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ANABOLIZANTES NA GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA: UM DILEMA ÉTICO-SANITÁRIO ENTRE ESTUDANTES QUE PRATICAM FISICULTURISMO

ANABOLICS STEROIDS IN A PHYSICAL EDUCATION UNDERGRADUATE PROGRAM: AN ETHICAL-SANITARY DILEMMA AMONG BODYBUILDER STUDENTS

RESUMO

Este artigo trata do dilema enfrentado por estudantes-fisiculturistas de Educação Física que se dedicam a aprender, por conta própria, sobre o uso de anabolizantes para fins não terapêuticos em um curso de graduação vinculado à área da saúde. A noção de dilema ético-sanitário é desenvolvida a partir da articulação entre os conceitos de expertise, de Nikolas Rose, e o de risco em saúde, de Deborah Lupton. Entrevistas episódicas com seis alunos da graduação dos cursos de licenciatura e bacharelado em Educação Física de uma universidade brasileira foi a opção metodológica adotada. Como resultado, identificamos dois perfis de estudantes praticantes de fisiculturismo: um composto pelos que ingressaram no curso com o objetivo de aprender a usar anabolizantes; e outro que julgava já saber sobre e tinha por objetivo buscar uma certificação profissional universitária. Concluímos que o dilema ético-sanitário observado em ambos os perfis deveria ser tratado em aula nos cursos de graduação em Educação Física, pois o “silêncio curricular” sobre o processo de hipertrofia muscular pela via medicamentosa, associado à atmosfera de clandestinidade, pode favorecer a circulação de mais desinformação e ainda mais riscos ao público alvo deste estudo.

Palavras chave:
Anabolizantes; Expertise; Educação Física; Fisiculturismo

ABSTRACT

This article deals with the dilemma faced by physical education student-bodybuilders who are dedicated to learning on their own about the uses of anabolic steroids for non-therapeutic purposes. The concept of the ethical-sanitary dilemma is developed from the articulation between Nikolas Rose's concept of expertise and Deborah Lupton's concept of risk. Episodic interviews with six undergraduate students of Physical Education from a Brazilian university were applied in this study as the principal method. As a result, we identified two profiles of student-bodybuilders: one composed of those who joined the program in order to learn how to use anabolic steroids, and another one composed of those who presumed to know about the uses and whose purpose was to earn an undergraduate diploma. We conclude that the ethical-sanitary dilemma observed in both profiles should be addressed in the Physical Education undergraduate courses since the “curricular silence” on the process of muscular hypertrophy via steroid anabolics, associated with the clandestine atmosphere, may add more misinformation and even more risks to the target audience of this study.

Keywords:
Anabolic steroids; Expertise; Physical Education; Bodybuilding

Introdução

A utilização não terapêutica de drogas anabolizantes está documentada na literatura médica como prejudicial à saúde e como infração penal ante a Lei das Drogas11 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil [Internet]. Lei nº 11.343, de 23 de Agosto de 2006. Lei das Drogas: Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas [acesso em 20 mar 2018 ]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm
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. Na mídia circulam reportagens sobre prisões de agenciadores de anabolizantes sob acusação de tráfico de drogas22 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil [Internet]. Lei no 6.437, de 20 de Agosto de 1977. Configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece as sanções respectivas, e dá outras providências [acesso em 20 mar 2018 ]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6437.htm
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,33 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil [Internet]. Lei nº 9965, de 27 de abril de 2000. Restringe a venda de Esteroides Anabolizantes e da outras providências [acesso em 22 mar 2018]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9965.htm#:~:text=LEI%20No%209.965%2C%20DE,Art.
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, assim como notícias que implicitamente associam a morte de fisiculturistas ao uso de tais substâncias.

Nessa linha, o Conselho Regional de Educação Física do Estado do Rio Grande do Sul (CREF/RS), motivado pela promulgação da Lei nº 12542/2006 do mesmo Estado, que obriga estabeleceimentos físico-desportivos a exibirem placa advertindo sobre as consequências do uso de anabolizantes44 Conselho Regional de Educação Física do Estado do Rio Grande do Sul. Lei nº12542, de 29 de Junho de 2006. Dispõe sobre a obrigatoriedade de academias de ginástica, clubes desportivos e estabelecimentos similares exibirem placa advertindo sobre as consequências do uso de anabolizantes [acesso em 22 de mar de 2018]. Disponível em: https://crefrs.org.br/legislacao/pdf/lei_12542.pdf
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, lançou campanha impactante contra tal uso. Em um dos cartazes promocionais, uma seringa se confunde com um cano de revólver, associando posse ilegal com risco de morte dentro de uma lógica calcada na “pedagogia do terror”55 Bucher R. A ética da prevenção. Psic Teor e Pesq 2007;23:117-123. Doi: 10.1590/S0102-37722007000500021.
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6 Carlini-Cotrim B, Rosemberg F. Drogas: Prevenção no cotidiano escolar. Cad Pesq 1990;74:40-46.
-77 Büchele F, Coelho EB, Lindner SR. A promoção da saúde enquanto estratégia de prevenção ao uso das drogas. Cien Saude Colet 2009;14(1):267-273. Doi: 10.1590/s1413-81232009000100033
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.

Apesar de os alertas aparecerem em diferentes recantos, cresce o uso destes medicamentos em meio à população brasileira, inclusive entre os que têm grau de instrução mais elevado88 Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas [Internet]. I levantamento nacional sobre o uso de álcool, tabaco e outras drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras [acesso em 20 mar 2018]. Disponível em https://cetadobserva.ufba.br/es/publicacoes/i-levantamento-nacional-sobre-uso-de-alcool-tabaco-e-outras-drogas-entre-universitarios
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,99 Fraga AB. Exercício da informação: Governo dos corpos no mercado da vida ativa. Campinas: Autores Associados; 2006... A maioria são jovens praticantes de musculação, muitos deles não apenas usam tais drogas com o propósito de obter ganho muscular, mas também desenvolvem conhecimentos cada vez mais sofisticados, e de várias ordens, sobre os diferentes efeitos dos anabolizantes no corpo humano visando o melhor uso desses recursos88 Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas [Internet]. I levantamento nacional sobre o uso de álcool, tabaco e outras drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras [acesso em 20 mar 2018]. Disponível em https://cetadobserva.ufba.br/es/publicacoes/i-levantamento-nacional-sobre-uso-de-alcool-tabaco-e-outras-drogas-entre-universitarios
https://cetadobserva.ufba.br/es/publicac...
,1010 Iriart JAB, Chaves JC, Orleans RG. Culto ao corpo e uso de anabolizantes entre praticantes de musculação. Cad Saúde Pública 2009;25:773-782.,1111 Moraes DR, Castiel LD, Ribeiro APPGA. "Não" para jovens bombados, "sim" para velhos empinados: o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica. Cad Saúde Pública 2015;31(6):1131-1140..

Diante deste cenário, e dada a relação direta com o campo de atuação do profissional de Educação Física, consideramos ser importante investigar o nível de conhecimento dos estudantes de graduação desta área sobre um assunto tão controverso. De modo mais específico, buscamos compreender as estratégias de aprendizagem sobre anabolizantes para fins de aprimoramento corporal implementadas por estudantes-fisiculturistas durante o curso de Educação Física em uma universidade brasileira.

Como conceitos mobilizadores, utilizamos as teorizações de Nikolas Rose denominadas “políticas da própria vida”1212 Rose N. A Política da Própria Vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013., em especial a noção de expertise, pois o manejo destes medicamentos requer um conjunto sofisticado de conhecimentos. Também nos baseamos no conceito de risco em saúde99 Fraga AB. Exercício da informação: Governo dos corpos no mercado da vida ativa. Campinas: Autores Associados; 2006..,1313 Lupton D. Risk. London: Routledge; 1999., mais especificamente na correlação com o uso de anabolizantes, para desenvolver de forma articulada a noção de dilema étnico-sanitário, já que a utilização destas substâncias com fins não-médicos é vista, muitas vezes, como um atentado à saúde pública1414 Handelsman DJ. Testosterone: Use, misuse and abuse. Med J Aust 2006;185:436-439..

Expertise e dilema ético-sanitário na busca de aprimoramento do próprio corpo

Rose1212 Rose N. A Política da Própria Vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. usa o termo “políticas da própria vida” para agrupar as formulações que tomam a dimensão somática como o centro das ações biopolíticas contemporâneas, elemento que diferencia esta abordagem da clássica biopolítica foucaultiana. O autor12 desenvolve cinco temas que dimensionam esta “repaginação” do conceito de biopolítica: molecularização, enhancement, subjetificação, expertise e bioeconomia. Um traço constitutivo desta biopolítica contemporânea, que atravessa estes cinco temas, seria a “administração da própria saúde e do próprio corpo para a automodelação”12:65.

Diante da biologia contemporânea, o corpo é considerado um circuito aberto sobre o qual podem ser aplicadas tecnologias de otimização e aprimoramento. O processo de aprimoramento corporal consiste na utilização de tecnologias que objetivam a melhora do desempenho do corpo1212 Rose N. A Política da Própria Vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013..

Àqueles que detêm um conhecimento mais sofisticado sobre as variáveis envolvidas no processo de enhancement corporal, Nikolas Rose denomina experts: peritos da vida em si mesma. Para Rose12:17, “os seres humanos experimentam a si mesmos de novas maneiras como criaturas biológicas, como si mesmos biológicos, sua existência vital torna-se foco de governo, alvo de novas formas de autoridade e de expertise”. Tal expertise pode se dar, por exemplo, no controle das variáveis envolvidas nesta capacidade (autônoma) de modificação do “envelope corporal”1515 Villaça N, Góes F. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco; 1998., caso mais específico dos bodybuilding coaches ou bodybuilding gurus.

O nível de controle e expertise sobre si mesmo se torna uma marca bioidentitária e, consequentemente, formadora de biossociabilidades. Esta identidade somática baseada em preceitos corporais, denominada como bioidentidade por Ortega1616 Ortega FJG. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cad Saúde Colet. 2003;11(1):59-77.,1717 Ortega FJG. Da ascese à bio-ascese: Ou do corpo submetido à submissão ao Corpo. In: Rago M, Orlandi LBL, Veiga-Neto A, editores. Imagens de Foucault e Deleuze: Ressonâncias nietzchianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Dp&a; 2005. e biossociabilidade por Rabinow1818 Rabinow P. Artificialidade e iluminismo: Da sociobiologia a biossociabilidade. In: Biehl JG, editor. Antropologia da razão: Ensaios de Paul Rabinow. Rio de Janeiro: Relume Dumara; 1999, p. 135-157., leva em consideração o ser humano como dotado de um corpo genético, morfológico e social. Entretanto, a teorização de Rabinow18 versa, principalmente, acerca da biossociabilidade em um nível genético, alélico e cromossômico. Apesar de Rabinow12 ter acertado em sua previsão, as formulações posteriores que dialogam com as teses deste autor, principalmente as de Ortega1616 Ortega FJG. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cad Saúde Colet. 2003;11(1):59-77.,1717 Ortega FJG. Da ascese à bio-ascese: Ou do corpo submetido à submissão ao Corpo. In: Rago M, Orlandi LBL, Veiga-Neto A, editores. Imagens de Foucault e Deleuze: Ressonâncias nietzchianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Dp&a; 2005., identificaram elementos biossociabilizantes sob diversas formas: grupos de apoio, redes temáticas na web, e diversos outros esforços de socialização que tem nas variáveis biológicas um ponto de confluência.

De um modo geral, praticantes de fisiculturismo, especialmente os que buscam se tornar experts na administração em si de hormônios exógenos, precisam lidar com os efeitos do dilema ético-sanitário no processo de construção desta marca bioidentitária bem específica. Tal dilema está associado à noção de risco em saúde1313 Lupton D. Risk. London: Routledge; 1999.,1919 Castiel LD. A medida do possível: Saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999., cuja principal premissa é a de que o sujeito, uma vez bem informado, é responsável pelas suas próprias decisões, mas “em contrapartida deve arcar com os custos de uma escolha catalogada cientificamente como equivocada”9:78.

Moraes, Castiel e Ribeiro1111 Moraes DR, Castiel LD, Ribeiro APPGA. "Não" para jovens bombados, "sim" para velhos empinados: o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica. Cad Saúde Pública 2015;31(6):1131-1140. trataram de mapear os riscos relacionados ao manejo de esteroides anabolizantes em artigo de revisão. Para os autores1111 Moraes DR, Castiel LD, Ribeiro APPGA. "Não" para jovens bombados, "sim" para velhos empinados: o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica. Cad Saúde Pública 2015;31(6):1131-1140., duas são as tendências preponderantes na literatura médica “anabólica”: uma relativamente permissiva, pois considera legítimo o uso de anabolizantes em certos casos, como homens idosos em tratamento contra os efeitos da andropausa; outra acentuadamente proibicionista, já que considera o uso não-terapêutico danoso ao organismo em qualquer hipótese, inclusive com reflexos negativos no comportamento social.

Iriart e Andrade2020 Iriart JAB, Andrade TM. Musculação, uso de esteróides anabolizantes e percepção de risco entre jovens fisiculturistas de um bairro popular de Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saúde Pública 2002;18(5):1379-1387. apontam que o fato de os fisiculturistas terem consciência dos riscos da utilização de anabolizantes não resulta, diretamente, em redução desse uso. Entre os membros desse grupo, a retórica da estética muscular quimicamente hipertrofiada se sobrepõe à crônica do risco à saúde. Os autores afirmam que muitos acabam se “aventurando” neste universo com a ilusão de que, com alguma prevenção, nunca terão “problema”.

No caso específico de praticantes de fisiculturismo que ingressam em um curso superior de Educação Física, esse dilema ético-sanitário é exponencialmente mais complexo, pois já não são apenas praticantes, e sim futuros profissionais da área da sáude. É justamente na formação inicial que eles aprendem os fundamentos para o desenvolvimento da musculação, e também os princípios éticos que pautam a conduta profissional nessa área relativa a procedimentos não-terapêuticos. É nesta fronteira entre expertise e ética-sanitária que sofisticadas estratégias de aprendizagem são construídas por estudantes-fisiculturistas de um curso de Educação Física.

Decisões Metodológicas

Para contemplar o objetivo proposto, realizamos entrevistas episódicas com seis estudantes vinculados a cursos de graduação em Educação Física durante um ano. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob o número 943.912. A pesquisa foi realizada entre os anos de 2013 e 2015. A coleta do material empírico (entrevistas) ocorreu entre o final de 2014 e o início de 2015, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

As entrevistas episódicas consistem no convite ao entrevistado à narração de episódios de sua vida que propiciem narrativas afetivamente implicadas para os sujeitos recrutados2121 Flick U. Entrevista Episódica. In: Bauer MW, Gaskell G, editores. Pesquisa qualitativa com texto imagem e som: Um manual prático. 11. ed. Petrópolis: Vozes; 2013, p. 114-136.. O roteiro básico para as entrevistas2121 Flick U. Entrevista Episódica. In: Bauer MW, Gaskell G, editores. Pesquisa qualitativa com texto imagem e som: Um manual prático. 11. ed. Petrópolis: Vozes; 2013, p. 114-136. continha perguntas que levavam os estudantes a narrarem experiências pontuais sobre o aprendizado do uso de anabolizantes ocorridas durante o curso de graduação. As questões versavam sobre o processo de reconhecimento do fisiculturista pelos seus pares, os significados dos anabolizantes para aquele grupo, as estratégias de aprendizagem sobre a uso de anabolizantes dentro e fora da universidade, o controle dos riscos na utilização de tais medicamentos, o dilema ético-sanitário de um estudante fisiculturista futuro profissional do campo da saúde.

O critério de inclusão dos entrevistados levou em consideração não apenas o fato de serem estudantes de Educação Física, e “terem experiência com a prática da musculação”, mas também terem um corpo “nitidamente” potencializado pela prática da musculação.

Este último item tem uma carga subjetiva elevada, pois não é nada fácil demarcar a fronteira entre um corpo potencializado pela prática da musculação e outros corpos que se submetem a programas de exercícios físicos. Contudo, como um dos pesquisadores é um fisiculturista, portanto alguém com domínio dos códigos corporais dos adeptos de tal prática, não foi difícil para ele distinguir/abordar os portadores de tais atributos físicos no local onde o estudo foi realizado. Cabe destacar que, por experiência, é possível perceber as diferenças entre um mero “praticante de musculação” e um fisiculturista: o primeiro frequenta a academia motivado, geralmente, pelos benefícios à saúde e questões pontuais de ordem estética; o segundo é adepto do esporte fisiculturismo, submetendo-se dioturnamente a uma rotina rígida que envolve alimentação regrada, longas sessões de treinamento e, muitas vezes, utilização de recursos ergogênicos como esteroides anabolizantes. Para quem se envolve com a prática do fisiculturismo, portanto, não é tão complicado identificar esse grupo nos corredores e salas de um curso de Educação Física, pois como diz Sabino2222 Sabino C. Anabolizantes: drogas de Apolo. In: Goldenberg M, editora. Nu e vestido: Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Record; 2007, p. 139-188, todos aqueles que buscam um corpo hipermusculoso tomam a exposição muscular como uma regra que transcende o espaço da academia, ou nas palavras de Jean-Jacques Courtine23:82, “o bodybuilder não anda, ele conduz seu corpo, exibindo-o como um objeto imponente”.

Os nomes dos participantes adotados neste artigo são fictícios e foram escolhidos por eles mesmos instantes antes da entrevista. À época, todos já haviam obtido mais de 50 por cento dos créditos necessários para a conclusão do curso de graduação em Educação Física, ou seja, já haviam passado por disciplinas como Fisiologia Humana e Fisiologia do Exercício, aquelas que em tese tratam dos conhecimentos básicos sobre os efeitos da manipulação corporal no organismo.

A primeira entrevista foi realizada com Rogério, fisiculturista amador. A entrevista durou cerca de 35 minutos e ocorreu em uma sala de aula durante o intervalo das atividades acadêmicas. O segundo entrevistado foi Acetrem, o mais jovem do grupo, que se autointitulou um aprendiz na utilização de anabolizantes e recém havia iniciando a preparação para sua primeira competição de fisiculturismo. A entrevista durou cerca de 40 minutos e também ocorreu em uma sala de aula. A terceira entrevista foi com J.Kiss, competidora de fisiculturismo feminino amador de nível estadual. Após diversos agendamentos, a entrevista ocorreu em uma sala de aula e durou 55 minutos. A entrevistada falou na maior parte do tempo sobre os sacrifícios corporais e as rotinas de dietas pré-competição. A quarta entrevista foi com João Cezar, competidor de fisiculturismo profissional de nível nacional. Após diversos agendamentos, a entrevista ocorreu em uma academia de musculação na qual o participante ocupa a função de coach. A entrevista durou 32 minutos, pois o ambiente escolhido por ele não era dos mais propícios à entrevista. Este entrevistado trouxe um tópico muito interessante para a pesquisa: a diferença entre “marombeiro” e fisiculturista.

No momento em que estávamos prestes a realizar a quinta entrevista, deparamo-nos com um “ponto fora da curva” que julgamos importante aproveitar: um árbitro de fisiculturismo com registro junto à federação. Esse quinto entrevistado, que escolheu o pseudômino Johnhy, não era uma pessoa vistosamente musculosa, mas foi incluído por ter um domínio dos códigos da competição e pela perspectiva diferenciada sobre a utilização de anabolizantes.

A sexta entrevista foi realizada com Big Randy, competidor de fisiculturismo amador de nível estadual. O entrevistado se mostrou um grande expert sobre a utilização de hormônios, em um ambiente bastante propício para a entrevista: laboratório onde o entrevistado atuava como pesquisador iniciante. Nas falas deste entrevistado, percebemos que as respostas começaram a se repetir, por isso decidimos encerrar as entrevistas.

A apresentação de experiências vividas pelos participantes é característica fundamental das entrevistas episódicas, possibilitou ao entrevistador, também praticante de fisiculturismo, colocar-se “ao lado” do entrevistado e ver-se em cada um deles, fato que deixava o participante mais confortável, algo que se coaduna com a proposta de Flick2121 Flick U. Entrevista Episódica. In: Bauer MW, Gaskell G, editores. Pesquisa qualitativa com texto imagem e som: Um manual prático. 11. ed. Petrópolis: Vozes; 2013, p. 114-136. para este tipo de entrevista: realizar “convites” implícitos à narração de episódios ou situações as quais o participante gostaria de compartilhar21:117.

O conjunto de achados da pesquisa orginal foi classificado em duas grandes categorias: a primeira abarca as estratégias de aprendizado sobre o uso de anabolizantes desenvolvidas pelos alunos dentro do curso de graduação em Educação Física, e a segunda se refere ao aprendizado desenvolvido fora do curso. Nesta configuração, dois perfis de estudantes se destacaram: um composto pelos que ingressaram no curso com o objetivo de aprender sobre a utilização de anabolizantes; e outro pelos que só buscavam uma certificação profissional, pois já sabiam como utilizar.

Estudantes fisiculturistas e o aprendizado sobre os anabolizantes na graduação em Educação Física

Acetrem, estudante que à época da realização da entrevista estava no quinto semestre da graduação, deixou claro que o tema dos anabolizantes não havia sido tratado nas disciplinas biodinâmicas do curso de Educação Física, afirmando que “não foi ensinado ainda em alguma cadeira específica sobre o uso e os efeitos fisiológicos e sociais dos anabolizantes”. Acrescentou, inclusive, que suspeitava que provavelmente não seria abordado mais adiante não porque os docentes não dominassem o tema, mas pelo receio de serem mal interpretados ou por preconceito com o estilo de vida “bombado”. Para ele, “se vier a ser abordado [o tema dos anabolizantes], com certeza não vai ser tão a fundo como seria lá fora.”

Big Randy, que se autodenominava fisiculturista amador, assim como Acetrem, deu um depoimento sobre os seus primeiros passos no aprendizado sobre a utilização dos anabolizantes.

[...] queria entender melhor as drogas... [...] tinha bastante literatura, [...] depois de ter essa parte mais aprofundada eu queria saber sobre doses... e aí que entra o problema na literatura científica... tu não tem estudo com dose-efeito... [...] então, fica bem difícil... eu acho que mesmo que tu saiba buscar uma ferramenta científica, na hora da dose tu vai perder [...] tu não vai ter um referencial teórico adequado... daí tu pensa “que que o pessoal toma?”.. “quanto se toma?”... e aí que entram os problemas na minha opinião...[...]

Big Randy

Nesta fala é possível perceber o quão sofisticado é o processo de aprendizagem sobre a administração exógena de hormônios anabolizantes com fins de aprimoramento corporal. Para um aprendiz transitar dos níveis mais básicos aos mais avançados de expertise há necessidade de estar conectado, direta ou indiretamente, ao universo acadêmico-científico. Contudo, as pesquisas que utilizam os anabolizantes com fins de aprimoramento corporal não são desenvolvidas devido, sobretudo, ao caráter ilícito do uso destes medicamentos para fins não-terapêuticos.

Dada a relevância dos conhecimentos científicos, e o fato de a universidade ser o lugar por excelência da produção e circulação de pesquisas, muitos dos entrevistados afirmaram que a expectativa era encontrar na graduação em Educação Física um ambiente propício para a aquisição de saberes desta natureza. Mas se levarmos em consideração que não há pesquisas sobre a administração exógena de hormônios anabolizantes para fins não terapêuticos por questões de ordem ética, já era de se supor que dificilmente haveria uma disciplina para tratar deste tema no curso.

Ao ser questionado sobre os motivos pelos quais a potencialização corporal via anabolizantes não é abordada de modo mais direto na graduação, Acetrem respondeu o seguinte:

Porque é proibido!... Eu fui na palestra do Fernando Sardinha. Ele é educador físico e ele não pode falar muito sobre isso... Ele não pode dar um protocolo de utilização... Então, se vir a ser ensinado aqui, vai ser ensinado “o geralzão”... Eles não vão ensinar tu a tomar, eles vão ensinar o que o hormônio faz no corpo...[...]

Acetrem

Neste relato Acetrem demonstra plena consciência do quão difícil é tratar deste tema em disciplinas da graduação em Educação Física, especialmente no que se refere à dosagem e administração. Johnhy, participante que é árbitro de competições de fisiculturismo, segue a mesma linha de raciocínio:

[...] a gente vê muito pouco, inclusive na faculdade, sobre isso. Parece que é um tabu, um dilema, falar sobre esteroides. Às vezes, quando o tema é abordado em aula, a professora já tenta cortar... Já diz que é ruim e pronto... Não quer entrar em mais detalhes. Eu acho que seria muito interessante a gente começar a debater isso mais a fundo na faculdade...[...]

Johnhy

Johnhy consegue verbalizar de forma bastante direta o que os demais entrevistados apenas sugeriram: o tema dos anabolizantes é um conteúdo “tabu” para os docentes, sobre o qual paira uma aura de proibição e clandestinidade que interdita até mesmo o debate em aula. Pelo que se pode depreender das falas dos entrevistados, parece que a abordagem formal sobre os anabolizantes na faculdade é evitada a fim de não ser vista como incitação ao consumo de uma substância ilícita, um delito cometido por associação indevida com aquilo que foi ensinado em aula.

Entretanto, um dos assuntos correlatos ao tema dos anabolizantes considerados mais palatáveis é o efeito dos hormônios no corpo humano. Na ótica dos participantes, tais temas chegam a ser abordados em disciplinas da graduação vinculadas à perspectiva biodinâmica, mas de forma reservada. Big Randy relata o seguinte em seu depoimento:

[...] eu lembro de ser citado em duas ocasiões o uso de esteroides anabolizantes... na disciplina de fisiologia do exercício, rapidamente, numa aula de endocrinologia se falou sobre isso... o uso de testosterona sintética e os efeitos colaterais em homem e mulher... Só... [...]

Big Randy

O funcionamento da regulação hormonal no corpo humano, por ser um conteúdo mais palatável, acaba sendo tratado em algumas das disciplinas da graduação em Educação Física. Mas quando há qualquer relação com a temática da utilização de medicamentos anabolizantes para fins não terapêuticos, logo a interdição é novamente levantada, tal como relata João Cezar, na seguinte passagem:

[...] em nenhum momento nós tivemos cadeiras específicas, ou mais dirigidas, esclarecendo... mas nós tivemos muitas, algumas cadeiras, como fisiologia e esporte de rendimento falando contra, mas isso não é uma maneira legal de apresentar a questão né... iniciando com o preconceito... a primeira maneira é informar, como funciona, como não funciona, se é bom, se é ruim... e não já diretamente chegar com preconceito né...[...]

João Cezar

Nesta fala é possível perceber que há docentes que procuram se distanciar ao máximo de qualquer conotação de incentivo ao uso, às vezes até mesmo exacerbando de forma extrema os perigos advindos do uso destes medicamentos, tão presentes no cotidiano da musculação e dos esportes de alto rendimento. De certo modo, esta “pedagogia do terror55 Bucher R. A ética da prevenção. Psic Teor e Pesq 2007;23:117-123. Doi: 10.1590/S0102-37722007000500021.
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,66 Carlini-Cotrim B, Rosemberg F. Drogas: Prevenção no cotidiano escolar. Cad Pesq 1990;74:40-46.,77 Büchele F, Coelho EB, Lindner SR. A promoção da saúde enquanto estratégia de prevenção ao uso das drogas. Cien Saude Colet 2009;14(1):267-273. Doi: 10.1590/s1413-81232009000100033
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anabólico” empregada em algumas disciplinas com viés biodinâmico se ancora no fato de que a Educação Física é um curso vinculado à área da saúde. Vejamos, então, como este dilema ético-sanitário é narrado pelos entrevistados:

[...]fazer musculação todos sabem que faz bem, melhora qualidade de vida, faz bem para as articulações... [...] não o anabolizante... o anabolizante não é para ser tomado por todo o mundo que pratica musculação...[...]

Johnhy

Ao afirmar que o anabolizante “não é para ser tomado por todo o mundo que pratica musculação”, Johnhy abre uma brecha para pensar que pode haver concessões, e ele especifica quais na seguinte passagem:

[...] todo o atleta ele faz o uso de algum ergogênico, de algum esteroide anabolizante. Todos os atletas, principalmente no fisiculturismo. Alguns mais outros menos... agora o que eu acho disso? Eu... é que quando se fala em atleta, se fala em alto rendimento... e aí tu não vê o lado da saúde... se tu for olhar o alto rendimento... a saúde fica de lado, e ele faz de tudo para alcançar aquele objetivo dele [...]

Johnhy

Neste caso, o anabolizante como ferramenta de potencialização do próprio corpo pode vir a ser tolerado nos casos de aprimoramento biológico1212 Rose N. A Política da Própria Vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. para fins competitivos. Potencialização que resulta naquele milésimo mais rápido quando se cruza a linha de chegada, naquele chute mais potente, naquela rebatida mais distante, e, inclusive, naquele corpo que se recupera mais rápido das disputas e das lesões. Essa proposição de Johnhy, por mais absurda que possa parecer, não é uma novidade.

O entrevistado João Cezar relatou que é frequentemente convidado a palestrar em aulas de cursos de graduação em Nutrição e Educação Física, locais onde a temática sobre o uso de anabolizantes com fins não-terapêuticos é tacitamente “proibida”. Quando questionado acerca destes convites, e levando em consideração que o fisiculturismo é um esporte que sofre preconceito pela utilização de anabolizantes, João Cezar justificou da seguinte forma o motivo que o levava a aceitar tais convites:

[...] acredito que por ser um atleta responsável. Por estar tanto tempo nesse meio... isso já é um fator determinante para mostrar que o alto rendimento também pode ser saúde e, por esse motivo, por ter uma aparência saudável e responsável, as pessoas me convidam muito para palestras, workshops... então, esse é um fator que eu sempre digo: é a longevidade! O atleta não é aquela pessoa que compete uma vez só, mas sim a vida inteira... [...]

João Cezar

Ao compararmos o modo como Johnhy e João Cezar falam sobre o tema identificamos uma importante divergência: enquanto o primeiro indica que não é possível associar saúde com esportes de alto rendimento, o segundo afirma que agindo de modo responsável é possível sim estabelecer tal associação. Ou seja, quando convém - possivelmente com vistas a ganhar espaço e reconhecimento dentro do campo acadêmico - podemos associar o esporte de alto rendimento à saúde (no caso mais específico, à longevidade), mas, de um modo geral, as rotinas as quais os atletas se submetem reafirmam a lógica do esporte como uma profissão insalubre. Além disso, outro elemento ainda mais polêmico que está implícito na fala de João Cezar é que dependendo do modo de usar os anabolizantes com fins não terapêuticos pode não trazer riscos à saúde. Evidentemente, não há garantias de que a utilização segura de anabolizantes no esporte faz de alguém um atleta responsável, ou que não haja risco, assim como a presença de um fisiculturista profissional como palestrante convidado em uma disciplina de um curso de graduação da área da saúde também não garante que a temática dos anabolizantes será tratada de forma aberta por aquela comunidade acadêmica.

O participante Big Randy narrou uma situação em que assistiu à palestra de um fisiculturista na graduação em Educação Física e destacou o seguinte:

[...] e uma ocasião na disciplina de Musculação o professor levou um fisiculturista profissional que não falou NADA sobre a utilização de esteroides... e alguém perguntou pra ele e ele se recusou a responder... [...] infelizmente isso leva a pessoa a buscar informações, hoje principalmente, pela internet... ou com outros usuários... [...]

Esta fala do Big Randy remete para uma dimensão do aprendizado sobre o anabolizante que coincide com uma fala do Acetrem: é “lá fora” da graduação em Educação Física que se adquire o conhecimento mais avançado sobre o tema. É possível perceber no relato dos diferentes participantes que “dentro” das disciplinas da graduação em Educação Física os anabolizantes são tratados como saberes clandestinos. Quando o assunto surge, só o “lado ruim” é apresentado, fazendo com que a discussão acerca do potencial de aprimoramento do próprio corpo por meio dos medicamentos anabolizantes seja negligenciada, abrindo espaço para a busca de conhecimentos em ambientes não tão controlados, como as redes sociais na internet.

É interessante analisar que, conforme Moraes, Castiel e Ribeiro1111 Moraes DR, Castiel LD, Ribeiro APPGA. "Não" para jovens bombados, "sim" para velhos empinados: o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica. Cad Saúde Pública 2015;31(6):1131-1140., há um discurso médico contraditório sobre a utilização de anabolizantes em pesquisas cuja a finalidade é a produção de evidências clínicas. De acordo com estes autores1111 Moraes DR, Castiel LD, Ribeiro APPGA. "Não" para jovens bombados, "sim" para velhos empinados: o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica. Cad Saúde Pública 2015;31(6):1131-1140., a busca por uma equação científica que pondere os riscos e os benefícios da utilização destes recursos androgênicos é uma forma de definir as fronteiras entre as condutas clinicamente justificáveis daquelas moralmente condenáveis. E na medida em que há muitas zonas de sombra sobre esta fronteira, o tema passa a ser encarado como nebuloso, deixando de ser tratado como conteúdo nos cursos de formação inicial.

A partir da fala dos participantes, e também levando em consideração o teor de clandestinidade que paira sobre o tema, foi possível identificar duas categorias de estudantes que têm em comum o interesse sobre a discussão relacionada aos medicamentos anabolizantes.

A primeira categoria é composta por aqueles que ingressaram na graduação em Educação Física pensando que este seria o lugar propício para “aprender a tomar bomba”. Este perfil de ingressante, com o passar do tempo dentro do curso, acaba se decepcionado com o que aprende (ou com o que não aprende) sobre um tema que o motivou a escolher a graduação em Educação Física. Tal decepção pôde ser percebida nas falas de Acetrem, Big Randy e Rogério, que tiveram que buscar fora da graduação o aprendizado que, inicialmente, achavam que seria obtido no curso de Educação Física. Isso ocorre porque a temática não é debatida abertamente, há uma espécie de estranhamento docente mesmo quando alguma questão sobre a utilização de medicamentos anabolizantes como ferramentas de aprimoramento corporal é posta em pauta.

A segunda categoria é composta pelos sujeitos que aprenderam a utilizar o anabolizante “lá fora”, mas vem para “dentro” da Educação Física a fim de buscar uma legitimidade de atuação; um “salvo conduto” ante os órgãos fiscalizadores, como, por exemplo, o CREF/RS. Um exemplo disso é o entrevistado João Cezar, que antes de ingressar na Educação Física já era fisiculturista profissional, bem como a entrevistada J. Kiss, que optou em primeiramente se formar em Licenciatura em Educação Física para depois ingressar no Bacharelado a fim de ter sua atuação nas academias de musculação autorizada pelo CREF/RS.

Para os alunos que entram na graduação em Educação Física pensando em “aprender a tomar bomba”, um sentimento de decepção toma conta quando percebem que os anabolizantes são um conteúdo praticamente clandestino. Tal decepção pode ser percebida nas falas de Acetrem, Big Randy e Rogério, que tiveram que buscar fora da graduação o aprendizado que, inicialmente, achavam que obteriam nas disciplinas do curso. Já para aqueles que ingressaram no curso sabendo como usar, e que tinham por objetivo ter o “canudo” como uma espécie de “salvo conduto” ante os órgãos fiscalizadores, tinham consciência de que era preciso “pagar um pedágio”. Um exemplo disso é o entrevistado João Cezar e a entrevistada J. Kiss, que antes de ingressarem na Educação Física já eram fisiculturistas profissionais. Ambos informaram ter buscado a formação em Educação Física, principalmente o bacharelado, para evitar problemas que já haviam enfrentado com o CREF/RS em relação à atuação nas academias de musculação.

Se a utilização não terapêutica dos anabolizantes - mesmo sendo fato que se consuma diariamente nas academias de musculação e também exposto na Internet23,24 e em outros meios de comunicação - não é abordada na graduação em Educação Física em suas diferentes dimensões, passa a existir uma lacuna no processo de aprendizagem sobre tal temática. Talvez por este motivo que este espaço é cada vez mais ocupado por conselheiros contemporâneos1212 Rose N. A Política da Própria Vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013..

Considerações Finais

O aprendizado sobre os anabolizantes ainda é um tabu nas disciplinas da graduação em Educação Física. Há farta evidência na literatura sobre os danos à saúde provenientes do uso não terapêutico de hormônios anabolizantes, mas quase nada sobre a magnitude desse uso. Muita informação balizada sobre os riscos à saúde e ao bem-viver coletivo, mas poucas sobre os efeitos positivos/negativos no processo de modelagem corporal1111 Moraes DR, Castiel LD, Ribeiro APPGA. "Não" para jovens bombados, "sim" para velhos empinados: o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica. Cad Saúde Pública 2015;31(6):1131-1140..

Para estudantes-fisiculturistas, tanto os que ingressaram para aprender sobre anabolizantes quanto os que apenas queriam um diploma, este cenário é ainda mais complexo, pois eles precisam lidar com demandas aparentemente irreconciliáveis: não ser conivente com qualquer tipo de risco à saúde inerente a todo o profissional deste campo e, ao mesmo tempo, lidar com a demanda por administração não terapêutica de recursos de potencialização muscular. É nesta fronteira entre o “aprender a tomar bomba” e o “agir ético-sanitário” que um dilema se constitui; é de onde emergem estratégias de aprendizagem posicionadas à margem da literatura científica, e algumas vezes, fora do ordenamento legal.

Na medida em que a formação inicial em Educação Física não trata dos prós e contras acerca do uso de anabolizantes para fins de aprimoramento corporal, os estudantes-fisiculturistas não encontram no currículo respaldo teórico-prático para se tornarem experts no processo de hipertrofia muscular pela via medicamentosa. Esse rechaço ao tema leva alguns alunos a buscarem informações no lado de fora da graduação, em lugares onde a experiência científica não é tão controlada. Em algumas situações, o estudante-fisiculturista toma seu próprio corpo como material empírico e gabarito final de experimentos aos quais se submete, voluntariamente, em busca de mais saber.

Apesar de o número de participantes que originou o artigo ser reduzido, o que reconhecemos como um limite da pesquisa, é possível afirmar que o “silêncio curricular” sobre o uso de anabolizantes para fins de aprimoramento corporal não gera maior conscientização sobre o, tampouco a diminuição do, uso destas substâncias entre estudantes fisiculturistas. Esse silêncio dentro dos cursos, associado à atmosfera de clandestinidade, pode favorecer a circulação de mais desinformação e ainda mais riscos.

Explicitar o dilema ético-sanitário enfrentado pelos estudantes-fisiculturistas de um curso de Educação Física de uma universidade no Brasil é uma forma de trazer à tona no âmbito acadêmico uma faceta do fenômeno da utilização não-terapêutica de substâncias para potencialização muscular, uma temática que julgamos importante de ser tratada, com os devidos cuidados, no processo de formação profissional dos cursos do campo da saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2019
  • Revisado
    24 Fev 2020
  • Aceito
    20 Mar 2020
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