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PRODUZINDO FEMINILIDADES: A PERCEPÇÃO DE BOXEADORAS SOBRE SUAS TRANSFORMAÇÕES CORPORAIS

PRODUCING FEMININITY: THE PERCEPTION OF FEMALE BOXERS ABOUT THEIR BODILY TRANSFORMATIONS

RESUMO

Este texto analisa a percepção de boxeadoras sobre as transformações corporais ocorridas em função de sua dedicação à modalidade com fins competitivos. Fundamentada no aporte teórico-metodológico da História Oral, foram entrevistadas sete atletas registradas na Federação Gaúcha de Pugilismo que participaram de competições em nível estadual e nacional no ano de 2015 e dois treinadores com experiência na modalidade. Estas entrevistas foram cotejadas com outras fontes, tais como reportagens, atlas e documentos institucionais. Dessa análise, emergiram três temas: a aparência dos corpos das boxeadoras e sua relação com aspectos referentes ao gênero e à sexualidade; aspectos comparativos entre a prática do boxe com fins competitivos e do boxe vivenciado nas academias; estratégias utilizadas pelas boxeadoras para legitimar sua presença na modalidade. A partir de suas narrativas, foi possível identificar que as pugilistas negociam representações de feminilidade ao adequar seus treinos de modo a manter uma boa performance sem apresentar uma excessiva potencialização muscular. Tal percepção advém da preocupação em adequar sua corporalidade aos padrões estéticos socialmente valorizados, demonstrando o quanto o gênero, longe de ser um dado biológico, é algo que precisa constantemente ser reiterado.

Palavras-chave:
Boxe; Gênero; Corpo; Sexualidade

ABSTRACT

This text analyzes the perception of female boxers about the bodily transformations occurred in them due to their dedication to the competitive sport. Based on the theoretical and methodological contribution of Oral History, seven athletes registered in the Gaúcho Boxing Federation (Federação Gaúcha de Pugilismo) who participated in national and state competitions in the year 2015 and two coaches with experience in the sport were interviewed. These interviews were compared with other sources, such as news reports, atlases and institutional documents. From this study three themes emerged: the appearance of the bodies of the female boxers and their relationship with aspects related to gender and sexuality; comparative aspects between the practice of boxing with competitive ends and boxing in gyms; strategies used by the female boxers to legitimize their presence in the sport. From their narratives it was possible to identify that the boxers negotiate representations of femininity when adjusting their training in order to maintain a good performance without presenting an excessive muscular growth. Such perception comes from the concern to adapt their bodies to socially valued aesthetic standards, demonstrating how much gender, far from being a biological data, is something that must constantly be reiterated.

Keywords:
Boxing; Gender; Body; Sexuality

Introdução

A participação de mulheres no mundo esportivo esteve atreladas às representações de feminilidade historicamente construídas. No Brasil, em função do Decreto-Lei n. 3.199 do Conselho Nacional de Desportos, vigente entre 1941 e 1979, algumas modalidades esportivas permaneceram sujeitas à vigilância e interdição por apresentarem comportamentos e corpos que rompiam com os imperativos de uma representação normativa de feminilidade, dentre elas, as lutas.

Considerando o boxe como um esporte tradicionalmente ocupado por homens e produtor de valores associados a uma determinada masculinidade11 Wacquant L. Corpo e alma: Notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2002., este artigo focaliza a percepção de boxeadoras acerca das transformações corporais vivenciadas em função da prática da modalidade com fins competitivos. Sua fundamentação teórica está ancorada nos Estudos de Gênero, cuja proposição básica, pautada pela historiadora norte-americana Joan Scott2 na década de 1980, advoga que tanto o gênero quanto o sexo são construções sociais e linguísticas que produzem os sujeitos, seus corpos e suas subjetividades33 Butler J. "Corpos que pesam: Sobre os limites discursivos do 'sexo'". In: Louro GL, editora. O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica; 1999, p. 151-172.,44 Louro GL, organizadora. O corpo educado pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica; 1999.. Consoante essa representação, o próprio sexo é observado como uma construção do gênero. Ou seja, o biológico passa a ser encarado como um discurso que produz corpos governados pela diferença e pela hierarquia55 Nicholson L. Interpretando o gênero. Rev Estudos Feministas 2000;8(2):9-42..

Enfatizar o corpo como uma construção social e linguística não implica desconsiderar sua materialidade. Ao contrário, o corpo se torna “uma variável, mais do que uma constante, não mais capaz de fundamentar noções relativas à distinção masculino/feminino”5:9. Ao romper a ideia de que existe uma divisão fundamental entre os corpos e os sentidos que lhes são atribuídos, essa perspectiva afirma que os sujeitos constroem seus corpos por meio de experiências sociais e a matéria corporal é sedimentada em todos os níveis pelos discursos e pelas práticas sociais66 Fausto-Sterling A. Dualismos em duelo. CadPagu 2001;2:9-79. Doi: 10.1590/S0104-83332002000100002
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Considerando que o corpo não existe fora de discursos generificados, analisamos a percepção de boxeadoras sobre as transformações corporais ocorridas em função de sua dedicação à modalidade esportiva a nível competitivo. Tal intencionalidade se justifica porque o boxe é socialmente representado como um esporte masculino em função da potencialização do corpo e da virilidade a ele associado. Quando as mulheres adentram esse espaço, ocorrem fissuras nessa representação na medida em que suas arquiteturas corporais exibem contornos e gestualidade que não são comumente associados a elas77 Fernandes VLFP. Mulheres de Ouro: Trajetória e representações de atletas de lutas. [Dissertação de Mestrado em Educação Física]. Juiz de Fora: Faculdade de Educação Física, Universidade Federal de Juiz de Fora; 2014.,88 Cardoso BLC, Sampaio TMV, Santos DS. Dimensões socioculturais do boxe: Percepção e trajetória de mulheres atletas socio-cultural. Movimento 2015;21(1):139-154. Doi: 10.22456/1982-8918.46404
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. Cientes de que a imagem corporal não é um simples reflexo do corpo anatômico, mas uma imagem do sujeito, percebida em função de fatores psicológicos, sociais e históricos, em relação a sua anatomia66 Fausto-Sterling A. Dualismos em duelo. CadPagu 2001;2:9-79. Doi: 10.1590/S0104-83332002000100002
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, ouvimos sete boxeadoras gaúchas que participam regularmente de eventos competitivos. Por meio de suas narrativas, podemos observar aspectos afetos à produção de feminilidades em um espaço social no qual os homens e as masculinidades são tomados como referentes.

Métodos

Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob o número 2007710, apresenta um recorte qualitativo e está fundamentada no aporte teórico-metodológico a História Oral99 Alberti V. História dentro da história. In: Pinsky CB, editor. Fontes Históricas. São Paulo: Editora Contexto; 2006, p. 12-35.,1010 Pathai D. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz; 2010., visando captar os sentidos que as atletas atribuem às suas vivências no boxe.

Participantes

Foram entrevistadas todas as atletas registradas na Federação Gaúcha de Pugilismo que participam de competições em nível estadual e nacional, além de dois treinadores com experiência na preparação de pugilistas. Embora não seja o foco desse artigo, a escolha por entrevistá-los se deu pela necessidade de compreender o processo tardio de inserção das atletas no boxe gaúcho.

Procedimentos

As entrevistas foram realizadas em 2015, envolvendo as etapas de elaboração do roteiro, gravação, transcrição, copidesque, conferência pela pessoa entrevistada, assinatura da carta de cessão dos direitos autorais e publicação do texto online. O roteiro abordou temas relacionados a sua trajetória no boxe e às alterações percebidas em seus corpos em decorrência da preparação para as competições. As perguntas foram formuladas de forma ampla e procuraram não induzir respostas sobre temas relacionados às questões de gênero e de sexualidade. Apesar disso, em todas as entrevistas esses temas emergiram, permitindo afirmar que o esporte, como qualquer instância social, é um espaço generificado e generificador1111 Goellner SV. Gênero e esporte na historiografia brasileira: Balanços e potencialidades. Rev Tempo 2013;19(34):45-52. Doi: 10.5533/TEM-1980-542X-2013173405
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As entrevistas foram cotejadas com outras fontes, tais como reportagens publicadas em jornais, atlas esportivos, documentos da Federação Gaúcha de Pugilismo e produções acadêmicas. O diálogo entre as diferentes fontes empíricas foi desenvolvido tendo como ferramenta metodológica a análise de conteúdo1212 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1988., cuja efetivação se deu a partir de três fases distintas: a pré-análise, na qual foi realizada a organização do material empírico, nesse caso, as entrevistas realizadas; a exploração desse material e o diálogo com as outras fontes de pesquisa, caracterizada pela codificação a partir de temas específicos; e, por último, o tratamento dos dados que foram categorizados e interpretados consoantes os objetivos da pesquisa.

Do entrecruzamento das fontes empíricas emergiram três temas complementares. O primeiro versa sobre a aparência dos corpos das boxeadoras e sua relação com aspectos referentes ao gênero e à sexualidade. O segundo aborda aspectos comparativos entre a prática do boxe com fins competitivos e do boxe vivenciado nas academias, e o último faz alusão às corporalidades desviantes e às estratégias utilizadas pelas boxeadoras para legitimar sua presença na modalidade.

Resultados e Discussão

A potencialização do corpo e o receio da sua masculinização

Nas narrativas das atletas, as principais mudanças atribuídas ao treinamento de boxe estão relacionadas ao desenvolvimento dos membros superiores, especialmente os braços e ombros, a definição do abdômen e a perda de gordura, incluindo a diminuição dos seios e dos glúteos. Quatro delas avaliam essas transformações como positivas e três mencionaram que, mesmo competindo pela modalidade, evitaram que o treinamento modificasse de modo significativo sua conformação corporal. Em que pese essa dissonância, um tema foi recorrente em todas as entrevistas: o receio de que o corpo muscularmente potencializado fosse associado ao que denominam de masculinização, ou seja, a atributos socialmente relacionados aos homens.

Fernanda Godinho, com três anos de atuação na modalidade, assim descreve as transformações corporais decorridas do treinamento:

No corpo, braço e um pouco barriga. Modifica, tu fica um pouco mais masculina. O abdômen fica mais definido, ele fica reto […] Trabalha diferente a musculatura do que tu ir para uma academia trabalhar perna. Trabalha braço, trabalha abdômen, alguma coisa... Tu perde muito a musculatura da bunda1313 Godinho F. Fernanda Godinho [Internet]. Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte; 2015 [acesso em: 12 fev 2019]. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/156426/001017557.pdf?sequence=1&isAllowed=y..

Segundo sua percepção, existe uma diferença entre o corpo construído através do treinamento esportivo e a corporalidade almejada por mulheres que se exercitam no universo cultural das academias. Essa mesma representação é apontada por Hansen e Vaz1414 Hansen R, Vaz AF. Treino, culto e embelezamento do corpo: Um estudo em academias de ginástica e musculação. Rev Bras de Ciênc do Esporte 2004;26(1):135-152., quando afirmam que a prática de boxe com fins competitivos tensiona a divisão sexual do trabalho muscular, segundo a qual as mulheres teriam mais interesse no desenvolvimento dos glúteos, abdominais e pernas, enquanto os homens priorizariam os membros superiores como peito, braços, costas.

Megg Tavares1515 Tavares M. Megg Tavares [Internet]. Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte; 2015 [acesso em: 07 dez 2018]. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/156413/001017558.pdf?sequence=1&isAllowed=y., que participa do boxe competitivo há dez anos, menciona que travou uma luta entre o corpo produzido por meio do boxe e sua percepção em termos estéticos. O treinamento intenso e as rigorosas dietas a levaram a perder gordura e, consequentemente, a diminuir o volume dos glúteos e dos seios, aspectos que a incomodavam, uma vez que essa nova conformação corporal se afastava daquilo que comumente é percebido como atributo de beleza e feminilidade.

[…] eu não deixava o boxe dominar meu corpo. Tipo assim, a tendência é tu ficar forte, é tu criar aspecto, não sei te dizer se masculino, mas tu cria braços, tu cria costas. Dependendo do exercício que tu fizer de abdominal tua barriga tende a ficar mais quadrada e isso é uma coisa que eu sempre cuidei, estou ficando forte demais eu parava de fazer certos exercícios, certas coisas15:11.

As narrativas dessas atletas evidenciam que sobre o corpo são inscritas marcas de feminilidade e masculinidade conforme a potencialização de determinados grupos musculares, ou seja, sobre aquilo que é produzido discursivamente a respeito da diferenciação sexual. Esta “não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças materiais que não seja, de forma alguma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas” 3:153.

Daniela Cattani16:8, boxeadora há seis anos, faz a seguinte referência: “Já ouvi minha mãe dizer: ‘Tu está ficando muito forte, tu está se masculinizando’. Essas coisas todas. As minhas amigas também, algumas gostam, acham bonito. Outras dizem: “Não precisava tanto”.

A associação da potencialização muscular com a masculinização só se justifica quando pensamos em uma representação singular de feminilidade e de masculinidade, segundo a qual o músculo inflado, a força e a potência pertencem a eles e não a elas. Essa mesma representação foi identificada em mulheres fisiculturistas cuja “aparência musculosa, além de romper com as representações historicamente produzidas e socialmente partilhadas do feminino, ainda produz novas representações, embaralhando e confundindo antigas e novas referências acerca dos corpos das mulheres”17:110.

Nesse sentido, é recorrente encontrarmos narrativas que informam que, apesar de lutadoras, as atletas são mulheres e femininas. Na reportagem “Esmalte e batom sobem no ringue”, publicada no jornal Zero Hora1818 Soares D. Gurias de Ouro. Jornal Zero Hora 2005;48-49., no dia 21 de fevereiro de 2005, há referência a Fabiana Justo, uma das entrevistadas desta pesquisa: “Por baixo do quase um metro de faixa que protege seus dedos de fraturas, Fabiana exibe unhas vermelhas compridas e impecáveis”18:12. Essa assertiva é reforçada pela fala do pai da atleta que na mesma matéria afirma: “O boxe deixou a Fabiana mais confiante, disciplinada e com um corpo mais modelado. Tudo isso sem ter perdido a vaidade”18:12.

Vale dizer que o corpo é construído também pela linguagem que o nomeia, classifica, define normalidades e anormalidades instituindo, por exemplo, o que é considerado como feminino e masculino. A narrativa de Carine Borba1919 Borba C. Carine Borba [Internet]. Porto Alegre: Centro de memória do esporte; 2015. [acesso em: 05 jan 2019]. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/156424/001017565.pdf?sequence=1&isAllowed=y., boxeadora com três anos na modalidade, é representativa dessa afirmação quando discorre sobre as marcas que por vezes aparecem no seu rosto em função de golpes recebidos:

Se tu encontrar um menino de olho roxo na rua, tu vai dizer: “Ah, ele brigou na rua. Bateu no assaltante. Brigou com o coleguinha”. E se tu ver uma menina, uma mulher, de olho roxo na rua, tu não vai pensar nisso, nem mesmo a própria mulher. É sempre a visão machista: “Ah, apanhou, foi agredida”19:3.

Ou seja, as marcas corporais são generificadas e produzem representações que associam comportamentos, atitudes e habilidades às mulheres e aos homens. O olho roxo, portanto, pode evocar diferentes interpretações. No entanto, para as atletas essas marcas fazem parte do cotidiano na modalidade e não causam surpresa ou vergonha. A produção discursiva que pode localizá-la no papel de vítima de violência é desprezada à medida que associam essas marcas com seu protagonismo em um esporte identificado como sendo de homens. Para além dessa tensão, a pesença das mulheres no boxe evoca certa desconfiança acerca da sua orientação sexual. Esse aspecto figurou na pesquisa realizada com atletas profissionais do Boxe Olímpico, cujas narrativas evidenciam uma relação muito próxima entre a escolha pela modalidade e questões afetas a sua sexualidade. “De acordo com as boxeadoras, muitas pessoas acreditam que elas sejam lésbicas por praticarem tal esporte”8:145.

Essas representações circulam em várias instâncias sociais de modo a provocar atitudes por parte das atletas visando minimizar o preconceito e a não aceitação de sua presença na modalidade. Nas entrevistas realizadas, foi possível identificar algumas estratégias que as atletas fazem uso para apagar suspeitas e ressaltar aquilo que discursivamente é representado como “ser mulher”. Mesmo não sendo interrogada acerca da manutenção da sua forma física, Fabiana Justo2020 Justo F. Fabiana Justo [Internet]. Porto Alegre: Centro de memória do esporte; 2015. [acesso em: 08 fev 2019]. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/156423/001017556.pdf?sequence=1&isAllowed=y. ao descrever sua trajetória no boxe, faz questão de enfatizar que esse esporte não a tornou masculinizada:

Nunca percebi nada que fosse contra e não fiquei masculinizada, talvez possa ter algum mito com relação à mulher que luta se masculinizar, alguma coisa assim. E pelo contrário, a maioria das gurias que eu conheci que praticavam o esporte, a maioria sempre muito feminina. Pode haver um mito de que pode a pessoa ficar um pouco masculinizada, que vai ficar forte, não mesmo. Se a pessoa for feminina ela vai continuar sendo feminina, ela vai ter a definição corporal, vai ficar com o corpo mais definido20:8.

Ainda que no roteiro da entrevista não fosse mencionada a associação do corpo das boxeadoras com atributos considerados masculinos, essa relação subliminar pautou todas as entrevistas demandando a necessidade de afirmarem-se mulheres que, apesar de lutarem, são femininas. Demandou também algumas negociações com o processo de treinamento. Sara da Silva2121 Silva SS. Sara Santos da Silva [Internet]. Porto Alegre: Centro de memória do esporte; 2015. [acesso em: 11 jan 2019]. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/156425/001017567.pdf?sequence=1&isAllowed=y., com quatro anos de vivência no boxe, assim descreve a sua reação em função das mudanças de seu corpo:

Só que para competição, aí tu começa a puxar ferro para ter força, às vezes eu me sentia muito musculosa. Sabe? Aí eu dava uma maneirada. Eu “engambelava” meu técnico, eu dizia que estava puxando ferro, mas eu não estava. Mas eu gostei bastante, tem uma certa forma física que eu mantenho até hoje. É algo bom, porque eu quando comecei o boxe eu estava bem acima do peso [...]21:11.

As boxeadoras mencionam que, por vezes, vivem um dilema entre a construção de um corpo atlético, que em alguma medida goza de legitimidade social, e o desenvolvimento muscular, algo que para elas não é socialmente valorizado. Tal percepção aponta que, apesar da presença das mulheres nas mais diferentes modalidades esportivas elas “continuam sujeitas à vigilância por comportamentos e tipos corporais que podem ser identificados como a subversão de normas sobre o que é realmente ‘uma mulher’”22:936. Ou seja, atletas vinculadas a modalidades de combate tensionam alguns pressupostos de feminilidade e levantam desconfianças sobre seus corpos, conforme identificado em estudo sobre lutadoras de Boxe Olímpico, Luta Olímpica e MMA:

As posturas dessas mulheres dentro do ringue, do tapete e do octógono, são marcadas pela virilidade, força, garra e coragem. A vaidade e a beleza são atributos destacados pelas atletas como constituintes da mulher enquanto particularidade, mas também, como algo a ser investido externamente fora dos espaços de luta ou, quando possível, também dentro destes. A intenção é demonstrar que estes investimentos em nada interferem sobre seu desempenho esportivo/profissional, ao mesmo tempo em que marcam a sua presença no território ainda hegemonicamente masculino das lutas7:116.

O corpo é socialmente significado por discursos e práticas que operam dentro da lógica dicotômica de gênero, segundo a qual, a adjetivação de masculino e feminino constela hábitos, atitudes e formas de ser pouco maleáveis, permitindo poucas interseções entre si. Geralmente polarizados, esses termos, além de opostos são vistos como divergentes, pois para cada polo são conferidos atributos e qualidades que exprimem mais diferenças do que similitudes e complementaridade. Tal representação acaba por posicionar homens e mulheres em determinados espaços sociais, inclusive os esportivos, e emanam relações de poder, entendido a partir de sua noção produtiva cuja normatização regula a vida por meio de tecnologias médicas, educacionais e administrativas que atuam sobre o corpo, a saúde, as condições de vida e de existência dos indivíduos2323 Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Editora Graal; 1992.. Neste caso, o poder de determinar que as mulheres boxeadoras atentem para seus corpos de modo que não transgridam aquilo que convencionalmente marca uma dada feminilidade, para a qual o excessivo volume muscular é associado à anormalidade de seu sexo e de seu gênero.

Dimensões do boxe: treinamento esportivo e cultura fitness

A presença das lutas no contexto das academias tem promovido tanto a ampliação de praticantes como a ressignificação dessas práticas corporais. Segundo Mariante Neto et al.2424 Mariante Neto FP, Myskiw M, Stigger MP. Entre a academia de boxe e o boxe da academia: Um estudo etnográfico. Movimento 2012;18(01):103-123. Doi: 10.22456/1982-8918.23242
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, o boxe praticado na academia se diferencia da academia de boxe, entre outras questões, por estar relacionado a uma prática de lazer por meio da qual homens e mulheres buscam melhorias na forma física, na saúde e na estética. Ou seja, distinto dos pressupostos que norteiam a dimensão da competição, é a busca por bem-estar, qualidade de vida e vida saudável que aciona a adesão de grande parte das pessoas que vivenciam o boxe da academia.

Levando em conta esse contexto, analisamos como as boxeadoras percebem essa diferenciação e como relacionam a sua vivência na academia de boxe com o boxe da academia. Tal relação se justifica não somente porque algumas atletas fizeram incursões em academias na tentativa de serem instrutoras, mas também pela comparação que elas mesmas mencionam quando descrevem sua vivência no boxe de competição. Cabe ressaltar que é recorrente nas entrevistas o contraponto entre a corporalidade produzida no interior da cultura fitness e os atributos necessários para a construção de corpos aptos para competições de boxe, demonstrando a centralidade do corpo na produção de discursos de gênero.

Fernanda Godinho rememora a tentativa que fez de atuar como professora em uma academia:

Eu ia dar aula em academia e era só para mulher. A professora que tem lá disse assim: “Eu não quero que elas lutem, eu não quero... Eu só quero dar o treino básico e não quero mostrar nada além de bater saco”. Eu disse: “Mas tu tem que mostrar como é que se dá um soco, como é que a pessoa vai andar, porque é o teu nome que está ali”. Ela disse: “Não, mas eu não quero isso, eu quero só que elas se exercitem”. Mas eu acho que é importante tu saber te movimentar, como é que tu vai bater, porque não é força, é colocação no soco. Tudo isso eu achei que deveria ser colocado. Daí ela disse: “Não, então não precisa”13:17.

Em grande medida, o boxe na academia é procurado pelas mulheres para transformar seus corpos visando a perda de peso sem que haja uma demasiada potencialização muscular. Daniela Cattani16:3 começou a praticar boxe em uma academia de ginástica e de imediato percebeu que “não tinha o boxe como esporte, via o boxe como uma ginástica. Tinha o essencial: um ou dois sacos de boxe, uns colchonetes, nem me lembro se tinha corda para pular”. Para aprimorar os fundamentos da modalidade buscou outro espaço e, depois de ter vivenciado o boxe competitivo, trabalhou como instrutora em uma academia, onde percebeu que “As mulheres não queriam ficar fortes. [...] elas queriam mais para emagrecer, para aprender uma técnica, umas até pensaram que eu ia dar tipo um aeroboxe. Eu não sei dar aeroboxe”16:11.

Ainda que o trabalho com o boxe sob a égide da cultura fitness apresente diferenças em relação ao treinamento da academia de boxe, importa ressaltar que existem semelhanças: a rotina de exercícios, a superação de limites e a busca pelo rendimento. Nas academias, o objetivo não é a competição, mas o “aperfeiçoamento da forma física”14:138 ligado, portanto, à construção escultural do corpo.

Silva et al.2525 Silva BBPO, Cavichiolli FR, Capraro AM. Adesão e permanência de mulheres no boxe em Curitiba-PR. Motri 2015;27(45):124-137. Doi: 10.5007/2175-8042.2015v27n45p124
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, ao analisarem mulheres praticantes de boxe de quatro academias em Curitiba, apontam que a motivação para a permanência na modalidade estaria associada a fatores estéticos e de saúde, à diminuição do estresse, à perda de peso, ao dinamismo da modalidade e à rapidez dos resultados. “Isto confere uma ressignificação do sentido social do boxe, a qual mostra que o boxe praticado por estas mulheres torna-se uma atividade física e não enaltece as repercussões culturais do boxe”25:130, sobretudo aquele vivenciado como profissão. Tal percepção também é evidenciada na narrativa de sete universitárias, entre 20 e 36 anos, que referem o seu interesse em praticar lutas, “mais do que competir e combater, está mais ligado à questão da atividade física em si, de estar em forma e bem com o próprio corpo”26:71.

Essa diferenciação é percebida por Carina Borba, que atua em uma academia como treinadora de boxe.

Aqui, eu sempre pergunto: “Quer emagrecer? Quer definir o teu corpo?” Eu não sei nas outras academias, mas eu trato... Eu até brinco: “No tatame não tem gênero”. Eu vou trabalhar contigo conforme o que tu quer, se tu quer só te graduar é um treino, se tu quer só perder peso é outro treino19:16.

Considerando que os sujeitos são constantemente instigados a adequarem seus corpos “aos critérios estéticos, higiênicos, morais dos grupos a que pertencem”4:15, o boxe da academia parece não romper com os imperativos de gênero. Nesse espaço, é trabalhado como uma forma de modelar o corpo, deixando de fora a força e a competição, atributos dissonantes de uma feminilidade desejada. De modo geral, as atletas que treinam visando a competição demonstram adaptar seu corpo em vista de crescer na modalidade, ainda que possam desenvolver arquiteturas corporais que tensionam o binarismo de gênero. Enquanto as praticantes de boxe na academia colocam a atividade física à disposição de seu corpo, visando um ganho estético, as lutadoras participantes deste estudo tendem a colocar seu corpo à disposição da modalidade esportiva, mesmo que socialmente seja considerada como violenta e imprópria para seu sexo. Em função disso, relativizam seus treinos e negociam com representações estéticas que circulam fora do campo de lutas.

Carine Borba19:18, ao comparar o boxe com o judô e o karatê, afirma: “Uma coisa é tu cair no chão, outra é tu levar um soco no meio do teu nariz. É muito mais agressivo”. Tomando como referência as características do pugilismo, que prima por golpear a adversária, inclusive na face, este elemento pesa no discurso das atletas para definir o conceito de agressividade como algo aplicado mais ao boxe do que a outras lutas. Para Fabiana Justo20:13, as demais modalidades podem ter os mesmos riscos de lesão, no entanto, “tomar um soco na cara possa parecer mais agressivo”. Mariana Madalosso segue a mesma linha: “É um pouco de medo da mulher ir lá e meter a mão na cara de alguém e tomar uma na cara também, porque essa é parte mais difícil, de repente um pouco de receio, não sei”27:45.

Para além de pensar se o boxe é uma prática mais agressiva em relação a outras modalidades, importa perceber que os discursos relacionados à violência ou à integridade física de atletas são direcionados às mulheres. Fabiana Justo enfatiza que em relação aos homens isso não acontece.

Para mulheres, pensando na questão de mulheres, porque para homem na sociedade pode tudo, questão de luta essas coisas nunca vi nenhum tipo de discriminação. Talvez pensando com relação à mulher, plasticamente, seja mais bonito ver uma luta de judô do que ver uma mulher, que tem um estereótipo de ser feminina, de ser delicada, que vai se machucar levando um soco no rosto20:13.

A adesão de mulheres não competidoras ao boxe da academia pode estar relacionada à identificação de que, como esporte, o boxe é revestido de agressividade. Nesse contexto, o boxe se adapta a lógica da cultura fitness para conseguir novos adeptos, interessados no bem-estar e em ganhos estéticos, distantes da agressividade de competições e da construção de arquiteturas corporais potencializadas. Por outro lado, para as boxeadoras, a questão da agressividade e o foco em ganhos estéticos, fica em segundo plano frente os investimentos necessários para o sucesso na modalidade esportiva em nível competitivo.

A “mulher homem” em contraposição à feminilidade normativa

Ao realizarmos as entrevistas com as atletas e treinadores evitamos perguntas que trouxessem em seu enunciado questões afetas ao gênero e à sexualidade. Tal intenção tinha o propósito de verificar se esses temas emergiriam de modo espontâneo e que relações eram estabelecidas com as alterações corporais percebidas em função do treinamento visando a participação em competições. Nesse sentido, despontou o termo “mulher homem”, fazendo referência a atletas de boxe que não imprimiam em seus corpos marcas coerentes à representações de feminilidade, sobretudo aquelas que valorizam a heterossexualidade como norma, a maternidade como projeto e a graciosidade e delicadeza como virtudes33 Butler J. "Corpos que pesam: Sobre os limites discursivos do 'sexo'". In: Louro GL, editora. O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica; 1999, p. 151-172.,44 Louro GL, organizadora. O corpo educado pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica; 1999..

Por afastar-se dessas representações, a imagem da “mulher homem” além de ser desvalorizada é identificada como “outra”, sendo inclusive necessária para a reafirmação e manutenção do que é considerado como normal. Afinal, “as instituições e os indivíduos, precisam desse ‘outro’. Precisam da identidade ‘subjugada’ para se afirmar e para se definir, pois sua afirmação se dá na medida em que a contrariam e a rejeitam” 4:31. A “mulher homem” é o “outro” e por esse motivo as boxeadoras buscam estratégias para demarcar em seus corpos atributos relacionados à feminilidade singular, mesmo que a interpretem de modo plural.

Fernanda Godinho ao ser questionada sobre sua contribuição para o boxe gaúcho, dado que é uma das primeiras a participar de competições nacionais, afirma que muitas mulheres se inspiraram em sua trajetória para ingressar nesse esporte, uma vez que , associa ao esporte atributos considerados femininos. Vejamos:

Porque o primeiro ano que eu fui competir tinha muita mulher assim: “Você é homem”. Entendeu? Mulher mais homem. Depois não, depois teve outras gurias diferentes, de outros estados. Eu acho que, de repente, quem foi em um ano, disse: “Vai! Tem alguém lá do Rio Grande do Sul que está indo, porque que tu não pode ir?”. Abriu mais brecha para outras gurias pensassem: “Se ela faz... Vamos fazer também”13:19.

Essa associação não foi um empecilho para sua continuidade no boxe, visto que nem percebia a suposta masculinização atribuída ao seu corpo, pois o que desejava era ser uma boa lutadora. “Eu estava afim do boxe mesmo, estava a fim de lutar, de chegar nos lugares e as pessoas dizerem: ‘Que legal que tu faz boxe’”13:19. Em sua entrevista, atribui que a influência exercida sobre outras mulheres se deve ao fato de ter evidenciado que, apesar do boxe, possuía um corpo feminino, um corpo que não rompia com as normas de gênero.

Sara da Silva21:12, refere que teve receio de se tornar uma “mulher homem” quando iniciou no boxe.

Eu fiquei com medo, porque eu achei que eu teria que ficar muito masculina, eu achei que era assim, que a maioria das mulheres que treinam boxe é porque são lésbicas... Essa é a consciência que a gente tem. Quem treina um esporte de homem é vista dessa forma. Tanto que várias mulheres deram em cima de mim já, achando que... Por que as próprias mulheres têm essa visão, ainda mais se tu quer fazer profissionalmente. Só que aí no primeiro campeonato que eu fui, me deparei com várias mulheres e várias mulheres bonitas, várias mulheres maquiadas, arrumadas.

A identificação de atributos femininos nas boxeadoras serviu como uma espécie de salvo-conduto, um passaporte para algumas mulheres dispostas a adentrar na modalidade. Tal mecanismo tem operado como um ideal regulatório “que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir - demarcar, fazer, circular, diferenciar - os corpos que ela controla”3:153-154. Reafirmar uma dada feminilidade como aquela que é socialmente aceita significa, em última instância, manter a estabilidade das identidades de gênero normativas, a partir da qual a “mulher homem” é desviante.

O treinador José Valter Corrêa de Lima em sua entrevista afirma que o corpo ideal para uma boxeadora corresponde ao de mulheres altas, magras e com braços longos, pois isso facilita à atleta atingir sua adversária. Em suas palavras:

A gente tem aquela imagem que tem que ser porrada, tem que ser bem “mulher homem”, pelo contrário, quanto mais magra e mais alta melhor. Então elas acabam ficando com o corpo bem bonito, bem desenhado, elas não ficam fortes. A visão é totalmente o contrário do que o pessoal da rua tem aí...28:6.

Ao desconstruir a imagem da boxeadora como “mulher homem”, José adverte que lutar boxe não pressupõe a produção de um corpo forte. Ao descrever seu treinamento, Fernanda Godinho13:6 afirma: “O boxe é muita técnica, mais a técnica, ainda mais o olímpico, porque é um jogo de inteligência. Não é: ‘Eu vou dar porrada, vou quebrar’”.

A materialização dos corpos ocorre no interior de processos históricos que desenvolvem códigos e padrões para atribuir diferentes significados à aparência física. Os corpos se relacionam, portanto, com relações de poder que valorizam alguns sujeitos em detrimento de outros, através de critérios como “a beleza, a aparência, a força física, a fragilidade, a qualidade de ser ‘sexualmente atraente’”29:40. Instâncias sociais, como o esporte e a mídia, produzem discursos que acabam por visibilizar certas corporalidades e desvalorizar outras, produzindo representações de beleza que são culturalmente reconhecidas e recomendadas. Essas representações estabelecem valores centrados na dicotomia entre os gêneros e colocam em circulação indicações sobre “o que ‘podem’ e devem ser e fazer os corpos masculinos e femininos. Ou, pelo menos, os corpos invejáveis, os corpos femininos e masculinos dignos de serem olhados”29:53.

Mariana Madalosso descreve uma situação na qual enfrentou uma “mulher homem”, no caso, uma adversária em uma edição do Campeonato Brasileiro de Boxe Feminino.

E quando eu fui para lá eu não estava preparada, não achei que eu fosse encontrar uma supermulher para lutar comigo. Eu achei que ia encontrar uma guria que nem eu e ela já era super treinada, ela vivia daquilo há muitos anos e ela parecia um homem, eu confundi ela com um homem. Quando eu entrei, quando me falaram quem ela era, eu fiquei assim meio apavorada27:85.

Para reforçar a construção de uma imagem feminina, é utilizada como contraponto a figura da “mulher homem”, cuja existência é considerada abjeta. Nesse sentido, ganha destaque a feminilidade normatizada, a qual dá coerência e visibilidade aos corpos que não rompem com padrões de gênero. A percepção das atletas e do treinador não causa estranhamento, visto que esta é a representação que circula em diferentes espaços sociais e é considerada legítima, inclusive nos espaços esportivos: “Uma representação positiva de feminilidade segundo a qual a mulher, mesmo sendo uma atleta não deixa de cuidar de sua beleza, vaidade e feminilidade: atributos considerados como naturais para seu sexo”30:222.

A preocupação em legitimar a presença de mulheres no boxe parece atrelada à criação de uma categoria discursiva desvalorizada: a “mulher homem”. Nesse sentido, sujeitos que fracassam em imprimir em seus corpos marcas coerentes do que se espera para seu gênero, contribuem para materializar a norma, nesse caso, em atletas que constroem para si representações normativas de feminilidade. A figura da “mulher homem” funciona como o “outro”, uma delimitação de fronteiras que, quando ultrapassadas, podem colocar o seu sexo e o seu gênero sob suspeita.

Conclusões

O corpo das pugilistas demonstrou tensionar representações normativas de gênero, trazendo à tona discursos que colocam em xeque a feminilidade, a sexualidade e mesmo a autenticidade do sexo dessas atletas. Diante dessas desconfianças, as boxeadoras afirmaram controlar os treinamentos, em especial a potencialização muscular, preocupadas em adequar sua corporalidade aos padrões estéticos valorizados socialmente. Em diversas situações, procuraram se afirmar no interior de uma identidade de gênero inteligível, aproximando-se de representações normativas de feminilidade e afastando o perigo da masculinização de seus corpos, demonstrando que o gênero, longe de ser um dado biológico, é algo que precisa constantemente ser reiterado.

O reconhecimento de um “nós”, enquanto boxeadoras, pressupõe a existência de alteridade, ou seja, “outros” que se estabelecem em uma relação de analogia, contraste ou mesmo exclusão3131 Pesavento S. História Cultural: Experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2003.. A primeira relação de alteridade analisada se deu com praticantes de boxe no universo das academias de ginástica e musculação. Enquanto as boxeadoras estudadas treinavam visando a construção de um corpo apto para competições, ainda que negociando com padrões estéticos, o boxe praticado em academias era pensado como uma atividade física voltada aos benefícios estéticos e de saúde. A segunda relação de alteridade está relacionada à categoria discursiva “mulher homem”, forjada em contraponto à identidade feminina que procuravam afirmar. A construção de uma identidade subjugada mostrou-se necessária para manutenção da norma: as atletas legitimam sua presença no boxe através da afirmação de sua feminilidade, ao mesmo tempo em que rejeitam e excluem de outras identidades.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2019
  • Revisado
    20 Dez 2019
  • Aceito
    22 Fev 2020
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