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Teresa Montero: uma pesquisadora à procura de Clarice Lispector

Teresa Montero: A Researcher in Search of Clarice Lispector

Resenha de: MONTERO, Teresa. . À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2021. 752p.

Misteriosamente a gente cumpre os rituais da vida.

(Clarice Lispector, Um sopro de vida)

Se nenhuma biografia pode ser considerada neutra e apartada de seu tempo, também o ofício do biógrafo não se mostra isento. A escrita de uma biografia é uma tarefa árdua que deve responder a diferentes tensões, sobretudo quando tratamos de uma figura que desperta paixões, como Clarice Lispector. Entre as tensões que devem ser administradas por quem se propõe biografar, encontramos as informações pessoais do biografado ou da biografada, as de domínio público e, até mesmo, o modo como essa figura é representada no imaginário social.

Clarice é uma das figuras mais fascinantes da literatura brasileira, motivo pelo qual ganhou o status de um ícone pop nas malhas do digital, rompendo com o universo em que era mais conhecida por críticos e literatos. Essa “presença” - ou onipresença - da autora tem promovido uma série de outras tensões, tanto as que debatem a natureza ora hermética, ora incompreendida da autora, que se debruçam sobre se os textos que circulam na internet e atribuídos à autora são, de fato, de Clarice, bem como todo o processo que tem permitido a construção e a manutenção do mito em relação à autora.

A vida e a obra de Clarice sempre se intercruzaram. Desde o lançamento de seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, em 1943, pesam sobre sua obra questionamentos acerca dos entrelaçamentos entre enredos, personagens e a própria Clarice (MANZO, 2001MANZO, Lícia. Era uma vez: eu - a não-ficção na obra de Clarice Lispector. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura; The Document Company-Xerox do Brasil, 2001. 252 p.; SCORSOLINI-COMIN, 2021SCORSOLINI-COMIN, Fabio. Suprimir os fatos e privilegiar as sensações: a emergência da criança-autora em Clarice Lispector. Revista do SELL, Uberaba, v. 10, n. 1, p. 135-154, 2021.). Embora a autora tentasse lutar contra a crítica que a associava a uma escrita autobiográfica, a vida e a obra de Clarice, pela sua complexidade, não podem ser compreendidas de modo fragmentado. É nesse bojo que algumas biografias buscaram, ao longo do tempo, construir, de modo mais didático, uma inteligibilidade sobre a autora.

Encontramos na literatura diferentes biografias da autora que revelam tendências e escolhas de seus biógrafos, mas, acima de tudo, que permitem a manutenção do mistério acerca de Clarice. Isso porque essas biografias não se comprometem com uma visão única ou definitiva sobre a autora, o que constitui não apenas um recurso adequado, em se tratando desse gênero literário, mas também uma maneira de considerar que a vida e a obra de Clarice permanecem abertas à revisitação, ao assombro e ao deslumbramento, mesmo decorridos quase cinquenta anos do falecimento da autora, em dezembro de 1977, no Rio de Janeiro.

No bojo das comemorações do centenário de nascimento de Clarice, no ano de 2020, essas biografias tornaram-se, novamente, alvo de reflexões e de embates. Em 2021, pela mesma editora que detém, atualmente, os direitos sobre a obra da autora, a Rocco, Teresa Montero lançou o que vem a ser, até hoje, a mais completa biografia de Clarice, ou, então, a mais atual. Mas, em termos claricianos, o que poderia ser a mais completa biografia? Talvez fosse mais clariciano afirmar, na verdade, que se trata de uma versão provisória que se aproxima do mistério.

Algumas biografias da autora tornaram-se célebres junto ao público e também à crítica literária, o que se deve, em parte, ao modo como cada uma foi difundida e à existência de reedições veiculadas em razão da necessidade de consumir informações verídicas e confiáveis sobre as suas obras e sobre a sua vida. Uma delas foi escrita por Nádia Battella Gotlib, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com sua primeira publicação em 1995, pela editora Ática, resultado de sua tese de Livre-Docência, sendo posteriormente publicada pela editora da Universidade de São Paulo, a Edusp, em diferentes edições revistas e ampliadas (GOTLIB, 2009GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 6. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 656 p. ).

A biografia escrita pelo jornalista norte-americano Benjamin Moser, no entanto, tornou-se um fenômeno editorial justamente por ter sido publicada originalmente em inglês, tendo como foco apresentar Clarice a um público maior, rompendo as barreiras com as quais a obra de Gotlib se deparou. A tarefa foi bem empreendida, de modo que a menção ao texto de Moser (2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 554 p. ) ganhou força sobre o da biógrafa brasileira, ainda que essas obras guardem proximidades em relação ao modo como estão organizadas e apresentem informações biográficas juntamente com interpretações acerca das produções da autora.

Dado que nenhuma biografia pode ser construída de modo totalmente neutro, pesam sobre Benjamin Moser questionamentos sobre a proximidade da sua obra com o texto organizado e veiculado pioneiramente por Gotlib, além de menções ao modo misógino, “folclórico” e mesmo antiético com que o biógrafo tratou algumas informações sobre a vida de Clarice (ABDALA JUNIOR, 2010ABDALA JUNIOR, Benjamin. Biografia de Clarice, por Benjamin Moser: coincidências e equívocos. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 70, p. 285-292, 2010.; FONTDEVILA, 2021FONTDEVILA, Aina Pérez. “Clarice Lispector”, por Benjamin Moser: celebración y misoginia en el discurso biográfico. Estudios Filológicos, n. 68, p. 221-239, 2021.; JERONIMO, 2020JERONIMO, Thiago Cavalcante. Benjamin Moser, a voz corrente dos boatos e do infundamentado como verdade: uma leitura crítica acerca dos recentes equívocos do biógrafo norte-americano. In: CUNHA, Maria Zilda; RUIZ, Regina Célia (Org.). Clarice Lispector: os mistérios da estrela. São Paulo: FFLCH/USP, 2020. p. 111-122.). Aos leitores e entusiastas desse gênero, é oportuno recuperar a advertência de Montero:

[...] Biógrafos não são donos da vida do biografado. Biógrafos não têm o direito de devassar a vida de uma pessoa porque ela é uma figura pública, porque ela “não pertence mais à sua família”, porque existe o direito à liberdade de expressão e esse deve prevalecer diante do direito à privacidade do biografado. Existem, sim, limites, os que lidam com esse gênero sabem disso. O biografado não está mais aqui para dizer se o que escreveram ou disseram sobre ele é verdade. Sabemos o quanto a memória nos trai à medida que nos distanciamos do fato vivenciado. A ética e o bom senso devem nortear o nosso trabalho. (MONTERO, 2021MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco , 2021. 752 p., p. 16-17).

A obra de Moser foi traduzida para o português, atingindo também o público nacional, outrora guiado, prioritariamente, pelo texto de Gotlib. Sendo assim, por muito tempo, essas duas biografias protagonizaram o acesso a informações sobre a vida da autora.

No entanto, uma importante biografia escrita por Teresa Montero não recebeu o mesmo destaque e não gozou do mesmo alcance nem do merecido crédito. Publicada originalmente em 1999 pela editora Rocco e fruto da sua dissertação de mestrado defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1995, Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice LispectorMONTERO, Teresa. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 304 p.teve sua circulação comprometida, entre outros, pelo fato de sua edição ter-se esgotado desde 2010, sendo acessível apenas em sebos ou por meio de outras fontes. Pesa ainda sobre esse importante projeto o fato de não ter sido valorizado pela mídia como a obra que “reuniu pela primeira vez o maior conjunto de documentos e depoimentos que mostraram todo o percurso biográfico de Clarice Lispector (da Ucrânia ao Leme) a partir de fontes primárias, incluindo documentos e depoimentos” (MONTERO, 2021MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco , 2021. 752 p., p. 18), o que foi promovendo, ao longo do tempo, a sua invisibilidade e, até mesmo, o seu esquecimento.

O mestrado de Montero, que teve como produto Eu sou uma pergunta, foi realizado entre 1992 e 1995, período que coincide com a publicação da primeira edição do livro de Gotlib, em 1995. À época do lançamento de Eu sou uma pergunta, Montero destacou a existência das seguintes biografias ou textos com informações biográficas mais sistematizadas sobre Clarice: Entrevista de Clarice Lispector a Renard Perez, em 1964, o livro Clarice Lispector, de Benjamin Abdala e Samira Campedelli, de 1981, Esboço para um possível retrato, de Olga Borelli, também de 1981, Langue de Feu, da canadense Claire Varin, publicado em 1990, além da primeira edição da biografia escrita por Gotlib. Na literatura científica, no entanto, poucos estudos têm, de fato, reconhecido suficientemente a importância da biografia de Montero, lacuna que pode ser observada mesmo em ensaios mais recentes (JERONIMO, 2020JERONIMO, Thiago Cavalcante. Benjamin Moser, a voz corrente dos boatos e do infundamentado como verdade: uma leitura crítica acerca dos recentes equívocos do biógrafo norte-americano. In: CUNHA, Maria Zilda; RUIZ, Regina Célia (Org.). Clarice Lispector: os mistérios da estrela. São Paulo: FFLCH/USP, 2020. p. 111-122.).

A publicação de À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector, de autoria de Teresa Montero, em 2021MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco , 2021. 752 p., pela mesma editora Rocco, não constitui uma reedição de Eu sou uma pergunta. A este livro a biógrafa acrescentou importantes elementos ainda desconhecidos e não relatados em estudos sobre a autora - como o fato de Clarice ter sido acompanhada de perto pela Ditadura Militar e o seu retorno ao Recife em 1976, um ano antes de sua morte, além do registro de uma participação em um programa da TVE do Rio de Janeiro anterior à então considerada única entrevista registrada em vídeo, concedida para o Programa “Panorama”, da TV Cultura, e conduzida pelo jornalista Julio Lerner, no início de 1977, vídeo esse que sintetiza um pouco do imaginário imagético construído sobre a autora e que tem atravessado gerações.

Seu diferencial em relação às biografias mais conhecidas, como as escritas por Gotlib e Moser, é o fato de elencar os registros sobre Clarice sem apresentar interpretações sobre as suas obras. Em vez dessas interpretações, como a intitulada “biografia literária” de Gotlib (2009GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 6. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 656 p. ), lança mão de um denso processo de compreensão dos contextos de produção de suas obras, como Água viva e A paixão segundo G. H., permitindo novas leituras, depois de descobertas importantes realizadas por Montero, ao longo de mais de trinta anos de pesquisa sobre a vida da autora. Ainda como diferencial, é importante considerar que se trata de uma biografia atualizada, agregando informações que nos permitem avançar em algumas reflexões sobre Clarice, a exemplo da sua vinculação com o social e com a história de seu tempo.

Embora em biografias como as de Moser (2017MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 554 p. ) e de Gotlib (2009GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 6. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 656 p. ) haja menções acerca de uma tímida aproximação de Clarice, por exemplo, de manifestações organizadas pelos estudantes brasileiros durante a Ditadura Militar, a autora fora acompanhada de perto, revelando que incomodava o regime antidemocrático por diversos fatores, por ser judia, por trabalhar com pessoas diretamente associadas ao comunismo, por defender a liberdade e a democracia em seus textos, por estar próxima a uma elite intelectual que diretamente combatia a ditadura.

Clarice foi fichada pela polícia política de 1950 a 1973. Em 1950, foi fichada pela Delegacia Especial de Segurança Política e Social (Desps) que incluía informações sobre “lideranças políticas, militares, comunistas, integralistas, associações, periódicos, entre outros.” (MONTERO, 2021MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco , 2021. 752 p., p. 51). Entre as hipóteses para esse fichamento, Teresa Montero menciona a sua “nacionalidade russa”, o fato de haver uma comunidade judaica carioca associada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a sua proximidade com alguns escritores e jornalistas que eram acompanhados pelo regime militar.

Clarice também foi acompanhada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), principal órgão de inteligência da Ditadura Militar, a partir de 1973. O SNI também acompanhava o editor-chefe do Jornal do Brasil, Augusto Dines, considerado subversivo. Clarice trabalhava com Dines, assinando uma coluna semanal desde 1967. Com a demissão de Dines, Clarice também perdera o emprego, juntamente com Marina Colasanti.

Embora os textos de Clarice publicados à época não pudessem ser considerados explicitamente contrários ao regime, e por não haver informações sobre o fato de esses textos terem incomodado os militares, Teresa Montero empreendeu uma análise pormenorizada das publicações da autora mais próximas à data do seu fichamento pelo SNI, encontrando crônicas nas quais, de modo mais velado ou metafórico, exprime a sua oposição ao regime. No entanto, a biógrafa destaca que esse acompanhamento pelo SNI ocorrera pela participação da autora em uma passeata em apoio aos estudantes em junho de 1968, por um discurso proferido no Colégio Santo Inácio em oposição ao regime, além de ter ela assinado o “Manifesto dos Intelectuais”, de 1962, em apoio à política externa de San Tiago Dantas, seu amigo. Como reforçado por Montero: “A adesão de um grupo expressivo de artistas e intelectuais reflete como Clarice estava sintonizada coletivamente contra o regime ditatorial em vigência naquele período.” (MONTERO, 2021MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco , 2021. 752 p., p. 62).

Esses indícios, em conjunto, permitem-nos cotejar uma Clarice que refletia sobre o seu tempo e os desafios da literatura e do seu ofício em uma sociedade que lutava por democracia. Isso nos autoriza a recusar o efeito de sentido de Clarice como autora apartada de seu contexto, alienada de sua condição de escritora em um regime que fortemente combatia a cultura, as artes e a ciência. Com base nisso, também encontramos novos sentidos para a discussão sobre o social em sua obra, aspecto tão debatido ao longo do tempo e que priorizou, de modo equivocado, a descrição de uma Clarice essencialmente intimista e com pouca porosidade às questões sociais e políticas candentes de sua geração.

À procura da própria coisa está dividido em quatro partes. Apenas a terceira parte traz, na íntegra, o texto publicado em 1999 por Teresa Montero, uma das primeiras biografias de Clarice, com o acréscimo de um capítulo sobre a volta da autora ao Recife, em 1976, momento marcado pela visita aos principais pontos atravessados por ela na capital durante a infância, em um itinerário também representado em alguns de seus contos (SCORSOLINI-COMIN, 2021SCORSOLINI-COMIN, Fabio. Suprimir os fatos e privilegiar as sensações: a emergência da criança-autora em Clarice Lispector. Revista do SELL, Uberaba, v. 10, n. 1, p. 135-154, 2021.).

A esse material já conhecido, a biógrafa acrescenta a seção intitulada “Itinerário de uma mulher escritora”, inédita, na qual reúne indícios sobre a presença de Clarice na mídia, com menções a entrevistas, depoimentos e participações em diferentes veículos, a exemplo da então desconhecida entrevista ao programa “Os Mágicos”, da TVE, atual TV Brasil, além da investigação detalhada sobre o fichamento de Clarice na Polícia Política e sua atuação durante a Ditadura Militar.

A segunda seção do livro também é inédita. Intitulada “Vida-vida e vida literária”, é nessa parte que a biógrafa busca reunir pistas pouco conhecidas sobre a família de Clarice, bem como sua participação na Segunda Guerra Mundial, quando residia em Nápoles com o esposo, acompanhando soldados brasileiros hospitalizados, em uma espécie de apoio psicossocial corporificado em visitas, na escrita e leitura de correspondências e obras literárias. É também nessa seção que Montero reúne detalhes pouco conhecidos sobre o processo de composição e o contexto de produção de Água viva e A paixão segundo G. H.:

Ao delinear os bastidores de sua criação em diálogo com outros artistas, proponho uma reflexão e uma revisão sobre a imagem de escritora genial acima de todos no panteão da criação literária. Como se um artista pudesse produzir sua obra desconectada de seus laços de amizade e de amor, de seus mergulhos nas obras de outros artistas, como se tudo o que o mundo lhe traz em forma de palavras, imagens, sensações e aprendizado não interagisse com o seu ser. A presença dos artistas que dialogaram com Clarice Lispector em Água viva e em A paixão segundo G. H. é a prova de que ela só escreveu a sua obra porque pôde vivenciar momentos de vida a dois, a três e quantos foram necessários para ela liberar seus “tumultos criadores”, expressão usada por ela. (MONTERO, 2021MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco , 2021. 752 p., p. 25-26).

Desse modo, Montero contribui para importantes reflexões sobre a autoria em Clarice, aspecto esse que se soma a diversos estudos sobre essas obras, mas ainda sem o aporte de passagens, depoimentos e relatos quanto ao contexto de produção delas. Assim, a biógrafa não se compromete com a oferta de uma interpretação, mas compartilha indícios que podem ser revisitados em estudos vindouros. Mas, aqui, cabe-nos um questionamento: a recuperação desses indícios não é orientada por determinadas hipóteses interpretativas? Por esse e outros fios em desalinho é que tensionamos a não estabilidade da biografia, quer seja ela fruto de uma incursão mais profunda e duradoura, quer seja ela estabelecida por meio de flashes biográficos ou fragmentos de uma história que, a exemplo de Clarice, o leitor também pode reunir na composição de seu próprio texto sobre a autora.

Nessa mesma seção, a biógrafa reúne curiosidades sobre a autora, como os registros em seu caderno de telefones, o que revela um pouco do cotidiano da escritora, da mãe e da mulher, os lugares que gostava de frequentar e os serviços que acessava, a exemplo de videntes e cartomantes, aspecto explorado em entrevistas com as amigas Marina Colasanti e Nélida Piñon. A quarta e última parte do livro é composta de um guia completo sobre o itinerário de Clarice em Maceió e Recife, cidades nas quais passou a sua infância e parte da adolescência até chegar ao Rio de Janeiro.

O material reunido por Teresa Montero revela não apenas a sua obstinação como pesquisadora e biógrafa, mas um profundo respeito pela vida e pela obra de sua biografada. A escrita de uma biografia, no entanto, embora possa objetivar, ao máximo, uma pretensa neutralidade na narrativa, não é isenta de vários atravessamentos. Na apresentação da edição, Teresa se posiciona de modo contundente em relação à maneira como a educação e a ciência foram atacadas no Brasil no período de 2019 a 2022, com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Isso se torna relevante considerando que o livro só pôde ser produzido a partir de pesquisas conduzidas por Montero ao longo de toda a sua carreira, com os financiamentos que recebeu e os incentivos institucionais para que pudesse fazer ciência.

A autora recupera um percurso de mais de trinta anos estudando a vida e a obra de Clarice. Esse itinerário de uma pesquisadora “da juventude à maturidade” torna-se premente na publicação de 2021, momento em que pode incluir seu diário de bordo na abertura das seções, o que nos dá pistas sobre o processo de construção da pesquisa que tomou a forma de livro. Por isso este livro também cumpre uma função formativa importante, sobretudo em um momento de desmantelamento da pós-graduação no Brasil, ao qual pesquisadores e pesquisadoras precisam resistir. Os diários de bordo de Montero revelam o fazer de uma pesquisa, as questões levantadas permanentemente a cada contato com um novo material, as incertezas e todo o percurso que se vai tecendo para a costura dos fios soltos de todo o viver.

A biógrafa narra todo o itinerário de uma pesquisadora e de seu fazer em tempos nos quais a ciência é atacada, desacreditada e desinvestida, tendo de lidar com toda sorte de intempéries que acometem os pesquisadores brasileiros na contemporaneidade, como a falta de financiamento público para suas investigações, a falta de emprego para pesquisadores e professores, os agravos decorrentes da pandemia da COVID-19 e o próprio questionamento sobre como um pesquisador deve posicionar-se diante desse cenário sombrio. Ainda assim, Teresa Montero persiste em sua laboriosa e cuidadosa pesquisa que nos brinda com À procura da própria coisa. Uma obra que também pode ser traduzida como uma procura empreendida por Teresa Montero desde o início do seu mestrado e que chega a uma fase de maturidade decorridos mais de trinta anos desse caminhar, por vezes solitário e pouco solidário na academia, mas iluminado pelo mistério. Sobre esse processo, Montero lança luz sobre a formação do pesquisador com base nas recomendações de Clarice para o ofício do escritor:

O pesquisador precisa aprender a não ser seduzido pelas glórias da vida acadêmica. O pesquisador é fruto de um entrelaçamento de muitos fios, de muitas mãos. A busca do protagonismo me soa anticlariceano. Ao longo dos anos, fui entendendo por que Clarice Lispector disse: “O sucesso é uma gafe, é uma falsa realidade. Simplesmente não tenho compromisso com o sucesso”. O sucesso hierarquiza as pessoas. A paixão segundo G. H. nos faz entender como é essencial o caminho da despersonalização. (MONTERO, 2021MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco , 2021. 752 p., p. 21).

Em um momento de austeridade em relação à produção científica em nosso país, contexto no qual esta importante biografia foi lançada, À procura da própria coisa retrata não apenas a busca de Clarice, mas a busca de uma pesquisadora por Clarice. Não cabe ao biógrafo somente reunir pistas, embora esse processo também seja fascinante diante de uma autora cercada pelo mistério, como Clarice. O ofício de um biógrafo, narrado na obra de modo paralelo ao do pesquisador, pode e deve colocar-se a serviço “da própria coisa” ou do objeto que tem no horizonte. Teresa Montero, dedicada a essa busca, posiciona a sua produção diante de um campo minado das biografias, das versões e das visões especulares em relação à Clarice. Mesmo não almejando um determinado status em relação à sua obra, é mister que haja o reconhecimento desse importante trabalho construído ao longo de três décadas e que chega às nossas mãos como uma versão provisória, a exemplo de toda biografia que se propõe retratar Clarice.

Para além da versão provisória que se aproxima do mistério de Clarice, anunciada desde o início, essa obra também é um ato de resistência em defesa da pesquisa, da ciência, da literatura e das artes em nosso país. Nossas pesquisas, nossos livros, nossos artigos e nossas reflexões, sobretudo nas universidades públicas, não podem mais ser tecidos sem esse reconhecimento, motivo pelo qual o livro em tela nos convoca a uma dupla afetação: à procura de Clarice e também em busca de nosso compromisso como pesquisadores e pesquisadoras.

REFERÊNCIAS

  • ABDALA JUNIOR, Benjamin. Biografia de Clarice, por Benjamin Moser: coincidências e equívocos. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 70, p. 285-292, 2010.
  • FONTDEVILA, Aina Pérez. “Clarice Lispector”, por Benjamin Moser: celebración y misoginia en el discurso biográfico. Estudios Filológicos, n. 68, p. 221-239, 2021.
  • GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 6. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. 656 p.
  • JERONIMO, Thiago Cavalcante. Benjamin Moser, a voz corrente dos boatos e do infundamentado como verdade: uma leitura crítica acerca dos recentes equívocos do biógrafo norte-americano. In: CUNHA, Maria Zilda; RUIZ, Regina Célia (Org.). Clarice Lispector: os mistérios da estrela. São Paulo: FFLCH/USP, 2020. p. 111-122.
  • MANZO, Lícia. Era uma vez: eu - a não-ficção na obra de Clarice Lispector. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura; The Document Company-Xerox do Brasil, 2001. 252 p.
  • MONTERO, Teresa. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 304 p.
  • MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco , 2021. 752 p.
  • MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 554 p.
  • SCORSOLINI-COMIN, Fabio. Suprimir os fatos e privilegiar as sensações: a emergência da criança-autora em Clarice Lispector. Revista do SELL, Uberaba, v. 10, n. 1, p. 135-154, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2022
  • Aceito
    04 Set 2022
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