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Os Tipos Temáticos dos Esquemas da Prática e a Topologia Antropossemiótica

The thematic types of practice schemas and anthroposemiotic topology

RESUMO:

Por quase quarenta anos as semióticas estruturais têm se interessado pelo estudo das práticas. Entretanto, pode-se observar, a partir do que resulta de todas essas pesquisas, que a semiótica estrutural consegue elaborar e propor modelos metodológicos coerentes e adaptados à análise das práticas, mas não chega a prefigurar os seus conteúdos temáticos. Neste trabalho, propomos, portanto, tipos temáticos para os esquemas da prática a partir de uma topologia antropossemiótica.

Palavras-chave:
Semiótica; Prática; Antropossemiótica

ABSTRACT

For almost forty years, structural semiotics has been interested in the study of practices. However, it can be observed from the results of all these researches that structural semiotics is able to develop and propose coherent methodological models adapted to the analysis of practices, but it does not manage to prefigure their thematic contents. In this work, we therefore propose thematic types for the schemas of practice based on an anthroposemiotic topology.

Keywords:
Semiotics; Practice; Anthroposemiotics

Introdução

Por quase quarenta anos as semióticas estruturais têm se interessado pelas práticas. No âmbito do círculo de colaboradores de Greimas, nos anos de 1980, Jean-Marie Floch analisou sistematicamente as práticas comerciais, comunicacionais, cotidianas ou institucionais na maioria de seus trabalhos. Eric Landowski (1992LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. São Paulo: EDUC Editora da PUC-SP, 1992.) propôs, por sua vez, incluir a semiótica textual no interior de uma semiótica das situações, o que compreendia já então, dentre outras, as práticas e as interações sociais. Dez anos mais tarde, Landowski ( 2021LANDOWSKI, Eric. Interações arriscadas. São Paulo: Estação das Letras e Cores Editora, 2021.; 2004LANDOWSKI, Eric. Passions sans nom: essais de socio-sémitotique. Paris: PUF, 2004.) ultrapassaria o quadro da sociossemiótica que ele mesmo havia iniciado, abrindo caminho para uma semiótica da existência, fundamentada na análise dos tipos de interação e de seus regimes de sentido. Paralelamente, seguindo sua própria via epistemológica, François Rastier (2001RASTIER, François. L’action et le sens. Pour une sémiotique des cultures. Journal des anthropologues. Association française des anthropologues, n. 85-86, p. 183-219, 2001.) ampliou sua semântica textual e interpretativa buscando chegar a uma semiótica das culturas, embasada principalmente na dimensão prática destas últimas. Ele a desenvolve, especialmente, em um artigo fundador e bastante denso, em que constrói o modelo de zonas antrópicas, ao qual ele mesmo conferiu inúmeros desenvolvimentos ulteriores. Nós buscamos, igualmente, fazer um balanço das condições e dos caminhos de uma semiótica das práticas (cf. FONTANILLE, 2008FONTANILLE, Jacques. Sémiotique des practiques. Paris: P.U.F., 2008.), questionando sobretudo os métodos de análise do curso de ação, a estrutura da cena predicativa das práticas, a epistemologia relativa ao sentido prático (em oposição ao “sentido textual”) e os incidentes teóricos e éticos da análise das práticas.

Entretanto, pode-se observar, a partir do que resulta de todas essas pesquisas, ao longo de muitos anos, que a semiótica estrutural consegue elaborar e propor modelos metodológicos coerentes e adaptados à análise das práticas, mas não chega a prefigurar os seus conteúdos temáticos, nem mesmo de maneira genérica, contentando-se em fazer um inventário empírico e ad hoc desses conteúdos, e, na maioria das vezes, específico a um corpus ou a um objeto de análise.

A dificuldade parece mesmo mais geral, pois quando se examina atentamente, por exemplo, o modo como Jacob Von Uexküll ( 2015VON UEXKÜLL, J. Milieu animal et milieu humain. Traduction de Ch. Martin-Fréville. Paris: Payot, 2015.) analisou o comportamento animal, vê-se que ele se deparou (sem identificá-lo como tal) com o mesmo problema. Ele chega a construir um edifício teórico bastante sistemático, que começa com os signos, signos-percepções e signos-ações, passa pelo estabelecimento de regras de interação entre o organismo vivo e sua Umwelt 1 1 (NT) Termo alemão que significa “ambiente”, “invólucro”. Trata-se, na teoria de Jakob von Uexküll, do “segmento ambiental” de um organismo ( UEXKÜLL, 2004). , que se prolonga com as imagens (percepção e ação), alcançando, por fim, as tonalidades práticas. Mas, ao longo desse percurso, até mesmo no caso das tonalidades, as temáticas práticas só são evocadas e apreendidas por intermédio de casos concretos analisados: assim, é possível encontrar tonalidades práticas de reprodução, alimentação, agressão e defesa, mas também de ascensão e de declínio, de medo, de descanso etc. Entre o edifício conceitual e metodológico e a apreensão temática dos conteúdos práticos, há a mesma lacuna com a qual se depararam os semioticistas do campo “estrutural”: a apreensão temática decorre apenas do inventário empírico. Nós demonstraremos mais a seguir que até mesmo o antropólogo Philippe Descola, responsável por formalizar todo um aparelho conceitual e metodológico necessário à construção de uma tipologia das práticas temáticas de relação, esbarra nessa mesma dificuldade.

Em Sobre o sentido II ( 2014GREIMAS, Algirdas Julien. Sobre o sentido 2: Ensaios semióticos. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Edusp, 2014.) , Greimas havia esboçado um primeiro estrato da tipologia dos predicados narrativos, que poderia ter sido o ponto de partida de uma tipologia temática das práticas. Partindo da combinatória entre as conjunções e disjunções narrativas, e das possibilidades oferecidas pelo estabelecimento de relações entre dois sujeitos (S1 e S2), e depois entre dois objetos (O1 e O2), ele concebeu quatro predicados-tipo: apropriação, expropriação, atribuição e renúncia. Mas o potencial de implementação dessa tipologia é severamente reduzido por uma dupla implicação: a apropriação por S1 implica a expropriação de S2, e a atribuição a S1 implica a renúncia de S2. Dessa forma, passamos de quatro situações a apenas duas, a prova e a doação, como exprime o quadro 2 2 (NT): Para o quadro de Greimas, e para as ocorrências dos seus termos ao longo do texto, adotamos a tradução proposta por Dilson Ferreira da Cruz, em Sobre o sentido II: ensaios semióticos ( GREIMAS, 2014). proposto por Greimas ( Quadro 1):

Quadro 1:
tipologia dos predicados narrativos.

Essa redução é o fruto de três pressupostos do modelo de base: i) a circulação dos objetos de valor só pode ocorrer em um circuito fechado; ii) os mesmos atores são simultaneamente operadores e sujeitos conjuntos ou disjuntos, e iii) tudo se passa entre actantes individuais, sem terceiros, sem actante coletivo, sem um outro no horizonte.

Não retomaremos aqui os detalhes da discussão que já desenvolvemos em outros trabalhos ( FONTANILLE; COUÉGNAS, 2018FONTANILLE, Jacques; COUÉGNAS, Nicolas. Terres de sens: Essai d'anthroposémiotique. França: Pulim, 2018., p. 28-23; FONTANILLE, 2017FONTANILLE, Jacques. Práticas e formas de vida: a semiótica de Greimas posta à prova pela antropologia contemporânea. Estudos Semióticos, v. 13, n. 2, p. 66-76, 2017., p. 66-76). Evocaremos apenas uma das situações temático-narrativas da qual esse modelo não pode dar conta: aquela em que a apropriação não implica uma verdadeira expropriação. Em inúmeros coletivos antrópicos, com efeito, é a predação -apropriação (e não a troca) que assegura a perenidade do coletivo e do vínculo social entre seres humanos, não humanos e não vivos. Nesse caso, ela está, no entanto, aliada à renúncia e não à expropriação: por exemplo, os caçadores inuíte 3 3 (NT) Povos da nação indígena esquimó que habita as regiões do Canadá, do Alasca e da Groelândia. praticam rituais destinados a preparar suas futuras presas para serem capturadas e a persuadi-las a aceitar serem consumidas, sem que os espíritos que as habitam clamem por vingança ou retaliação. O ritual deve colocar a presa em uma posição de renúncia, ao passo que o predador permanece em posição de predação-apropriação, pois ele, de forma alguma, recebe a presa como uma doação.

Do mesmo modo, os rituais antropofágicos submetem a uma preparação específica aquele que deve ser consumido pelo clã: um período de cativeiro que permite à futura presa mostrar seu valor (seu orgulho, sua força, sua resistência) e se assumir publicamente como o Outro do qual o clã necessita para aumentar seu próprio poder. Não apenas as qualidades da presa são amplificadas e valorizadas, mas elas são, além disso, convocadas a sobreviver plenamente na existência futura do clã. Tais rituais se assemelham mais à transmissão do valor que à simples apropriação-expropriação. Em toda transmissão, na verdade, o actante-fonte está em posição de renúncia e o actante-alvo em posição de apropriação: a transmissão só funciona, de fato, se ele se apropria do que é transmitido, e ela não pode ser simplesmente uma “doação”.

A este respeito, relembremos aqui a conclusão à qual já havíamos chegado:

Essa discussão mostra ao menos duas coisas: de um lado, as contribuições da antropologia nos incitam a expandir ainda mais as possibilidades da combinatória narrativa e, de outro, as consequências que dela extraímos mostram que a tipologia dos esquemas narrativos pertinentes é mais extensa que aquela produzida pela estrita dedução greimasiana, que é, de certo modo, “autolimitada”. E aqui se percebe bem que não se trata de uma falta pontual, mas de uma redução mais profunda determinada por escolhas epistemológicas e metodológicas subjacentes, que poderiam ser novamente questionadas ( FONTANILLE; COUÉGNAS, 2008FONTANILLE, Jacques. Sémiotique des practiques. Paris: P.U.F., 2008., p. 27-28).

No entanto, uma das conquistas desse modelo, para nós essencial, está no fato de que, ao introduzir o princípio do sincretismo, ao esboçar o cálculo das diferentes circunstâncias em que o actante operador se identifica seja com o actante conjunto (S1), seja com o actante disjunto (S2), Greimas enfatiza a diátese dos predicados: se o operador está em sincretismo com S1, a transformação que concerne S1 é “reflexiva”; e a que concerne S2 é “transitiva”; se o operador está em sincretismo com S2, a parte de transformação que concerne S2 é “reflexiva” e a parte de transformação que concerne S1 é “transitiva”. Isto é, a proposta (em parte, implícita) consiste em colocar a tipologia temática dos predicados sob o controle da diátese 4 4 (NT) Na Gramática, o mesmo que “voz” (voz ativa, voz passiva e voz reflexiva), isto é, categoria do verbo definida pela relação que se estabelece entre o sujeito gramatical (aquele com o qual o verbo concorda) e o papel de agente ou de paciente da ação verbal. (no lugar, por exemplo, dos conteúdos semânticos dos objetos de valor colocados em circulação). A base temática conferida pela diátese (isto é, pela hipótese de trabalho) é, provavelmente, a que oferece a diversidade ao mesmo tempo mais geral, mais sistemática e mais bem controlada.

O exercício ao qual nos lançaremos agora visa, precisamente, reabrir a combinatória e prolongar a construção teórica e metódica até que ela esteja apta a prefigurar uma tipologia temática das práticas. Para tanto, faremos aqui duas escolhas que condicionam o conjunto da abordagem, duas configurações antropossemióticas de base: i) optaremos por partir do inventário temático mais vasto e sintético que está à nossa disposição atualmente, o de Philippe Descola (2005DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.), e ii) escolheremos como modelo de redução da tipologia uma topologia antrópica fundamental, inspirada, em partes, na topologia etnossemiótica de Von Uexküll, nas zonas antrópicas de François Rastier e na topologia subjetal de Jean-Claude Coquet. A associação dessas duas escolhas conduzirá a uma proposição de tipologia temática 5 5 Nossa abordagem é parecida com a de Greimas, quando ele estabelece as primeiras bases da semiótica estrutural, desde Semântica Estrutural e Sobre o sentido I. Com efeito, ele parte de um inventário de papéis e de funções narrativas, tal qual proposto por Propp, sobre o qual projeta dois modelos “redutores” principais: i) a topologia da cena predicativa original, que cruza a relação de transferência (Destinador/Destinatário) e a relação de visada e de desejo (Sujeito/Objeto), e ii) em um segundo momento, o modelo das modalidades do fazer e do ser, que permite desmultiplicar as situações narrativas e afetivas. .

A tipologia dos esquemas práticos de relação em Descola

Para Philippe Descola (2005DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.), os esquemas de relação fornecem um conteúdo prático às interações entre, ao menos, dois existentes ou dois grupos de existentes. Sua tipologia, oriunda da síntese do conjunto de trabalhos etnológicos contemporâneos, limita-se a seis tipos: a troca, a predação, a doação, a produção, a proteção e a transmissão, que devem abranger o conjunto da diversidade de práticas de relação constatadas e possíveis no conjunto dos tipos de coletivos homem-natureza. Cada tipo de coletivo se caracteriza pela importância relativa que ele confere a esses seis tipos de esquemas e, mais precisamente, por seu esquema prático dominante, por exemplo, a troca nos coletivos naturalistas, ou a predação nos coletivos animistas. Nenhum destes esquemas práticos rege por si só a identidade ou o éthos de um coletivo, pois é a combinação e a hierarquia adotada que caracteriza esse éthos. Cada combinação induz uma forma de assimetria no sistema, caracterizando dessa forma uma classe de “formas de vida”.

Descola (2005DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.) não se contenta com um inventário, ele o organiza sob a forma de uma tipologia estrutural que se apoia em duas variáveis: (1) os parceiros existentes são equivalentes ou não sobre o plano ontológico e (2) suas relações são recíprocas e reversíveis, ou não. A combinação engendra, por conseguinte, dois grupos de esquemas: (1) as relações reversíveis entre termos equivalentes ( troca, predação e doação), e (2) as relações unívocas e não reversíveis fundadas na hierarquia e a conectividade entre termos não equivalentes (a produção, a proteção e a transmissão).

Lembremos a forma tabular (o formato topológico do modelo) da tipologia de relações estabelecida por Descola (2005DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.) ( Quadro 2):

Quadro 2:
Modelo topológico. Tipologia de relações.

Constatamos assim que a oposição entre “similitude & equivalência” (à esquerda) “conectividade & não equivalência” (à direita) retoma apenas um dos dois critérios propostos no início, e neutraliza, e até mesmo confunde, as duas variáveis, os estatutos ontológicos e os papéis actanciais na prática, colocando os segundos sob a dependência dos primeiros, como se os estatutos ontológicos regessem as relações possíveis e impossíveis entre existentes. Dessa forma, a reversibilidade das relações (à esquerda no quadro) ou a não-reversibilidade (à direita) parecem ser induzidas, direta e respectivamente, pela equivalência ou não-equivalência dos estatutos ontológicos dos existentes que recebem os papéis temático-narrativos. Mas a reversibilidade-reciprocidade (à esquerda no quadro) está, ela própria, submetida à oposição simetria / assimetria, entendida como reversibilidade requerida ou facultativa, o que não melhora a legibilidade da tipologia.

Assim, para as relações do primeiro grupo, que correspondem às três fórmulas que asseguram o movimento de um valor qualquer entre dois termos com o mesmo estatuto ontológico: (1) se a relação é simétrica, a reciprocidade é obrigatória (é o caso da troca); (2) se a relação é assimétrica (predação e doação), a reciprocidade (portanto uma contrapartida) é possível, mas apenas de forma facultativa, esperada ou temida. Mas vemos que, nesse caso, isto é, predação ou doação, essa contrapartida facultativa só poderia vir de terceiros, de membros do coletivo, sem o que as duas práticas se assimilariam à troca, troca predadora ou troca doadora. Outra distinção seria então necessária, entre reciprocidade restrita (o caso da troca), e reciprocidade generalizada (se a doação e a predação são seguidas de contrapartidas vindas do coletivo, sem serem reduzidas, no entanto, a uma troca).

Além disso, podemos nos interrogar sobre a condição prévia de equivalência/não equivalência entre os estatutos ontológicos: é ela uma condição ou um efeito eventual da prática? Se os esquemas de relação são constitutivos dos coletivos, não seria possível levantar a hipótese de que eles contribuem com a categorização dos existentes no seio de tal ou tal coletivo, em função dos papéis que podem ocupar nas práticas dominantes? A predação das fontes naturais (muito além do círculo dos viventes), por exemplo, só é pensável se neutralizarmos a diferença ontológica entre predadores (humanos) e presas (o resto do mundo). Caso contrário, a extração de recursos naturais pelos coletivos humanos só seria compreendida como condição e como variável da produção. O desafio dessa alternativa não é pequeno: entre a justificação pela produção e a denúncia da predação, está em jogo o futuro do planeta. O debate é conhecido, mas ele mostra bem que a repartição dos papéis induzida pelas práticas dominantes ( predação vs. produção) participa ao menos de uma codeterminação entre a composição dos tipos de actantes coletivos e os tipos de esquemas práticos: na denúncia da predação, o pressuposto é que todos os existentes fazem parte dos mesmos coletivos, ao passo que na justificação pela produção, as “fontes naturais” não fazem parte do coletivo de referência.

No que concerne às relações do segundo grupo (à esquerda do quadro), a categoria simetria/assimetria não parece mais pertinente (ela não é mencionada), uma vez que essas relações entre existentes de estatutos ontológicos diferentes implicariam, automaticamente, a não reciprocidade e a não reversibilidade dos papéis práticos. Para a produção, a assimetria entre o que produz e o que é produzido; para a proteção, a assimetria de poderes e de dependências; e para a transmissão, a assimetria entre gerações, entre mortos e vivos, entre fundadores e sucessores.

Entretanto, essa assimetria posta como obrigatória não resiste ao exame: a assimetria dos papéis actanciais da produção, entre produtor e produto, eu entre protetor e protegido, não requer a não equivalência dos estatutos ontológicos: ao se reproduzir, por exemplo, os seres vivos produzem, em uma relação em que os papéis não são reversíveis, outros seres vivos; do mesmo modo, nada impede que o protetor e o protegido possam pertencer igualmente bem a duas categorias de existentes diferentes (“a montanha protege o vilarejo”) ou a apenas uma (“a polícia protege os manifestantes”). Com relação à transmissão, convém distinguir igualmente dois casos: um, em que em que dois termos devem mudar de estatuto ontológico (por exemplo: morrer e se tornar um “ancestral”), e outro, em que dois termos podem ser de mesmo estatuto (o micróbio se espalha em uma população e transmite uma patologia; o professor transmite a cultura científica).

Os princípios de uma esquematização semiótica das práticas

Dos esquemas práticos à cena predicativa da prática

O exame da tipologia de Descola nos leva a recolocar em questão a pertinência do critério ontológico: por um lado, essa tipologia neutraliza o critério ontológico nos casos de práticas cuja reciprocidade e reversibilidade dos papéis é colocada previamente (o primeiro grupo, à esquerda do quadro), por outro, faz desse critério apenas uma variável secundária e não distintiva para práticas postas como não recíprocas e cujos papéis não são reversíveis.

Além disso, esse mesmo critério é fragilizado pela própria tipologia dos modos de identificação coletiva de Descola: ao definir os quatro grandes tipos de identificação constitutivos dos coletivos homem-natureza (animismo, naturalismo, totemismo e analogismo), o antropólogo apoia sua tipologia sobre as equivalências e não-equivalências ontológicas entre as exterioridades e as interioridades dos existentes. Os casos extremos do totemismo (todas as interioridades e exterioridades dos existentes são, ontologicamente, parecidas) e do analogismo (todas as interioridades e exterioridades dos existentes são, ontologicamente, distinguíveis) são particularmente inquietantes sob esse ponto de vista, pois, nesse caso, apenas as práticas do primeiro grupo (à esquerda do quadro) seriam possíveis e, no segundo caso (à direita do quadro), apenas as práticas do segundo grupo poderiam ser admitidas. O que evidentemente não é o que ocorre aqui e isso parece ser claramente reconhecido pelo próprio Descola.

Propomos, portanto, partir estritamente do inventário antropológico de Descola e buscar um outro formato topológico que não o de um quadro combinatório, uma topologia mais estável e, se possível, generalizável enquanto modelo antropossemiótico das práticas. Inicialmente, é preciso nos concentrarmos sobre a forma predicativa dos esquemas práticos e da distribuição dos papéis actanciais que ela implica.

Para começar, falaremos de agora em diante em actantes e não em existentes. Os actantes são definidos apenas por sua participação em uma transformação e no predicado que a manifesta. Para isso, é preciso que eles sejam dotados de um corpo e de uma energia, um corpo sensível, que experimenta estados de coisas e suas transformações, e uma energia modal que contribui com a realização prática destes últimos. Em contrapartida, os actantes não têm nenhuma outra propriedade ontológica específica, e podem ser manifestados concretamente sob todas as espécies de existência: humanos, não humanos e até mesmo seres não vivos.

Em seguida, devemos nos interrogar sobre a estrutura interna da prática. Já propomos uma organização da cena predicativa em ao menos quatro instâncias: o operador, o objetivo, o ato e o outro (o horizonte estratégico) 6 6 J. Fontanille, Sémiotique des pratiques, Paris, P.U.F., 2008. . O operador e o outro são dois actantes engajados em uma interação, de proximidade ou a distância. Seu posicionamento na estrutura da cena prática não implica uma relação mútua imediata, bem como nenhum requisito relativo à natureza de sua relação. Com efeito, o objetivo e o ato são as duas instâncias que fornecessem, especialmente, o quadro temático da prática, e, mais precisamente, as coerções e liberdades que caracterizam as relações entre o operador e o outro.

Uma tipologia temática das práticas é possível e se basearia, em parte, como prolongamento dos critérios adotados por Descola, nas propriedades da cena predicativa: de um lado, a estrutura de sua diátese, a saber o caráter reflexivo, recíproco, transitivo ou intransitivo do ato, e de outro lado, a orientação da transformação, a saber sobre o caráter estacionário, reversível, não reversível ou irreversível do objetivo.

Para decidir sobre o caráter reflexivo, recíproco, transitivo ou intransitivo do ato, devemos nos referir à estrutura actancial implicada no predicado da prática, e mais precisamente, à interação entre o operador e seu outro. As diferenças entre predicados reflexivos, recíprocos, transitivos e intransitivos repousam, principalmente, sobre a presença ou ausência desse outro e sobre suas possíveis permutações e sincretismos com o operador.

Essas diferenças podem ser projetadas sobre uma topologia do domínio actancial da cena prática: no centro do domínio, definido pela posição do operador, seu outro é um alter ego, em situação de reflexividade; ao redor e perto desse centro, o outro está em situação de reciprocidade com o operador; na periferia, o outro está em situação intransitiva, pois ele se confunde com o horizonte referencial global da prática, o “mundo” no e sobre o qual a prática intervém; entre os dois precedentes, o outro está em situação transitiva, a uma distância espacial e/ou temporal que pode ser maior ou menor em relação ao operador. Esse primeiro esboço deve ser certamente discutido, confrontado e refinado, mas seu princípio está, desde já, estabelecido: a topologia que nós buscamos construir é centrada e concêntrica. Ela não tem a forma de um quadro combinatório, como em Greimas ou em Descola, mas de uma esfera dotada de um centro, de uma fronteira e de camadas intermediárias. Ela se aproxima, sob esse ponto de vista, da semiosfera de Lotman, mas isso sem se confugir com ela.

Essa topologia não é uma invenção ad hoc, pois ela já foi explorada muitas vezes (ou mesmo explicitamente formulada), por exemplo para organizar o campo de instâncias de enunciação: no centro, o par Eu/Tu; na periferia, o ISSO e a pessoa universal, e entre os dois, os Ele/Ela. Jean-Claude Coquet desenvolveu uma topologia centrada para dar conta dos processos de objetivação das instâncias enunciativas 7 7 Cf. J.-Cl. Coquet, “ Les formes discursives de l’évaluation ”. In: Le discours et sonsujet, Paris, Klincksieck, 1984 (dernier chapitre) ; “ La bonne distance ”, in La quête du sens, Paris, P.U.F., 1997; “ Le jeu des pronoms personnels et des instances de discours ”. In: Phusis et Logos, Paris, Presses Universitaires de Vincennes, 2007. . A série de tipos de instâncias que são o EU, o NÓS, o ELE e o ISSO se desdobra na profundidade de uma topologia organizada ao redor de um centro subjetal (EU), e que o processo de objetivação caminha até sua periferia ( ELE e ISSO).

Em Le discours et son sujet ( COQUET, 1984COQUET, Jean-Claude. Le discours et son sujet: Essai de grammaire modale. Paris: Klincksieck, 1984., p. 164), essa topologia centrada é assimilada ao campo posicional do sujeito; as quatro instâncias são diferentes maneiras de estabelecer a experiência da realidade subjacente: podemos passar, assim, da experiência sensível e pessoal ( EU) para a experiência extensa e difusa de uma pessoa generalizada - um actante coletivo - (A GENTE), a uma experiência da não-pessoa, objetivada e voltada para o universal (ELE), e finalmente para a estranha experiência de uma entidade “flutuante”, sem referência ao centro subjetal e à pessoa, mesmo para deles se dissociar (ISSO). Em Phisis et Logos, o processo contínuo de objetivação é confirmado, e sua competência principal é a operação de projeção que gere, a partir do centro topológico subjetal, os diferentes modos de articulação entre a phusis e o logos.

Mais a diante, retornaremos às denominações dessas instâncias, emprestadas da língua francesa 8 8 (NT) Aqui adaptadas ao português falado no Brasil. , e cujas ideias são particularmente difíceis de transmitir, mesmo nas línguas romanas mais próximas. Mas podemos observar desde agora que a topologia que as acolhe, e mais precisamente, a caracterização de cada uma dessas instâncias, permitem a distribuição de diferentes tipos de práticas correspondentes a cada tipo de instância: para as reflexivas e partilhadas (domínio da pessoa EU/TU), com reciprocidade e transitividade restritas (domínio do NÓS), depois com reciprocidade e transitividade generalizada e aberta a terceiros (domínio do ELE não-pessoal) e, finalmente, intransitiva e irreversível, no domínio da ausência de pessoa (da “pessoa universal” e do ISSO). Desde então, cada uma dessas instâncias corresponde a um conjunto pluritemático específico de interações práticas.

Para encerrar esse ponto, algumas palavras sobre o tema da orientação da transformação. Ela também participa da diátese do predicado temático, mas em outro sentido: a reversibilidade concerne, principalmente, ao potencial de desenvolvimento sintagmático de uma transformação e em particular, à possibilidade, para cada transformação, de ser ela mesma transformada pela inversão de papéis entre os atores que os assumem sucessivamente. A reversibilidade e suas variantes (não reversibilidade e irreversibilidade) depende principalmente da redução ou da extensão da componente actorial. Para as práticas “partilhadas”, a redução é máxima e a interação mútua não distingue exatamente os papéis entre os atores; para as práticas de reciprocidade restrita, a interação deixa espaço para uma distinção e uma possível inversão de papéis; para as práticas de reciprocidade generalizada, a distinção de papéis é aberta a todos os terceiros, e a reversibilidade se torna problemática e submetida a condições específicas; enfim, para as práticas irreversíveis, a distinção dos papéis é definitivamente fixa, de modo que um, dentre eles, escapa à categoria da pessoa, uma espécie de actante vazio ou inapreensível, um “buraco negro” da estrutura.

No que concerne à reciprocidade generalizada, por exemplo a “doação generalizada”, ela opera no interior de uma rede de atores (um “coletivo”), no seio do qual cada um “dá” sem saber quem se beneficiará e “recebe” sem saber de quem provém a contra-doação. Há, portanto, doações e contra-doações múltiplas, mas que passam por intermediário da rede de actantes. Poderíamos considerar então que o coletivo desempenha o papel de terceiro-actante, que seria sistematicamente o beneficiário de doações que emanam dos indivíduos, e o doador das contra-doações destinadas aos mesmos indivíduos, mas essa solução seria, em si mesma, uma opção redutora e específica de uma concepção do coletivo já marcada do ponto de vista ideológico: essa é, com efeito, a opção adotada pelo liberalismo clássico de Adam Smith, para quem a multiplicidade proliferante das práticas interindividuais beneficia, inicialmente, o coletivo e, em seguida, apenas os indivíduos.

Nós podemos agora levantar a hipótese de que essa topologia centrada tem um alcance antropológico mais geral, o que explicaria sua aparente banalidade, e que essa generalidade englobaria também as variedades de objetivo (estacionário, reversível, não reversível, irreversível) na cena predicativa da prática.

Das zonas antrópicas à topologia antrópica das práticas

François Rastier (2001RASTIER, François. L’action et le sens. Pour une sémiotique des cultures. Journal des anthropologues. Association française des anthropologues, n. 85-86, p. 183-219, 2001.) propôs e documentou uma topologia de zonas antrópicas das práticas 9 9 L’action et le sens pour une sémiotique des cultures ( RASTIER, 2001). . Ele observa nas culturas, e especialmente nas línguas, uma série de rupturas homólogas e superponíveis às categorias de pessoa, de tempo, de espaço e de modalidade, o que lhe permite conduzir a diversidade dessas rupturas categoriais a uma articulação topológica em três zonas: a primeira, intitulada de zona “de coincidência”, que ele também chama de “zona identitária”, a segunda, intitulada “de adjacência”, ele vai chamar de “zona proximal”, e a terceira, intitulada “de estranhamento”, que ele vai chamar de “zona distal”.

Em seguida, Rastier hierarquiza esses níveis de ruptura, distinguindo o “mundo óbvio” (zonas identitária e proximal), aquele em que a presença perceptível das entidades e interactantes é constatada, o “mundo ausente” (zona distal), o que o conduz a colocar fronteiras de natureza diferente, uma fronteira empírica entre as duas primeiras zonas, uma fronteira transcendental entre as duas primeiras e a terceira. Reproduzimos aqui o quadro proposto por Rastier ( Quadro 3), que homologa os diferentes tipos de ruptura categorial ( RASTIER, 2001RASTIER, François. L’action et le sens. Pour une sémiotique des cultures. Journal des anthropologues. Association française des anthropologues, n. 85-86, p. 183-219, 2001.):

Quadro 3:
Níveis de ruptura categorial.

Rastier justifica essa hierarquia pelo fato de que apenas os humanos ascenderiam a zona distal, ao passo que os animais disporiam apenas das duas primeiras, separadas somente por uma fronteira empírica. O mundo ausente e a zona distal, precisa Rastier, são especialmente povoadas por mortos transformados em ancestrais, os espíritos, os deuses, aos quais nós teríamos acesso, por exemplo, pelos rituais de além-túmulo, pelo sonho, mas também pela lei ( RASTIER, 2001RASTIER, François. L’action et le sens. Pour une sémiotique des cultures. Journal des anthropologues. Association française des anthropologues, n. 85-86, p. 183-219, 2001., p. 193). Mas ele identifica, especialmente sobre cada uma das duas fronteiras, dois tipos de objetos que lhes são próprios: sobre a fronteira empírica, os objetos fetiches asseguram a transição entre a zona identitária e a zona proximal, ao passo que sobre a fronteira transcendental, os objetos ídolos asseguram a mediação entre os dois precedentes e a zona distal.

Essa distinção entre três zonas antrópicas é explicitamente dedicada à descrição das práticas em uma perspectiva antropológica geral. Ela permite classificar amplos tipos de práticas segundo seu pertencimento a uma das zonas, ou em função de seu papel na passagem de uma zona à outra. Ela situa igualmente os tipos de objetos sobre cada uma das duas fronteiras, especificando o papel que eles desempenham nessas mesmas passagens entre zonas. Essa distinção pode, eventualmente, fornecer enfim uma dimensão antropológica mais assertiva à nossa própria estrutura interna de prática: o operador ocuparia assim a zona identitária, o objetivo, a zona proximal, e o horizonte estratégico, a zona distal.

No entanto, essa tipologia deixa à sombra um certo número de questões que são essenciais à tipologia temática das práticas que estudamos. De início, as temáticas práticas de cada uma dessas zonas não são acessíveis aqui, ao menos na apresentação da qual temos hoje conhecimento. Em seguida, a limitação a três zonas não permite levar em conta os “modos de existência” próprios a cada uma dessas zonas. De um lado, a “presença” sensível corresponde a duas zonas (identitária e proximal), e a “ausência” a uma só (zona distal), ao passo que temos necessidade de distinguir ao menos dois tipos de ausência, conforme o modo de existência in absentia seja o mesmo que o das duas primeiras zonas ou radicalmente diferente. A tipologia que buscamos deve, com efeito, distinguir dois tipos de distância: uma distância no interior do mesmo modo de existência e uma distância entre dois modos de existência.

Os argumentos respectivos da presença perceptiva e da exclusividade (humana) da zona distal devem, sob esse ponto de vista, ser mais precisamente examinados, especialmente à luz da etnossemiótica de Von Uexküll. Este último, com efeito, mostra que os animais, como os humanos, têm acesso a uma “zona mágica” e a um imaginário, que consiste justamente em uma suspensão da homologação entre percepção e ação: o animal age, então, relativamente ao seu meio imediato, relativamente a uma figura que surge nesse meio, ou relativamente a outro existente com o qual ele interage, sem ligação com sua percepção, ou ainda em contradição com ela. É claro que os imaginários animais diferem dos imaginários humanos, mas o acesso à zona mágica mostra bem que a ausência perceptiva não impede os animais de se moverem em um outro “modo de existência” além daquele regido pela homologação entre percepção e ação.

Dentre as experiências que se originam, por exemplo, nas Umwelten evocadas por Von Uexküll, os “espaços mágicos” são principalmente caracterizados por estímulos de figuras ausentes. Mas elas não estão ausentes porque estão distantes ou no exterior da Umwelt, mas porque elas não existem no mundo perceptivo atual da Umwelt, cujo acesso é fornecido por estímulos sensoriais. Qualquer que seja a presa ou o predador ausente, ou uma interpretação icônica singular por uma jovem moça (feiticeira ou rosto agressivo visto em um objeto ou sobre uma árvore), essas figuras “mágicas” encontram lugar dentre os papéis actanciais e temáticos de uma “tonalidade” prática em curso (como escreve Von Uexküll), que é, atualmente, dominante nas Umwelt do organismo vivo e, por consequência, na cena dessa prática. Na cena temática das práticas, certos papéis podem ser considerados como vazios do ponto de vista do modo de existência regido pela homologação percepção/ação, mas preenchíveis sob um outro modo de existência, em que a ação não depende mais da percepção sensorial.

Além disso, a topologia da Umwelt, tal como estabelecida por Von Uexküll, já comporta, ao mesmo tempo, uma zona de coincidência (o centro reflexivo da Umwelt, e o tegumento habitacional 10 10 (NT) O termo demeure, que em francês significa habitação, alude aqui à oposição bastante clássica na reflexão de Uexküll, estabelecida entre os significados produzidos pelos níveis de percepção dos animais e dos vegetais. Ao passo que os animais possuem um “entorno perceptivo”, isto é, um centro reflexivo para a Umwelt, os vegetais são dotados apenas de uma espécie de “envelope-casa”, que recebe, em algumas traduções brasileiras, o nome de tegumento habitacional ( VON UEXKÜLL, 2004). ), uma zona de proximidade (a zona neutra ou a zona refúgio) e uma zona à distância (o território), que não se confundem nem com a zona precedente, nem com a zona mágica. No mundo animal (portanto, também no mundo humano), há precisamente duas maneiras de ser “a distância”: ser “ao longe” e ser “em um outro modo de existência”. Do ponto de vista do território, a ausência perceptiva não implica a inexistência e sim uma existência “fora de campo” perceptivo; do ponto de vista da zona mágica e imaginária, a ausência perceptiva implica a inexistência no mundo da percepção, e a existência em um outro mundo.

Nos termos das instâncias enunciativas, “ELE” não implica a mudança de modo de existência, ao passo que “ISSO”, em razão de sua indeterminação, abre todos os outros modos de existência possíveis. Em termos espaciais, poderíamos distinguir, da mesma maneira, “ACOLÁ e ALHURES”, que se manteriam em um modo de existência de referência, ao passo que “ALÉM” e “ALGURES” nos fariam sair dessa zona.

Mais concretamente, parece-nos difícil de alocar no mesmo lugar (na mesma zona antrópica) o herói viajante, que atravessa um país desconhecido depois de ter deixado seu vilarejo, e o espírito dos mortos que assombra os aldeões, ou mesmo os maus espíritos da floresta, que dificultam o caminho desse viajante. E, mais frequentemente, as manifestações que emanam de um outro modo de existência se superpõem ao modo de existência de base, invadindo-o e perturbando-o, o que mostra bem que essa distância não se confunde com um distanciamento espaço-temporal. É assim que a “coisa” inacessível e, contudo, terrivelmente eficiente, que caracteriza o universo fantástico de Lovecraft, infelizmente coabita com os humanos comuns, da mesma forma que aquela que assombra algumas novelas de Maupassant (cf. Horla): essa “coisa” é, de certa forma, o próprio protótipo literário do “ISSO”, e equivaleria, de maneira singular, a banalizá-lo, isto é, reduzi-lo ao modo de existência comum, tratá-lo apenas como um “ELE”.

A antropologia contemporânea (Descola, Latour - na esteira de Souriau -, Viveiros de Castro, entre outros), mas também a etnossemiótica de Von Uexküll, implicitamente ou explicitamente, levam em conta essa distinção, e fazem dela uma das chaves da compreensão das práticas, ao menos daquelas que implicam fortes rupturas modais entre regimes de crença e de existência diferentes.

Portanto, propomos agora considerar que a topologia centrada, que nós nos empenhamos em construir, deve comportar quatro zonas antrópicas. Para evitar a confusão com o modelo de Rastier, que merece mais que uma simples bricolagem de nossa parte, empregaremos, para tornar essa hipótese ainda mais precisa, outra terminologia, que já utilizamos para tratar de um problema bastante específico de análise concreta de dois filmes de Idrissa Ouedraogo 11 11 Ver Fontanille, “Des conflits de formes de vie chez Idrissa Ouedraogo. Des passions du corps comme médiation et transgression”, in G. Marrone et F. Mazzuchelli (éds.), Forme de vita / Forme del corpo, Versus, v. 128, 2019. . Propomos, primeiramente, um domínio prático de referência, definido por um modo de existência dado e qualquer, porém mais frequentemente identificado com o mundo da percepção sensível e, sobretudo, do par percepção/ação (nos termos do Groupe Mu: o par “anasemiose/catasemiose”):

  1. A zona endotópica é o centro do domínio espaço-temporal de referência, a partir do qual podem ser derivadas as referências dêiticas e modais, e as práticas que são realizadas no domínio em questão. Mantidas nessa zona, as práticas são principalmente reflexivas e recíprocas, e as operações e os objetivos aos quais elas induzem são globalmente estacionários.

  2. A zona peritópica é aquela que se localiza nas imediações desse centro reflexivo, onde os actantes se encontram para confrontar os riscos da existência e desenvolver, nesse centro, práticas transitivas e recíprocas (a transitividade e a reciprocidade restritas), cujas operações e objetivos são reversíveis.

  3. A zona paratópica está à distância do centro, em um alhures que implica uma debreagem espacial, temporal e/ou actorial com relação ao centro endotópico, e que não implica mudança de modo de existência. Permanecendo totalmente no mesmo modo de existência, os interactantes podem desenvolver, no interior desse modo, práticas de tipo transitivo, mas que podem participar de uma reciprocidade generalizada e aberta a terceiros. O mais frequente, na zona paratópica, é que as condições sejam cumpridas para dar lugar a formas de vida que diferem daquelas das zonas endotópica e peritópica. As operações e objetivos induzidos nessa zona são não reversíveis (mas a inversão dos papéis permanece possível, sob condições específicas).

  4. A zona utópica não pertence ao domínio de referência, e abre-se sobre outro modo de existência, transcendente ou imanente, mas que pode interagir com o modo de existência de cada uma das três zonas, suscitando passagens e cruzamentos entre domínios distintos, e substituições ou misturas entre vários sistemas de condição de existência. As práticas especificamente envolvidas são intransitivas e irreversíveis.

Se retornarmos à estrutura da cena prática, o operador, seus atos e seus objetivos, se eles forem relegados ao centro reflexivo-recíproco ( endotópico) e apreendidos em um mesmo momento “identitário” (cf. Rastier), veremos que eles são pouco diferenciados, que suas propriedades são instáveis, podem intercambiarem-se, substituírem-se ou serem reconsideradas sem modificação da temática da prática. Nas imediações do centro ( peritópico), os atos e os objetivos podem de fato modificarem-se uns aos outros, e os papéis podem ser trocados, mas modificando a orientação temática da prática. Na zona paratópica, “alhures”, os atos transformam e afetam não só os objetivos, mas também o próprio horizonte, e é por isso que, nessa zona, dominam a transitividade e a reciprocidade generalizadas e aberta a terceiros, bem como a não reversibilidade dos objetivos, mas de forma totalmente provisória, pois a modificação dos objetivos pode abrir outras possibilidades de reciprocidade e de reversibilidade. Além do horizonte ( utópico), os atos e os objetivos se transformam e afetam inteiramente o “mundo” de referência, daí o caráter intransitivo e irreversível dos esquemas práticos em discussão. Como síntese dessa topologia antropossemiótica, propomos a Figura 1:

Figura 1:
Zonas antrópicas.

Resta ainda, para finalizar, determinar o estatuto das quatro “instâncias” emprestadas de Coquet, e que poderiam ter um lugar nessa tipologia geral, obedecendo ao mesmo caráter antropológica e fenomenologicamente “centrado” da sua topologia subjetal. Como assinalamos, as dificuldades de tradução, especialmente do “a gente” e sobretudo do “isso” são, em termos práticos, imensuráveis, tanto que, nas línguas próximas, como o italiano e o espanhol, em que essas instâncias são realocadas por formas reflexivas do predicado verbal, torna-se difícil pensá-las “enquanto instâncias”.

Propomos então, provisoriamente e a título de teste junto aos nossos leitores, substituir essas denominações pronominais certamente motivadas, mas muito específicas à língua francesa, por signos emprestados do alfabeto grego antigo. A vantagem dessa simbologia puramente convencional é que ela não distingue dimensões actoriais, espaciais, temporais e modais dessas quatro instâncias; ela as designa globalmente, nada mais. Obtemos, dessa forma, as posições relativas dos nomes de instâncias seguintes:

  1. Centro endotópico: instância α12

  2. Centro peritópico: instância β

  3. Centro paratópico: instância Ω

  4. Centro utópico: instância ℍ

A motivação das distinções α12// β (a maior proximidade alfabética) e α1/α2 // Ω (a maior distância alfabética) é fácil de se reconstruir. A escolha da letra ℍ, ao contrário, merece uma explicação sucinta: com efeito, trata-se de uma letra “vazia”, que não corresponde a nenhum fonema, mas apenas à uma propriedade que afeta os fonemas vizinhos por uma força identificável, a da aspiração, uma espécie de equivalente, em suma, da força transformadora da ausência de pessoa. A topologia pode então ser completada do modo apresentado na Figura 2.

Figura 2:
Topologia geral das zonas antrópicas.

Para não concluir: uma tipologia temática dos esquemas práticos

Podemos agora projetar, sobre o inventário de seis esquemas práticos de relação, as quatro zonas da topologia de propriedades predicativas das práticas, cujo papel temático multiplicador permite propor, a título indicativo, algumas denominações das temáticas práticas que delas decorrem.

Essas denominações são provisórias e passíveis de alteração, como aproximações lexicais genéricas e não como metalinguagem. No Quadro 4 optamos por denominar diretamente o predicado das práticas, tanto para o inventário antropológico retomado de Descola (coluna da esquerda), como para a tipologia detalhada (coluna da direita).

Quadro 4.
Tipologia temática dos esquemas práticos

Referências

  • COQUET, Jean-Claude. Le discours et son sujet: Essai de grammaire modale. Paris: Klincksieck, 1984.
  • COQUET, Jean-Claude. La quête che sens Paris: PUF, 1997.
  • COQUET, Jean-Claude. Phusis et Logos Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 2007.
  • DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture Paris: Gallimard, 2005.
  • FONTANILLE, Jacques. Sémiotique des practiques Paris: P.U.F., 2008.
  • FONTANILLE, Jacques. Práticas e formas de vida: a semiótica de Greimas posta à prova pela antropologia contemporânea. Estudos Semióticos, v. 13, n. 2, p. 66-76, 2017.
  • FONTANILLE, Jacques. Des conflits de formes de vie chez Idrissa Ouedraogo. Des passions du corps comme médiation et transgression. Versus, v. 48, n. 1, p. 9-36, 2019.
  • FONTANILLE, Jacques; COUÉGNAS, Nicolas. Terres de sens: Essai d'anthroposémiotique. França: Pulim, 2018.
  • GREIMAS, Algirdas Julien. Sobre o sentido 2: Ensaios semióticos. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Edusp, 2014.
  • LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. São Paulo: EDUC Editora da PUC-SP, 1992.
  • LANDOWSKI, Eric. Passions sans nom: essais de socio-sémitotique. Paris: PUF, 2004.
  • LANDOWSKI, Eric. Interações arriscadas São Paulo: Estação das Letras e Cores Editora, 2021.
  • RASTIER, François. L’action et le sens. Pour une sémiotique des cultures. Journal des anthropologues. Association française des anthropologues, n. 85-86, p. 183-219, 2001.
  • VON UEXKÜLL, Thrure. A teoria da Umwelt de Jakob von Uexküll. Galáxia: Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, n. 7, p. 19-48, 2004.
  • VON UEXKÜLL, J. Milieu animal et milieu humain Traduction de Ch. Martin-Fréville. Paris: Payot, 2015.
  • 1
    (NT) Termo alemão que significa “ambiente”, “invólucro”. Trata-se, na teoria de Jakob von Uexküll, do “segmento ambiental” de um organismo ( UEXKÜLL, 2004VON UEXKÜLL, Thrure. A teoria da Umwelt de Jakob von Uexküll. Galáxia: Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, n. 7, p. 19-48, 2004.).
  • 2
    (NT): Para o quadro de Greimas, e para as ocorrências dos seus termos ao longo do texto, adotamos a tradução proposta por Dilson Ferreira da Cruz, em Sobre o sentido II: ensaios semióticos ( GREIMAS, 2014GREIMAS, Algirdas Julien. Sobre o sentido 2: Ensaios semióticos. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Edusp, 2014.).
  • 3
    (NT) Povos da nação indígena esquimó que habita as regiões do Canadá, do Alasca e da Groelândia.
  • 4
    (NT) Na Gramática, o mesmo que “voz” (voz ativa, voz passiva e voz reflexiva), isto é, categoria do verbo definida pela relação que se estabelece entre o sujeito gramatical (aquele com o qual o verbo concorda) e o papel de agente ou de paciente da ação verbal.
  • 5
    Nossa abordagem é parecida com a de Greimas, quando ele estabelece as primeiras bases da semiótica estrutural, desde Semântica Estrutural e Sobre o sentido I. Com efeito, ele parte de um inventário de papéis e de funções narrativas, tal qual proposto por Propp, sobre o qual projeta dois modelos “redutores” principais: i) a topologia da cena predicativa original, que cruza a relação de transferência (Destinador/Destinatário) e a relação de visada e de desejo (Sujeito/Objeto), e ii) em um segundo momento, o modelo das modalidades do fazer e do ser, que permite desmultiplicar as situações narrativas e afetivas.
  • 6
    J. Fontanille, Sémiotique des pratiques, Paris, P.U.F., 2008FONTANILLE, Jacques. Sémiotique des practiques. Paris: P.U.F., 2008..
  • 7
    Cf. J.-Cl. Coquet, “ Les formes discursives de l’évaluation ”. In: Le discours et sonsujet, Paris, Klincksieck, 1984COQUET, Jean-Claude. Le discours et son sujet: Essai de grammaire modale. Paris: Klincksieck, 1984. (dernier chapitre) ; “ La bonne distance ”, in La quête du sens, Paris, P.U.F., 1997COQUET, Jean-Claude. La quête che sens. Paris: PUF, 1997.; “ Le jeu des pronoms personnels et des instances de discours ”. In: Phusis et Logos, Paris, Presses Universitaires de Vincennes, 2007COQUET, Jean-Claude. Phusis et Logos. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 2007..
  • 8
    (NT) Aqui adaptadas ao português falado no Brasil.
  • 9
    L’action et le sens pour une sémiotique des cultures ( RASTIER, 2001RASTIER, François. L’action et le sens. Pour une sémiotique des cultures. Journal des anthropologues. Association française des anthropologues, n. 85-86, p. 183-219, 2001.).
  • 10
    (NT) O termo demeure, que em francês significa habitação, alude aqui à oposição bastante clássica na reflexão de Uexküll, estabelecida entre os significados produzidos pelos níveis de percepção dos animais e dos vegetais. Ao passo que os animais possuem um “entorno perceptivo”, isto é, um centro reflexivo para a Umwelt, os vegetais são dotados apenas de uma espécie de “envelope-casa”, que recebe, em algumas traduções brasileiras, o nome de tegumento habitacional ( VON UEXKÜLL, 2004VON UEXKÜLL, Thrure. A teoria da Umwelt de Jakob von Uexküll. Galáxia: Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, n. 7, p. 19-48, 2004.).
  • 11
    Ver Fontanille, “Des conflits de formes de vie chez Idrissa Ouedraogo. Des passions du corps comme médiation et transgression”, in G. Marrone et F. Mazzuchelli (éds.), Forme de vita / Forme del corpo, Versus, v. 128, 2019FONTANILLE, Jacques. Des conflits de formes de vie chez Idrissa Ouedraogo. Des passions du corps comme médiation et transgression. Versus, v. 48, n. 1, p. 9-36, 2019..
  • *
    Declaração de Financiamento: Fapesp: 2019/27000‑7; Capes PrInt: 88887.695861/2022
  • **
    Declaração de Financiamento: Capes PrInt: 88887.716761/2022‑00

Editado por

Editora-chefe dos Estudos de Linguagem:

Bethania Mariani

Editores convidados:

Pierluigi Basso-Fossali, Renata Mancini

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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