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A COMPLEXIDADE DO BRINCAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES SOBRE AS BRINCADEIRAS LÚDICO-AGRESSIVAS

THE COMPLEXITY OF PLAYING IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION: REFLECTIONS ON THE LUDIC-AGRESSIVE PLAY

RESUMO

Analisa a complexidade das brincadeiras na Educação Infantil, sobretudo, das brincadeiras lúdico-agressivas. Adota a etnografia, desenvolvida com 40 crianças e uma professora de EF de um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) de Vitória/ES, como método. Os dados foram produzidos por meio da observação participante em aulas de EF e do recreio, em que as narrativas, enunciações e episódios brincantes foram sistematizados em diário de campo e em vídeo. Constata-se que as (re)invenções cotidianas das crianças na produção de brincadeiras lúdico-agressivas, de maneira velada e astuciosa, conferem sentidos às suas práticas brincantes. Busca desconstruir representações pejorativas sobre esse tipo de manifestação lúdica, sinalizando para a sua importância no processo de socialização das crianças e na reorientação das práticas pedagógicas na Educação Infantil.

Palavras-chave:
Criança; Educação Infantil; Educação Física; Brincadeiras; Complexidade

ABSTRACT

It analyzes the complexity of the child's play in the context of Early Childhood Education, above all, ludic-aggressive play. It adopts the ethnographic research, developed with 40 children, and a Physical Education teacher from a Municipal Center for Early Childhood Education (CMEI) in Vitória/ES, with participant observation of Physical Education classes and playground, in which the narratives, enunciations and playful episodes were systematized in field diary and through videos. The daily (re)inventions of children in the production of ludic-aggressive play, which, in a veiled and cunning way, give meanings to their playful practices. It seeks to deconstruct pejorative representations about this type of playful manifestation, signaling to its importance in the process of socialization of children and the reorientation of pedagogical practices in the Early Childhood Education context.

Keywords:
Child; Early Childhood Education; Physical Education; Play; Complexity

Introdução

A brincadeira constitui-se na condição lúdica que propicia à criança experiências em diferentes contextos socioculturais, exigindo um olhar sensível à sua complexidade. A cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que permite tornar o jogo possível. Valorizar o brincar pressupõe reconhecer a importância da fantasia, das interações entre os pares e da inventividade infantil para a construção da cultura lúdica que elas estabelecem entre si, com os adultos e com sua realidade11 Brougère G. Brinquedo e cultura. 4. ed. São Paulo: Cortez; 2001..

As políticas recentes para a Educação Infantil (EI) situam a brincadeira e as interações como eixos estruturantes do trabalho pedagógico, ressaltando a importância de contemplar as singularidades das crianças e suas diferentes linguagens, como forma de expressividade e de comunicação em seus momentos brincantes22 Brasil. Secretaria de educação básica. Revisão das diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC; 2013.,33 Brasil. Secretaria de educação básica. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC; 2017..

Nessa perspectiva, a Educação Física (EF) na EI tem o papel de potencializar a imaginação, as experiências motoras e as interações entre as crianças com os conteúdos da cultura corporal de movimento, dentre eles, os jogos e as brincadeiras44 Mello AS, Zandomínegue BAC, Barbosa RFM, Martins RLDR, Santos W. EI e a base nacional comum curricular: Interfaces com a EF. Motri 2016;28(48):130-149. Doi:10.5007/2175-8042.2016v28n48p130.
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. Proporcionar centralidade à brincadeira, sobretudo nas práticas pedagógicas da EF, significa valorizar as dimensões lúdicas e imaginativas das crianças, contribuindo para que elas se tornem produtoras de cultura55 Barbosa RFM, Pereira B, Mello A. Revisão sistemática sobre brincadeiras de luta na Educação Pré-escolar: Evidências, potencialidades e lacunas. Rev Egitania Sciencia 2018;12(1):111-129.,66 Barbosa RFM, Martins RLR, Mello AS. Brincadeiras lúdico-agressivas: Tensões e possibilidades no cotidiano na educação infantil. Movimento 2017;23(1):159-170. Doi:10.22456/1982-8918.65259.
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As brincadeiras lúdico-agressivas abrangem a brincadeira de luta e se caracterizam por alguma disputa ou confronto, de natureza simbólica e corporal, evidenciando a prevalência de elementos lúdicos juntamente com a busca de excitação, de poder, de combate, de nonsense e de transformação77 Barbosa RFM, Pereira B, Mello A. A função pedagógica do brincar na educação infantil: Um olhar para as brincadeiras lúdico-agressivas. RevE-Psi 2018;8(1):4-22..

Nesse tipo de brincadeira, as crianças incorporam aspectos de sua cultura nas suas relações lúdicas dentro dos limites estabelecidos entre os pares, cuja complexidade é notada em suas maneiras de fazer88 Certeau M. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 1994. e vivenciar o cotidiano, caracterizadas por traços lúdicos, aliados à comportamentos turbulentos e agonísticos77 Barbosa RFM, Pereira B, Mello A. A função pedagógica do brincar na educação infantil: Um olhar para as brincadeiras lúdico-agressivas. RevE-Psi 2018;8(1):4-22.. A complexidade da brincadeira não se reduz somente à dimensão lúdico-agressiva, manifesta-se também de outras formas. No entanto, o foco deste texto é analisar os aspectos complexos das brincadeiras lúdico-agressivas realizadas pelas crianças na EI.

Para compreensão dessa manifestação lúdica na EI, é necessário reconhecer e valorizar as experiências das crianças, as suas produções culturais e a sua alteridade em relação ao adulto33 Brasil. Secretaria de educação básica. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC; 2017.. É preciso considerar que as expectativas de adultos e de crianças nas instituições de EI são diferenciadas: enquanto o adulto impõe um permanente controle sobre as brincadeiras que consideram inadequadas, as crianças agem astuciosamente nas brechas encontradas para subverter essa disciplina. Esse processo de ordem, vigilância, desordem e astúcia remete aos conceitos de estratégia e tática88 Certeau M. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 1994.. Estratégias são operações para instituir o lugar de poder e de autoridade. Já as táticas manipulam e alteram astuciosamente a disciplina imposta, é a arte do mais fraco.

Pretendemos, nesse artigo, superar concepções cristalizadas sobre as brincadeiras lúdico-agressivas, que as enxergam apenas como comportamentos que devem ser coibidos na escola. Ao invés de mostrar a criança como vítima ou reprodutora da violência, defendemos que esse tipo de brincadeira potencializa as suas produções culturais, tornando-as autoras de suas próprias práticas brincantes. Desconstruir representações pejorativas sobre as brincadeiras lúdico-agressivas é um desafio necessário, que pode contribuir para compreensão e valorização dessa manifestação da cultura lúdica para os processos de socialização das crianças.

É nessa perspectiva de possibilidades e de interações que a noção de complexidade se constrói. As relações presentes no contexto organizacional e as interações entre as partes e o todo, no processo de construção do conhecimento, inspirou Morin9:20-21 a desenvolver a Teoria da Complexidade. Para ele, “[...] à primeira vista, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido em conjunto) de constituintes heterogêneos inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do uno no múltiplo”, não sendo possível reduzir o todo as partes nem as partes ao todo. Há que se conceber, conjuntamente, o todo e as partes, de modo uno e diverso, complementar e antagônico.

Baseados nessa teoria, questionamos: como a noção de complexidade pode sinalizar caminhos para pensar a criança e a brincadeira na EI? Busca-se, portanto, compreender as práticas brincantes no contexto da EI, considerando, sobretudo, a complexidade que envolve as brincadeiras lúdico-agressivas e as suas diferentes maneiras de manifestação.

Método

Participantes

Participaram da pesquisa etnográfica 40 crianças, na faixa etária entre 4 e 6 anos, e a professora de EF do CMEI, que está localizado em um bairro de periferia de Vitória/ES. Escolhemos crianças nessa faixa etária em decorrência do envolvimento delas nos episódios de interação1010 Pedrosa MI, Carvalho A. Análise qualitativa de episódios de interação: Uma reflexão sobre procedimentos e formas de uso. Psicol Reflex Crit 2005;18(3):431-442. Doi:10.1590/S0102-79722005000300018.
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e por apresentarem uma linguagem verbal articulada. A professora foi selecionada por trabalhar com as crianças pesquisadas e por participar, direta ou indiretamente, dos episódios de interação que ocorreram entre as crianças.

Procedimentos

Participamos das aulas de EF e do recreio, de março a dezembro de 2016, de quatro a cinco vezes por semana, totalizando 192 inserções no campo. Escolhemos esses espaços porque neles as crianças vivenciaram diferentes tipos de brincadeiras, dentre elas, as brincadeiras lúdico-agressivas. Embora esses espaços possuam diferentes configurações pedagógicas, em que a presença/ausência de adultos influenciou diretamente nas ações lúdicas das crianças, optamos por eles por apresentarem a complexidade do real. Nesses espaços, ocorreram produções de sentidos, de conflitos e de (dis)simulações para reinventar o brincar no cotidiano88 Certeau M. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 1994.,1111 Sarmento MJ. Sociologia da Infância: correntes e confluências. In: Sarmento MJ, Gouvêa MCS, editores. Estudos da Infância: Educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes; 2009, p. 17-39..

Na produção dos dados, utilizamos como fontes as narrativas e as enunciações, isto é, as falas em ato captadas durante as brincadeiras88 Certeau M. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 1994., que foram sistematizadas em diário de campo e em vídeos. Esses dados foram extraídos dos episódios de interação, vivenciados pelas crianças nas aulas de EF e no recreio1010 Pedrosa MI, Carvalho A. Análise qualitativa de episódios de interação: Uma reflexão sobre procedimentos e formas de uso. Psicol Reflex Crit 2005;18(3):431-442. Doi:10.1590/S0102-79722005000300018.
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. Nos diálogos estabelecidos com a professora, buscamos subsídios para ampliar a interpretação sobre as brincadeiras lúdico-agressivas, registrando suas críticas nas complexas redes de conhecimentos e de significações que marcam o cotidiano escolar1212 Alves N. Educação e supervisão: O trabalho coletivo na escola. 11. ed. São Paulo: Ed. Cortez; 2006..

Já as gravações em vídeo contribuíram para envolver as crianças como parceiros da pesquisa1313 Corsaro WA. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed; 2011.. Para captar as brincadeiras lúdico-agressivas, realizamos filmagens das crianças brincando e, posteriormente, elas foram convidadas para interpretar essas imagens com o pesquisador. No processo de apresentação das filmagens, gravamos as vozes das crianças, para apreendermos as suas representações sobre as brincadeiras registradas. Esse procedimento permitiu comparar, confirmar e (re)construir a observação da pesquisadora, com base no feedback das crianças envolvidas nos episódios de interação, evidenciando suas vozes, ressignificações e apropriações brincantes.

Esses procedimentos possibilitaram direcionar o nosso olhar para três categorias de análise na complexidade das brincadeiras lúdico-agressivas: relações entre as crianças, a lógica das práticas e o contexto brincante.

Resultados e Discussão

Relações entre as crianças

As aulas de EF foram vivenciadas por meio de jogos e brincadeiras, articuladas ao Projeto Pedagógico Institucional, que tinha como eixo o Movimento e o Meio Ambiente, cujo objetivo central foi explorar o corpo, o movimento, o ambiente e suas relações com a natureza.

As aulas contemplaram diferentes atividades lúdicas, com ou sem materiais, ou focalizaram momentos livres, em que as crianças brincavam nos diferentes espaços da escola. Por meio do brincar, a relação adulto-criança e criança-criança se firmava, ora valorizando saberes relativos ao corpo e ao movimento, ora valorizando as linguagens corporais das crianças, produzidas em suas brincadeiras.

No processo de análise, notamos que eram nas fugas das aulas para um lugar mais distante do olhar da professora e protegidos pela sombra dos brinquedos do pátio que as brincadeiras lúdico-agressivas se desenvolviam, como mostra o seguinte episódio ocorrido na aula de EF:

Um menino e uma menina brincavam de puxar a orelha um do outro, até ver quem sentiria ou admitiria dor. Mas ninguém cedeu. O menino dizia: “a minha orelha quase quebrou”. Depois, a brincadeira evoluiu para medir forças, segurando nos ombros um do outro, empurrando, depois brincaram de dar bundadas e de lutinha, com trocas de golpes, ora no ar, ora com contato corporal. Eles riam, faziam movimentos e sons de socos e chutes, em seguida começaram a correr. O menino sabia que não podia machucar a colega, por isso, durante a brincadeira, perguntava se tinha doído. Ela fazia que nem ligava e continuaram a brincar. O adulto presente no pátio não percebeu o ocorrido, pois estava longe das crianças (DC, 26-05-2015)

O episódio descrito apresenta uma típica brincadeira lúdico-agressiva relacionada à luta, ao hedonismo, à tensão provocada durante a disputa e ao contato corporal intermitente. É possível refletir sobre até onde vão as fronteiras brincantes delimitadas pelas próprias crianças em suas relações e como tratar esse tipo de brincadeira nas instituições de EI, já que envolve aspectos antagônicos, com características incompreensíveis para os adultos.

Esse episódio de interação chamou atenção para a brincadeira de luta e de briga propriamente dita. Percebemos que não houve desentendimento e nem comportamentos de agressão, que afetassem a relação entre os pares em seus momentos brincantes, somente um diálogo corporal absorvente e lúdico entre as crianças, ocorrendo no ambiente vigiado da escola. Porém, elas ficaram distantes do olhar adulto, agindo taticamente88 Certeau M. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 1994., para que a brincadeira pudesse continuar. As crianças encontraram brechas nos mecanismos de poder, agindo astuciosamente, subvertendo as regras impostas e construindo criações anônimas em seus cotidianos.

O fato de as crianças se envolverem com as brincadeiras lúdico-agressivas pode produzir olhares enviesados sobre esta manifestação brincante. Por vezes, o adulto estereotipa as atitudes das crianças. Por isso, levantamos algumas hipóteses em relação às brincadeiras lúdico-agressivas: se algum comportamento não estiver dentro do contexto lúdico, se não for acordado pelos sujeitos, se o diálogo corporal não estiver em sintonia, se as ações não estiverem subjetivamente e simbolicamente articuladas ao jogo, chega-se a conclusão que não haveria a brincadeira lúdico-agressiva. Ela perderia as suas características específicas, pois surgiria o conflito propriamente dito e as crianças se sentiriam lesadas, logo, solicitariam a intervenção de um adulto ou parariam de brincar. Segundo Brougère11 Brougère G. Brinquedo e cultura. 4. ed. São Paulo: Cortez; 2001., para que o jogo e a brincadeira sejam interpretados como tal, é necessário que ele seja apropriado pelos atores sociais, se insira num sistema de significações e em uma cultura que lhe dê sentido.

Entendemos que as relações entre as crianças são complexas pelo fato de não serem harmônicas: a alegria e a diversão convivem, simultaneamente, com tensões e conflitos. Para Morin9:126, a relação com a complexidade é recursiva, “[...] interdependente e retroativa que alimenta, de maneira, ao mesmo tempo antagônica e complementar, a racionalidade, a afetividade, o imaginário, a mitologia, a neurose, a loucura e a criatividade humana”.

Já o episódio narrado a seguir ocorreu no recreio, quando perguntamos para as crianças o que elas achavam das brincadeiras de lutinha. Dois meninos foram incisivos em fazer com que entendêssemos as suas concepções sobre o tema:

Havia um grupo de crianças sentadas próximo à professora e aproveitei para perguntar sobre as suas brincadeiras. Em uma dessas conversas, surgiu um assunto sobre brincadeiras de lutinha. Caio iniciou o diálogo: “a gente brinca de luta”. João retrucou: “é mais ou menos luta!” Eu falei: “você pode me explicar melhor?” Caio respondeu: “a gente luta, mas não pode machucar. A gente só finge que tá machucando”. João falou: “Viu, não falei que era mais ou menos luta”. Daí, perguntei: “como começou?” Caio respondeu: “eu não sei, a gente estava brincando ali, era luta, mas não era de verdade, porque se for de verdade vai machucar”. Questionei: “E se machucar?” Ele respondeu: “A gente chama a tia para resolver. Aí, pede desculpas. Mas a tia nunca gosta que a gente brinque assim e bota de castigo...”. Então, indaguei: “É por isso que todos vocês estão sentados aqui?” João falou: “É, ela fala que é muito violento”. Percebi que eles estavam de castigo e questionei: “Mas você acha que é violento?” Caio respondeu: “Não, porque ninguém machuca ninguém sem motivo. A gente está brincando de se defender e treinando para ficar forte... mas, às vezes, acaba se machucando, mas é sem querer” (DC, 10-11-2015).

As falas acima denotam que a professora usa estratégias para disciplinar as crianças frente às ações que considera agressivas, colocando-as de castigo para que cessem a brincadeira que julga imprópria para o ambiente escolar, observando-as em uma rede de vigilância88 Certeau M. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 1994. ininterrupta. Para Brougère11 Brougère G. Brinquedo e cultura. 4. ed. São Paulo: Cortez; 2001., por meio das brincadeiras de guerra, a criança se confronta com a violência do mundo, no entanto, a faz em um nível simbólico.

Merece destaque a prevalência das regras-limite em torno da brincadeira, que notamos por meio das afirmativas das crianças e do reconhecimento de seus direitos em expor suas necessidades1414 Sutton-Smith B. The ambiguity of play. 2. ed. Cambridge, MA: Harvard University Press; 2001.. As delimitações são construídas pelas crianças, com o intuito de evitar provocações, reações e mal-entendidos que interrompam e/ou violem os princípios estabelecidos entre os pares para não cessar a brincadeira, isto é, uma maneira de não ultrapassarem a linha tênue que separa o jogo do não jogo1414 Sutton-Smith B. The ambiguity of play. 2. ed. Cambridge, MA: Harvard University Press; 2001..

Essas delimitações são interpretadas como um direito de ordenar, conquistado e dividido por todos os membros do grupo, sujeitos ativos na construção das regras e no desenrolar da engenharia brincante66 Barbosa RFM, Martins RLR, Mello AS. Brincadeiras lúdico-agressivas: Tensões e possibilidades no cotidiano na educação infantil. Movimento 2017;23(1):159-170. Doi:10.22456/1982-8918.65259.
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, que é compreendida como a organização da brincadeira, ou seja, a arte da construção da brincadeira a partir da racionalidade infantil. Isso se revela com os acordos tácitos entre as crianças, com as regras próprias (que os adultos provavelmente desconhecem), sobretudo, no que diz respeito ao cruzamento de fronteiras fora da demarcação brincante.

Por outro lado, distinguir a brincadeira de luta da briga de verdade é uma tarefa difícil para os adultos e temos a convicção de que não podemos banalizar este fenômeno pois, o mesmo está circunscrito na esfera da subjetividade e que as fronteiras que o separam da dimensão lúdica são extremamente delicadas55 Barbosa RFM, Pereira B, Mello A. Revisão sistemática sobre brincadeiras de luta na Educação Pré-escolar: Evidências, potencialidades e lacunas. Rev Egitania Sciencia 2018;12(1):111-129.,77 Barbosa RFM, Pereira B, Mello A. A função pedagógica do brincar na educação infantil: Um olhar para as brincadeiras lúdico-agressivas. RevE-Psi 2018;8(1):4-22..

No desenvolvimento da pesquisa, notamos alguns conflitos entre as crianças. Percebemos, em uma aula de EF, um embate corporal com manifestações de poder e de tensões que ocasionaram desentendimentos entre as crianças, culminando com a intervenção da professora:

Um grupo de cinco crianças, composto por meninos e meninas, estava sentado no pátio durante o recreio. Eles estavam ali, pelo fato de a professora ter intervido após uma briga entre duas crianças. Vi que uma das meninas estava chorando e perguntei o motivo. Um dos meninos respondeu: “A gente estava brincando de lutinha. Mas aquele menino ali [apontava para um menino] é o mais bagunceiro de todos. Você viu? Ele não estava brincando e bateu nela. A tia vai brigar com ele”. De onde estava, escutei e observei a professora brigando com o menino, pedindo que se sentasse junto aos outros que estavam de castigo, ela falou: “já disse, não pode brincar de luta!” Após o momento de tensão, iniciei um diálogo com a professora, que sentou junto às crianças que estavam de castigo. Ela ressaltou a questão das ações violentas nas interações entre as crianças: “Se deixar, elas brincam disso o tempo todo, na sala, no parquinho e aqui nas aulas de EF. Só sai brincadeira de luta e de arma” (DC, 03-04-2015).

Destacamos que no episódio acima relatado ocorreu a briga propriamente dita. Tensões e conflitos estão presentes no cotidiano escolar. Contudo, vale ressaltar a importância de o professor procurar ouvir as crianças para saber as suas versões dos fatos77 Barbosa RFM, Pereira B, Mello A. A função pedagógica do brincar na educação infantil: Um olhar para as brincadeiras lúdico-agressivas. RevE-Psi 2018;8(1):4-22.. Talvez, assim, possam compreender os comportamentos e as relações infantis, evitando que as crianças briguem entre si e utilizem práticas excludentes durante a brincadeira.

Nessa perspectiva, o movimento presente no texto e evidenciado nas falas das crianças é de aproximação da complexidade de suas experiências brincantes para saber sobre as suas relações, lógicas e contextualizações da brincadeira. Isso pode permitir a compreensão sobre a direção do jogo1515 Freire JB. O jogo: entre o riso e o choro. 2. ed. Campinas: Autores Associados; 2005., suscitando práticas pedagógicas menos cerceadoras e punitivas.

A lógica das práticas

A vida comum, o trivial e o inesperado se destacam nas lógicas das práticas infantis. A partir do paradigma indiciário, de produzir saberes, observando e interpretando sinais, indícios e pistas, Ginzburg16:144-145 ressalta que “[…] é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, basear-se em indícios imperceptíveis à maioria” para compreendermos fenômenos complexos. Aparentemente, as lógicas das práticas infantis parecem sem importância, no entanto, lançam pistas e revelam a profundidade, ao examinarmos os pormenores e os indícios, muitas vezes, periféricos, mas que podem nos ajudar a compreender as brincadeiras lúdico-agressivas.

A partir da interpretação com e entre crianças, por meio da gravação de vídeo, (re)construímos e narramos o seguinte episódio ocorrido com seis crianças no recreio:

Cinco meninos brincavam com uma menina. Felipe tentava se aproximar dela e os outros tinham a função de distanciá-lo, lutando junto com ele. A menina, por sua vez, tentava se desvencilhar e, ao mesmo tempo, lutava, agarrava a blusa dos meninos e assoprava a sua mão em direção a eles. Quando as crianças pararam de brincar, se aproximaram de mim e eu perguntei sobre a brincadeira. “O que vocês estavam fazendo?” A menina foi a primeira a responder: “a gente estava brincando de Frozen. Eu sou a Frozen! Eu tenho o coração de gelo, eu tento pegar eles segurando pela camisa e congelo todo mundo. Aí, eles morrem congelados!” Eu perguntei: “tem alguém do mal nessa brincadeira?” Felipe me respondeu: “todo mundo é do mal. Ela colocou gelo no nosso coração. Mas só eu que tenho coração de fogo. Só eu que posso derrotá-la, por isso que eles lutam comigo e me seguram para eu não chegar perto dela” (DC, 19-08-2015).

Esses fatores reverberam um movimento desconhecido e inesperado sobre o que a criança vivencia em sua realidade, com seus pares, e também o que constroem no jogo de múltiplas formas, indo ao encontro do pensamento de Freire15:35 de que “o ato de jogar revela o jogo”. A lógica da prática mostra-se complexa, porque esse processo não é linear e não apresenta uma única direção, há a necessidade de inventar e inverter a lógica da brincadeira. Essa mesma lógica só foi reconhecida após ouvirmos as vozes das crianças, sugerindo a importância de darmos credibilidade e visibilidade às suas construções simbólicas.

De acordo com Kunz1717 Kunz E. Práticas Didáticas para um "conhecimento de si" de crianças e jovens na educação física. In: Kunz E, editor. Didática da Educação Física 2. Ijuí: Ed. UNIJUÌ; 2001, p. 15-52., por meio da linguagem e o movimentar-se humano, compreendemos quem somos e o mundo em que vivemos. O se movimentar, na sua forma livre, pode ser tomado como a linguagem da criança, sobrepondo-se à forma verbal, usualmente valorizada no mundo adulto. Compreender o movimento como linguagem requer que valorizemos as diferentes expressões e comunicações com o meio e com as pessoas que a criança se relaciona. Guaranhani e Nadolny1818 Guaranhani MC, Nadolny LF. O movimento do corpo infantil: Uma linguagem da criança. In: Universidade Estadual Paulista, editor. Caderno de formação - einfantil: Princípios e fundamentos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011, p. 65-74. afirmam que as brincadeiras potencializam a imaginação, o entendimento sobre papéis sociais, a capacidade de interagir, de ajustar os seus próprios comportamentos nas atividades com outras crianças e, ainda, perceber as diferentes perspectivas de uma situação, conseguindo demonstrar e se apropriar de diferentes linguagens. Isso implica reconhecer as suas singularidades, seus interesses e a sua expressão corporal como linguagens essenciais para a compreensão das culturas infantis enquanto um “[...] sistema de construção de conhecimento e de apreensão de um mundo específico das crianças e alternativo (ou, pelo menos, diferente) dos adultos”19:6.

Desta forma, a relação que a criança estabelece com a brincadeira se torna uma maneira de linguagem com a sua realidade. Isso implica em um movimento complexo, marcado por lógicas particulares pertencentes à cultura de pares na qual as crianças estão inseridas e, também, pelo compartilhamento brincante, revelando aspectos inusitados e astuciosos no desvio do uso dos bens culturais e na subversão das normas para exercer o protagonismo em suas práticas88 Certeau M. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 1994.. Por exemplo, quando o menino disse que somente ele tinha um coração de fogo e que poderia derrotar a Frozen, essa situação foi criada por ele, não faz parte do filme. A direção não linear da brincadeira só acontece, segundo Sartre20:56, pelo fato da criança viver o universal como particular, por isso, a sua relação com seus pares e com a brincadeira se expressa no campo das possibilidades, da flexibilidade e da transformação que a imaginação corporificada na brincadeira proporciona.

A brincadeira observada entre um menino e uma menina enseja considerações sobre gênero. É necessário desmistificar e colocar em suspeição premissas de que só os meninos brincam de lutar, pelo fato de pertencerem a uma atmosfera de vivacidade e serem mais eufóricos, enquanto as meninas, geralmente, seriam mais disciplinadas e mais tranquilas em suas brincadeiras2121 Château J. O Jogo e a criança. São Paulo: Summus; 1987., ou ainda, que não haveria possibilidade de interações entre meninos e meninas em manifestações como essa, pois seriam práticas exclusivas da cultura masculina2121 Château J. O Jogo e a criança. São Paulo: Summus; 1987.. O episódio exibe justamente o contrário, como outros apresentados neste texto. As meninas também sentem a necessidade de manifestar os seus desejos brincantes de modo mais intenso, turbulento e com comportamentos supostamente inadequados para elas. Limitar essa participação, somente reforçaria o senso comum e perspectivas de naturalização do gênero, privando as meninas de diferentes possibilidades corporais.

Notamos que, nos momentos lúdicos, as fronteiras de gênero são extrapoladas, pois muitas meninas são atraídas pelo brincar de lutinha. Para elas, é algo aceitável como parte da relação entre as crianças. Estudos2222 Wenetz I, Stigger MP. A construção do gênero no espaço escolar. Movimento 2006;12(1):59-80. Doi:10.22456/1982-8918.2891.
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,2323 Silva AM, Daólio J. Análise etnográfica das relações de gênero em brincadeiras realizadas por um grupo de crianças de pré-escola: Contribuições para uma pesquisa em busca dos significados. Movimento 2007;13(1): 13-37. Doi:10.22456/1982-8918.2922.
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indicam que a participação de meninas em práticas corporais de lutas entre elas e também com meninos demonstram ações de pertencimento ao grupo, de poder e de autorregulação em suas práticas.

Nessa perspectiva, Alves1212 Alves N. Educação e supervisão: O trabalho coletivo na escola. 11. ed. São Paulo: Ed. Cortez; 2006. propõe o entendimento da complexidade pelo viés das tessituras que se desenvolvem nas redes de relações cotidianas, carregadas de subjetividades, de sentidos e de produção de conhecimentos, vividas, pensadas e praticadas na escola. Para a autora, a complexidade do cotidiano e das práticas se encontram na necessidade de perceber os múltiplos processos educativos contraditórios.

O contexto brincante

O contexto social das crianças participantes da pesquisa é permeado pela violência cotidiana. A escola se localiza em um bairro de periferia, com altos índices de criminalidade. No entanto, quando estão na escola, convivendo com seus pares, suas brincadeiras refletem um enredo brincante repleto de simbolismo, ora com elementos locais, ora com elementos midiáticos. Nesse sentido, a agressividade teria outro significado para as crianças em suas brincadeiras?

Após o término de uma brincadeira, como de costume, as crianças se aproximaram da pesquisadora para perguntar se a ação lúdica tinha sido gravada. Aproveitando a aproximação das crianças, a pesquisadora perguntou do que elas estavam brincando:

“A gente estava brincando de super-heróis. Eu sou o Hulk. Ele esmaga as pessoas, ele pega a gente pelo pescoço e faz assim: dá socos até a pessoa cair no chão”. Perguntei ao Guilherme: “mas você brinca assim com seus coleguinhas aqui na escola?” Ele respondeu: “a gente brinca como os super-heróis”. Rafael falou: “eu sou o Homem de Ferro. Ele é sempre o Hulk. Ele ali é o Flash. E tem o Capitão América.” Entusiasmada com as falas das crianças, perguntei novamente: “e aí, como faz para brincar com eles?” O Saulo respondeu: “É só imaginar e pronto! Usa os poderes deles e luta junto com os vilões!” Perguntei: “e quem são os vilões?” Ele respondeu: “não tem, a gente imagina e derrota eles! Todo mundo quer ser super-herói, entendeu?” Curiosa com as respostas, continuei a perguntar: “e o que acontece quando vocês derrotam os vilões?” Lucas falou: “às vezes morre, mas é só morte espiritual.” Eu fiquei espantada e falei: “como assim?” Ele respondeu: “morre e volta. Eu já morri umas 40 vezes!” Perguntei novamente: “quem morre de morte espiritual pode brincar de novo?” Ele respondeu: “pode, mas volta do mal”. Perguntei como começava a brincadeira e Guilherme respondeu: “a gente começa correndo do bicho e depois luta junto com ele”. Surpresa com a resposta, questionei: “onde vocês veem isso?” Lucas respondeu: “no desenho, no filme, na TV, sabe o UFC? Mas, às vezes, fica na cabeça da gente!” (DC, 07-12-2015).

Nessa narrativa, as crianças apresentaram os seus super-heróis favoritos e como gostam de brincar com eles. O que chamou a atenção foi a construção do contexto brincante, fundamentados não só na mídia, mas em suas inventividades, tudo permeado pela luta.

O campo da mídia-educação destaca a importância da compreensão de como a mídia aborda o mundo e as relações sociais. Na área da EF, a investigação gira em torno de como as manifestações da cultura corporal se relacionam com a mídia, no caso desta pesquisa, os jogos e as brincadeiras. Estudos2424 Wiggers I, Oliveira MS, Ferreira IV. Infância e educação do corpo: As mídias diante de brincadeiras tradicionais. Em aberto 2018;31(1):177-190. Doi:10.24109/2176-6673.emaberto.31i102.3845
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,2525 Barbosa RFM, Gomes CF. Brincadeira, mídia e pós-modernidade: Reflexões e dilemas na sociedade atual. Motri 2010;34(1):25-39. Doi:10.5007/%x.
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indicam que os elementos midiáticos são utilizados como fonte de ludicidade, de interação e de expressão entre os pares, tendo a televisão como principal ferramenta midiática. Esta, por sua vez, ilustra um dos principais focos de estudos em mídia-educação e infância, já que exerce grande influência sobre essa parcela da população, no que se refere às suas brincadeiras.

O componente midiático é um elemento predominante nas realidades infantis e exibe imagens diversas para atrair o público infantil, por isso, facilmente observamos esses enredos, frutos de desenhos animados, filmes e programas de TV, que são reconstruídos nas brincadeiras e incorporados nos cotidianos das crianças66 Barbosa RFM, Martins RLR, Mello AS. Brincadeiras lúdico-agressivas: Tensões e possibilidades no cotidiano na educação infantil. Movimento 2017;23(1):159-170. Doi:10.22456/1982-8918.65259.
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Para Sutton-Smith1414 Sutton-Smith B. The ambiguity of play. 2. ed. Cambridge, MA: Harvard University Press; 2001., o diálogo com a mídia sugere um jogo metafórico sustentado pela imaginação, pela flexibilidade e pela criatividade, ao enfatizar o lado selvagem da imaginação infantil, com a apropriação e a produção de sentidos em suas transformações no desenrolar dos golpes e das mortes. No plano da fantasia, isso permite “[...] fazer o que está presente ficar ausente e o que está ausente ficar presente”14:127 e se transportarem para este universo brincante como e quando quiserem.

É notável que a brincadeira com a mídia traga um simbolismo fascinante junto às crianças. Entretanto, isso pode ser um problema dentro da escola. Para Jones2626 Jones G. Brincando de matar monstros: Por que as crianças precisam de fantasia, videogames e violência de faz de conta. São Paulo: Conrad Ed. do Brasil; 2004., é necessário respeitar a alegria e a legitimidade emocional das construções simbólicas infantis, estimulando diálogos sobre o que fazem dentro e fora da escola. Isso pode sugerir que os modelos de desenhos e filmes, apropriados por elas, sejam operados para brincar com a sua própria agressividade. Isto é, elas podem morrer e ressuscitar quantas vezes acharem necessário.

Outro ponto importante, que emergiu da pesquisa, foi a compreensão da realidade social das crianças em suas múltiplas formas e influências. Considerando o cotidiano como complexo e potente, por apresentar uma multiplicidade e um entrelaçamento de saberes, nem sempre coesos e, ainda, por possibilitar apropriações, criações e transformações do que é vivido na coletividade, que discutiremos o seguinte episódio entre meninos e meninas ocorrido no recreio:

Haviam algumas meninas sentadas próximo ao brinquedo do pátio, me aproximei e perguntei: “vocês estão brincando de quê?” Uma delas respondeu: de mãe e filha igual naquele dia, lembra?” Eu falei: “lembro, mas naquele dia, a bebê estava dormindo. E hoje, o que vocês estão fazendo com ela?” Outra menina respondeu: “a gente está cuidando dela porque a nossa mãe morreu. Um ladrão deu um tiro nela. Agora a gente está indo levar a bebê no médico. “Aqueles meninos estão correndo atrás da gente e querem pegar a bebê”. Rapidamente falei: “e o que vocês vão fazer?” Uma delas respondeu: “você está vendo, ela está toda sangrando, vamos ter que correr e brigar com eles para chegar rápido ao hospital”. A correria começou, elas se juntaram aos meninos, corriam, gritavam e trocavam socos até conseguirem levar a bebê para o hospital (DC, 30-11-2015).

Esse episódio é emblemático, pois expressa o contexto de violência em que as crianças estão inseridas. O mais inusitado é o fato delas morarem em um local de risco e transformarem as situações vivenciadas no cotidiano em brincadeira. De acordo com Sarmento11:31, as formas de socialização com o mundo conduzem as crianças a construírem “[...] processos de subjetivação no quadro da construção simbólica dos seus mundos de vida, estabelecendo, com os adultos, interações que as levam a reproduzir as culturas societais e a recriá-las nas interações de pares”.

No entanto, isso não significa dizer que as crianças se tornem mais agressivas por conta disso. Para Jones2626 Jones G. Brincando de matar monstros: Por que as crianças precisam de fantasia, videogames e violência de faz de conta. São Paulo: Conrad Ed. do Brasil; 2004., é nesse movimento de brincar com a agressividade que o seu conteúdo perde o impacto. Olivier2727 Olivier JC. Das brigas aos jogos com regras: Enfrentando a indisciplina na escola. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 2000. acrescenta que é no interior do grupo social que as crianças aprendem a gerir e a controlar a complexidade das relações violentas no contexto social em que estão presentes.

Elementos como o contexto social, a interação com o cotidiano e as influências culturais às quais as crianças estão expostas, conduzem a diferentes maneiras de ser criança e viver a infância. Como ressalta Sarmento1111 Sarmento MJ. Sociologia da Infância: correntes e confluências. In: Sarmento MJ, Gouvêa MCS, editores. Estudos da Infância: Educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes; 2009, p. 17-39., não podemos analisar a criança alheia ao contexto social que envolve a sua realidade. As singularidades presentes em suas brincadeiras podem sinalizar uma aproximação com seu mundo simbólico para além de uma simples narrativa.

Verificamos a necessidade de compreender as brincadeiras lúdico-agressivas como formas das crianças viverem a infância à sua maneira, isto é, nas suas relações criativas e transgressoras com seus pares no cotidiano escolar e em suas interações lúdicas como forma de socialização. Isso implica, também, reconhecer que esse tipo de manifestação lúdica deve ser diferenciada de comportamentos agressivos, pelo fato das crianças não terem a intenção de constranger e nem machucar outra pessoa, somente brincar55 Barbosa RFM, Pereira B, Mello A. Revisão sistemática sobre brincadeiras de luta na Educação Pré-escolar: Evidências, potencialidades e lacunas. Rev Egitania Sciencia 2018;12(1):111-129.,66 Barbosa RFM, Martins RLR, Mello AS. Brincadeiras lúdico-agressivas: Tensões e possibilidades no cotidiano na educação infantil. Movimento 2017;23(1):159-170. Doi:10.22456/1982-8918.65259.
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,77 Barbosa RFM, Pereira B, Mello A. A função pedagógica do brincar na educação infantil: Um olhar para as brincadeiras lúdico-agressivas. RevE-Psi 2018;8(1):4-22.. É a partir dessa ressignificação que a brincadeira pode ser compreendida sob o ponto de vista da complexidade, pela relação de seus elementos, isto é, “[...] não pode ser estudada apenas enquanto produto concreto, logo deve ser analisada de forma dinâmica, em movimento, articulado, levando-se em consideração sua relativa tendência à desordem harmônica, ou sua natureza intrinsecamente dinâmica”28:50.

Conclusões

A pesquisa focalizou as brincadeiras lúdico-agressivas indicando formas particulares de brincar, que ocorrem de modo subversivo no ambiente escolar. Buscamos compreender o cotidiano e os seus praticantes, a partir da observação de suas ações táticas, captadas no voo88 Certeau M. A invenção do cotidiano. 8. ed. Petrópolis: Vozes; 1994.. Os episódios de interação possibilitaram a interpretação das experiências brincantes das crianças à partir delas mesmas, ouvindo as suas vozes, sem deixar de lado a complexidade que as engedram.

Apontamos a necessidade de reconhecer as formas expressivas, lúdicas e legítimas das crianças se manifestarem em suas brincadeiras. É desafiador aceitar brincadeiras que fogem do padrão escolar e os sentidos que podem assumir. Entretanto, ao consideramos as crianças como produtoras de cultura e de conhecimentos, ativas em seus processos de socialização, torna-se possível abrir espaços de diálogos para conhecer suas experiências, compreendendo suas diferentes formas de interação com base em suas engenharias brincantes.

Por meio de uma inversão de perspectiva, que considere a inventividade e a lógica da criança, buscamos compreender a complexidade das brincadeiras lúdico-agressivas. Nesse sentido, a EF na EI pode contribuir para ampliar o olhar sobre essas brincadeiras, compartilhando as produções culturais infantis e possibilitando práticas desafiadoras, que considerem as autorias infantis. Propomos compreender as brincadeiras lúdico-agressivas articuladas com a imaginação, a mídia e a compreensão da realidade infantil, para que o protagonismo e a inventividade infantil ganhem forma e evidência. Nessa configuração, as narrativas infantis sugerem a necessidade de um canal permanente de diálogo entre crianças e os adultos, para captar as relações entre elas, a lógica das práticas e o contexto brincante, antes de haver a repreensão por parte da escola, conduzindo a uma relação horizontal entre os atores sociais.

A complexidade dessas brincadeiras revelou práticas invisíveis, com (re)criações de sentidos próprios e operações das crianças para fabricar astuciosamente a sua arte de brincar de maneira lúdica e agressiva. Contudo, compreender as suas experiências lúdicas nos conduz ao seguinte caminho: “[...] se a complexidade não é a chave do mundo, mas o desafio é o que ajuda a revelá-lo e, por vezes, mesmo a ultrapassá-lo”99 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Instituto Piaget; 2003., nos resta é permanecer na busca por maiores esclarecimentos sobre as brincadeiras lúdico-agressivas e possibilitar a visibilidade da criança como protagonistas de suas ações e (re)criações no cotidiano escolar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2019
  • Revisado
    17 Nov 2019
  • Aceito
    30 Mar 2020
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