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O CORPO NO ENSINO MÉDIO: UMA ANÁLISE DA PERCEPÇÃO CORPORAL DOS ESTUDANTES DO RIO DE JANEIRO

THE BODY IN HIGH SCHOOL: AN ANALYSIS OF THE BODY PERCEPTION OF RIO DE JANEIRO STUDENTS

RESUMO

O objetivo do artigo é investigar a percepção corporal dos estudantes do Ensino Médio em escolas estaduais do Rio de Janeiro, a partir da perspectiva filosófica de Michel Foucault e da sociologia de David Le Breton. As categorias corpo acessório, poder disciplinar e biopoder foram estabelecidas a partir do referencial teórico adotado. Na pesquisa exploratória foram coletados 392 questionários e inferimos a partir deles que os adolescentes sentem-se bem consigo, não se encontram felizes com sua aparência física, não estão felizes com seu peso e altura, acreditam que atos de bullying estão relacionados à aparência física e apresentam uma tendência a modificarem seus corpos.Eles percebem seu comportamento sendo observado na escola, consideram importante o controle de seu tempo e espaço, sentem-sequestionadores das normas estabelecidas e não encontram espaço para expressarem suas opiniões. Os adolescentes aprovam a maneira que se comportam e reconhecem que a aparência física facilita a aceitação nos grupos sociais.Concluimos que processos de individualização podem forjar indivíduos, negando o direito de serem verdadeiramente individuais, fragmentando sua vida comunitária, sendo forçando-os a voltarem-se a si mesmo, por medo de uma possível não aceitação social.

Palavras-chave:
Escola; Corpo; Adolescente

ABSTRACT

The objective of this article is investigate the body perception of high school students in schools in state of Rio de Janeiro, from the philosophical perspective of Michel Foucault and the sociology of David Le Breton. Thecategoriesbodyacessory, disciplinary power and biopower were estabilished for the referencial theory adopted. In the exploratory research were collected 392 questionnaires and we infer from them that adolescents feel good about themselves, they are not happy with their physical appearance, they are not happy with their weight and height, they believe that acts of bullying are related to physical appearance and show a tendency to change their bodies. They perceive their behavior being observed in the school, consider important the control in theirs time and space, they feel challenged by the norms established and not find spaces to express their opinions. They approve of the way they behave and recognize that physical appearance facilitates acceptance in social groups. We may conclude that such individualization processes can forge individuals by denying the right to be truly individual, fragmenting their community life and forcing the individual to turn to himself, for fear of a possible not social acceptance.

Keywords:
School; Body; Adolescents

Introdução

O campo educacional pode ser considerado um campo bastante fértil quando se trata de estudos, pesquisas e até mesmo de opiniões, pois muitos indivíduos já vivenciaram esse espaço em algum momento das suas vidas. É nesse campo fértil, constituído de diversas corporeidades que este artigo se desenvolveu realizando uma análise da temática corpo no dispositivo escolar. A temática será problematizada nas áreas de conhecimento da sociologia e da filosofia com a tentativa de ampliar as discussões do devir destes corpos na escola. Partindo do pressuposto que a condição humana é corporal, moldada pelo contexto social e cultural no qual o ser humano está inserido, o corpo aqui é entendido como o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012.. O objetivo do artigo é investigar a percepção corporal dos estudantes do Ensino Médio em escolas estaduais do Rio de Janeiro, a partir da perspectiva filosófica de Michel Foucault e da sociologia de David Le Breton.

Mediante a delimitação do objetivo foram estabelecidas as seguintes questões a investigar: (1) Como os adolescentes percebem seus corpos? (2) Os adolescentes percebem uma incompletude em seus corpos e por isso buscam modificá-los? (3) Os adolescentes percebem seus corpos sendo normatizados, docilizados?(4) Os adolescentes percebem um ordenamento de suas condutas?

A partir do objetivo seguimos para uma pesquisa de caráter exploratório, a qual adotou a elaboração de um questionário como instrumento de coleta de dados. O questionário contém treze perguntas nas quais três categorias de análise foram estabelecidas. Nesta pesquisa as contribuições da sociologia delinearamo olhar sobre o corpo e as relações entre o sujeito e o poder, afloradas na filosofia de Michel Foucault que iluminaram nosso percurso investigativo. Le Breton2 refere-se ao corpo como um objeto de estudos muito peculiar, um produto e produtor de cultura, inserido numa trama social de sentidos, que funciona nas sociedades ocidentais como um marco de fronteira que delimita perante os outros a presença do sujeito. É através deste corpo que os jovens do ensino médio se individualizam, se diferenciam ou se aproximam dos demais. Onde ocorre também a disputa entre os desejos reais e os desejos introjetados com o propósito de simbolizar suas identidades. Os jovens criam marcas corporais comuns tornando muitas vezes seu corpo uma espécie de acessório, o qual vai sendo modificado baseado em seus desejos momentâneos. Pautando-se no aporte teórico de Le Breton surgiu a primeira categoria de análise para a pesquisa em tela: o corpo acessório33 Le Breton D. Adeus ao Corpo: Antropologia e sociedade. 6ª ed. São Paulo: Papirus; 2013..

As reflexões do filósofo Foucault4 acerca das relações de poder que regem o corpo nas sociedades também farão parte da nossa pesquisa. A configuração do corpo como um objeto de investimento e alvo de poder pode ser percebida bem antes do século XX. Do século XVII ao início do séculoXX acreditava-se que o investimento do poder sobre o corpo deveria ser rígido, denso e constante44 Foucault M. Microfísica do poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1984.. Partindo deste princípio foram desenvolvidos regimes disciplinares que ocuparam as fábricas, as escolas, os hospitais, entre outros4. Segundo o autor, houve uma modificação nos regimes de poder. A partir dos anos sessenta, configurando a transição de um controle-repressão (rígido, denso, constante) para um controle-estimulação (poder agindo de maneira mais tênue sobre o corpo). Esse controle-repressão colocado pelo autor é configurado pela lógica do poder disciplinar55 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária;1995..Encontramos na teoria de Michel Foucaultos conceitos de poder disciplinar55 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária;1995. e biopoder66 Foucault M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1982. os quais fundamentaram as outras duas categorias de análise desta pesquisa. Estabelecemos as categorias corpo acessório, poder disciplinar e biopoder a priori pois acreditamos que estes conceitos fundamentam de forma consistente a problematica da percepção corporal.

É importante ressaltar que nesta pesquisa definimos percepção corporal nos baseando em Silva e Palmeira77 Silva M, Palmeira A L. Associações entre auto-conceito físico e motivação para o exercício em adolescentes: interações com o nível de pratica e o gênero. Rev. Educ. Fís. 2010; 148(1): 227-236. DOI https://doi.org/10.37310/ref.v79i148.237
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que entendem a percepção corporal como uma manifestação humana multidimensional e complexa, que envolve aspectos cognitivos, afetivos, sociais, culturais e motores. Ela ultrapassa a realidade neuropsicológica, oferecendo um conceito mais complexo para a abordagem de estudos sobre o corpo, englobando, além do aspecto mental, a dimensão social.

Os estudantes do ensino médio por se apresentarem em um período de transição e de reformulação da sua identidade, estão inseridos em uma fase bastante peculiar quando nos referimos à temática corpo. Segundo Oliveira88 Oliveira M A T. Educação do Corpo na escola brasileira. Campinas: Autores Associados; 2006., a análise da corporeidade no interior das escolas só passou a ser estudada recentemente, visto que, no campo educacional,as pesquisas se voltam em larga escala para preocupações com reformas educacionais, grandes projetos, entre outros. Secundarizam-se as relações do interior das escolas e, complementando o autor, as percepções dos alunos. Acreditamos que a dinâmica escolar encontra dificuldades para compreender a diversidade das corporeidades que a compõem. Essa dificuldade, juntamente com a precariedade de ações lançadas para entender os processos de sujeição que ocorrem na escola, podem ser considerados elementos pouco explorados em pesquisas educacionais.

A fase escolar na qual esta pesquisa está inserida é denominada de ensino médio e atualmente, como toda a educação básica, passa por uma etapa de grande reformulação. Avanços e recuos nas políticas educacionais desse seguimento estão em discussão,porém mais uma vez não observamos apontamentos na dinâmica do interior das escolas sendo pensadas.

É necessário centralizar debates nas relações que ocorrem no interior das escolas e passar a levar em conta as percepções dos alunos se almejamos uma escola de maior qualidade, a qual norteia suas políticas educacionais nos principais destinatários: os estudantes. Apostamos que a dinâmica do interior das escolas pode ser analisada encontrando eixos de discussão a partir da percepção que os estudantes têm de seus corpos. O fato é que uma grande parcela da vida dos sujeitos e duas grandes transformações fisiológicas que acontecem durante a vida - a infância e a adolescência - são experienciadas dentro dessa instituição. As mudanças entre os níveis de ensino, as mudanças fisiológicas, comportamentais e maturacionais que os sujeitos perpassam se localizam numa cronologia vasta dentro da escola.

Não nos propusemos aqui a relatar um panorama do corpo no ensino médio, nem tampouco organizar a amplitude de percepções corporais referentes aos adolescentes em categorias, pois isso seria uma tarefa impossível. A impossibilidade se faz uma vez que os campos de investigação que atravessam essa pesquisa percorrem caminhos múltiplos, podendo estar situados em diversos ângulos de análise. Investigar a percepção corporal, a educação do corpo na escola, refletir sobre a dinâmica escolar relacionada aos corpos baseando-se na filosofia de Michel Foucault e na sociologia do corpo de Le Breton não é tarefa fácil e, por isso, buscamos na literatura os desafios e os apontamentos necessários.

Considerações de Foucault sobre o corpo

Posterior à época de um poder soberano, onde o direito à vida era regulado pelos detentores dos meios de produção, que decidiam sobre a vida ou morte de uma parcela dos sujeitos, técnicas de poder foram sendo estabelecidas. Técnicas estas centradas no corpo, definidas por Foucault4 como mecanismos de regulação que se perpetuam numa infinidade de capilaridades, as chamadas microfísicas de poder. Essas redes podem ser consideradas um processo de técnicas que definem investimentos sobre o corpo a partir de um discurso bem politizado, bem elaborado e que acaba corrompendo os indivíduos em suas formas de pensar e agir44 Foucault M. Microfísica do poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1984.. Elas fazem parte de um poder disciplinar instaurado na sociedade no século XVIII e diagnosticado por Foucault44 Foucault M. Microfísica do poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1984. com uma nova aparência, a aparência de um poder que regula e vigia de forma a manter as vidas dos indivíduos, suas atividades, seu trabalho e o lazer sob o controle de disciplina, em diversas esferas de instituições coletivas.

Em suas pesquisas, Foucault44 Foucault M. Microfísica do poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1984.

5 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária;1995.
-66 Foucault M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1982.,99 Foucault M. Vigiar e punir: O nascimento da prisão. 10ª ed. Petrópolis: Editora Vozes;1993. centrou suas análises em como o ser humano se torna sujeito e neste percurso ele aproxima seus estudos da questão do poder. Diversas são as relações de poder que podem ser observadas ao longo da história: o poder pastoral, o poder soberano, o poder político, o poder disciplinar, o biopoder e entre tantas outras manifestações55 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária;1995..

No período histórico onde o poder pastoral predominava, as relações entre os homens eram pautadas no princípio do cristianismo, onde alguns, dependendo da qualidade religiosa que possuíam, deveriam servir aos outros como pastores55 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária;1995.. Para Foucault55 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária;1995., no poder pastoral o objetivo era assegurar a salvação individual no outro mundo. Não apenas uma forma de poder que comanda, mas que está preparada para sacrificar sua vida por seu rebanho, não cuidando apenas da comunidade como um todo, mas de cada indivíduo em particular. O poder pastoral vai perdendo forças ao longo dos séculos enquanto que uma nova forma de poder estava se estabelecendo: o poder da soberania55 Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária;1995.. O direito de vida e morte neste mecanismo de poder estava condicionado à defesa do soberano, à sobrevivência do mesmo. O poder, como só existe em ato, era atribuído nesta relação ao direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e da vida66 Foucault M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1982..

Técnicas de regulação centradas no corpo tais como o poder pastoral, o soberano e as disciplinas foram denominadas por Foucault66 Foucault M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1982. de anátomo-política do corpo. A disciplina dentro das instituições constrói seus próprios mecanismos de julgamento, o exame, impondo regras aos que se afastam do que é esperado. Ela opera a partir do estabelecimento da norma: a medida que ela avalia, julga, compara, diferencia, hierarquiza e homogeneíza se disciplina1010 Portocarrero V. Instituição escolar e normalização em Foucault e Canguilhem. Revista Educação & Realidade. 2004;1(29):169-185.. É no século XVIII que o normal se estabelece, tornando-se um dos grandes instrumentos de poder até os dias atuais, homogeneizando as multiplicidades, individualizando os sujeitos, tornando úteis as diferenças e deflagrando os anormais.

A norma pode ser destacada como um mecanismo bastante eficiente presente nas relações de poder, já que através dos hábitos de uma sociedade ela se perpetua de forma oculta, dando ainda maior descrição ao poder disciplinar.

Contudo, o poder pastoral não desapareceu, ele apenas foi reformulado perdendo suas conexões com o cristianismo e religiosidade, ampliando uma nova organização de poder: individualizante. Na atualidade o poder exercido pelos Estados é o poder político, que tem sua perspectiva individualista e totalizante. Concentra-se em um novo ordenamento das condutas a fim de controlar o corpo - através do poder disciplinar e também a fim de controlar a população - através do biopoder66 Foucault M. História da sexualidade I - A vontade de saber. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1982..

O biopoder é definido por Foucault6 como a forma de poder que se dirige a um número cada vez maior de indivíduos, objetivando controlar a vida da população e dos subgrupos sociais. Ordenando as possibilidades de escolha e conduzindo as condutas o poder político governa assim a vida de todos44 Foucault M. Microfísica do poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1984..

No século XIX, os saberes relacionados às ciências do homem na modernidade se estabelecem: a psicologia, a educação, a psiquiatria, a sociologia e a psicanálise. O vínculo entre essas ciências e as relações de poder passam a definir o indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra, a partir de práticas sociais de controle, de vigilância e exame1010 Portocarrero V. Instituição escolar e normalização em Foucault e Canguilhem. Revista Educação & Realidade. 2004;1(29):169-185..

Considerações de Le Breton sobre o corpo

Baseando-se nas ideias do sociólogo David Le Breton11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012., à medida que o homem de forma ativa se insere nos espaços socioculturais, os corpos são capazes de produzir sentidos continuamente. As estruturas simbólicas são marcantes nas sociedades, nas culturas e ao longo das gerações. Segundo Le Breton11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012., o corpo é produtor de sentidos, ele é moldado pelo contexto social e cultural no qual o ator está inserido, sendo o vetor pelo qual a relação com o mundo é construída.

Vivemos em uma época onde o individualismo é crescente, paralelamente a busca pela constituição de uma identidade é notoriamente perseguida pelos homens, sobretudo pelos mais jovens1111 Silva M, Baptista G G. O Corpo na/da escola: As possibilidades da educação física escolar na (des)construção das representações corporais. Revista contemporânea de Educação 2014;18(9):227-236. DOI https://doi.org/10.20500/rce.v9i18.1863
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. As sociedades contemporâneas conferiram aos jovens uma interpretação de seus corpos como algo que pode ser modificado ininterruptamente, manipulável até o ponto de criar formas inéditas ao corpo. Le Breton3 nos apresenta a ideia de que: se para os indivíduos não é possível mudar suas condições de existência naquele momento, os contornos biológicos estabelecidos, entretanto, é possível mudar o corpo de múltiplas maneiras. O autor conceitua essa relação como corpo acessório, sendo o corpo julgado como uma matéria prima que está sempre disposta a novos moldes, redefinições, uma maleabilidade que nunca cessa.

Na obra Adeus ao Corpo o autor33 Le Breton D. Adeus ao Corpo: Antropologia e sociedade. 6ª ed. São Paulo: Papirus; 2013. traz reflexões de como o corpo torno-se um suporte de presença do indivíduo na contemporaneidade. A sensação de domínio sobre o corpo, as marcas corporais, o bodybuilding, o bodyart e a produção farmacológica de si são alguns exemplos utilizados que conferem ao corpo a interpretação de objeto, sempre à disposição para modificações, com a perspectiva de melhorá-lo diante da incompletude que o sujeito vivencia.

Nesta atmosfera cotidiana de busca por um corpo ideal, amplamente divulgado como saudável, belo e acima de tudo, necessário, podemos utilizar as ideias que Le Breton1 traz a respeito do manto de Arlequim. Segundo o autor11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012., mediante a tantas teorias formadas a partir do século XX em prol da nova representação do corpo, distantes de tudo do que fazia sentido até então, o homem acabou por projetar sobre seu corpo um saber heterogêneo, um saber feito de zonas de sombra, de imprecisões, de confusões, de conhecimentos abstratos aos quais ele empresta certo relevo. Esse saber constituído por zonas de imprecisões é destacado pelo autor11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012. como um possível produto, originário de uma rivalidade existente na sociedade, a qual multiplica imagens do corpo. Imagens estas que, segundo o autor11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012., raramente aparecem de forma coerente e heterogênea, pelo contrário, estão sempre agenciadas a contradições.

Os sujeitos, então, raramente terão uma imagem coerente de si ao projetarem seus corpos. Isto porque sua liberdade e criatividade como indivíduo acabam por alimentar-se de incertezas, o que os leva a uma busca constante por um corpo perdido. Vale ressaltar que a liberdade e a criatividade permitida aos indivíduos ocultam que essa livre escolha está submetida a regras11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012.. Regras estas que podem se modificar de um território a outro, tornando o corpo uma realidade muito distante de ser uma unanimidade nas sociedades humanas. Os contextos sociais e culturais, nos quais os atores estão inseridos, fornecem fronteiras bem demarcadas de até onde estes corpos podem ir.

Os adolescentes imersos nessa atmosfera de multiplicação das imagens sobre o corpo buscam mudanças. Seus corpos enredados no dinamismo das culturas e submersos nos espaços sociais do sistema escolar transitam e aperfeiçoam-se, encontram espaço ou resistência, aproximam-seou se afastam das percepções que já puderam ter um dia de seus corpos.

Para o sociólogo francês11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012. o recuo das tradições populares de tipo comunitárias marca o surgimento do corpo contemporâneo, sendo então este o resultado do recuo das tradições populares e do advento do individualismo ocidental, marcaa fronteira entre o indivíduo encerrando o sujeito em si mesmo. As representações sociais do corpo, assim como os saberes que essas representações alcançam, estão subordinadas a um estado social, a uma visão de mundo e situam o corpo como uma construção simbólica e não uma realidade em si2.

A estruturação individualista teve início no período renascentista e ganhou cada vez mais espaço ao longo dos séculos. Com o sentimento do indivíduo deser ele mesmo, antes de ser membro da comunidade, a definição contemporânea de homem ganha estrutura, estando o indivíduo cada vez mais separado dos outros, do cosmo e posteriormente separado de si11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012..

O avanço dos estudos sobre anatomia também contribuíram nesse comportamento individualista segundo o autor. Le Breton1 revela que entre os séculos XVI e XVII o saber biomédico foi legitimado pelos anatomistas, trazendo um novo entendimento do que é o corpo objeto de estudos estéticos para definir proporções ideais, tornando-se um objeto de exibição.

Na esteira desta polarização em relação às formas de lidar com o corpo, podemos dizer que surge uma “anatomia política”, ou, melhor dizendo, uma “tecnologia política do corpo”. Esta tecnologia segundo Le Breton1 foi analisada de maneira magnífica pelo filósofo Michel Foucault99 Foucault M. Vigiar e punir: O nascimento da prisão. 10ª ed. Petrópolis: Editora Vozes;1993..

Métodos

Diante da problemática estabelecida iniciamos uma busca na base de dados do portal Capes e Scielo onde foi possível observarmos como o campo da percepção corporal se apresenta matizado, longe da simplicidade de seu entendimento, o que possibilita uma extensão de caminhos de pesquisas que podem ser feitos.

A partir dos sentidos encontrados sobre a percepção corporal nas bases de dados, partimos para uma pesquisa de caráter exploratório. Segundo Gil1212 Gil A C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 4ª ed. São Paulo: Atlas; 1994. a pesquisa exploratória desenvolve, esclarece e modifica conceitos formulando problemas mais precisos para investigações posteriores. Essas pesquisas objetivam proporcionar uma visão geral de determinados fenômenos, sendo considerada a primeira etapa de uma pesquisa mais ampla1313 Moreira H,Caleffe LG. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. Rio de Janeiro: Lamparina; 2008..

Participantes

Participaram da pesquisa trezentos e noventa e dois estudantes regularmente matriculados no 2º e 3º ano do ensino médio em escolas estaduais do Rio de Janeiro. A restrição ao 2° e 3° ano do ensino médio ocorreu porque a pesquisa objetiva alcançar adolescentes que já administram há algum tempo as transformações que ocorrem nessa fase da vida e as relações que a instituição escola realiza, ou tenta realizar em seus corpos. A faixa etária dos participantes compreendeu dos 14 (0,25%) aos 35 (0,25%) anos, sendo a idade de 17 anos (43,4%) a mais representativa. Quanto ao gênero,observamos que a maior parte respondeu feminino (56%), seguido de masculino (45%); e, na característica da raça, alcançamos pardos (36,7%), pretos (31,6%), brancos (29,5%) e amarelos (2,1%).

Procedimentos

Para a coleta dos dados um questionário foi elaborado, inspirado em um modelo produzido por Harter1414 Harter S. Profile for Children (8 - 13).[Internet]. University of Denver [acesso em 22 de maio 2017]. Disponível em: http: portifolio.du.edu
http: portifolio.du.edu...
,1515 Harter S. Profile for Adolescents (14 -19). [Internet]. University of Denver [acesso em 22 de maio de 2017]. Disponível em: http: portifolio.du.edu
http: portifolio.du.edu...
, posteriormente enviado para uma equipe de três doutores especialistas no procedimento de validação. As recomendações obtidas no processo de validação foram acatadas e após os ajustes necessários submetemos ao comitê de ética toda a pesquisa. Após submissão à Plataforma Brasil e sua aprovação sob o número CAAE 89005218.0.0000.5582, o projeto piloto da pesquisa foi então realizado.

O instrumento elaborado é composto de 13 questões fechadas, as quais estão subdividas nas três categorias de análise. As questões 1, 2, 5, 6 e 7 correspondem à categoria Corpo Acessório, as questões 10, 11, 12 e 13 correspondem à categoria Poder Disciplinar. Já as questões 3, 4, 8 e 9 correspondem à categoriaBiopoder.

O design do instrumento de coleta dos dados é semelhante ao criado por Harter14, 15 no que diz respeito a maneira de responder ao questionário e à disposição das sentenças, porém as categorias investigadas foram modificadas e o tratamento estatístico também. Nossas categorias de análise foram estabelecidas mediante diálogos feitos com o referencial teórico adotado para a pesquisa e o tratamento estatístico foi feito por um profissional da área. É importante destacar a inextrincável relação do instrumento com as questões que nos propusemos a investigar: (1) Como os adolescentes percebem seus corpos? (2) Os adolescentes percebem uma incompletude em seus corpos e por isso buscam modificá-los? (3) Os adolescentes percebem seus corpos sendo normatizados, docilizados?(4) Os adolescentes percebem um ordenamento de suas condutas?

As escolas que compõem a amostra desta pesquisa foram selecionadas mediante a acessibilidade aos professores de educação física regentes. Os docentes foram contactados previamente e tomaram ciência dos documentos de certificação de apresentação ao comitê de ética (CAAE), carta de apresentação da pesquisa, termo de consentimento, termo de assentimento e termo de anuência.

Os professores de educação física disponibilizaram nossa entrada em suas aulas e os questionários, assim como os termos de compromisso, foram distribuídos aos alunos durante as aulas. O projeto piloto aconteceu em maio de 2018, em uma escola estadual localizada no município de Nova Iguaçu. Assim que os estudantes receberam os questionários, foram orientados através de um protocolo lido pelo pesquisador de como deveriam responder às perguntas. Não foi sinalizada nenhuma dúvida dos adolescentes em relação ao instrumento.

Nos meses de junho e agosto coletamos os dados de duas escolas estaduais localizadas no município de Niterói e no mês de agosto mais uma escola foi coletada no município do Rio de Janeiro. É importante destacar que as escolas selecionadas para a pesquisa em tela foram instituições que permitiram nossa entrada sem a autorização redigida pela Secretaria Estadual de Educação, mas com o consentimento de seus respectivos diretores e professores de educação física.

Aos maiores de dezoito anos recolhemos os termos de consentimento no ato, já os termos de consentimento livre e esclarecido destinado aos responsáveis e o termo de assentimento entregues aos menores de idade foram recolhidos, devidamente preenchidos, posterior à nossa visita nas escolas pelos respectivos professores de educação física. É importante saber que nenhum estudante ou responsável foi contrário à participação da pesquisa e se isto ocorresse imediatamente seria descartado o questionário preenchido pelo mesmo. Os questionários preenchidos pelos menores de idade foram identificados no verso a lápis com o nome da escola, o número da turma e o número da chamada dos estudantes. Posterior à entrega dos termos devidamente preenchidos e assinados os questionários entraram na catalogação dos dados.

Análise dos dados

O processo de tabulação dos dados foi feito através do programa Excel e a partir do banco de dados formado recorremos ao programa SPSS para realizarmos testes de proporção em relação a gênero e raça. O programa Excel também foi utilizado para classificar dados, criar tabelas e gráficos. Na estatística descritiva foram utilizadas as frequências absolutas e relativas das variáveis do estudo. Na estatística inferencial foi utilizado o teste Z de proporção no sentido de identificar possíveis diferenças significativas entre as respostas às questões 7, 9 e 10, em relação ao gênero e à raça. Quando os resíduos ajustados estavam entre -1,96 e + 1,96 foi aceita a hipótese nula de igualdade entre as proporções com base nos dados amostrais obtidos, ao nível de significância de 5%, ou seja, as proporções eram iguais. Caso contrário, ou seja, quando os resíduos ajustados estavam fora do intervalo, as proporções eram distintas e representaram diferença significativa.

A análise dos dados foi feita buscando responder nossas questões investigativas. Nesse sentido iniciamos com a pergunta: como os adolescentes percebem seus corpos? Sua relação com as questões 1, 2, 5 e 6 foi analisada. Em seguida partimos para a pergunta: os adolescentes percebem uma incompletude em seus corpos e por isso buscam modificá-los? Nesta pergunta a abordagem foi feita pela questão 7. Na terceira questão investigada: os adolescentes percebem seus corpos sendo normatizados, docilizados? Foram relacionadas as questões 10,11,12e 13 do questionário. Já na última questão investigada: se os adolescentes percebem um ordenamento de suas condutas? As questões 4, 8 e 9 foram as que constituíram a abordagem.

Resultados

Os resultados aqui serão apresentados em conformidade com as questões investigativas elencadas ao longo desse estudo. Em relação à primeira questão investigada, de como os adolescentes percebem seus corpos, constatamos que eles sentem-se bem consigo mesmos (35,7% e 27,8% - maiores percentuais encontrados na questão n° 1); não se encontram totalmente felizes com sua aparência física (29,1% e 27% - maiores percentuais encontrados na questão n° 2); não estão totalmente felizes com seu peso e sua altura (32,1% e 31,4% - maiores percentuais encontrados na questão n°5) e acreditam que atos de bullying estão relacionados à aparência física (57,7% - maior percentual encontrado na questão n°6).

Em relação à segunda questão investigada, se os adolescentes percebem uma incompletude em seus corpos e por isso buscam modificá-los, constatamos que eles demonstram uma tendência a modificarem seus corpos (30,9% e 26,5% maiores percentuais encontrados na questão n° 7).

Na terceira questão investigada, se os adolescentes percebem seus corpos sendo normatizados e docilizados, constatamos que eles percebem seu comportamento sendo observado na escola (42,1% e 31,9% - maiores percentuais encontrados na questão n° 10), consideram importante o controle que esta instituição faz em seu tempo e espaço (34,4% e 32,9% - maiores percentuais encontrados na questão n° 11), não encontram espaços para expressarem suas opiniões no ambiente escolar (34,4% e 26,3% - maiores percentuais encontrados na questão n° 12) e sentem-se questionadores das normas estabelecidas por essa instituição (48% e 27,56% - maiores percentuais encontrados na questão n°13).

Na quarta questão investigada, se os adolescentes percebem um ordenamento de suas condutas, descobrimos que eles percebem um controle da escola sobre suas condutas (32,7% e 42,6% - maiores percentuais encontrados na questão n° 9); aprovam a maneira que se comportam (46,4% e 30,6% - maiores percentuais encontrados na questão n°8), reconhecem que a aparência física facilita a aceitação nos grupos sociais (42% e 36% - maiores percentuais encontrados na questão n° 4) e percebem que os padrões de beleza sofrem modificações ao longo da história (61,7% maior percentual encontrado na questão n°4).

No resultado do teste de proporção não foram encontradas diferenças significativas nas respostas das questões 9 (poder disciplinar - alguns adolescentes percebem que existe um controle da escola sobre suas condutas mas outros adolescentes não percebem que existe um controle da escola sobre suas condutas) e 10 (biopoder - alguns adolescentes sentem que seu comportamento está sendo observado na escola, mas outros adolescentes não sentem que seu comportamento está sendo observado na escola) em relação às características de raça e gênero. Entretanto, na questão 7 (corpo acessório - alguns adolescentes não modificam constantemente seus corpos, mas outros adolescentes modificam constantemente seus corpos) foram encontradas algumas diferenças. Percebemos que a raça branca modifica menos seus corpos do que as raças preta e parda. Proporcionalmente 21,8% para a branca, 33,6% para a preta e 42,9% para a parda. As raças preta e parda não diferiram entre si proporcionalmente. Em relação ao gênero observamos que o feminino modifica mais seus corpos quando comparado ao masculino, proporcionalmente 41,1 % para o feminino e 20% para o masculino.

Discussão

Ao analisarmos os resultados notamos que os conceitos de corpo acessório, poder disciplinar e biopoder aparecem como fenômenos presentes nas escolas pesquisadas. Os conceitos de manto de Arlequim11 Le Breton D. Antropologia do corpo e modernidade. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2012. e da norma9 também foram observados nas respostas analisadas, ambos respectivamente associados ao corpo acessório e ao poder disciplinar.

Atribuímos o fato dos adolescentes modificarem constantemente seus corpos à necessidade que eles tem de construirem novas identidades, interpretando o corpo como um objeto maleável, provisório, uma matéria-prima a modelar: um corpo acessório. Notamos a partir dos resultados que o conceito de corpo acessório está associado às questões de aceitação social.

Para Le Breton16 a adolescência é um período bastante crítico quando nos referimos à satisfação corporal, pois os corpos dos jovens transformam-se quase que diariamente imprimindo uma relação híbrida no que diz respeito à percepção corporal. A atmosfera cotidiana de busca por um corpo ideal certamente contribui na tendência dos jovens modificarem seus corpos, na relação que eles têm com seu peso, altura e aparência física. É certo que são muitas informações veiculadas sobre o corpo na contemporaneidade e, de acordo com Le Breton1 os indivíduos acabam bricolando sua visão pessoal de corpo sempre agenciada a contradições, formando um saber heterogêneo, com zonas de sombras e imprecisões, uma espécie de manto de Arlequim.

Tensionando os resultados obtidos na categoria poder disciplinar notamos a presença da norma, compreendemos a atuação das técnicas disciplinares vigilância hierárquica e esquadrinhamento dos corpos. Esses mecanismos mostram sua eficácia ao serem percebidos como controles positivos no cotidiano dos estudantes. Através da vigilância hierárquica a disciplina generaliza os indivíduos e através da sanção normalizadora ela organiza as diferenças, tornando-as úteis, normalizando os indivíduos. Quando os estudantes revelam sentir a presença de uma observação sobre seu comportamentoea falta de espaços para expressarem suas opiniões constatamos com clareza a atuação do poder disciplinar. Os estudantes não percebem seus corpos sendo normatizados, docilizados. Esta impossibilidade se faz devido aos próprios mecanismos presentes nas relações de poder, que atuam através de estratégias, consolidando o poder de maneira tênue: que ordena, mas não determina e assim garante sua efetividade nas técnicas disciplinares atuantes.

Da mesma forma que o poder disciplinar tem no corpo seu alvo principal (no seu aspecto anátomo-político) ele também se estende e vai emaranhando-se com o biopoder. Quando os adolescentes reconheceram que a aparência física facilita a aceitação nos grupos sociais e que os atos de bullying estão relacionados à aparência física notamos as normas sociais estabelecidas garantindo seu potencial regulador. A ação da norma como modo de unificação e regulação da diferença potencializa o biopoder. Este poder atua ordenando possibilidades de escolha, controlando a aceitação ou não dos jovens nos grupos sociais, conduzindo ou não atos de bullying.

A partir dos testes de proporção realizados podemos inferir neste artigo que houve uma percepção dos adolescentes estatisticamente significativa na categoria corpo acessório. Este dado indicaque os adolescentes percebem de forma diferente essa necessidade de modificarem ou não seus corpos. Ademais, podemos inferir também que o ‘corpo acessório’ de Le Breton está relacionado às questões de aceitação social e as necessidades variam de acordo com o gênero e raça.

Tensionando as categorias do questionário percebemos que apesar do notável reconhecimento por parte dos adolescentes (61,7%) de que os padrões de beleza se modificam ao longo da história (questão nº 3 categoria biopoder), eles ainda apresentam uma tendência a modificarem seus corpos (questão nº 7 da categoria corpo acessório). Tendência essa consoante a padrões corporais característicos à adolescência: piercing, tatuagem, tintura nos cabelos entre outros. Relacionamos anteriormente as mudanças nos padrões de beleza com o conceito foucaultiano de norma. Tendo em vista que a norma não é estática, podemos constatar parte de seu dinamismo atuando na modificação constante que os adolescentes tendem a realizar em seus corpos, na tentativa de alcançar, ou melhor, (re)criar identidades que possam estar em acordo com ela.

Observamos também que os adolescentes não se encontram totalmente felizes com sua aparência física (questão nº 2 da categoria corpo acessório). Este resultado pode ser traduzido no dinamismo da norma e nas capilaridades que ela apresenta, com a finalidade de colonizar nos mínimos detalhes1010 Portocarrero V. Instituição escolar e normalização em Foucault e Canguilhem. Revista Educação & Realidade. 2004;1(29):169-185.. Como o peso corporal e a altura são inextrincáveis à aparência física, o resultado da questão nº 5 (corpo acessório - se osadolescentes são felizes ou não com seu peso e com sua altura) também foi tensionado com o conceito da norma e biopoder. Num cenário onde o poder detém domínio sobre a vida e investe no corpo vivo - regulando dessa maneira a população.

Apresentamos também o tensionamento da aparência física como facilitador da aceitação nos grupos sociais (questão nº 4 da categoria biopoder) e da aparência física relacionada aos atos de bullying (questão nº 6 da categoria corpo acessório). Farah ao citar Fante18 delineando aspectos com os quais o bullying pode se relacionar, ressalta questões ligadas à religião, raça, estatura física, peso, cor dos cabelos entre outras. A reflexão da autora nos leva a compreender a preocupação, em larga escala, que os adolescentes mantêm com sua aparência física. A entrada dos jovens em subgrupos sociais é regulada mediante as normas sociais que se estabelecem e a tentativa de se afastar dos atos de bullying também pode ser traduzida na preocupação constante que eles apresentam com sua aparência física.

Destacamos a relação observada entre a percepção que os adolescentes têm do seu comportamento sendo observado na escola (questão nº 10 da categoria poder disciplinar) e a percepção dos adolescentes sobre o controle que a escola realiza em suas condutas (questão nº 9 da categoria biopoder). Notamos a técnica disciplinar - vigilância hierárquica se mostrando eficaz quando nos deparamos com o resultado da questão n° 9.

A partir de Foucault também é possível observar conexões entre a aprovação dos adolescentes da maneira que se comportam (questão nº 8 da categoria biopoder) e da importância que dão ao controle de seu tempo e espaço feito pela escola (questão nº11 da categoria poder disciplinar). Notamos que a relação docilidade - utilidade está bem demarcada nas instituições escolares aqui pesquisadas e que a positividade do poder permanece presente. O resultado traduzido pela pergunta nº 8 nos mostra que a sensação de liberdade percebida pelos indivíduos acaba por se tornar uma força a serviço da dominação do poder.

Em relação ao teste de proporção podemos perceber que a raça branca modifica menos seus corpos do que as raças preta e parda. Em relação ao gênero observamos o feminino modificando mais seus corpos quando comparado ao masculino. A partir dos testes de proporção realizados podemos inferir que neste estudo que os adolescentes percebem de forma distinta a necessidade de modificarem ou não seus corpos. Também inferimos que o conceito de corpo acessório de Le Breton33 Le Breton D. Adeus ao Corpo: Antropologia e sociedade. 6ª ed. São Paulo: Papirus; 2013. está relacionado às questões de aceitação social e que a aceitação varia de acordo com a raça e com o gênero.

Conclusões

Ao final da pesquisa acreditamos ter alcançado nosso objetivo de investigar a percepção corporal dos estudantes do Ensino Médio em escolas estaduais do Rio de Janeiro, a partir da perspectiva filosófica de Michel Foucault e da sociologia de David Le Breton. Em relação às questões investigadas notamos que os adolescentes sentem-se bem consigo mesmos, acreditam que atos de bullying estão relacionados à aparência física, apresentam uma tendência a modificarem seus corpos,não se encontram totalmente felizes com sua aparência física nem com seu peso e sua altura.

No resultado do teste de proporção não foram observadas diferenças significativas nas questões que relacionaram biopoder e poder disciplinar às categorias de gênero e raça. Entretanto a questão que tensionou essas categorias ao conceito do corpo acessório percebemos que raça branca modifica menos seus corpos do que as raças preta e parda. Em relação ao gênero foi observado que o feminino modifica mais seu corpo quando comparado ao masculino. A partir desses resultados podemos inferir que neste estudo houve uma percepção dos adolescentes com proporções diferentes apenas no aspecto do corpo acessório, o que pode indicar que os adolescentes percebem de forma diferente essa necessidade de modificarem ou não seus corpos. Podemos inferir também como o conceito de corpo acessório de Le Breton está relacionado às questões de aceitação social e como essas necessidades variam de acordo com a raça, com o gênero, com a norma1010 Portocarrero V. Instituição escolar e normalização em Foucault e Canguilhem. Revista Educação & Realidade. 2004;1(29):169-185..

Constatamos também que os adolescentes percebem seu comportamento sendo observado na escola, percebem ocontrole desta instituição sobre suas condutas, consideram importante o controle do seu tempo e espaço, reconhecem a aparência física como facilitadora da aceitação nos grupos sociais. Os adolescentes aprovam a maneira que se comportam, sentem-se questionadores das normas estabelecidas pela escola e relatam não encontrarem espaços para expressarem suas opiniões nesse ambiente.

Como todo instrumento de coleta de dados apresenta suas limitações, com o questionário utilizado para esta pesquisa não foi diferente. Reconhecemos que aprofundar a percepção corporal dos adolescentes não seria possível com o instrumento criado. Acreditamos que uma análise da percepção corporal dos estudantes dentro dos conceitos de Foucault e dos conceitos de Le Breton, destacados no decorrer do artigo, foram estabelecidos.

Foucault4 nos alertou que nem tudo é ruim, mas tudo pode ser perigoso e se tudo pode ser perigoso, nessas complexas relações, temos sempre algo a fazer. Baseando-nos nessas palavras realizamos um convite ao ativismo e não à apatia. Destacamos o compromisso ético-político de tentar compreender essas percepções dos adolescentes na perspectiva de oferecer possibilidades de resistências na escola aos dispositivos que forjam os indivíduos, não permitindo-os a verdadeira individualidade, a diferença, as formas livres de pensamento e expressão de suas ideias. Ao não conformismo, tão típico na juventude, não podemos deixá-lo ser sombreado por normatizações e/ou assujeitamentos sem o devido antagonismo, tão necessários às lutas contra as batalhas de individuação. Podemos começar garantindo a esses mesmos adolescentes lugares para expressarem suas opiniões, suas dúvidas e suas inquietações no espaço escolar (durante as aulas, na criação de espaços de convivência etc.).

Ao final deste estudo acreditamos ter contribuído com a análise da temática corpo, dentro do dispositivo escolar, em virtude de toda a investigação realizada além de detectar a atuação dos mecanismos de poder sobre o corpo e a vida prevalecendo, precisando ser problematizados.

Temos a clareza de que este artigo está muito distante de findar os entendimentos necessários para refletir sobre a diversidade das corporeidades que compõem o âmbito educacional e dos processos de sujeição presentes nesse ambiente. Consideramos que as possíveis tessituras teóricas entre os conceituados autores David Le Breton e Michel Foucault, os quais elegemos para nortear essa pesquisa, não param por aqui. Temos certeza das possibilidades abundantes de suas reflexões se concatenarem em novas pesquisas educacionais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2019
  • Revisado
    23 Maio 2020
  • Aceito
    30 Jun 2020
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