota 1).

Filhos quer viver a “magia Disney” e acredita que o código linguístico - que ela ainda não domina - configura-se como um passaporte. Como bem aponta Love-Nichols (2018), ideologias linguísticas que focam exclusivamente na forma linguística, desconsiderando as performances identitárias das/os interagentes e os sentidos sócio-históricos que atravessam os encontros interacionais, parecem, de fato, desenhar um mundo de fantasias, em que a discriminação magicamente desaparece sob a invocação de palavras e orações em inglês padrão. Bastaria, então, os grupos marginalizados se adequarem às variantes hegemônicas. No entanto, só de ler e ouvir a declaração do Ministro da Economia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes, cinco meses depois dessa entrevista com Filhos - em que ele defende o dólar alto, inclusive, para impedir “empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada” ( VENTURA, 2020VENTURA, Manoel. Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada estava indo para Disney, uma festa danada’. O Globo, 13 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-empregada-domestica-estava-indo-para-disney-uma-festa-danada-24245365 . Acesso em: 24 jul. 2021.
https://oglobo.globo.com/economia/guedes...
) - já teríamos empiria suficiente para denunciar o engodo de que o simples domínio de uma língua pura garante a todas/os mobilidade nas escalas sociolinguísticas. Enquanto Filhos - a empregada doméstica negra, que dá vida à personagem alvo de desprezo de Paulo Guedes - espera ajustar seu inglês a essa imaginação inalcançável de língua, descrições linguísticas puristas e políticas governamentais elitistas se esbarram no mesmo efeito: culpabilizam as/os subalternizadas/os e suas performances linguísticas mestiças por suas próprias mazelas sociais e não-conquistas.

Percebemos, então, que Filhos pulveriza a nada seus saberes e sua própria performance discursiva em interações situadas em que o código linguístico da língua inglesa é apenas um dos vários recursos em jogo nos processos de comunicação. É o flagelo que ela mesma encena em suas performances como aprendiz, ainda que saibamos que não o faça sozinha, já que, nas narrativas selecionadas, vimos que a escola, o curso livre e o seu professor de inglês atuaram em coautoria na deslegitimação de suas ações translíngues. Para quem se guia por crenças sobre a linguagem que concebem as línguas como recursos semióticos fragmentados, variáveis e assinalados por contradições, talvez seja difícil imaginar que uma sujeita deste mundo, deste tempo e de mobilidade por espaços urbanos, de fato, tenha saberes em língua inglesa reduzidos à nulidade. No entanto, pelas lentes de epistemes que apregoam línguas puras e discretas, a narradora, as instituições de ensino por que passou e o docente-personagem de sua história reanimam uma violência que, sócio-historicamente, desconsidera as misturas não apenas de Filhos, mas as de outras tantas intersubjetividades marginalizadas. Os reveses nesses jogos de poder vão depender também de mudanças de nossas epistemes e práticas pedagógicas.

Atrapalhando as significâncias: por uma prática das misturas

Diversas/os pesquisadoras/es dos estudos da linguagem e das ciências sociais já estão, há anos, denunciando os possíveis efeitos prejudiciais que certos modos de compreender as línguas podem produzir em alguns grupos marginalizados. Crenças duráveis sobre as línguas, que as reduzem à dimensão sistêmica e à função referencialista, e o entendimento delas como patrimônios nacionais puros, desconsideram Filhos como uma sujeita social capaz de empregar e compreender recursos linguísticos em língua inglesa. Com isso, suas performances linguísticas, no decurso de sua socialização nas práticas acadêmicas, foram reiteradamente diminuídas a nada. Nesse processo, porque performances discursivas e performances identitárias se entrecortam, suas próprias intersubjetividades são atravessadas por tal redução. Como bem coloca Anzaldúa, “[...] assim, se você quer me ferir, fale mal da minha língua. A identidade étnica e a identidade linguística são unha e carne - eu sou minha língua. Eu não posso ter orgulho de mim mesma até que possa ter orgulho da minha língua” ( ANZALDÚA, 2009ANZALDÚA, Gloria. Como domar uma língua selvagem. Cadernos de Letras da UFF, n. 39, p. 297-309, 2009 [1987]., p. 312).

Os efeitos performativos desse tipo de circularidade posicionam, com frequência, Filhos como um não-ser no mundo. Os saberes-história que a constituem - enriquecidos por suas vivências extraescolares interseccionalizadas de mulher negra e periférica e que se amalgamam em suas ações multissemióticas - de todo são invalidados. Entretanto, como discutido acima, o efeito nocivo da sedimentação identitária de Filhos como sujeita incapaz de encenar performances em inglês e aprendiz nula de saberes é confrontado por ela própria, ao abordar criticamente a avaliação negativa de um professor sobre suas performances de aprendiz. Em sua efemeridade e sutileza, tal momento é exuberante em significâncias. Apesar dos discursos e crenças em jogo, que atuam com força hipnótica e cativam não apenas Filhos, mas todas/os nós, a estudante também age de modo menos mesmerizado, encenando performances translíngues criativas. Desse modo, ela aponta para a possibilidade de um trânsito mais fluido por ideologias linguísticas que opõem subjetividades-tudo, associadas à imagem de pleno sucesso linguístico-intelectual-socioeconômico, e subjetividades-nada, relacionadas à ideia de carência de saberes e inabilidade cognitiva.

Wortham (2005WORTHAM, Stanton. Socialization beyond the speech event. Jornal of Linguistic Anthropology, v. 15, n. 1, p. 95-112, 2005.) afirma que a recursividade das práticas comunicativas tem ação relevante nos processos de socialização acadêmica. No entanto, o autor adverte que as trajetórias erráticas através das quais um(a) aprendiz se move no curso de eventos discursivos são muito importantes na compreensão dos processos de constituição identitária, que não são nem simples e nem decisivos. A rápida passagem de Filhos pelas aulas de língua inglesa desse curso pré-vestibular - aulas essas guiadas por uma pedagogia translíngue - sugere microperturbações no repertório de crenças de Filhos sobre o que é saber uma língua. Ela chega a animar discursos de valorização dos saberes constituidores das/os sujeitas/os sociais nos processos comunicativos. Não sabemos se esses breves momentos de inflexão terão robustez suficiente para romper com performances de autodepreciação de Filhos como subjetividade-nada. Todavia, as encenações ambíguas de Filhos, aqui consideradas, indicam agentividade e potência criativa, pois perturbam, em sua aparente pequeneza, o “imperialismo cultural e epistemicídio” presentes na “trajetória histórica da modernidade ocidental” ( SANTOS 1997SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48, p. 11-32, 1997. , p. 29).

O muito que já se tem dito e escrito sobre as violências que determinadas descrições linguísticas causam a algumas vidas humanas nos parece, paradoxalmente, insuficiente. As experiências discursivas cotidianas de grupos historicamente subalternizados - que ainda continuam sendo vistas com desprezo e necessitadas de correção por certas epistemes - esfregam-nos à face que, de fato, ainda estamos falando pouco da grandeza das insignificâncias. Por isso, “é preciso de atrapalhar as significâncias” e de ter olhos para o que pode ser apressadamente considerado menor, pois ali estariam vivências alternativas. Tais práticas implicam um compromisso ético-político com os direitos daqueles/as que socialmente ocupam lugares marginalizados. Para tanto, temos acordo com Santos (1997SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48, p. 11-32, 1997. ) em sua defesa de uma concepção mestiça de direitos humanos, em que o reconhecimento da alteridade - e, por extensão, de seus híbridos discursivos - assegura que os grupos sociais possam ter “o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza” (p. 30). No entanto, não basta apenas apontar os estragos que determinadas descrições linguísticas (e práticas pedagógicas por elas orientadas) vêm causando a certos grupos sociodiscursivos. É necessário redefinir nosso pensar-falar-agir nas práticas pedagógicas e no foco priorizado por nossas pesquisas. É preciso observar as agentividades, pois, onde há poder há resistência ( FOUCAULT, 2005FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005 [1976]. ).

Descrições não descrevem somente. Se acreditamos que, pelo instrumento da palavra escrita ou falada, estamos apenas convertendo em códigos os seres e as coisas ditas do mundo, estamos em dívida com a potencialidade constitutiva de nossas práticas discursivas. Porém, mais do que apenas lamentar o reducionismo que estamos cometendo com as palavras - por crermos que estão só a serviço da referencialidade -, precisamos, sobretudo, valorizar os conhecimentos que estamos ajudando a destruir por ação de nossos regimes metadiscursivos. Como bem advertem Makoni e Pennycook (2007MAKONI, Sinfree; PENNYCOOK, Alastair. Desinventing and reconstituing languages. In: MAKONI, Sinfree; PENNYCOOK, Alastair. (org.). Desinventing and reconstituing languages. Clevedon: Multilingual Matters, 2007. p. 1-41. , p. 32), “qualquer descrição linguística implica em uma intervenção nas vidas das pessoas, e a intervenção pode causar efeitos adversos inesperados nestas mesmas pessoas cujos interesses achamos que estamos promovendo ou salvaguardando”. Na esfera dos sistemas peritos e na do senso comum, tanto a função denotacional da linguagem quanto a compreensão de língua como um artefato estável e objeto mental individual descontextualizado prevalecem. Infelizmente, também imperam os efeitos prejudiciais dessas racionalizações linguísticas na constituição identitária dos grupos estigmatizados, conquanto não de forma determinante, pois vetores de resistência, muitas vezes sutis, igualmente atuam.

Precisamos avançar para ações que nos façam subverter as ordenações que, por ora, ainda se apresentam. Se epistemologias que compreendem as línguas e práticas pedagógicas como misturas de recursos semióticos passam a ser reconhecidas como centros de autoridade, novas ordens de indexicalidade se configuram. “A mudança no modo de pensar sobre a língua e sobre como a usamos necessariamente altera o modo como sabemos o que sabemos [e como aprendemos]”, sublinha bell hooks (2017HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017 [1994]., p. 231). Caminhar nessa direção implica implodir com a própria ideia territorializante de língua e reavaliar os regimes de saberes validados na escola.

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  • MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Eles não aprendem português quanto mais inglês: a ideologia da falta de aptidão para aprender línguas estrangeiras em alunos da escola pública. Oficina de Linguística Aplicada Campinas: Mercado de Letras, 1996. p. 63-80.
  • MULICO, Lesliê V.; COSTA, Patrícia Helena da S. Construindo um currículo decolonial com as vozes do sul: inglês como língua de denúncia contra violações de direitos humanos. Gragoatá, Niterói, v. 26, n. 56, p. 1273-1311, 2021.
  • OLIVEIRA, Raquel S. de. A Construção da prática pedagógica do licenciando em inglês: quando a presença de um interlocutor crítico faz toda diferença. Ao Pé da Letra (UFPE), v. 3, p. 119-129, 2001.
  • OLIVEIRA, Raquel S. De; FABRÍCIO, Branca F. Notas sobre Filhos Rio de Janeiro, 2019. 1 nota de campo.
  • OLIVEIRA, Raquel S. de. Práticas Pedagógicas Mestiças na Educação Linguística de Aprendizes de Língua Inglesa. In: SILVA JÚNIOR, Antonio Ferreira da. (org.). Conversas sobre Ensino de Línguas durante a Pandemia São Paulo: Pimenta Cultural, 2021. p. 129-141.
  • PAIVA, Jane. Uma arqueologia da memória. In: SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Orientações curriculares para a educação de jovens, adultos e idosos (EJAI) Maceió: Editora Viva, 2018. p. 45-77.
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  • PINTO, Joana Plaza. Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas. In MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (org.). Português no século XXI: Cenário Geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola, 2013. p. 120-143.
  • RAMPTON, Ben. Speech Community and Beyond. In: COUPLAND, Nikolas; JAWORSKI, Adam. (org.). The New Sociolinguistics Reader New York: Palgrave Macmillan, 2009. p. 694-713.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48, p. 11-32, 1997.
  • STALLYBRASS, Peter; WHITE, Allon. The politics and poetics of transgression Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
  • VENTURA, Manoel. Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada estava indo para Disney, uma festa danada’. O Globo, 13 fev. 2020. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-empregada-domestica-estava-indo-para-disney-uma-festa-danada-24245365 Acesso em: 24 jul. 2021.
    » https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-empregada-domestica-estava-indo-para-disney-uma-festa-danada-24245365
  • WORTHAM, Stanton. Socialization beyond the speech event. Jornal of Linguistic Anthropology, v. 15, n. 1, p. 95-112, 2005.
  • 18
    Entrevista concedida por FILHOS. Entrevista. [set. 2019]. Entrevistadora: Raquel Oliveira. Rio de Janeiro, 2019. 1 arquivo mp3 (31min54s)
  • 19
    Esse foi o pseudônimo que a sujeita social deste estudo escolheu, motivada, segundo o trecho acima, pela importância de as mães - sobretudo as de segmentos marginalizados - investirem na educação de seus/suas filhos/as.
  • 20
    Cf. OLIVEIRA 2001OLIVEIRA, Raquel S. de. A Construção da prática pedagógica do licenciando em inglês: quando a presença de um interlocutor crítico faz toda diferença. Ao Pé da Letra (UFPE), v. 3, p. 119-129, 2001.; 2021OLIVEIRA, Raquel S. de. Práticas Pedagógicas Mestiças na Educação Linguística de Aprendizes de Língua Inglesa. In: SILVA JÚNIOR, Antonio Ferreira da. (org.). Conversas sobre Ensino de Línguas durante a Pandemia. São Paulo: Pimenta Cultural, 2021. p. 129-141.; FABRÍCIO 2007FABRÍCIO, Branca F. Co-participação tático-reflexiva: formas de (inter)ação na sala de aula de LE com potencial democrático. Calidoscópio, v. 5, p. 125-138, 2007. ; 2017FABRÍCIO, Branca F. Repetir-repetir até ficar diferente: práticas descoloniais em um blog educacional. L&S Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 18, p. 9-26, 2017..
  • 21
    BARROS (2016BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016 [1996]. ).
  • 22
    BARROS (2016BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016 [1996]. ).
  • 23
    Cf. ARROYO (2008ARROYO, Miguel .A educação de jovens e adultos em tempos de exclusão. In: UNESCO. Construção coletiva: Contribuições à educação de jovens e adultos. 2. ed. Brasília: UNESCO; MEC; RAAAB, 2008. p. 221-230. ); PAIVA (2018PAIVA, Jane. Uma arqueologia da memória. In: SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Orientações curriculares para a educação de jovens, adultos e idosos (EJAI). Maceió: Editora Viva, 2018. p. 45-77. ).
  • 24
    GONZALEZ (1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.).
  • 25
    A tradução dos textos consultados no original em inglês é de nossa responsabilidade.
  • 26
    Alim (2016ALIM, H. Samy. Who’s afraid of the transracial subject? Raciolinguistics and the political project of transracialization. In: ALIM, H. Samy; RICKFORD, John, R.; BALL, Arnetha, F. (orgs.). Raciolinguistics: How language shapes our ideas about race. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 33-50.) e Lopes e Silva (2018LOPES, Adriana C.; SILVA, Daniel do N. e. Todos nós semos de frontera: ideologias linguísticas e a construção de uma pedagogia translíngue. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 18, n,3, p. 695-713, 2018.), inclusive, chamam a atenção para o fato de que, em face da fluidez e mistura semiótica tão manifestas na contemporaneidade, muitas/os estudiosas/os preferem usar recursos linguísticos a usar língua ou mesmo variedade linguística, dada a história que esses termos ainda carregam, repleta de noções de fixidez e pureza.
  • 27
    BARROS (2016BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016 [1996]. ).
  • 28
    Broken English, no original.
  • 29
    GONZALEZ (1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.).
  • 30
    Nesse trecho e em outros da entrevista, é possível perceber que Filhos entende que saber uma língua equivale a saber falar essa língua (“Eu fiquei com muita vergonha das crianças falando e eu ficava empacada ali”, grifo nosso). Entendemos isso como mais uma pista da episteme modernista, como um centro de autoridade por que Filhos se orienta, posto que a oralidade é vista como a habilidade de primazia na aprendizagem de uma língua, segundo a linguística estruturalista.
  • 31
    Vale igualmente pontuar os efeitos subjetivantes que essa episteme produz na própria filha adolescente de Filhos, já que, segundo a narradora, sua saúde mental ficou comprometida.
  • Declaração de Financiamento

    A segunda autora agradeçe ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ pelas bolsas de pesquisa [306214/2019-9 e E-26/201.103/2021] que tornaram possível o estudo relatado neste artigo.
  • 16
    Formulação inspirada no verso de Manoel de Barros: “Preciso de atrapalhar as significâncias” ( BARROS, 2016BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016 [1996]. ).
  • 17
    Este trabalho é resultado da pesquisa intitulada A Transidiomicidade na Educação Linguística de Jovens e Adultos: Por uma Prática Pedagógica Mestiça nas Aulas de Inglês, que obteve aprovação do CEP-CFCH/UFRJ, CAAE: 14413119.4.0000.5582, em 24/06/2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2022
  • Aceito
    24 Jun 2022
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