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A semiose como forma de vida: interações em uma conversa sinalizada

Semiosis as Form of Life: Interactions in a Signed Conversation

RESUMO

Interações face-a-face caracterizam-se como um domínio privilegiado para o estudo da emergência do processo semiótico concebido como uma forma de vida. A partir da análise de trechos extraídos de uma conversa em língua de sinais brasileira (libras), exploramos a ideia de que todos os organismos habitam as ações uns dos outros (INGOLD, 2000), em processos dinâmicos em que significações emergem como forma de dar continuidade às atividades da própria vida. Essa habitação nas ações dos outros se revela por meio da realização de ações co-operativas, que se definem como o reuso, com transformações, de elementos disponíveis na interação corrente ou recuperáveis a partir dos históricos de interações dos interactantes (GOODWIN, 2018). No curso de uma interação face-a-face, as ações co-operativas se caracterizam pela co-constituição mútua das atividades de diferentes partes do corpo de um mesmo interactante (ações intracorporeadas) com as atividades sincronizadas dos corpos dos dois (ou mais) interactantes (ações intercorporeadas), o que leva à emergência de significações sempre novas, de natureza local, temporal, corporeada e contingencial, como qualquer forma de vida.

Palavras-chave:
Processo semiótico; Ação co-operativa; Intercorporealidade; Situabilidade; Forma de vida

ABSTRACT

Face-to-face interactions can be characterized as a privileged domain for the study of the emergence of semiotic processes conceived of as a form of life. From the analysis of parts of a conversation carried out in Brazilian Sign Language (libras), we have explored the idea that all organisms inhabit one another’s actions (INGOLD, 2000), throughout dynamic processes in which meaning emerges as a means to advance the activities of life itself. This dwelling perspective is manifested through co-operative actions, defined as the reuse, with transformations, of elements available in the ongoing interaction or retrievable from the interactants’ past interactions (GOODWIN, 2018). In the course of a face-to-face interaction, the co-operative actions are defined in terms of the mutual co-constitution of the activities of different body parts of one of the interactants (intra-embodied actions), with the synchronized activities of the bodies of the other interactant(s) (inter-embodied actions), leading to the emergence of ever novel meanings, which have a local, temporal, embodied and contingent nature, as any form of life.

Keywords:
Semiotic process; Co-operative action; Intercorporeality; Situability; Form of life

What is open to us, therefore, with the reversibility of the visible and the tangible is - if not yet the incorporeal - at least an intercorporeal being, a presumptive domain of the visible and the tangible, which extends further than the things I touch and see at present.

(MERLEAU-PONTY, 1968MERLEAU-PONTY, Maurice.The visible and the invisible. Evanston, Il: Northwestern University Press, 1968., p. 142-143).

Introdução

Durante grande parte de sua existência como ciência da Modernidade, a Linguística se viu formatada pela tecnologia da escrita. Primeiramente, porque ela se originou no âmbito dos estudos filológicos (MCCLEARY, 2011MCCLEARY, Leland. História Oral: questões de língua e tecnologia. In: SANTHIAGO, Ricardo; MAGALHÃES, Valéria Barbosa de (org.).Memória e diálogo: escutas da zona leste, visões sobre a história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2011. p. 93-123. ), centrados na investigação de documentos escritos com vistas a determinar a proximidade entre línguas ou famílias de línguas. Por conta dessas origens, algumas das mais importantes e conhecidas teorias linguísticas foram forjadas a partir de análises de textos escritos, quer em sua inteireza, quer por meio de sentenças isoladas de seu contexto de uso (SLOBIN, 2008SLOBIN, Dan Isaac. Breaking the Molds: Signed languages and the nature of human language.Sign Language Studies, v. 8, n. 2, p. 114-130, 2008.). Mesmo quando a Linguística e a Antropologia começaram a se interessar pelos povos ágrafos e suas línguas, a visão era a de que qualquer diferença que pudesse ser observada entre as línguas que tinham escrita e aquelas que não tinham deveria ser explicada em termos de desigualdades relativas ao estágio de desenvolvimento cultural dos seus falantes, e não em termos de diferenças propriamente intrínsecas às modalidades oral e escrita (MALINOWSKI, 1923MALINOWSKI, Bronislaw. Ogdenthe problem of meaning in primitive languages. In: OGDEN, Charles Kay; RICHARDS, Ivor Armstrong (org.).The Meaning of Meaning: A study of the influence of language on thought and of the science of symbolism. London: Routledge and Kegan Paul, 1923. p. 296-336.; MCCLEARY, 2011MCCLEARY, Leland. História Oral: questões de língua e tecnologia. In: SANTHIAGO, Ricardo; MAGALHÃES, Valéria Barbosa de (org.).Memória e diálogo: escutas da zona leste, visões sobre a história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2011. p. 93-123. ). Com isso, um conjunto considerável de elementos linguísticos típicos da oralidade tem sido relegado a uma posição periférica às gramáticas das línguas (JOSEPH, 1997JOSEPH, Brian D. On the Linguistics of Marginality: The centrality of the periphery. In: KORA, Singer; RANDALL, Eggert; GREGORY, Anderson (ed.).Papers from the 33rd regional meeting of the Chicago linguistics society. Chicago: Chicago Linguistics Society, 1997. v. 33, n. 1, p. 197-213.), justamente porque não se sujeita às teorias e métodos de análise desenvolvidos para a investigação de fenômenos levantados a partir da descrição de textos escritos. Dentre esses elementos, destacam-se características típicas de línguas ágrafas, como é o caso dos ideofones, das interjeições e vocalizações, da logoforicidade, entre muitas outras (NEGRÃO; VIOTTI, 2022NEGRÃO, Esmeralda; VIOTTI, Evani. Desafios teórico-metodológicos para a descrição de línguas não indo-europeias. In: HATTNHER, Marize; OLIVEIRA, Taísa; CONEGLIAN, André (org.). Linguagem, uso e gramática: da vivência à teorização. São Paulo: Editora Mackenzie, 2022. p. 120-146). Para além disso, muitas das facetas que ocorrem nas interações face-a-face, como a gestualidade, os movimentos do corpo, as expressões faciais, a qualidade da voz etc., apontadas, desde Quintiliano no primeiro século da era cristã, como cruciais para a retórica das línguas ágrafas, são sumariamente consideradas irrelevantes para os estudos das línguas naturais por ser consideradas ‘não linguísticas’ (KENDON, 2004KENDON, Adam.Gesture: Visible action as utterance. United Kingdom: Cambridge University Press, 2004.).

O segundo motivo pelo qual os estudos da linguagem ficaram por tanto tempo presos à descrição e à análise de textos escritos é que, até meados dos anos 1960, não havia tecnologia adequada para a documentação de dados linguísticos produzidos em interação face-a-face. Foi só a partir da segunda metade do século passado que se tornou acessível a gravação em áudio e posteriormente em vídeo, de interações comunicativas que, depois de registradas, eram transcritas em detalhes, de modo a poder ser analisadas em toda a sua riqueza semiótica.1 1 A transcrição dos dados de língua em uso, ou seja, a passagem de fatos de fala (ou sinalização, no caso das línguas de sinais) para a escrita é uma das questões metodológicas que vem recebendo, já há algum tempo, grande atenção por parte de linguistas interessados no estudo das interações comunicativas. A esse respeito, ver a discussão feita em McCleary, Viotti e Leite (2010), que trata desse assunto a partir da perspectiva da transcrição de línguas sinalizadas. Para um debate mais amplo sobre problemas gerais de transcrição de dados linguísticos e outros vieses implicados por ela, ver Negrão e Viotti (2022).

É inegável que, a partir do momento em que a Linguística passou a ter à sua disposição tecnologia bastante sofisticada para o registro das interações comunicativas face-a-face, foi possível fazer avançar não só a formação de grandes corpora linguísticos para o estudo dos discursos orais e sinalizados, como também a documentação da variação na fala, sedimentando a área de estudos da linguagem hoje conhecida como Sociolinguística Variacionista. Entretanto, de maneira geral, esses estudos têm como foco a descrição e a análise dos produtos das interações comunicativas, e, no caso específico da Sociolinguística, dos fatores sociais que podem ser associados a esses produtos registrados em áudio e, possivelmente, em vídeo. Foi apenas com a iniciativa de pesquisadores vindos da Sociologia que surgiram os primeiros estudos sobre o processo eminentemente social e situado que está na base de qualquer interação comunicativa face-a-face. Essa vertente dos estudos sociológicos - a Etnometodologia - propõe, em consonância com as ideias de fenomenólogos como Husserl e Merleau-Ponty, uma ênfase na maneira como as interações sociais de fato se apresentam na experiência real (GARFINKEL, 1967GARFINKEL, Harold. Studies in ethnomethodology. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1967.), descrevendo eventos corriqueiros da vida cotidiana, reforçando sempre sua natureza dinâmica e colaborativa, e identificando os métodos que as pessoas usam para tornar esses eventos ordenados e significativos (LIBERMAN, 2011LIBERMAN, Kenneth. The reflexive intelligibility of affairs: Ethnomethodological perspectives on communicating sense.Cahiers Ferdinand de Saussure, n. 64, p. 73-99, 2011.). Foi a partir dos estudos etnometodológicos que surgiu uma nova área de investigação linguística, chamada Análise da Conversa.2 2 O trabalho fundador dessa área de estudos da linguagem é o texto seminal intitulado A simplest systematics for the organization of the turn-taking in conversation (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974).

Sem dúvida, os estudos feitos no âmbito da Análise da Conversa de base etnometodológica, com seu interesse na ação de falar, e não em fatos da língua ou no conhecimento linguístico, revelam-se como um grande avanço no estudo do processo interacional. A conversa - um processo interacional por excelência inserido no mundo da vida, levado a cabo por pessoas reais, em tempo real - é investigada em seus mais finos detalhes, com o objetivo de descobrir as propriedades de ordem (orderly properties) que ela manifesta. Os estudos têm demonstrado que fenômenos típicos do uso da linguagem, como pausas, falsos começos, truncamentos, recomeços, reparos, repetições, alongamentos de vogais, entre outros, não são meros desvios de performance ou resultados de limitações cognitivas, mas, sim, importantes estratégias regulatórias do processo interacional (MCCLEARY; VIOTTI, 2017MCCLEARY, Leland; VIOTTI, Evani. Fundamentos para uma semiótica de corpos em ação. In: FIORIN, José Luís. Novos caminhos da Linguística. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p. 171-193.).

Mais recentemente, os Estudos do Gesto, antes de maior interesse para outras áreas do saber, como as Ciências Cognitivas, a Psicologia, a Neurociência, a Antropologia, passou a atrair a atenção dos estudiosos da linguagem, na medida em que, dentre as três funções realizadas por nossa movimentação corporal, destaca-se a função semiótica. Nossos movimentos de corpo podem se caracterizar por desenvolver apenas uma função, ou podem combinar duas ou mais delas. A função epistêmica é aquela realizada por movimentos do corpo que nos ajudam a perceber as coisas do mundo por meio do tato, do direcionamento do olhar, da manipulação de objetos para diferentes ângulos de visualização, etc. A função ergótica se verifica por meio de movimentos do corpo que realizam uma ação sobre o mundo, como abrir uma gaveta, fechar a janela, pegar um livro, caminhar. A função semiótica se verifica quando os movimentos do corpo são interpretados por alguém; ou seja, trata-se de movimentos que se constituem como signos para um interactante ou para um observador, na medida em que, em um dado momento, fazem emergir uma significação. É comum que essas funções se sobreponham. Por exemplo, ao fechar uma janela, não só executamos uma ação, mas obtemos conhecimento sobre o peso da janela, o estado de sua tranca, das dobradiças, etc. Ao mesmo tempo, uma pessoa que nos observa pode tomar essa ação corporal como um signo, interpretando-a, por exemplo, como índice de possibilidade de chuva (CADOZ, 1994CADOZ, Claude. Le geste canal de communication homme/machine: La communication “instrumentale”. Technique et Science Informatiques, v. 13, n. 1, p. 31-61, 1994.; MCCLEARY; VIOTTI, 2017MCCLEARY, Leland; VIOTTI, Evani. Fundamentos para uma semiótica de corpos em ação. In: FIORIN, José Luís. Novos caminhos da Linguística. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p. 171-193.).

Hoje em dia, já existem propostas de tipologia de gestos e investigações sobre a semiose que eles geram (MCNEILL, 1992McNEILL, David. Hand and mind: What gestures reveal about thought. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.; MITTELBERG, 2006MITTELBERG, Irene.Metaphor and metonymy in language and gesture: Discourse evidence for multimodal models of grammar. Ithaca, NY: Cornell University, 2006.; KENDON, 2004KENDON, Adam.Gesture: Visible action as utterance. United Kingdom: Cambridge University Press, 2004.; STREECK, 2009STREECK, Jürgen. Gesturecraft: The manu-facture of meaning. Amsterdam: John Benjamins, 2009. (Gesture studies 2).; dentre muitos outros). Mas o que nos interessa ressaltar aqui não é tanto a riqueza tipológica dos gestos, e sim o fato de que os Estudos do Gesto demonstram que a presença semiótica do corpo em interações face-a-face é ubíqua. Qualquer movimento ou postura corporal pode ser interpretada de alguma forma por algum participante da interação, fazendo emergir significado, gerando semiose. O crescimento dos Estudos do Gesto veio dar mais peso a algumas investigações linguísticas contemporâneas, que têm, como um de seus grandes alicerces, a tese do corporeamento (embodiment), segundo a qual cognição e linguagem não podem ser entendidas como sendo separadas do corpo (LAKOFF; JOHNSON, 1980LAKOFF, George; JOHNSON, Mark.Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.; 1999LAKOFF, George; JOHNSON, Mark.Philosophy in the flesh: The embodied mind and its challenge to the western thought. New York: Basic Books, 1999.; JOHNSON, 1987JOHNSON, Mark. The body in the mind: The bodily basis of meaning, imagination, and reason. Chicago: University of Chicago Press, 1987.; STREECK; GOODWIN; LEBARON, 2011STREECK, Jürgen; GOODWIN, Charles; LEBARON, Curtis. Embodied Interaction: Language and body in the material world. New York: Cambridge University Press, 2011., entre muitos outros). A partir das análises feitas na área de Estudos do Gesto, reforça-se a ideia de que interação comunicativa face-a-face envolve multimodalidade. De uma perspectiva que enfatiza a semiose que ocorre no processo interacional, deve-se deixar de lado a ideia de que língua e gesto são sistemas autônomos, para entendê-los como fenômenos que se co-constituem, realizando um único todo semiótico.

Paralelamente às áreas de investigação da conversa e da multimodalidade que permeiam as interações comunicativas face-a-face, uma vertente da Semiótica, conhecida como Semiótica das Interações, vem reforçando o entendimento de que língua não é um conhecimento ou uma abstração, mas é uma ação (GOODWIN, 2018GOODWIN, Charles. Co-operative action. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.), uma forma de vida. Em desenvolvimento desde 1964 a partir de sugestões da conhecida antropóloga Margaret Mead de que deveria se abrir um campo de estudos que investigasse o processo total de comunicação em toda a sua riqueza multimodal, a Semiótica das Interações se define como o estudo da semiose que ocorre na interação, e que deve ser entendida como um processo que se vale de todo e qualquer meio possível para fazer emergir significação. A Semiótica das Interações é, então, um campo de estudo interdisciplinar que congrega pesquisadores cujos trabalhos se aproximam pelo entendimento de semiose como um processo local, situado, temporal, corporeado e distribuído entre múltiplos agentes agindo em diferentes escalas de tempo.3 3 Na Filosofia, as bases dessa Semiótica estão refletidas nas obras de pensadores do século XX, como Michael Polanyi, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein, Maurice Merleau-sPonty, dentre outros. As noções desenvolvidas por eles encontram ressonância nos trabalhos de cientistas de diferentes áreas do conhecimento, como a Biologia (Francisco Varela, Jakob von Uexküll), a Antropologia (Tim Ingold), a Psicologia (James J. Gibson, Lev Vygotsky), a Sociologia (Harold Garfinkel, Alfred Schutz), os estudos de semiose fundados na Teoria da Complexidade (Peg Syverson, Antonis Iliopoulus, Pedro Atã, João Queiróz), os Estudos do Gesto e a Linguística Antropológica (Nicholas Enfield, Stephen Cowley, Charles Goodwin, Paul Kockelman, Jürgen Streeck, dentre outros).

No âmbito da Semiótica das Interações, a interação é a chave para os organismos vivos manterem sua própria existência, em uma relação de co-constituição entre o organismo e o ambiente em que ele se insere. Isso significa que é na interação de um organismo com o ambiente que lhe é externo que se determinam simultaneamente a identidade do organismo e o mundo que lhe será próprio (VARELA, 1992VARELA, Francisco. Autopoiesis and a biology of intentionality. In: MCMULLIN, Brian John (ed.). Proceedings of the workshop “Autopoiesis and Perception. Dublin: Dublin City University, 1992. p. 4-14. Disponível em: https://cepa.info/1274 . Acesso em: 22 dez. 2022.
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), o seu mundo de significação, o seu Umwelt (VON UEXKÜLL, 1957VON UEXKÜLL, Jakob. A stroll through the worlds of animals and men: A picture book of invisible worlds. In: SCHILLER, Claire H (ed.). Instinctive behavior: the development of a modern concept. New York: International Universities Press, 1957. p. 5-80.). O processo de autossustentação da existência de um organismo envolve necessariamente a assunção de uma perspectiva assumida por esse organismo em relação à ecologia externa em que se encontra. É, então, desse processo interacional que emerge a significação para um organismo. Viver é fazer emergir significação (VARELA, 1992VARELA, Francisco. Autopoiesis and a biology of intentionality. In: MCMULLIN, Brian John (ed.). Proceedings of the workshop “Autopoiesis and Perception. Dublin: Dublin City University, 1992. p. 4-14. Disponível em: https://cepa.info/1274 . Acesso em: 22 dez. 2022.
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). Para exemplificar a ideia de que vida é semiose, Varela (1992VARELA, Francisco. Autopoiesis and a biology of intentionality. In: MCMULLIN, Brian John (ed.). Proceedings of the workshop “Autopoiesis and Perception. Dublin: Dublin City University, 1992. p. 4-14. Disponível em: https://cepa.info/1274 . Acesso em: 22 dez. 2022.
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) apoia-se na observação da interação de uma bactéria com o ambiente em que ela vive. De maneira geral, a sacarose é apenas uma das muitas condições físico-químicas que caracterizam nosso ambiente externo. No entanto, para a bactéria, em sua interação com esse ambiente, em meio a suas buscas para sustentar sua vida, a sacarose passa a ter significação: ela é significada como nutriente. Sacarose-como-nutriente passa a existir no mundo experiencial da bactéria (em seu Umwelt) (VARELA, 1992VARELA, Francisco. Autopoiesis and a biology of intentionality. In: MCMULLIN, Brian John (ed.). Proceedings of the workshop “Autopoiesis and Perception. Dublin: Dublin City University, 1992. p. 4-14. Disponível em: https://cepa.info/1274 . Acesso em: 22 dez. 2022.
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; THOMPSON, 2007THOMPSON, Evan. Mind in Life: Biology, phenomenology, and the sciences of mind. Cambridge, Massachusett: Havard University Press, 2007., p.74). É por isso que a significação é considerada o processo mais básico da vida (FROESE; DIPAOLO, 2011FROESE, Tom; DIPAOLO, Ezequiel A. The enactive approach: Theoretical sketches from cell to society.Pragmatics & Cognition, v. 19, n. 1, p. 1-36, 2011.; THOMPSON, 2004THOMPSON, Evan. Life and mind: From autopoiesis to neurophenomenology. A tribute to Francisco Varela. Phenomenology and the Cognitive Sciences, Netherlands, Kluwer Academic Publisher, n. 3, p. 381-398, 2004.).

A ideia de co-constituição entre organismos e as ecologias em que se inserem é um dos pilares da Semiótica das Interações, construído a partir da filosofia de Merleau-Ponty, da teoria da enação (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1991VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. Embodied Mind: Cognitive science and human experience. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1991.; VARELA, 1992VARELA, Francisco. Autopoiesis and a biology of intentionality. In: MCMULLIN, Brian John (ed.). Proceedings of the workshop “Autopoiesis and Perception. Dublin: Dublin City University, 1992. p. 4-14. Disponível em: https://cepa.info/1274 . Acesso em: 22 dez. 2022.
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, entre outros), e da noção de auto-organização, que define os sistemas complexos. Varela (1994VARELA, Francisco. Conhecer as ciências cognitivas: tendências e perspectivas. Lisboa: Instituto Piaget, 1994., p. 82-83) diz que o processo contínuo da vida moldou nosso mundo por um vaivém entre o que percebemos como externo a nós, e aquilo que acontece internamente a nós. Ora pendemos para uma visão de que nosso mundo exterior pré-existe às nossas atividades cognitivas, que têm como função apreendê-lo; ora pendemos para o entendimento de que nosso sistema cognitivo cria seu próprio mundo. As bases cognitivo-filosóficas das teorias que estamos assumindo aqui propõem, no entanto, que nós sigamos um caminho do meio, uma via entre esses dois extremos, entendendo que eles se definem um ao outro, que se co-constituem mutuamente, que são correlativos. Varela ilustra essa questão em termos da discussão ancestral entre o que teria vindo primeiro, o ovo ou a galinha. Como todos sabemos, o ovo se define pela galinha, e esta se define pelo ovo. Não se trata, portanto, de um vir primeiro e outro depois. Ambos se co-determinam (VARELA, 1994VARELA, Francisco. Conhecer as ciências cognitivas: tendências e perspectivas. Lisboa: Instituto Piaget, 1994., p. 83).

A ideia de que cada organismo se co-constitui com seu próprio Umwelt poderia dar a impressão equivocada de isolamento de um organismo em relação a outros. Não é isso o que acontece. Temos que ter sempre em mente que nem os organismos, nem seus Umwelten podem ser entendidos como entidades estáticas: tudo é processo, tudo está em permanente co-constituição, tudo está sempre emergindo semioticamente a partir de interações sem fim. O mundo da vida surge como “condição inescapável da existência”, em meio à significação que emerge das ações que constituem a própria atividade de vida (INGOLD, 2000INGOLD, Tim.The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000., p. 153).

Nesse processo interacional, todos os organismos, nós entre eles, inevitavelmente habitamos as ações uns dos outros. Habitar as ações dos outros é uma forma de situabilidade, um modo de existência pelo qual os organismos vivos fazem emergir juntos, em suas interações mundanas reiteradas e a partir de uma vasta gama de recursos que atravessam diferentes escalas de tempo, uma variedade de possibilidades de significação que se co-constituem, no momento-a-momento de suas ações, com suas identidades, seus mundos experienciais e com os próprios materiais, as próprias interações e os próprios contextos de inteligibilidade que servirão como base para novas ações. Essa perspectiva da habitação se opõe à perspectiva de construção, segundo a qual se assume a existência de um mundo semiótico previamente construído que seria anterior a todas as ações dos organismos. Pela perspectiva da construção, a função dos organismos seria apenas a de reconhecer os significados estabelecidos previamente, não a de agir para participar da emergência de significação. Diferentemente, pela perspectiva da habitação, ao habitar as ações uns dos outros, os organismos estão sempre agindo sobre o que já existe, adaptando, modificando, transformando aquilo que já foi, sempre buscando a emergência de novas significações (GOODWIN, 2018GOODWIN, Charles. Co-operative action. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.; INGOLD, 2000INGOLD, Tim.The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000.; LEMKE, 2000LEMKE, Jay L. Across the Scales of Time: Artifacts, activities, and meanings in ecosocial systems.Mind, Culture, And Activity, v. 7, n. 4, p. 273-290, nov. 2000.; POLANYI, 1965POLANYI, Michael. On the modern mind.Encounter, n. 24, p. 12-20, jan. 1965.; STREECK, 2015STREECK, Jürgen. Embodiment in Human Communication.Annual Review of Anthropology, v. 44, n. 1, 2015 p. 419-438, 21 oct. 2015.).

Como mencionado acima, no mundo da vida, nossas ações se desenvolvem em diferentes e variadas escalas de tempo, e incluem um conjunto de materiais que atravessam essas múltiplas escalas, de tal maneira que alguns processos de longa duração se conectam a processos de curta duração por meio desses objetos (LEMKE, 2000LEMKE, Jay L. Across the Scales of Time: Artifacts, activities, and meanings in ecosocial systems.Mind, Culture, And Activity, v. 7, n. 4, p. 273-290, nov. 2000.). Por exemplo, materiais criados pelas ações dos outros em tempos passados, em processos de longa duração - o computador que estamos usando para escrever este texto, a mesa em que ele se encontra, as cadeiras em que estamos sentados - participam do desenvolvimento das ações que estamos levando a cabo neste momento - a escrita deste artigo -, um material cuja produção se dá no tempo atual com uma duração mais curta do que aquela que é necessária para o desenvolvimento de um computador, de uma mesa, ou de cadeiras. Entre esses materiais necessários para o desenvolvimento de nossas ações - materiais que são todos potencialmente semióticos - podemos incluir - mas não nos limitarmos a - o uso da língua e do corpo como um todo.

Na análise que vamos apresentar abaixo, deve ficar claro como a ação das pessoas cria materiais que ficam disponíveis para seu reuso, com transformações, em novas ações, em diferentes tempos. Esse reuso de materiais - linguísticos ou não - em novas ações é chamado ação co-operativa (GOODWIN, 2018GOODWIN, Charles. Co-operative action. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.).4 4 O termo ação co-operativa é escrito com hífen para diferenciar a definição de uma ação co-operativa da definição de cooperação, como entendida na antropologia, na biologia e na linguística. Ações co-operativas não envolvem nenhum custo para nenhum agente em benefício de outros, nem nenhum esforço para que os interactantes cheguem a algum acordo ou entendimento. Na verdade, o que está por trás do uso desse termo é a referência à realização de múltiplas operações sobre os materiais disponíveis na interação (GOODWIN, 2018, p. 6). Justamente por tomar elementos disponíveis no espaço público, criados no momento ou em outras interações, em outros tempos, transformando-os de acordo com as circunstâncias da ação presente, a ação co-operativa evidencia o fato de que, no mundo da vida, fundamentalmente habitamos as ações dos outros.

Tomando como alicerce central essas ideias da Semiótica das Interações, vamos discutir aqui trechos de uma conversa sinalizada entre dois surdos fluentes na língua de sinais brasileira (libras), tendo como foco o processo interacional e os elementos que organizam esse processo em seu desenrolar momento-a-momento. De um ponto de vista metodológico, a análise se inspira no rigor das descrições da Análise da Conversa, em seu esforço por registrar os detalhes das ações de cada um dos interactantes e das relações entre elas, e se orienta pelos Estudos do Gesto em suas minuciosas caracterizações das configurações e dos movimentos sincronizados do(s) corpo(s) e suas partes, em sua função semiótica.

Naturalmente, vamos partir das coisas visíveis - os movimentos dos corpos, a direção do olhar, as configurações das mãos e as ações da boca - que podemos perceber e observar. Mas fazemos isso em busca do domínio invisível, que, como diz Merleau-Ponty no texto na epígrafe deste artigo, se presume a partir do visível e do tangível - não no sentido de que um se abstrai a partir do outro, mas no sentido de que um se co-constitui com o outro - permitindo-nos avançar para além das coisas que podemos ver e tocar. Esse invisível é o que Merleau-Ponty chama intercorporealidade (MERLEAU-PONTY, 2006MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.). É com o corpo que experienciamos o mundo, é com o corpo que realizamos nossas ações no mundo. Nosso corpo se constitui como uma moldura “espacial” para nossas experiências, não no sentido de uma espacialidade de posição, mas de uma espacialidade de situação. Ou seja, o corpo se revela para nós como uma postura determinada não apenas por uma posição física, mas por uma ação real ou possível, sendo (ou a ser) levada a cabo em um determinado tempo (MERLEAU-PONTY 2006MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 146; ver também VIOTTI; ROSÁRIO, 2020VIOTTI, Evani; ROSÁRIO, Tayná. Proximidade e distância entre a visão de linguagem de Merleau-Ponty e algumas teorias linguísticas correntes. Veredas - Revista de Estudos Linguísticos, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 5-30, 2020., p. 18). Nosso acesso aos outros não acontece por inferências ou analogias, sendo sempre intercorporeal e situado no mundo da vida, fruto de um inter-relacionamento perene entre corpos, sempre mediado pelas percepções e sensações que temos a partir das ações uns dos outros (GALLAGHER, 2009GALLAGHER, Shaun. Philosophical antecedents of situated cognition. In: ROBBINS, Philip; AYDEDE, Murat (ed.). Cambridge handbook of situated cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 35-53.), as quais, como já vimos, habitamos. Fazemos isso porque é aí, na intercorporealidade e em sua situabilidade, e em co-constituição com ela, que emerge o processo semiótico.

Intercorporealidade e situabilidade no mundo da vida

A partir do que foi discutido até este momento, passamos a descrever trechos extraídos de uma conversa em libras entre Regiane Agrella (R) e Wilson da Silva (W), sobre tópicos de livre escolha dos interactantes.5 5 Aproveitamos a oportunidade para, uma vez mais, agradecer Regiane e Wilson por sua valiosa colaboração para a constituição de um corpus de interações em libras, que é parte do acervo do LLICC - Laboratório “Linguagem, Interação, Cultura e Cognição”, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O uso dos dados aqui analisados, bem como as imagens dos sinalizadores em fotos e em vídeo, foi devidamente autorizado por eles. Nosso objetivo é mostrar como a semiose emerge da intercorporealidade e da situabilidade que caracterizam as práticas conversacionais vistas não de um ponto de vista descolado da vida, mas, sim, como uma verdadeira forma de vida.6 6 Nosso objeto de análise é uma conversa em língua sinalizada, mas tudo o que será proposto aqui se aplica igualmente a interações em línguas orais. Mais do que isso: tudo o que dizemos aqui se aplica a qualquer tipo de interação assumida como forma de vida. Vamos ver como as ações co-operativas são a manifestação de intercorporealidade e da situabilidade de onde emerge a semiose, a partir de duas de suas características centrais. A primeira delas é a que define o reuso com transformações de todo e qualquer recurso disponível para os fins práticos de um determinado momento da interação, sejam esses recursos advindos daquilo que está acontecendo no próprio fluxo da interação corrente, ou sejam eles resgatados pelos interactantes de seus históricos de interações passadas. Essa ideia de (re)uso com transformações de todo e qualquer material para gerar um processo semiótico revela o entendimento que estamos assumindo aqui de que signos não podem ser concebidos como entidades que existem aprioristicamente. Eles são concebidos como eventos que se desenvolvem a partir de algum elemento observável qualquer, que se co-constitui dinâmica e temporalmente com um objeto no lugar do qual esse elemento se coloca, co-instigando uma reação em alguém. Um signo é entendido como signo para alguém e se constitui como signo em um processo interacional (ENFIELD, 2013ENFIELD, Nicholas James. Relationship thinking: Agency, enchrony and human sociality. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.; KOCKELMAN, 2011KOCKELMAN, Paul. Biosemiosis, technocognition, and sociogenesis: Selection and significance in a multiverse of sieving and serendipity. Current Anthropology, v. 52, n. 5, p. 711-39, oct. 2011.; MCCLEARY; VIOTTI, 2017MCCLEARY, Leland; VIOTTI, Evani. Fundamentos para uma semiótica de corpos em ação. In: FIORIN, José Luís. Novos caminhos da Linguística. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p. 171-193.).

A segunda característica das ações co-operativas que vamos ressaltar aqui está em consonância com o que dissemos sobre elas se definirem sobre o fato de que habitamos as ações nossas e dos outros. Ações co-operativas emergem como unidades em uma co-constituição dinâmica com vários outros elementos - como as identidades dos interactantes, os seus corpos, seus históricos individuais de interações, os próprios materiais disponíveis na interação que vão lhes servir de base, etc. Sua emergência ocorre face a perturbações advindas do próprio curso da interação, de tal modo que as ações vão modificando a sua configuração no momento-a-momento do processo interacional, de acordo com aquilo que está em jogo a cada instante. Essas perturbações dizem respeito à ideia central da teoria da enação (VARELA, 1992VARELA, Francisco. Autopoiesis and a biology of intentionality. In: MCMULLIN, Brian John (ed.). Proceedings of the workshop “Autopoiesis and Perception. Dublin: Dublin City University, 1992. p. 4-14. Disponível em: https://cepa.info/1274 . Acesso em: 22 dez. 2022.
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), segundo a qual organismos vivem em ininterrupta interação com as ecologias em que se inserem, estando, portanto, suscetíveis a todo e qualquer estímulo ou pressão vindos de seu entorno. Esses estímulos ou pressões perturbam o organismo, fazendo com que ele se auto-organize para manter sua existência. Como vamos mostrar, isso acontece por meio de dois tipos de sinergia: uma que se manifesta no nível intracorporeado, e outra que se manifesta no nível intercorporeado.7 7 Estamos fazendo uma distinção aqui entre os termos intercorporealidade, de um lado, e os termos intra- e intercorporeamento, de outro. Intercorporealidade, como dito acima, é a relação entre os participantes de uma interação. É algo invisível (nos termos de Merleau-Ponty), um entre-deux que se estende para além do que é visível, audível, tangível. Intra- e intercorporeamento, por outro lado, são aspectos das ações co-operativas que revelam a importância do(s) corpo(s) e da sinergia entre suas partes para o processo semiótico, num entendimento que toma como base a tese do corporeamento mencionada acima. Uma ação intracorporeada é aquela em que duas ou mais partes do corpo de um mesmo interactante operam conjuntamente, co-constituindo-se simultaneamente e realizando uma única ação semiótica. A ação intercorporeada é aquela em que a atividade de um interactante se co-constitui mútua e simultaneamente com a atividade de outro interactante em uma ação semiótica única, que não pode ser entendida como duas ações individuais postas em conjunto (ENFIELD, 2013ENFIELD, Nicholas James. Relationship thinking: Agency, enchrony and human sociality. Cambridge: Cambridge University Press, 2013., p. 28). Esses níveis intra- e intercorporeados não operam separadamente um do outro, mas se co-constituem no momento-a-momento da interação.

Os trechos da conversa que optamos por descrever aqui são aqueles em que os sinalizadores recorrem à digitalização manual de alguma palavra do português, empregando o alfabeto manual em libras para fazer referência a algum conceito para o qual pode não haver um sinal bem estabelecido entre os interactantes. Durante a digitalização manual da palavra, os sinalizadores podem fazer com que ela seja acompanhada por ações da boca que remetem a certos aspectos da articulação oral da palavra equivalente àquela que está sendo digitalizada. Nesse processo, embora possa haver alguma correspondência entre o conteúdo semântico da palavra digitalizada manualmente e de sua articulação bucal em português, essa associação não é tudo o que está em jogo no entendimento promovido pela integração entre as ações da mão e da boca. Do ponto de vista de uma semiótica emergente das interações e de sua natureza multimodal, como o que adotamos aqui, e tomando como base as observações que vamos descrever abaixo, as ações bucais assumem funções na organização da dinâmica intra- e intercorporeada em curso na interação, como a de formalmente auxiliar, por meio da sinergia entre as ações da mão e da boca, o movimento motor da mão na realização da digitalização ou promover uma unificação perceptual entre as ações da mão e da face, dentre outras. Isso realça a natureza eminentemente corporeada das interações.

Observemos, inicialmente, uma ação co-operativa que se caracteriza pelo reuso dos recursos empregados no curso da própria interação. Trata-se de um momento da conversa em que os interactantes, depois de já ter conversado sobre o conceito de física, passam a falar de física atômica. Esse trecho da conversa é iniciado pela tomada de turno por R, quando ela pergunta a W se ele sabe o que significa ‘atômica’ (linha 1 abaixo). Embora W tivesse tomado o turno para começar a responder à pergunta (linha 2), R não espera a resposta de W e elabora, com um breve período de sobreposição de turnos, uma explicação para o conceito em questão (linha 3). A Figura 1 a seguir ilustra esse trecho da conversa.8 8 Para capturar a sincronicidade (ou não) das ações dos interactantes, as figuras foram dispostas espacialmente em linhas com espaçamentos que indicam o momento em que o interlocutor tomou o turno, em relação ao turno do seu interlocutor, em curso; ou como estava a sua ação facial durante o turno do interlocutor. ,9 9 Na versão impressa deste artigo, por limitações do meio papel, as figuras podem ter baixa legibilidade. A apresentação dos vídeos originais é uma estratégia para superar essa limitação. Ainda assim, as figuras foram colocadas no corpo do texto para servir de guia para os filmes, nas partes associadas às figuras. Para acessar os trechos em vídeo, o leitor deverá clicar nos links apresentados nas notas de rodapé na versão digital ou acessar o QR Code disponibilizado na figura na versão impressa deste artigo. O link para acesso ao vídeo correspondente ao trecho acima é: https://drive.google.com/file/d/1mglc6Of4QW7Yyl1i3wBcjoX4kKCq3RS6/view

Figura 1.
Reuso com transformações de elementos disponíveis no curso da própria interação

Para formular sua resposta (linha 2), W não parte do zero, mas toma como base os próprios recursos empregados anteriormente por R na pergunta (linha 1): W digitaliza novamente a palavra atômica, que R tinha acabado de digitalizar, ao mesmo tempo em que também faz o reuso das ações bucais usadas por R durante sua digitalização. Para além disso, W reusa, na linha 4, parte do enunciado da explicação de R, também constituído de ações manuais e bucais. Nesse enunciado, R diz que o conceito de atômica é relacionado a bombas (linha 3). Ao reusar parte desse enunciado repetindo dois dos três sinais anteriormente usados por R (linha 4), W confirma o seu entendimento e ratifica a resposta dada por R, demonstrando concordar com a explicação dada por ela.

O que esse processo revela é que, ao fazer o reuso com transformações de recursos disponibilizados no enunciado imediatamente anterior de R, W está habitando as ações de R, evidenciando que a semiose não se produz simplesmente em termos do conteúdo proposicional elaborado pelos sinais manuais e pelas articulações bucais, mas envolve o engajamento de ambos os interactantes na operação conjunta com os materiais que emergem no fluxo da interação. No mundo da vida - vida sempre entendida como semiose - organismos não se encontram em um vácuo; eles estão sempre acoplados a seus ambientes, em um processo de co-constituição de suas identidades e seus Umwelten. Quando essa ideia é trazida para uma escala menor, como a que estamos descrevendo aqui, observamos justamente como absolutamente tudo o que está em nosso entorno pode ser co-optado para participar do processo dinâmico de significação. Os reusos por W do material produzido por R constituem-se, nessa interação em particular, como signos de que os interactantes estão se entendendo e de que a conversa pode continuar. Esses reusos evidenciam nossa perene intercorporealidade e situabilidade.

Esse mesmo trecho, no entanto, não deixa de nos fornecer uma instância de ação co-operativa que se caracteriza pelo reuso de material semiótico resgatado de interações passadas. Quando R digitaliza a palavra atômica, ela está habitando as ações de outros agentes não presentes na interação corrente, ouvintes e/ou surdos usuários do português. Essa habitação acontece pelo reuso de uma palavra convencional da língua oral com a qual R convive, em termos tanto de sua ortografia recuperada manualmente por meio do uso do alfabeto em libras, quanto da articulação bucal dos visemas que caracterizam sua configuração fonético-fonológica da língua oral. Visemas são padrões visualmente perceptíveis dos movimentos do trato bucal associados à articulação de fones na fala oral. Por se tratar dos aspectos visualmente perceptíveis da articulação, um único visema pode estar associado a diferentes articulações fonéticas. Por exemplo, os fones [p, b, m] relacionam-se todos ao visema bilabial oclusivo, que poderíamos representar como <p> (DE MARTINO, 2005DE MARTINO, José Mario. Animação facial sincronizada com a fala: visemas dependentes do contexto fonético para o português do Brasil. 2005. 182 f. Tese (Doutorado em Engenharia Elétrica) - Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.).

Essa passagem evidencia como a situabilidade das interações linguísticas e nossa habitação nas ações uns dos outros colocam em xeque a ideia de que idioletos, dialetos e línguas possam ser considerados ‘puros’, entre outros motivos, porque nós estamos sempre nos valendo de material usado pelas pessoas que estão em torno de nós, independentemente de esse material ser considerado como pertencente a uma ou outra língua, dialeto ou idioleto, e, no caso das línguas sinalizadas, de ele ser considerado material linguístico ou gestual. No caso que acabamos de descrever, fica claro que a libras, uma língua que definitivamente é independente do português, explora em seu uso o fato de a comunidade surda viver integrada à comunidade de ouvintes, valendo-se de materiais da escrita e da oralidade da língua oral como recurso semiótico.

A escolha por articular bucalmente os visemas do português relacionados à digitalização tem forte relação com a dinâmica intra e intercorporeada em curso na própria interação. Em nosso trabalho individual e conjunto, não tomamos aprioristicamente as ações bucais que se assemelham a certos aspectos da articulação de palavras do português como visemas, como faz uma boa parte da literatura sobre línguas sinalizadas (BANK, 2014BANK, Richard.The ubiquity of mouthings in NGT: A corpus study. 2014. 152 f. Tese (Doutorado) - Curso de Linguística, Radboud University, Amsterdam, 2014.; CRASBORN et al., 2008CRASBORN, Onno Alex et al. Frequency distribution and spreading behavior of different types of mouth actions in three sign languages.Sign Language & Linguistics, v. 11, n. 1, p. 45-67, jan. 2008.; PÊGO, 2021PÊGO, Carolina Ferreira.Articulação-boca na libras: um estudo tipológico semântico-funcional. 2021. 158 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021.). Afinal, não há garantia de que o sinalizador conheça a palavra que estaria porventura articulando bucalmente, ou de que seu interlocutor reconheça a articulação bucal como um visema, nem de que esse reconhecimento possa contribuir para o entendimento. A nosso ver, o estatuto de visema só pode ser atribuído às configurações bucais depois da devida análise de cada caso. No trecho que inicia a conversa, W está contando a R um episódio que aconteceu na sala de aula em que ele estudava: um de seus colegas de sala lhe disse que ele e outros colegas precisariam apresentar um trabalho de Física, cujo objetivo era o de explicar alguns conceitos. A Figura 2 abaixo ilustra esse trecho.10 10 Acesso ao trecho da conversa em vídeo: https://drive.google.com/file/d/105P7ZfqoEKHJQXzOZTzmhZN6mQ8sFmRv/view?usp=share_link

Figura 2.
Análise da primeira ocorrência de digitalização manual e articulação bucal de palavra no trecho inicial da conversa

Logo depois que W diz que o colega lhe avisou sobre o trabalho (linhas 1, 2 e 3), a progressão da narrativa é interrompida por R, que, demonstrando facialmente não entendimento (primeira foto da linha 4), pergunta o que eles tinham que explicar (segunda e terceira fotos da linha 4). W responde, fazendo uso do sinal convencional da libras correspondente a ‘física’ (linha 5). Apesar de W repetir o sinal manual por duas vezes, R continua exibindo uma ação facial que sugere não entendimento enquanto reusa o sinal usado por W (linha 6). W inicia imediatamente a digitalização da palavra em português, usando o alfabeto manual de libras, ao mesmo tempo em que faz corresponder a cada uma das letras do alfabeto uma articulação de boca que se assemelha à articulação dos visemas do português (linha 7). Essas ações participam do processo semiótico que leva à emergência da significação nessa interação: R inclina a cabeça para trás e, levantando as sobrancelhas enquanto abre bem a boca, exibe ações faciais e da cabeça que sugerem que o entendimento foi alcançado (linha 8).

Do ponto de vista do intracorporeamento, observa-se que as ações das mãos, da boca e de outras partes do corpo - como a posição do torso e da cabeça, a direção do olhar e a inclinação da cabeça, dentre outros - não atuam com absoluta independência umas das outras, mas estão intracorporeadamente relacionadas: elas entram em uma sinergia que envolve, por um lado, um ajuste motor das diversas e simultâneas ações do corpo de um mesmo sinalizador, e, por outro, evidencia tanto um grau de semelhança entre certos aspectos da realização das ações por diferentes partes do corpo, quanto o alinhamento temporal que as ações tendem a manifestar. Como pode ser visto na linha 8, R inclina a cabeça para trás, erguendo as sobrancelhas ao mesmo tempo em que abre bem os olhos e a boca. Ao inclinar a cabeça para trás, há uma leve inclinação simultânea dos ombros na mesma direção; ao abrir bem a boca, toda a musculatura facial é estendida, o que resulta em uma abertura conjunta da boca, das pálpebras e um alçar das sobrancelhas. Todas essas ações atuam conjuntamente como um signo multidimensional por meio do qual emerge a significação de que ela finalmente entendeu o que W estava dizendo. Embora todos os elementos que participam dessa ação co-operativa estejam em maior ou menor grau relacionados a ajustes motores do corpo, quando partimos do entendimento de que qualquer material pode ser um signo desde que interpretado como tal por alguém, vemos como tudo isso pode ter contribuído para que W compreendesse que suas ações tinham sido bem sucedidas e que a conversa podia ser levada adiante. Ao mesmo tempo, esse conjunto de elementos revela a situabilidade de R, na medida em que ela habita as ações passadas tanto suas, quanto de outras pessoas: essa expressão que faz uso de várias partes do corpo para demonstrar entendimento pode ser considerada uma expressão já convencionalizada pelas práticas interacionais de pessoas no Brasil e em vários lugares do mundo.

Mesmo quando se trata de articuladores cujas musculaturas não estão interconectadas, processos semelhantes de intracorporeamento acontecem. Quando se observa a articulação conjunta e sincrônica de ações manuais e bucais, nota-se uma tendência a que as fases de preparação e as fases expressivas de umas e de outras estejam alinhadas (KITA; VAN GIJN; HULST, 1997KITA, Sotaro; VAN GIJN, Ingeborg; HULST, Harry van der. Movement Phases in Sign and CoSpeech Gestures and their transcription by Human Coders. Proceedings of the Internacional Workshop. Ed. Ipke Wachsmuth and Martin Fröhlich, Bielefeld, Germany, p. 23-35, 1997.): quando a(s) mão(s) se prepara(m) para a realização de uma ação, a boca também se move em preparação para sua própria ação. No momento em que as mãos alcançam o início da fase expressiva, a boca também está realizando uma ação específica, em sincronização com a ação manual. Isso não quer dizer que o uso de ações bucais acontece apenas pela pura sinergia com as ações manuais. Os surdos empregam ações bucais porque estão situados em ambientes socioculturais em que as ações da boca são abundantes nas interações entre ouvintes, naquela entre surdos e ouvintes e naquela dos surdos entre si. Usar ações bucais amplamente empregadas nesses ambientes socioculturais é uma forma de vida, que se configura como parte das “práticas socializadas de interagir, entender e habitar o mundo com os outros” (STREECK, 2015STREECK, Jürgen. Embodiment in Human Communication.Annual Review of Anthropology, v. 44, n. 1, 2015 p. 419-438, 21 oct. 2015.). Mas a sinergia é crucial para fazer emergir as propriedades de ordem de uma determinada interação conversacional e para gerar semiose.

Esse ajuste motor e alinhamento temporal tendem a acontecer tanto nas co-ocorrências de digitalização manual de palavras e ações bucais, como as descritas acima, quanto nas de sinais manuais convencionais da libras com ações bucais. De um ponto de vista de uma semiótica como a que entretemos aqui, a integração entre a ação da mão e da boca envolve um aspecto icônico, um aspecto indexical, e um aspecto potencialmente simbólico. O aspecto icônico se manifesta na tendência a um ajuste motor que busca a semelhança entre ações manuais e bucais, como, por exemplo, a abertura ou o fechamento das mãos e da boca, simultaneamente. O aspecto indexical se revela na busca de um alinhamento temporal entre as ações de todos os articuladores, de modo a criar uma contiguidade entre elas e lhes conferir uma maior saliência perceptual. Quanto ao aspecto simbólico, ele se revela no resgate de hábitos de realizações de ação de boca em simultaneidade a ações manuais já convencionalizados a partir dos históricos de interações individuais. O esquema apresentado na Figura 3 a seguir organiza essas relações semióticas, ilustrando o ajuste motor e alinhamento temporal no primeiro sinal manual empregado no trecho inicial da conversa acima.11 11 Acesso ao trecho em vídeo: https://drive.google.com/file/d/1kX3Jca1uKYAC2QxAOZhH-S7mEqvBl_kb/view

Figura 3.
Relações semióticas envolvidas em um sinal manual co-ocorrente a ações bucais

Como se vê, o sinal manual AVISAR é constituído de uma suspensão dependente pré-golpe (a suspensão da mão configurada em Y à altura do ombro direito), um golpe (o movimento da mão em direção ao peito do sinalizador) e uma suspensão pós-golpe (a suspensão da mão configurada em Y tocando o peito do sinalizador). Durante a realização do sinal manual, duas configurações bucais são realizadas: a primeira anotada como L30, seguida de um movimento de transição para a configuração L37.12 12 Para evitar impor precipitadamente o estatuto de visema às configurações bucais observadas ao longo da conversa, adotamos, em nosso sistema de transcrição, um vocabulário descritivo das ações bucais. Desse modo, a configuração L30 corresponde à descrição “Boca aberta em formato não arredondado com abertura média, com a mandíbula se movendo para baixo” e a configuração L37 corresponde à descrição “Lábios fechados projetados para frente”. A iconicidade se revela, nesse exemplo, pelo fato de a boca estar aberta quando a mão está distante do corpo, e a boca estar fechada, quando a mão encosta no corpo. A indexicalidade se manifesta em dois aspectos, ancorados no ajuste motor icônico: o primeiro deles diz respeito à sincronicidade das ações da mão e da boca, que garante que ambas as ações sejam entendidas como correlacionadas temporalmente, estando, assim, aptas a constituir uma ação co-operativa; o segundo diz respeito à unificação perceptual e semiótica entre as mãos e a face, que são entendidas como participando coativamente da elaboração de um signo multidimensional intracorporeado. Finalmente, uma potencial simbolicidade se revela na semelhança existente entre as ações L30 e L37 e o segmento inicial da palavra em português, se assemelham, grosso modo, aos visemas <av>. Apesar da semelhança das ações L30 e L37 com visemas do português (um possível ‘a’ inicial da palavra ‘avisar’ e uma possível configuração de consoante labiodental ‘v’ em seguida), essas ações não são articuladas exatamente como seriam executadas na fala oral, cuja elaboração é balizada pela produção de um som: enquanto a primeira ação bucal pode ser associada à articulação de <a>, a ação seguinte difere da produção mais prototípica de uma consoante labiodental ‘v’, pois não é possível ver o dente superior sobre o lábio inferior. O que se observa é, antes, os lábios fechados um pouco projetados para frente. Isso sugere que esses movimentos de boca têm um forte componente gestual e que, em interação, gesto e língua são materiais que se co-constituem para gerar semiose.

Observamos uma vez mais, agora com a descrição desses aspectos icônicos, indexicais e simbólicos, como o processo semiótico se vale do uso e reuso de materiais disponíveis na interação em curso, ou resgatados de interações passadas, revelando de maneira contundente como habitamos as ações uns dos outros. Nada do que está sendo utilizado nessas ações é completamente novo. Tudo é reusado com transformações, em situações diferentes, para expressar pensamentos que ainda não existiam. Aí reside a novidade; é a partir daí que emerge a diversidade.

Essa visão dinâmica de semiose deixa clara a inadequação de modelos tradicionais de comunicação baseados na metáfora do conduíte (REDDY, 1979REDDY, Michael J. The Conduit Metaphor: A case of frame conflict in our language about language. In: ORTONY, Andrew (ed.). Metaphor and thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. p. 284-324., 2000REDDY, Michael J. A metáfora do conduto: um caso de conflito de enquadramento na nossa linguagem sobre linguagem. Cadernos de Tradução, Porto Alegre, v. 4, p. 9-54, jan./mar. 2000.), como são o Circuito da Fala, do CLG, e o como o esquema proposto em Jakobson (2008JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 23. ed. São Paulo: Cultrix, 2008.) na discussão sobre as funções da linguagem. Segundo esses modelos, o uso da língua é visto como um canal pelo qual um significado elaborado pelo emissor é transferido para um receptor, que vai simplesmente interpretar o que já chega pronto a seus ouvidos ou olhos. Ao analisar o processo semiótico como forma de vida em toda a sua intercorporealidade e situabilidade, considerando que as interações são o próprio mundo da vida, conseguimos apreciar a dinamicidade que leva à emergência de significação e a contingencialidade que envolve o uso de todo e qualquer material disponível no ambiente em que a interação ocorre, e a exploração de suas potencialidades sígnicas.

Voltando à análise do trecho da conversa apresentado pela Figura 2 para tratar agora mais especificamente do intercorporeamento, observa-se que o processo semiótico no curso de uma interação não é linear (MCCLEARY; VIOTTI, 2017MCCLEARY, Leland; VIOTTI, Evani. Fundamentos para uma semiótica de corpos em ação. In: FIORIN, José Luís. Novos caminhos da Linguística. São Paulo: Editora Contexto, 2017. p. 171-193.). Não se trata do uso de um material potencialmente sígnico por um interactante num primeiro momento, para que o outro interactante reaja a esse material, fazendo emergir significado num segundo momento. As ações de um interactante vão sendo monitoradas pelo outro interactante, dando margem à emergência de significações simultaneamente ao uso dos próprios elementos que instigaram o processo semiótico. No trecho da conversa acima, como já visto, ao perceber que possivelmente R não está entendendo o que está sendo dito, W digitaliza, no alfabeto manual da libras, o correspondente à palavra física do português, enquanto faz as letras do alfabeto manual equivalerem a movimentos de boca semelhantes aos visemas correspondentes a cada elemento do alfabeto usado. A ação facial de R na linha 4 da Figura 2 foi um elemento relevante para o uso das ações bucais simultaneamente à digitalização manual da palavra ‘física’ por W. Esse processo semiótico revela a co-constituição de ações dos interactantes no nível intercorporeado, na medida em que a ação de R instiga simultaneamente a (re)ação de W. Como dito acima, essas ações não podem ser entendidas como duas ações separadas; elas se co-constituem como um todo de significação, revelando como a intercorporealidade e a situabilidade são as bases de uma semiótica entendida como forma de vida.

Na sequência, a conversa avança para um momento em que W diz a R quem são os membros do grupo que apresentaria o trabalho de física. A Figura 4 a seguir ilustra esse trecho da conversa. Depois que R pergunta a W se ele iria explicar os conceitos para o professor (linha 1), W responde afirmativamente, acenando com a cabeça enquanto franze a testa, enruga o nariz e projeta os lábios para frente, sugerindo contrariedade diante daquela tarefa (primeira foto da linha 2), e afirmando que se tratava de uma avaliação em grupo (segunda foto da linha 2), do qual participa um colega chamado ‘Juarez’ (linhas 2 e 3).13 13 Uma parte desse trecho da conversa em que W enumera a si mesmo como membro do grupo e duas colegas ouvintes foi suprimida da foto por questão de espaço. Enquanto W digitaliza o nome do colega, R acena com a cabeça afirmativamente (linha 4). A ação de R de acenar afirmativamente com a cabeça serve como instigadora de um processo semiótico que leva à compreensão, por parte de W, de que o entendimento está sendo alcançado. A instigação do processo semiótico por R e a reação de W como emergência de significado se co-constituem simultânea e intercorporeadamente como um único signo.14 14 Acesso ao trecho em vídeo: https://drive.google.com/file/d/1vVgvJC5iIki4YzTryZr2VbJdAanz56yN/view

Figura 4.
Digitalização manual e articulação bucal do nome de um colega em português

Para tornar nossa descrição mais clara, apresentamos ocorrências de ações intracorporeadas separadas de ações intercorporeadas. Entretanto, como dito acima, elas jamais se dissociam de ações intercorporeadas, ou seja, as ações intracoporeadas de um sinalizador são simultâneas e se co-constituem com ações intercorporeadas. Em vários momentos da interação sob análise, observamos que W sincroniza intracorporeadamente ações de boca com ações manuais como reação intercorporeada a alguma ação feita por R que sugere um não entendimento de sua parte. No trecho da Figura 4 descrito acima, por exemplo, diferentemente do que ele havia feito em outras ocorrências de digitalização manual, W não faz uso de ações bucais em acompanhamento ao uso do alfabeto, evitando, assim, a realização de uma ação intracorporeada. Isso se deve ao fato de que, logo no início da digitalização, R já tinha demonstrado que ela estava entendendo (ver fotos na linha 4). Nesse caso, o intercorporeamento das ações simultâneas de R e W parece ter sido relevante para a não ocorrência do intracorporeamento entre mão e boca no turno anterior de W. O mesmo se verifica quando W faz referência a ‘ondas sonoras’ como um dos tópicos estudados pela física. A Figura 5 a seguir ilustra esse trecho da conversa.15 15 Acesso ao trecho em vídeo: https://drive.google.com/file/d/1CCskn7ARm6WzFh3GIlWh1Y0YvJ0DXGbk/view

Figura 5.
Digitalização manual e articulação bucal como ação intra- e intercorporeada

No momento inicial da digitalização, W configura os lábios em posição arredondada (primeira foto da linha 1), movendo, em seguida, a língua para a posição dos alvéolos (segunda foto da linha 1).16 16 Apesar de a foto não capturar bem o posicionamento da língua próxima aos alvéolos, essa configuração bucal pode ser vista com mais clareza no trecho do vídeo que acompanha a figura na versão digital deste artigo. Essa articulação coincide com o momento em que a R acena afirmativamente com a cabeça (primeira foto da linha 2), em mais uma instância de co-constituição de ações em nível intercorporeado. Na sequência, W abre mão da estratégia intracorporeada, deixando de realizar articulações bucais enquanto digitaliza a segunda sílaba da palavra ondas (terceira foto da linha 1), justamente porque percebe que R está entendendo sua digitalização. Ao final dessa palavra, R abre bem a boca e os olhos, levanta as sobrancelhas e inclina a cabeça para trás, sugerindo entendimento (terceira foto da linha 2). Nesse mesmo momento, W inicia a digitalização da palavra sonora projetando os lábios para frente (sexta foto da linha 1). Antes do final da digitalização manual da palavra, R aponta para o ouvido e articula bucalmente algo que se assemelha a pronúncia da palavra som em português (quarta foto da linha 2). W termina a digitalização manual não mais articulando os visemas, mas simplesmente abrindo a boca e acenando com a cabeça afirmativamente, confirmando o entendimento de R. Essas ações mostram a permanente sensibilidade de um interactante em relação ao que quer que o outro esteja fazendo, revelando como o processo semiótico se sustenta sobre nossa habitação nas ações uns dos outros.

Considerações finais

Iniciamos este texto apontando como motivos de ordem tecnológica foram determinantes para as ciências da linguagem terem demorado a dar ao uso linguístico o lugar que ele merece, fazendo com que a Linguística hegemônica tivesse se fundado sobre - e se dedicasse até hoje a - os estudos do sistema linguístico (como é o caso do estruturalismo), ou do conhecimento linguístico de um falante (como é o caso da teoria chomskyana).

Vimos, também, que, desde meados do século passado, com os avanços tecnológicos de gravação em áudio e vídeo, a descrição da fala começou a conquistar seu merecido espaço. Mesmo assim, mostramos como, dentre os estudos que se dedicam a ela, a grande tendência ainda é a de deixar o estudo do processo interacional comunicativo em segundo plano, para enfatizar seu produto. A nosso ver, uma das grandes dificuldades de realização de estudos desse processo interacional está no fato de que, como diz Merleau-Ponty no texto em epígrafe aqui, esse processo é um ser intercorpóreo, é algo que só pode ser percebido quando se reverte o visível e o tangível. Trata-se, portanto, de um domínio invisível, que está além daquilo que se pode ver e tocar, mas cuja existência é considerada possível a partir do visível e do tangível.

O que nós procuramos fazer aqui foi acessar esse domínio invisível da intercorporealidade e da situabilidade que é a base das interações comunicativas humanas e que é a fonte dos processos semióticos que nelas emergem. Como parte da dinâmica da própria vida, esse domínio invisível se co-constitui com aquilo que é visível. Sendo assim, por meio da análise de elementos visíveis - as ações co-operativas realizadas em meio a uma conversa sinalizada - nós pudemos mostrar como essas ações têm, nos movimentos corporais dos interactantes, um forte esteio. Seja intra- ou intercorporeadamente, a sinergia entre partes do corpo se mostrou influente no processo semiótico que emerge nas interações comunicativas humanas, respaldando, assim, a tese do corporeamento que tem norteado toda uma gama de estudos semióticos contemporâneos. Mostramos, também, alguns grandes invisíveis que se co-constituem com as ações co-operativas. Apontamos como os interactantes habitam as ações uns dos outros, quer estejam elas disponíveis na situação da interação presente, quer façam parte dos históricos de ações passadas dos interactantes, quer tenham sido levadas a cabo por outras pessoas, mas que, de alguma maneira, façam parte dos Umwelten dos interactantes. E ressaltamos que é em meio a toda essa dinâmica intercorpórea e situada, é em meio a esse encontro de Umwelten, que o processo semiótico emerge, fazendo surgir significações sempre novas, sempre diversificadas, sempre locais, significações que não estão disponíveis a priori, mas que estão sempre sendo (re)criadas pela ação dos participantes de uma interação face-a-face. Vistos por esse prisma, os processos interacionais se colocam no centro da nossa identidade, da nossa história, da nossa cultura, da nossa própria vida.

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  • 1
    A transcrição dos dados de língua em uso, ou seja, a passagem de fatos de fala (ou sinalização, no caso das línguas de sinais) para a escrita é uma das questões metodológicas que vem recebendo, já há algum tempo, grande atenção por parte de linguistas interessados no estudo das interações comunicativas. A esse respeito, ver a discussão feita em McCleary, Viotti e Leite (2010MCCLEARY, Leland; VIOTTI, Evani; LEITE, Tarcísio de Arantes. Descrição das línguas sinalizadas: a questão da transcrição dos dados.Alfa: Revista de Linguística, São Paulo, v. 54, n. 1, p. 265-289, 2010. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/2880 . Acesso em: 11 de outubro de 2023.
    https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/a...
    ), que trata desse assunto a partir da perspectiva da transcrição de línguas sinalizadas. Para um debate mais amplo sobre problemas gerais de transcrição de dados linguísticos e outros vieses implicados por ela, ver Negrão e Viotti (2022NEGRÃO, Esmeralda; VIOTTI, Evani. Desafios teórico-metodológicos para a descrição de línguas não indo-europeias. In: HATTNHER, Marize; OLIVEIRA, Taísa; CONEGLIAN, André (org.). Linguagem, uso e gramática: da vivência à teorização. São Paulo: Editora Mackenzie, 2022. p. 120-146).
  • 2
    O trabalho fundador dessa área de estudos da linguagem é o texto seminal intitulado A simplest systematics for the organization of the turn-taking in conversation (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974SACKS, Harvey. SCHEGLOFF, Emanuel A. JEFFERSON, Gail D. “A simplest systematics for the organization of turn-taking for conversation.” Language50, p. 696-735, 1974.).
  • 3
    Na Filosofia, as bases dessa Semiótica estão refletidas nas obras de pensadores do século XX, como Michael Polanyi, Martin Heidegger, Ludwig Wittgenstein, Maurice Merleau-sPonty, dentre outros. As noções desenvolvidas por eles encontram ressonância nos trabalhos de cientistas de diferentes áreas do conhecimento, como a Biologia (Francisco Varela, Jakob von Uexküll), a Antropologia (Tim Ingold), a Psicologia (James J. Gibson, Lev Vygotsky), a Sociologia (Harold Garfinkel, Alfred Schutz), os estudos de semiose fundados na Teoria da Complexidade (Peg Syverson, Antonis Iliopoulus, Pedro Atã, João Queiróz), os Estudos do Gesto e a Linguística Antropológica (Nicholas Enfield, Stephen Cowley, Charles Goodwin, Paul Kockelman, Jürgen Streeck, dentre outros).
  • 4
    O termo ação co-operativa é escrito com hífen para diferenciar a definição de uma ação co-operativa da definição de cooperação, como entendida na antropologia, na biologia e na linguística. Ações co-operativas não envolvem nenhum custo para nenhum agente em benefício de outros, nem nenhum esforço para que os interactantes cheguem a algum acordo ou entendimento. Na verdade, o que está por trás do uso desse termo é a referência à realização de múltiplas operações sobre os materiais disponíveis na interação (GOODWIN, 2018GOODWIN, Charles. Co-operative action. Cambridge: Cambridge University Press, 2018., p. 6).
  • 5
    Aproveitamos a oportunidade para, uma vez mais, agradecer Regiane e Wilson por sua valiosa colaboração para a constituição de um corpus de interações em libras, que é parte do acervo do LLICC - Laboratório “Linguagem, Interação, Cultura e Cognição”, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O uso dos dados aqui analisados, bem como as imagens dos sinalizadores em fotos e em vídeo, foi devidamente autorizado por eles.
  • 6
    Nosso objeto de análise é uma conversa em língua sinalizada, mas tudo o que será proposto aqui se aplica igualmente a interações em línguas orais. Mais do que isso: tudo o que dizemos aqui se aplica a qualquer tipo de interação assumida como forma de vida.
  • 7
    Estamos fazendo uma distinção aqui entre os termos intercorporealidade, de um lado, e os termos intra- e intercorporeamento, de outro. Intercorporealidade, como dito acima, é a relação entre os participantes de uma interação. É algo invisível (nos termos de Merleau-Ponty), um entre-deux que se estende para além do que é visível, audível, tangível. Intra- e intercorporeamento, por outro lado, são aspectos das ações co-operativas que revelam a importância do(s) corpo(s) e da sinergia entre suas partes para o processo semiótico, num entendimento que toma como base a tese do corporeamento mencionada acima.
  • 8
    Para capturar a sincronicidade (ou não) das ações dos interactantes, as figuras foram dispostas espacialmente em linhas com espaçamentos que indicam o momento em que o interlocutor tomou o turno, em relação ao turno do seu interlocutor, em curso; ou como estava a sua ação facial durante o turno do interlocutor.
  • 9
    Na versão impressa deste artigo, por limitações do meio papel, as figuras podem ter baixa legibilidade. A apresentação dos vídeos originais é uma estratégia para superar essa limitação. Ainda assim, as figuras foram colocadas no corpo do texto para servir de guia para os filmes, nas partes associadas às figuras. Para acessar os trechos em vídeo, o leitor deverá clicar nos links apresentados nas notas de rodapé na versão digital ou acessar o QR Code disponibilizado na figura na versão impressa deste artigo. O link para acesso ao vídeo correspondente ao trecho acima é: https://drive.google.com/file/d/1mglc6Of4QW7Yyl1i3wBcjoX4kKCq3RS6/view
  • 10
    Acesso ao trecho da conversa em vídeo: https://drive.google.com/file/d/105P7ZfqoEKHJQXzOZTzmhZN6mQ8sFmRv/view?usp=share_link
  • 11
    Acesso ao trecho em vídeo: https://drive.google.com/file/d/1kX3Jca1uKYAC2QxAOZhH-S7mEqvBl_kb/view
  • 12
    Para evitar impor precipitadamente o estatuto de visema às configurações bucais observadas ao longo da conversa, adotamos, em nosso sistema de transcrição, um vocabulário descritivo das ações bucais. Desse modo, a configuração L30 corresponde à descrição “Boca aberta em formato não arredondado com abertura média, com a mandíbula se movendo para baixo” e a configuração L37 corresponde à descrição “Lábios fechados projetados para frente”.
  • 13
    Uma parte desse trecho da conversa em que W enumera a si mesmo como membro do grupo e duas colegas ouvintes foi suprimida da foto por questão de espaço.
  • 14
    Acesso ao trecho em vídeo: https://drive.google.com/file/d/1vVgvJC5iIki4YzTryZr2VbJdAanz56yN/view
  • 15
    Acesso ao trecho em vídeo: https://drive.google.com/file/d/1CCskn7ARm6WzFh3GIlWh1Y0YvJ0DXGbk/view
  • 16
    Apesar de a foto não capturar bem o posicionamento da língua próxima aos alvéolos, essa configuração bucal pode ser vista com mais clareza no trecho do vídeo que acompanha a figura na versão digital deste artigo.

Editado por

Editora-chefe dos Estudos de Linguagem:

Bethania Mariani

Editores convidados:

Pierluigi Basso-Fossali, Renata Mancini

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2023
  • Aceito
    16 Ago 2023
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