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DO SURF AO TOW-IN - POR UMA ANÁLISE DA EMERGÊNCIA DO CAMPO DOS “ESPORTES DE PRANCHA”

SURF TO TOW-IN - BY AN ANALYSIS OF EMERGENCY THE FIELD “BOARDS SPORTS”

RESUMO

Nesse artigo, temos por objetivo analisar a emergência do campo dos “esportes de prancha” evidenciando alguns dos agentes, estruturas e práticas que foram centrais nesse processo histórico. A hipótese que nos guia nesse percurso se respalda no entendimento de que modalidades como o bodyboarding, sandboard, wakeboard, skate, entre outras, são derivações do surf. Em termos metodológicos, realizamos um levantamento de artigos, produções literárias, relatos de experiência bem como de reportagens em sites e blogs especializados que versam sobre “esportes de prancha”. No que diz respeito aos direcionamentos teóricos, partimos do referencial sociológico de Pierre Bourdieu e endossamos a análise a partir das contribuições de Mike Featherstone e Anthony Giddens por entender que seus constructos somam oportunamente à leitura da dialética de oferta e demanda dos “esportes de prancha”.

Palavras-chave:
Esportes de prancha; Estilos de vida; Sociedade do consumo.

ABSTRACT

In this article, our objective is to analyze the emergence of the field of “board sports” showing some of the agents, structures and practices that were central to this historic process. The hypothesis that guides us on this path supports the understanding that sports such as bodyboarding, sandboarding, wakeboard, skate, among others, are the surf derivations. In terms of methodology, we did a survey articles, literary productions, experience reports as well as reports on websites and specialized blogs dealing on “board sports”. About to theoretical directions, we were based in the sociological framework of Pierre Bourdieu and endorsed the analysis by contributions of Mike Featherstone and Anthony Giddens understanding that their theoretical constructs are timely add to the supply of dialectical reading about offer and demand of the “board sports”.

Keywords:
Board sports; Life styles; Consumer society.

Introdução

O fenômeno esportivo na modernidade tardia pode ser considerado tanto uma inovação quanto uma repetição. Por um lado, surgem práticas esportivas novas que, a princípio, não mantêm relação estreita com esportes já devidamente legitimados no mercado de bens simbólicos, emergindo, portanto, em função de tensões específicas estruturantes da sociedade pós-tradicional e como resultado também de demandas impostas pelas diferentes tribos atuantes na sociedade de consumo. Por outro lado, muitos esportes repetem os códigos e obedecem a lógica de outras modalidades como é o caso, talvez emblemático, do voleibol de praia que derivou do voleibol de quadra. Trata-se, mais especificamente daquilo que Afonso11. Afonso GF. A reinvenção do voleibol de praia: agentes e estruturas de uma modalidade espetacularizada (1983-2008). [Tese de Doutorado em Sociologia]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Sociologia; 2011. denominou de “esportes derivados” para se referir àquelas práticas esportivas que no contexto contemporâneo emergiram de modalidades já existentes e como resultado do processo de mercantilização e espetacularização do esporte moderno, condições que, em última instância, culminaram com uma complexificação e diferenciação dessas práticas no intuito maior de estenderem seu raio de ação aos diferentes nichos de mercado.

Este parece ser também o caso de uma série de práticas esportivas que estão em tela nesse artigo e estamos chamando genericamente de “esportes de prancha”. Nossa hipótese é que modalidades como o bodyboarding, sandboard, wakeboard, skate, entre outras, são derivações do surf. Este processo, por sua vez, talvez seja um indicativo de que os esportes ditos e tidos como “convencionais” e “tradicionais” perderam progressivamente seu grau de imprevisibilidade, de novidade, de excitação, de satisfação, ou seja, tornaram-se demasiado rotineiros, lugar comum na modernidade tardia. Se este for o caso, é passível levar a rigor o raciocínio de que a capilarização social das modalidades esportivas alternativas a exemplo dos esportes de aventura, dos esportes californianos ou dos “esportes de prancha” etc. é um indicativo de que novas rupturas e outros estados de subjetividade passaram a fazer parte do campo esportivo moderno tal como estruturado na sociedade pós-tradicional e do consumo.

Método

Tendo em vista a natureza do objeto estudado nesse artigo, optamos por desenvolver uma pesquisa que tivesse como característica a possibilidade de reunir fontes a partir do método exploratório e permitisse, na sequência, estabelecer conexões e estruturas de análises teóricas. Assim sendo, esta pesquisa assume a natureza qualitativa, de cunho exploratório-analítico, na qual pretendemos entender o percurso histórico, e suas respectivas derivações, dos “esportes de prancha”.

Para esse tipo de pesquisa, Gil22. Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 4. ed. São Paulo: Atlas; 1994. prescreve que devemos considerar as seguintes fases: a) exploração das fontes bibliográficas; b) leitura do material; c) elaboração das fichas; d) ordenação e análise das fichas; e) conclusões. Portanto, assim o efetivamos nesse estudo, sendo pesquisadas fontes que tiveram como critério de seleção a busca/levantamento de produção/material que versavam especificamente sobre os “esportes de prancha”. Seguindo esse critério e procedimento metodológico selecionamos 01 tese de doutorado; 01 dissertação de mestrado; 13 livros; 03 blogs especializados em surf; 01 Atlas do Esporte; 01 artigo acadêmico; 04 sites de esportes relacionados com prancha; 02 documentários jornalísticos; 02 revistas de entretenimento; e 03 sites de Confederações de esportes com prancha. Todo esse material encontra-se devidamente apresentado nas referências do artigo.

Após a leitura, e os devidos registros do material coletado, o estudo seguiu para a etapa de análise teórica, a qual recebeu o aporte dos conceitos operacionais da teoria reflexiva de Pierre Bourdieu, somados aos constructos analíticos de Mike Featherstone e Anthony Giddens. Esse modelo, ou melhor, essa estrutura de análise, e respectivos autores, foram escolhidos por conta da pertinência de seus trabalhos ao realizar a leitura minusciosa das dinâmicas presentes nas realidades sociais. Dito de outra forma, são autores que tem sua obra reconhecida internacionalmente e que fornecem instrumental pertinente para compreender os processos pelos quais os “esportes de prancha” se desenvolveram, principalmente no que se refere à oferta e demanda esportiva, ao estilo de vida e à sociedade de consumo.

Em suma, nesse artigo, em termos teórico-metodológicos, nos aprouve realizar um levantamento de artigos, produções literárias, relatos de experiência bem como de reportagens em sites e blogs especializados que versam sobre os “esportes de prancha”, para em seguida, analisar esse material a partir das contribuições teóricas de Bourdieu33. Bourdieu P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk; 2008., Featherstone44. Featherstone M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel; 1995.),(55. Featherstone M. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel ; 1997. e Giddens66. Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP; 1991.),(77. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009..

Resultados e discussão

Agentes, estruturas e derivações no campo dos “esportes de prancha”

No cenário de construção da história moderna do surf, dois fatos são importantes no sentido de fazer essa prática conhecida para além do contexto havaiano. Em 1778, através de uma expedição, o capitão James Cook foi o primeiro europeu a visitar o Hawaii e, no ano de 1866, o autor americano Mark Twain passou vários meses na ilha tentando surfar e concluiu que somente os nativos dominavam essa arte. No entanto, foi o havaiano Duke Kahanamoku, campeão olímpico de natação, quem popularizou o esporte. Ele foi considerado o “pai” do surf moderno e o introduziu na Austrália e na Nova Zelândia88. Booth D. Surfing: the ultimate guide. Santa Barbara, CA, USA: Greenwood; 2011..

Já com relação à chegada do surf no Brasil, existem duas vertentes. Por um lado, Osmar Gonçalves fez a primeira prancha e surfou a primeira onda em Santos/SP. Por outro lado, o americano naturalizado brasileiro Thomas Rittscher Júnior foi o criador da primeira prancha brasileira e surfou na praia do Gonzaga, em Santos, juntamente com sua irmã Margot, a então primeira mulher a surfar no país. Tudo aconteceu na década de 1930 e ambos possivelmente se inspiraram no que viram na revista americana Popular Mechanics, uma cópia do trabalho do americano Tom Blake. Foi entre 1950 e 1960, entretanto, que o surf ganhou maior expressão, quando chegou à praia do Arpoador/RJ. Outro marco importante nessa época foi a criação da Federação Carioca de Surf em 196599. Souza R. Boas ondas surfando com Rico de Souza. Rio de Janeiro: Ediouro; 2004..

No Brasil, o início dos anos 1970 foi marcado pela expressão do comportamento no bairro de Ipanema/RJ, onde a construção do Pier de Ipanema serviu como uma trincheira da contracultura. Se transformou num local de várias “tribos”, surfistas, artistas, músicos como Caetano Veloso e Gal Costa, escritores; um local onde Leila Diniz foi a primeira mulher a utilizar biquíni grávida e Fernando Gabeira usou uma sunga de crochê. Era a época marcada pela máxima “sexo, drogas e rock n’roll”, na qual a juventude estava tentando “mudar o mundo” e, ao mesmo tempo, o país estava sendo reprimido pela Ditadura Militar. Todo este movimento fez com que as pessoas alternassem entre um crescente autocontrole dos ímpetos no tecido social mais amplo por conta mesmo da repressão de Estado e um “descontrole controlado das emoções” na esfera mimética do lazer e no campo da cultura, conforme passível de argumentar a partir de Elias e Dunning1010. Elias N, Dunning E. A busca da excitação. Lisboa: Difel; 1992. e Featherstone44. Featherstone M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel; 1995..

Mais que isso, desenvolveu-se um novo mercado de bens culturais, intelectuais e simbólicos transmitidos pela nova classe média. Os artistas passaram então a fazer de seus trabalhos e de seus estilos de vida uma fonte cada vez mais preponderante de libertação emocional, favorecendo a instauração do movimento de “[...] contracultura que atacou a repressão emocional e promoveu um estilo mais relaxado e informal, manifestado nas estilizações das roupas e da apresentação”44. Featherstone M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel; 1995.):173.

Em dezembro de 1972, no bairro de Ipanema aconteceu o “Campeonato Carioca de Surf”, patrocinado pela Skol, que lançou a primeira cerveja em lata no Brasil. Foi o início da profissionalização do surf que, após esse processo, começou a se popularizar pelas praias brasileiras. O evento teve grande visibilidade através da mídia escrita (O globo, revistas Veja e Manchete) e da TV Globo. Na época foi criada a primeira revista especializada, a Brasil Surf, responsável pela divulgação, popularização e expansão do esporte no país e, na sequência, a Fluir - 1983, Terra, Mar e Ar, Trip, entre outras. Tivemos os primeiros campeões e ícones do surf brasileiro, como Rico de Souza, Ricardo Bocão e Pepê Lopes, entre outros1111. Andraus R. Blog do Dragão - Histórias do Surf [Internet]. Otávio Pacheco Parte 1: Criado ao redor das pedras do Arpoador e Saquá. [acesso em 19 out. 2015]. Disponível em: Disponível em: http://surfdragonblog.blogspot.com.br/2015_03_01_archive.html
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Diante desse contexto e dos aspectos analíticos então arrolados, cabe frisar que o esporte, a despeito de outros artefatos culturais, se trata de uma prática social constitutiva de diferentes estilos de vida, ou seja, de elemento constituidor do estilo de vida/habitus de determinados estratos ou grupos sociais. Nesta perspectiva, é que lhe enquadramos como um fenômeno sociocultural cada vez mais voltado para os contornos de uma mercadoria com fins lucrativos, mas que não limita a constituição de múltiplas experiências estéticas, sensoriais e reflexivas na vida dos agentes, muito embora entendamos que a adoção de estilos de vida no lazer se constrói mediante critérios de desigualdades. Segundo apontado por Bitencourt1212. Bitencourt V, Amorim S. Bodyboard - Morey boogie - Kickboard - Surfe de Peito. In: Dacosta LP. organizador. Atlas do Esporte no Brasil. Rio de Janeiro, CONFEF; 2006. p. 417-418.) em 2006, o Brasil é o segundo país que mais consome artigos de surf no mundo e o sexto país com população mais jovem. Esse ranqueamento, no entanto, embora seja sugestivo, precisa ser matizado em relação à dinâmica de estratificação social preponderante na sociedade brasileira de modo a perguntarmos, assim como faz Featherstone55. Featherstone M. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel ; 1997. , quais são os grupos sociais que promovem e se usufruem desses estilos de vida associados à pós-modernidade?

Soma-se ainda a esse cenário, o fato de que apelos a estilos de vida particulares se tornaram progressivamente relevantes na propaganda e na cultura do consumo em geral. Isso, por sua vez, sugere que vivemos num ritmo de transformações constantes que encontra no hedonismo um ponto de ancoragem peculiar e na busca pelo prazer um reduto da felicidade individual - mesmo que momentânea ou provisória -, condições que, no entanto, não anulam a existência de um mercado que se apropria não apenas das práticas, mas das sensações que os sujeitos investem nas práticas, integrando tais sujeitos em uma rede de consumo de produtos que os identifiquem com outros grupos ou estilos de vida por via do compartilhamento de emoções, produtos consumidos, crenças e do próprio estilo de vida tornado habitus.

Oportuno ressaltar que o corpo, as roupas, as preferências de comida, bebida, opções de lazer, entre outras, caracterizam a individualidade do gosto do consumidor. Segundo Featherstone1010. Elias N, Dunning E. A busca da excitação. Lisboa: Difel; 1992., a adoção de estilos de vida fixos por grupos específicos está sendo ultrapassada e, na contramão disso, a dinâmica do mercado alavanca uma busca constante por novas modas, novos estilos, sensações e experiências novas. Podemos falar no hedonismo e na economia das emoções através dos “heróis” da cultura de consumo, a exemplo de Gabriel Medina que, no final de 2014, entrou para a história do surf brasileiro como o primeiro surfista a conquistar o título mundial da elite do esporte, o WCT (World Surf League). Interessante lembrar que o atleta foi patrocinado pela Rip Curl, Guaraná Antarctica, Oi, Samsung Galaxy, Mitsubishi Motors, Oakley, entre outros, além de ter sido indicado ao Prêmio Laureus World Sports, o “Oscar do Esporte”, em Xangai, na China1313. Globo Esporte [Internet]. Primeiro brasileiro campeão mundial, Medina é indicado ao Prêmio Laureu [acesso 11 fev 2015]. Disponível em: Disponível em: http://globoesporte.globo.com/outros-esportes/premio-laureus/noticia/2015/02/gabriel-medina-e-indicado-para-o-premio-laureus-world-sports.html#atleta-gabriel-medina
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Recuperados brevemente alguns elementos histórico-sociais do surf, podemos avançar a argumentação e ressaltar que, a partir desse esporte, novas práticas derivativas começaram a surgir. Nesse contexto sugerido, é que o surfista americano Tom Morey que vivia em Big Island - lugar cujo mar tinha ondas perfeitas -, teve que realizar algumas adaptações tendo em vista que ele não possuía uma prancha. Tendo então à sua disposição pequenos blocos sem forma, começou a cortá-los de maneira que ele pudesse surfar; desenhou algumas curvas na espuma com caneta, esculpiu bicos quadrados para deixá-las mais fortes e criou um ponto no qual se pudesse segurar. Tom foi para o mar testar seu novo brinquedo e o resultado foi bom. Então a partir do dia 09 de julho de 1971, Tom transformou uma brincadeira de praia em um esporte radical, a saber, o bodyboard. Mais adiante, conseguiu uma fábrica para produzir sua invenção e deu o nome à prancha de Morey Boogie. No Brasil, Marcus Cal Kung foi quem difundiu o esporte no fim da década de 1970 no Rio de Janeiro. Desde sua chegada às praias brasileiras, o esporte tornou-se referência de conquistas, sendo a modalidade de água que mais títulos mundiais rendeu ao Brasil1212. Bitencourt V, Amorim S. Bodyboard - Morey boogie - Kickboard - Surfe de Peito. In: Dacosta LP. organizador. Atlas do Esporte no Brasil. Rio de Janeiro, CONFEF; 2006. p. 417-418..

Na mesma linha, em 1935, no Hawaii, o surfista Tom Blake, incorporou uma vela ao seu longboard, que chamou de sailboard. Em 1963, o casal Newman e Naomy Darby teve a ideia de unir a vela a uma canoa, realizando o sonho de Naomy em conectar o esporte do marido (vela) ao seu (canoagem). Mas a idéia tinha um custo alto e não foi bem aceita. Então, em 1967 na Califórnia, Hoyle Schweitzer, empresário e surfista e seu amigo Jim Drake, engenheiro aeroespacial, inspirados por Blake, perceberam que poderiam unir a vela a uma prancha através de um mastro articulado, de forma em que se poderia direcionar a prancha sem necessidade de um leme, usando apenas o movimento da vela, em menção clara ao surf. Foi então que a idéia funcionou e os amigos registraram o invento chamado de windsurf. Três anos depois, Scheweitzer lançou a marca “Windsurfer”, a pioneira em equipamentos de produção no esporte. Durante os anos 1970, o windsurf já fazia parte da cultura de vela europeia e uma em cada três casas possuía um equipamento de windsurf. Na época, o esporte era praticado com pouco vento e em águas lisas1414. Wheaton B. Windsurfing, a subculture of commitment. In: Rinehart RE, Sydnor S. organizadores. To the extreme: alternative sports, inside and out. New York: State University; 2003. p. 75-101.),(1515. Sedlaczek P. History, cultural context and terminology of Windsurfing. Stud Phys Cult Tourism 2009;16(1):115-123..

Em 1978, o windsurfista e surfista Mike Waltze, em uma viagem para o Hawaii, resolveu testar o equipamento nas ondas e numa praia com muito vento. Esse fato mudou completamente o esporte. As pranchas foram diminuindo de tamanho e volume e ficaram mais resistentes. Rapidamente, o esporte foi ganhando mais adeptos, manobras foram aparecendo, revistas especializadas como a Windsurf Magazine e a Boardsailing foram lançadas; o novo esporte tinha alcançado definitivamente a mídia. Campeonatos realizados no Hawaii eram transmitidos direto por emissoras de TV de todo o mundo e as premiações alcançavam 300 mil euros, atraíndo cada vez mais praticantes, público e competidores. Os pioneiros do Windsurf no Brasil foram Klaus Peters, Marcelo Aflalo e Leonardo Klabin no final dos anos 1970. O esporte ganhou mais adeptos após os eventos “Hollywood Vela” que foram realizados a partir de 1981 em várias praias brasileiras. Oportuno ressaltar que a abertura da novela “Água Viva”, da Rede Globo, ajudou a difundir o esporte que, em 1984, conheceu um ponto decisivo de sua divulgação quando então passou a ser esporte olímpico na categoria RS: X1616. Associação Brasileira de Windsurf [Internet]. História do Windsurf [acesso em 10 nov 2014]. Disponível em: Disponível em: http://www.abws.org.br/A-ABWS/Historia
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Já o Wakeboard é o esporte aquático praticado sobre uma prancha em que a pessoa é rebocada por um barco, através de um cabo e um manete. Aproveitando as duas ondas deixadas pela lancha, o atleta executa manobras enquanto é puxado, saltando de um lado para o outro. Surgiu através do skufer, união do surf com o ski-aquático. Seu criador foi o norte-americano Tony Finn, em 19851717. McKenna AT. Extreme wakeboarding. Mankato, Minnesota, USA: Capstone Press; 1999.. Chegou ao Brasil por volta de 1990 e em 1998 foi fundada a ABW (Associação Brasileira de Wakeboard) cujo objetivo era oficializar os resultados dos atletas1818. Associação Brasileira de Wakeboard [Internet]. História do Wakeboard [acesso em 26 nov 2014]. Disponível em: Disponível em: http://www.abw.com.br/
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Existe também o sandboard que, por sinal, foi criado no Brasil, especialmente em Florianópolis/SC no ano de 1986, por surfistas que em dia “sem onda” resolveram surfar na areia. Ele é praticado em dunas de areia usando uma prancha feita de madeira ou fibra e que pode variar de 1,20 a 1,70 metros de comprimento1919. Pacievitc T. Info Escola [Internet]. Sandboard [acesso em 26 nov 2014]. Disponível em: Disponível em: http://www.infoescola.com/esportes-radicais/sandboard
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Em relação ao snowboard, há indícios de que essa prática surgiu a partir de 1920 através de moradores das montanhas nevadas que utilizavam uma espécie de prancha para descer pelas encostas, mas foi no Natal de 1965 que o engenheiro norte-americano Sherman Poppen inventou um novo brinquedo para sua filha deslizar na neve juntando dois esquis velhos para formar uma prancha que chamou de snurfer (snow e surf). Poppen construiu várias pranchas para as crianças brincarem na neve. Isso chamou a atenção da empresa Brunswick, que comprou os direitos do engenheiro e passou a comercializar o produto. A primeira competição de snurfer foi realizada em Michigan (EUA) em 1979 e consistia em apenas uma descida em linha reta. Várias pranchas foram criadas como a winterstick e a skiboard, por exemplo2020. Dennis M. National Museum of America History [Internet]. Inventor Sherman Poppen, snurfing his way into history. [acesso em 19 out 2015]. Disponível em: Disponível em: http://americanhistory.si.edu/blog/2009/09/inventor-sherman-poppen-snurfing-his-way-into-history.html
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Em 1977, tal esporte começou a chamar a atenção da indústria esportiva. Neste ano, o skatista norte-americano Tom Sims construiu uma prancha de snowboard em um projeto escolar. Ele e seu amigo Chuck Barfoot, começaram a fabricar pranchas na garagem de sua casa. Barfoot também trabalhava com Bob Webber e ajudou a desenvolver as pranchas de snowboard como são conhecidas hoje. Jake Burton Carpenter que foi um dos primeiros praticantes de snurfer, também começou a desenvolver pranchas na garagem de sua casa. Hoje, Carpenter é dono da Burton Boards, uma das mais conhecidas fabricantes de pranchas de snowboard. A partir dos anos 1980, o esporte evoluiu por aparecer em propagandas e em filmes (como os clássicos de James Bond). Em 1982, foi organizado o primeiro Campeonato Nacional de Snowboard, em Vermont (EUA). Em 1989, foi criada Associação Internacional de Snowboard que se tornaria a Federação Internacional de Snowboard (FIS) no ano seguinte. Oito anos depois, o snowboard finalmente atingiu seu ápice, quando passou a ser considerado um esporte olímpico e sua primeira competição foi em Nagano, no Japão2020. Dennis M. National Museum of America History [Internet]. Inventor Sherman Poppen, snurfing his way into history. [acesso em 19 out 2015]. Disponível em: Disponível em: http://americanhistory.si.edu/blog/2009/09/inventor-sherman-poppen-snurfing-his-way-into-history.html
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No Brasil, o snowboard está presente desde os anos 1960. O esporte é regulado pela Confederação Brasileira de Desportos na Neve (CBDN), reconhecida pela Federação Internacional de Snowboard (FIS) e pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). O Brasil participou de todos os campeonatos mundiais de snowboard até hoje e passou a ter seu próprio campeonato nacional em 1995. Desde então a competição é realizada anualmente, sempre em julho, em localidades do Chile ou então da Argentina2121. Confederação Brasileira de Desportos na Neve [Internet]. Histórico. [acesso em 19 nov 2015]. Disponível em: Disponível em: http://www.cbdn.org.br/historico/
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Outro esporte que surge da mistura do surf, windsurf e wakeboard é o kitesurf, também chamado de kiteboarding ou flysurfing, que consiste numa espécie de prancha de windsurf tracionada por um pequeno parapente (pipa para dar velocidade e impulsionar o flysurfista nas manobras). As primeiras tentativas de se utilizar o kite de forma mais sistemática e esportivizada foram levadas a efeito durante os anos 1970. Os principais responsáveis pelo desenvolvimento do esporte foram os irmãos Legaignoux. Esses franceses foram os primeiros a desenvolver os protótipos do que conhecemos hoje como kite e patentearam o produto em 1984 na França e em 1985 em escala internacional. Outro destaque, nesse percurso, foi a contribuição dada pelo windsurfista Robby Naish. Ele gostou tanto do referido esporte que hoje além de ser o maior divulgador é também um dos maiores fabricantes de kites2222. Bory M. Kitesurf. Paris: Fitway; 2005..

O Brasil, por sua vez, possui atletas bem colocados no ranking mundial, a exemplo de Mila Ferreira (4 colocada) e Felipe Ferreira (4 colocado) filhos do surfista profissional Frajola Ferreira que, em 1998, foi para o Hawaii e teve o primeiro contato com o kitesurf. De volta ao Brasil e com os equipamentos, procurou um local para instalar a primeira escola do kitesurf do Rio de Janeiro, a K08 no posto 2. Em 2001, através de um Decreto Municipal foi delimitada e instituida a região como único local para a prática do kitesurf. A escola transformou a vida dos filhos, hoje campeões do Circuito Brasileiro de Kitewave. Sidinho Pereira, com mais de 60 anos de idade, um dos pioneiros do kitesurf no Rio de Janeiro, diz que a K08 é o lugar mais importante para a modalidade no Estado2323. Noronha G. Diário do Nordeste [Internet]. Kitesurf no Rio de Janeiro: pipas que colorem os céus da Cidade Maravilhosa! [acesso em 23 nov 2015]. Disponível em: Disponível em: http://blogs.diariodonordeste.com.br/manobraradical/kitesurf/kitesurf-no-rio-de-janeiro-pipas-que-colorem-os-ceus-da-cidade-maravilhosa/
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Dando continuidade a nossa explanação acerca do processo de derivações esportivas, é oportuno lembrar que o surf além de ter servido de base para o surgimento de vários esportes aquáticos, também foi a matriz inspiradora para criação do skate que foi inventado durante as décadas de 1950 e 1970 na Califórnia (USA), por surfistas que queriam se divertir em dia “sem onda”, fazendo então uso de um pedaço de madeira e articulando-o a um patim2424. Honorato T. A tribo skatista e a instituição escolar: o poder escolar em uma perspectiva sociológica. [Dissertação de Mestrado em Educação]. Piracicaba: Universidade Metodista de Piracicaba. Programa de Pós-Graduação em Educação, 2005.. O vídeo-documentário “Dogtown” e “Z- Boys” retrata a origem do skate. Cabe lembrar que os Z-boys eram formados por 12 surfistas, entre estes atores uma mulher. O skatista Tony Alva reencontra os skatistas da época e através de entrevistas, depoimentos, imagens, faz do documentário um registro importante da história do skate2525. Peralta S. Dog Town and Z-Boys: Onde Tudo Começou. EUA: Alliance Atlantis; 2001..

Nesse mesmo percurso, podemos citar também o skysurfing, uma modalidade de paraquedismo chamado de surf no céu e praticado em duplas. A lógica de prática do skysurfer consiste em ficar de pé em uma prancha especial para surfar pelo céu ao passo que um cameraflyer usa um capacete com uma câmera de vídeo acoplada. Em seguida, saltam em queda livre de um avião, balão ou helicóptero a uma altura obrigatória de 4000 metros. Foi inventado por Dominique Jacquet e Jean-Pascal Oron em 1986, na França. Na década de 1990, foi popularizado por Patrick Gayardon. A velocidade de queda pode chegar a 300 quilômetros por hora e a descida dura 50 segundos. Antes de abrir o paraquedas, a prancha é desconectada por um botão na cintura do macacão. Para praticar Skysurf é preciso ter experiência de, no mínimo, 200 saltos tradicionais. De 30 de setembro a 3 de outubro de 1997 foi realizada em Foz do Iguaçu uma competição de skysurfing nos Jogos Mundiais da Natureza2626. Baptista C. Formiga voadora. Trip 1995;(8)42:74. ),(2727. Mello M. Loucuras no céu. Super Interessante 2001;163 .

No início dos anos 1990, surge no Hawaii outra modalidade derivativa do surf, a saber, o Tow-In criado por Laird Hamilton e uma equipe de surfistas com objetivo de surfar ondas gigantes. O surfista (big-rider) precisa ser puxado por um jet-ski - sozinho ele não consegue transpor as ondas - munido de uma prancha e corda de resgate. Surfista e piloto devem estar em perfeita sintonia para que as ações na água ocorram da melhor maneira. Além do piloto deixar o surfista em posição para pegar a onda, deve estar preparado para o resgate, caso ocorra uma queda. A prancha deve ser especial e conta com duas fitas, uma na frente e outra atrás, para colocar os pés e reduzir o risco de queda.

Em janeiro de 1998, Ken Bradshaw surfou a maior onda, 80 pés (aproximadamente 25m)88. Booth D. Surfing: the ultimate guide. Santa Barbara, CA, USA: Greenwood; 2011.. Em agosto de 2000, Hamilton surfou uma onda de 100 pés (aproximadamente 30m)2828. Borte J. Surfline [Internet]. Tow surfing. [acesso em 01 ago 2014]. Disponível em: Disponível em: http://www.surfline.com/surfing-a-to-z/tow-surfing-history_930/
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e, num outro momento, usou um helicóptero para ser transportado às ondas em Jaws2929. SANDERS M. Surfline [Internet]. Believe it or not. [acesso em 01 ago 2014]. Disponível em: Disponível em: http://www.surfline.com/surfnews/article.cfm?id=1341
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. Hamilton foi inquirido pela Cable News Network (CNN) sobre a possibilidade de Carlos Burle ter quebrado o recorde mundial de ondas grandes. Ele começou por dizer que para essa onda ser considerada como a maior já surfada, a ação teria que ser feita com sucesso e que isso não aconteceu. Segundo Hamilton, a onda só deve ser considerada como sendo surfada com sucesso se o surfista sair dela em segurança, o que não aconteceu, pois Carlos foi “comido” pela espuma3030. Santos S. Surf Portugal [Internet]. Laird Hamilton diz que Carlos Burle não bateu o recorde de maior onda surfada. [acesso em 02 ago 2014] Disponível em: Disponível em: http://www.surfportugal.pt/noticias-surf-portugal/3403-laird-hamilton-diz-que-carlos-burle-nao-bateu-o-recorde-de-maior-onda-surfada
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À maneira de conclusão - reflexividade no campo dos “esportes de prancha”

O esporte, especialmente o de aventura, pode ser considerado, sem dúvida, tanto uma inovação quanto uma repetição, tendo em vista que sua oferta e demanda assumem contornos sociais renovados em virtude do desenvolvimento de recursos tecnológicos alternativos e dos novos horizontes culturais, estéticos, simbólicos e emocionais que se abrem aos agentes a partir dessa diferenciação material das práticas, mas sem perder de referência, contudo, sua relação com esportes já existentes, como é o caso de uma série de inúmeras práticas esportivas que derivaram do surf tal como nos aprouve aqui discutir e sintetizar a partir de abordagem sincrônica e de alguns elementos empíricos na seção anterior do artigo.

A propósito, vários indícios foram fornecidos sobre a conformação de um espaço dos “esportes de prancha”, todos de, alguma forma, relacionados ao surf, não por mero acaso ou coincidência, mas porque agentes dotados daquilo que Giddens77. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009. denomina de cognoscitividade ou, em termos mais específicos, de “consciência prática” perceberam a necessidade de imputarem mudanças e realizarem adaptações em determinados esportes mediante as condições estruturais e ambientais diversas que lhes eram confrontadas e, sobretudo, no intuito maior de contemplarem suas expectativas pessoais de reordenação ou adaptação nesses cenários a partir da recriação de práticas através das quais, antes de tudo, eles poderiam se expressar ativamente como atores66. Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP; 1991.),(77. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009..

Como vimos então anteriormente, vários dos esportes que derivaram do surf ou que então emergiram em relação íntima com o mesmo, permitem essa possibilidade de leitura a partir da teoria das práticas de Giddens66. Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP; 1991.),(77. Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2009., uma vez que evidenciam em seu percurso de emergência histórica elementos de inventividade que vão além da construção de um código distintivo orquestrado pré-reflexivamente no âmbito do campo dos “esportes de prancha”, código este que teria por objetivo garantir aos seus agentes uma participação adequada nos jogos sociais regulados pelas leis de mercado no interior desse espaço relacional de possíveis. Argumentado em outros termos, é possível e sugestivo então avançar no tratamento dos processos de derivações esportivas como consequência primeira daquilo que Giddens66. Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP; 1991., denomina de “monitoração reflexiva da ação” no propósito de sintetizar a capacidade dos agentes em suas cadeias de interação manterem-se em contato “[...] com as bases do que fazem como parte integrante do fazer”66. Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP; 1991.):47.

Quando então o surfista Tom Morey na ausência de uma prancha convencional para surfar em Big Island adapta uma prancha alternativa com pequenos blocos contribuindo assim para a emergência do bodyboard, tal como discutido na seção anterior, tudo leva a crer que ele não estava inicialmente sendo movido por uma força ou espírito mercadológico que mal compreendia, mas, sobretudo, pela necessidade refletida de transformar uma prática mediante as dificuldades objetivas que lhe eram imputadas naquele contexto e/ou também como resposta às ansiedades e angústias que se deparou naquelas circunstâncias. Tudo bem que, posteriormente, Morey realizou esforços mercadológicos para patentear seu produto que havia dado certo, atribuindo, inclusive, o seu nome à prancha, assim então denominada Morey Boogie, em uma lógica evidente de potencial acúmulo de capital simbólico, mas isso, todavia, deve ser interpretado, ao menos segundo a perspectiva teórica de Giddens, muito mais como “consequência impremeditada” de sua ação do que como motivador inicial não-racionalizado acionado mediante relações de concorrência para que esse investimento fosse possível.

O mesmo tipo de raciocínio pode ser transposto para analisar a ação do engenheiro norte-americano Sherman Poppen que adaptou dois esquis velhos como prancha para que sua filha pudesse brincar na neve, denominando essa prática de snurfer (snow e surf) ou então para entender a cadeia causal reflexiva que permitiu que os agentes concebessem o skate na Califórnia ou o sandboard nas praias de Florianópolis. A reflexividade ou autorreflexividade dos atores, nesse caso, possivelmente foi o que lhes permitiu examinar a prática do surf e reformulá-lo a ponto de que emergissem essas outras práticas esportivas segundo os seus próprios interesses e necessidades. Por conseguinte, tais inovações só foram possíveis porque houve entradas de conhecimento neste campo advindas das relações firmadas entre atores e sistemas especializados, em especial a tecnologia, permitindo então que as práticas sociais em tela fossem modificadas. É oportuno frisar que tal lógica de estruturação, como um traço distintivo da modernidade reflexiva, afeta todas as áreas de vida - do lazer ao não-lazer -, ressaltando, entretanto que o que define esse contexto modernizador: “[...] não é a adoção do novo por si só, mas a suposição de reflexividade indiscriminada - que, é claro, inclui a reflexão sobre a natureza da própria reflexão66. Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP; 1991.):49.

Em suma, podemos dizer que a reflexividade institucional própria da modernidade tardia ou da sociedade pós-tradicional concorreu de forma ímpar para que as derivações esportivas que se concretizaram a partir do surf fossem possíveis a ponto de emergir no tecido social um locus de práticas específicas que guardam em comum o uso de uma prancha e, mais que isso, nas quais os agentes buscam manter o equilíbrio em uma prancha ao mesmo tempo em que ambicionam levar a efeito a realização de manobras radicais com o maior êxito possível. Nisso consiste, portanto, o entendimento de que o processo de derivações esportivas não responde tão somente aos imperativos institucionais e ao espírito mercadológico da sociedade de consumo tornado habitus. Há, ao invés disso, toda uma investida cognoscente por parte dos atores leigos no processo de transformações das práticas esportivas para que elas melhor correspondam aos seus interesses e necessidades.

O caso do surf e das práticas que direta ou indiretamente dele derivaram, tal como aqui demonstrado, é paradigmático do que estamos dizendo. Isso, por sua vez, constitui apenas uma das dimensões do problema, isto é, aquela basicamente preocupada com a temática da ordem e que atribui o devido valor, tem que ser dito, ao papel dos agentes reflexivos na transformação das práticas que lhes transformam. Em contrapartida, sabemos que os atores sociais - estejam eles envolvidos nas relações esportivas ou em outras - não são socializados na modernidade apenas por vias refletidas e reflexivas. Paralelo a isso existem também uma série de componentes irrefletidos ou pré-reflexivos inscritos sob a forma de categorias impensadas do pensamento orientando as condutas e razões de agir desses atores. Nisso consiste, os seus envolvimentos ativos e conflituosos em uma dinâmica institucional ou estrutural que eles, na maior parte das vezes, não compreendem a rigor como funciona, e que por isso mesmo garante uma perspectiva de reprodução social que, por assim dizer, é menos das práticas e mais da estrutura mercadológica que ampara as práticas estilizadas e estetizadas de lazer distribuídas e repartidas muito desigualmente no tecido social.

Estendendo esse tipo de preocupação teórica para ampliar a leitura dos processos sociais que concorreram para emergência do campo dos “esportes de prancha”, o que é de maior urgência ser ressaltado - no propósito mesmo de matizar o grau de alcance da noção de reflexividade na lógica reguladora do processo de oferta e demanda das práticas esportivas mediante a noção de conflitos, em especial, a partir da noção bourdieusiana de habitus de classe - é que a gênese desse espaço relacional, bem como das tomadas de posição reflexivas que concorreram para que tal espaço emergisse, se estabelece no contexto estilístico e estético partilhado por uma classe média expandida. Nesse particular, pudemos dar uma ideia na seção anterior de que os atores aqui mencionados que inicialmente estiveram à frente na dinâmica de derivações esportivas relacionadas ao surf, eram possivelmente dotados de um volume razoável de capital econômico e cultural, dado o caráter material e tecnológico envolvidos nas práticas em questão e, sobretudo, a necessidade de recorrerem reflexivamente aos sistemas especialistas envoltos na conformação e adaptação de seus novos esportes.

Nos termos de Featherstone55. Featherstone M. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel ; 1997. , esses atores que ajudaram a construir a história do campo dos “esportes de prancha” podem ser denominados e analisados na figura de “novos especialistas” ou “intermediários culturais” que conservam a particularidade de serem tanto produtores quanto também consumidores de seus próprios produtos e esportes. Trata-se de um espaço inicialmente bastante homogêneo que expressa um determinado habitus de classe, mas também evidenciam tomadas de posição reflexivas dos atores, conforme argumentamos há pouco. Estes atores, no entanto, devem ser encarados, tal como sugerido por Lash3131. Lash S. A reflexividade e seus duplos: estrutura, estética, comunidade. In: Beck U, Giddens A, Lash S. organizadores. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da UNESP ; 1997. p. 167-258. ao discutir o caráter reflexivo da sociedade pós-tradicional, como os vencedores da reflexividade, ou seja, como aqueles indivíduos ou grupos que, por uma série de razões sociais e estruturais, estão em condições de monitorar reflexivamente suas práticas nas mais diferentes esferas.

Tudo bem que, posteriormente, esses novos esportes são apropriados pelo mercado, passam por processos de racionalização e de organização burocrática e ganham as indústrias culturais atingindo assim a um público maior e potencialmente mais heterogêneo. Pontuamos anteriormente, nesse sentido, o papel dos atores, em meio a um sistema relacional de disputas por legitimidade e prestígio, na regulamentação de suas novas práticas, na oficialização de campeonatos, na difusão de seus produtos em revistas especializadas. Vimos ainda que a divulgação dos “esportes de prancha” se beneficiou dos filmes, seriados, novelas e outros veículos da indústria de comunicação. Essa lógica de especialização e distribuição cultural dos bens esportivos, entretanto, não pressupõe uma repartição ou uso igualmente reflexivo dos “esportes de prancha” pelos diferentes grupos sociais.

Em outras palavras, a estilização e estetização da vida inerente ao processo de derivações esportivas que se deu a partir do surf, embora só tenha sido possível inicialmente a partir da monitoração reflexiva da ação por parte dos produtores e especialistas culturais envoltos nessas práticas, não se espalha a partir dos mesmos princípios de reflexividade para as múltiplas direções sociais. A reflexividade dos atores diante das práticas sociais é, portanto, seletiva e a conformação do campo dos “esportes de prancha” não está à margem disso, engendrando então uma lógica de socialização dos produtores e consumidores desses esportes por vias também pré-reflexivas, opacas e naturalizadas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2016
  • Revisado
    06 Fev 2017
  • Aceito
    10 Fev 2017
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