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CONCEPÇÕES E PRINCÍPIOS DE PRÁTICA DE LIDERANÇA DE TREINADORES DE ALTA PERFORMANCE NO FUTEBOL BRASILEIRO11. Este artigo é resultante de dissertação de mestrado. Bussinger GHL. Concepções e princípios de prática de liderança de treinadores: um estudo com treinadores de alta performance no futebol brasileiro. [Dissertação dea Mestrado em Educação Física]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2019[acesso em 06 mar 2023]. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/214416
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RESUMO

O objetivo deste estudo foi analisar as concepções e princípios de prática de liderança de treinadores de alta performance do futebol brasileiro. Participaram do estudo, por meio de entrevistas semiestruturadas, cinco treinadores de futebol masculino que já atuaram na 1ª divisão brasileira, conquistando títulos estaduais e nacionais e com experiência em equipes e seleções estrangeiras. As principais evidências apontam para competências gerais, estratégias de gestão, conhecimento profissional, princípios e valores individuais. Conclui-se que os treinadores possuem conhecimento processual tácito instintivo que resulta numa filosofia de liderança desconexa e competências interpessoais mais evidentes. Sugere-se que os treinadores utilizem o modelo trifásico de eficácia de liderança e a prática da reflexão sistematiza de forma a potenciarem a sua eficácia de liderança.

Palavras-chave:
Treinador; Filosofia de liderança; Alta performance; Futebol

ABSTRACT

The aim of this study was to analyze the conceptions and leadership principles of high-performance coaches in Brazilian soccer. Participants were five male soccer coaches who have worked in the Brazilian first division, winning state and national titles, and having experience in international teams. Semi-structured interviews were performed. Main evidences show several competencies, management strategies, professional knowledge, principles, and personal values. We concluded that the coaches have tacit instinctive procedural knowledge that results in a disconnected leadership philosophy and interpersonal knowledge more evident. It is suggested that coaches use the three-phase leadership model and the practice of systematic reflection in order to enhance their leadership effectiveness.

Keywords:
Coach; Leadership principles; High-performance; Soccer

Introdução

A prática de liderança (PL) do treinador esportivo deve ser norteada por sua filosofia de liderança (FL)22. Gomes AR. Leadership and positive human functioning: A triphasic proposal. In: Gomes AR, Resende R, Albuquerque A, editores. Positive human functioning from a multidimensional perspective: Promoting high performance. New York: Nova Science; 2014. p. 157-169.. Suas ideias, princípios, valores e crenças influenciam e guiam suas ações de forma coerente na condução do processo de liderança da equipe, sendo fundamental que o treinador estabeleça alguns critérios para avaliar a consonância entre o que pensa e o que realmente faz33. Resende R, Sá P, Barbosa A, Gomes AR. Exercício profissional do treinador desportivo: Do conhecimento a uma competência eficaz. J Sport Pedagogy Res 2017;3(1):42-58.. Ao considerarem que a eficácia de liderança do treinador está diretamente ligada a menor distância entre o que pensa (ideia) e o que realmente faz (ação), Gomes e Resende44. Gomes AR, Resende R. O que penso, o que faço e o que avalio: Implicações para treinadores de formação desportiva. In: Molina SF, Alonso MC, editores. Innovaciones y aportaciones a la formación de entrenadores para el deporte en la edade escolar. Cáceres: Universidade de Extremadura & Editora da Unicamp; 2015. p. 195-213. elaboraram o Modelo Trifásico de Eficácia de Liderança (MTEL).

O MTEL não despreza a cultura organizacional, as características do líder e de seus liderados para analisar a relação entre os princípios de liderança (filosofia do líder), a prática de liderança (ações do líder) e o critério de liderança que são indicadores que o líder utiliza para avaliar a implementação de sua filosofia de liderança. Gomes22. Gomes AR. Leadership and positive human functioning: A triphasic proposal. In: Gomes AR, Resende R, Albuquerque A, editores. Positive human functioning from a multidimensional perspective: Promoting high performance. New York: Nova Science; 2014. p. 157-169. e Gomes e Resende44. Gomes AR, Resende R. O que penso, o que faço e o que avalio: Implicações para treinadores de formação desportiva. In: Molina SF, Alonso MC, editores. Innovaciones y aportaciones a la formación de entrenadores para el deporte en la edade escolar. Cáceres: Universidade de Extremadura & Editora da Unicamp; 2015. p. 195-213. nominaram hipótese de congruência a ideia de que, quanto menor a distância entre o ciclo conceitual do treinador (suas ideias, princípios, valores e crenças) e o ciclo prático do treinador (suas ações para implementar sua filosofia), mais eficaz é a liderança do treinador33. Resende R, Sá P, Barbosa A, Gomes AR. Exercício profissional do treinador desportivo: Do conhecimento a uma competência eficaz. J Sport Pedagogy Res 2017;3(1):42-58.),(44. Gomes AR, Resende R. O que penso, o que faço e o que avalio: Implicações para treinadores de formação desportiva. In: Molina SF, Alonso MC, editores. Innovaciones y aportaciones a la formación de entrenadores para el deporte en la edade escolar. Cáceres: Universidade de Extremadura & Editora da Unicamp; 2015. p. 195-213..

A eficácia de liderança do treinador esportivo potencializa o desempenho de atletas e staff, elevando o nível de rendimento da equipe, promovendo performance e entregando resultados esportivos55. Mallett CJ, Lara-Bercial S. Serial winning coaches: People, vision, and environment. In: Raab M, Wylleman P, Seiler R, Elbe AM, Hatzigeorgiadis G, editores. Sport and exercise psychology research: theory to practice. Amsterdam: Elsevier; 2016. p. 289-322.),(66. Resende R. Filosofia do treinador e sua implementação com eficácia. J Sport Pedagogy Res 2018;4(3):51-59.. Além disso, os conhecimentos profissionais, interpessoais e intrapessoais, que somados aos quatro “Cs” (competência, conexão, confiança e caráter) nos relacionamentos com atletas e a experiência nos contextos de intervenções, contribuem para que o treinador seja mais eficaz77. Côté J, Gilbert W. An integrative definition of coaching effectiveness and expertise. Int J Sports Sci Coach 2009;4(3):307-323. DOI:10.1260/174795409789623892.
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. Esses, além de importantes objetivos profissionais, são requisitos essenciais à prática do treinador esportivo no contexto de atuação de alta performance88. ICCE. International Sports Coaching Framework. Version 1.2. Champaign, IL: Human Kinetics; 2013. 60 p.),(99. Milistetd M, Ramos V, Saad MA, Salles WN, Nascimento JV. Formação do treinador para o esporte de elite. In: Galatti L, Scaglia AJ, Montagner PC, Paes RR, editores. Desenvolvimento de Treinadores e Atletas: Pedagogia do Esporte. Campinas: UNICAMP; 2015. p. 39-62..

Apesar desses elementos estarem situados de maneira evidente na agenda científica do coaching esportivo, na realidade brasileira, os resultados competitivos são essenciais para um treinador de futebol. A importância do desempenho competitivo torna-se imprescindível para a manutenção do trabalho de treinadores no futebol profissional, um contexto de alta complexidade e hostilidade, em que a rotatividade de treinadores é muito comum1010. Tozetto AB, Carvalho HM, Rosa RS, Mendes FG, Silva WR, Nascimento JV, et al. Coach turnover in top professional Brazilian football championship: A multilevel survival analysis. Front Psychol 2019;10:1-6. DOI:10.3389/fpsyg.2019.01246.
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. Tal conjuntura tem despertado o interesse da comunidade científica acerca do complexo contexto de atuação do treinador de alto rendimento55. Mallett CJ, Lara-Bercial S. Serial winning coaches: People, vision, and environment. In: Raab M, Wylleman P, Seiler R, Elbe AM, Hatzigeorgiadis G, editores. Sport and exercise psychology research: theory to practice. Amsterdam: Elsevier; 2016. p. 289-322.),(1111. Cushion C. Modelling the complexity of the coaching process. Int J Sports Sci Coach2007;2(4):395-401. DOI:10.1260/174795407783359650.
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),(1212. Cope E, Partington M, Cushion CJ, Harvey S. An investigation of professional top-level youth football coaches’ questioning practice. Qual Res Sport Exerc Health 2016;8(4):380-393. DOI:10.1080/2159676X.2016.1157829.
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, nomeadamente no estudo da eficácia da liderança em que os investigadores procuram compreender os fatores que contribuem para o seu sucesso1313. Northouse PG. Leadership: Theory and practice. 8th ed: SAGE; 2018.. Entre os fatores mais mencionados encontram-se a filosofia do treinador, os estilos de liderança e as caraterísticas específicas dos líderes, dos membros da equipa, assim como, do contexto onde a liderança ocorre1414. Gomes AR, Almeida A, Resende R. Athletes’ perception of leadership according to their perceptions of goal achievement and sport results. Percept Mot Skills 2020;127(2):415-431. DOI:10.1177/0031512519892384.
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. Apresentando os princípios chave da academia do Clube de Futebol de Sevilha, Espanha1515. Solana-Sánchez A, Lara-Bercial S, Solana-Sánchez D. Athlete and coach development in the Sevilla Club de Fútbol Youth Academy: A values-based proposition. Int Sport Coach J 2016;3:46-53. DOI:10.1123/iscj.2015-0085
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argumentam que os treinadores devem ter uma filosofia clara de atuação acompanhado de um conjunto de valores em intima ligação com a história e cultura do clube o que pressupõe uma clara preocupação com o estabelecimento de ideias claras que os treinadores devem ter e que devem nortear a sua atuação. Poucos estudos empíricos abordam a temática da liderança no futebol brasileiro. Costa e colaboradores1616. Costa IT, Samulski DM, Costa VT. Perfil de liderança para treinadores de futebol na visão de treinadores do campeonato Brasileiro. Rev Bras Educ Fís Esp 2010;21(1).DOI:10.4025/reveducfis.v21i1.7051.
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investigaram o perfil de liderança de 20 treinadores da Série A brasileira de futebol a partir do questionário Escala de Liderança Revisada para o Esporte e identificaram a importância do estilo autocrático combinado com os aspectos relacionado com o treino-instrução. Ao investigarem as competências necessárias para a exercer a função de treinador, Silva e colaboradores1717. Silva LFN, Prado HRM, Scaglia AJ. Competências requeridas ao treinador de futebol: Um olhar a partir dos jogadores dessa modalidade. Rev Corpoconsciência 2018;22(1):24-39. entrevistaram 16 jogadores de futebol que referiram a liderança como uma das competências interpessoais requeridas para o exercício da profissão, mas não no sentido de considerar a sua eficácia.

A curiosidade científica acerca dos estudos sobre eficácia do treinador de alta performance, aliada à lacuna de pesquisas sobre as filosofias (ideias, princípios, valores) que permeiam a intervenção dos treinadores de futebol no Brasil, justificam algumas inquietações nomeadamente sobre a filosofia de liderança dos treinadores de alta performance no Brasil, como eles colocam em prática essa filosofia de liderança e quais são os critérios de eficácia dessa filosofia de liderança. Diante disso, o objetivo do estudo foi analisar as concepções e os princípios de prática de liderança de treinadores de alta performance do futebol brasileiro, a partir do MTEL.

Métodos

Este estudo caracteriza-se como descritivo-exploratório1818. Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6 ed.São Paulo: Atlas; 2008., de natureza aplicada com um delineamento transversal, com emprego da abordagem qualitativa para analisar com maior profundidade a experiência, a vivência e a percepção subjetiva que os treinadores possuem acerca do fenômeno investigado. Além disso, a análise interpretativa adotada pelo investigador procura construir significados, valores e explicações a partir do conteúdo pesquisado1919. Sparkes AC, Smith B. Qualitative research methods in sport, exercise and health: From process to product. Abingdon: Routledge; 2014..

Participantes

A seleção dos participantes foi intencional em função da experiência na modalidade e nível de intervenção como treinador (1ª divisão futebol brasileiro ou nível correspondente no exterior e/ou em seleção nacional. A tabela 1 apresenta os dados dos participantes.

Tabela 1
Características pessoais, formativas e profissionais dos treinadores investigados

Procedimentos

Na coleta de dados foi utilizada uma entrevista semiestruturada, adaptada do “Guião de entrevista para treinadores”2020. Gomes AR. Liderança e gestão de equipas desportivas: Desenvolvimento de um guião de entrevistas para treinadores. In: Cruz JF, Silvério JM, Gomes AR, Duarte C, editores. Actas da Conferência Internacional de Psicologia do Desporto e Exercício. Braga: Universidade do Minho; 2007. p. 100-115., que contempla os princípios do MTEL, elaborado por Gomes22. Gomes AR. Leadership and positive human functioning: A triphasic proposal. In: Gomes AR, Resende R, Albuquerque A, editores. Positive human functioning from a multidimensional perspective: Promoting high performance. New York: Nova Science; 2014. p. 157-169..

Antes de aplicar a entrevista, o pesquisador esclareceu a natureza confidencial e anônima dos dados, das informações coletadas e se colocou à disposição em responder possíveis dúvidas, além de recolher o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado. A seguir, reiterou os objetivos do estudo e pediu permissão para fazer uso do aparelho celular para gravar a entrevista, em áudio, bem como autorização para transcrevê-la. Para a aplicação e condução da entrevista, houve a necessidade de o entrevistador possuir um domínio básico sobre a temática2020. Gomes AR. Liderança e gestão de equipas desportivas: Desenvolvimento de um guião de entrevistas para treinadores. In: Cruz JF, Silvério JM, Gomes AR, Duarte C, editores. Actas da Conferência Internacional de Psicologia do Desporto e Exercício. Braga: Universidade do Minho; 2007. p. 100-115.. Além de seguir as recomendações de Sparkes et al.1919. Sparkes AC, Smith B. Qualitative research methods in sport, exercise and health: From process to product. Abingdon: Routledge; 2014., dando liberdade aos entrevistados em elaborarem suas respostas.

Análise dos dados

As entrevistas com os cinco treinadores tiveram a duração total de 5 horas e 13 minutos com média de 62 minutos. A transcrição integral das cinco entrevistas foi realizada por meio do software Word 2010, totalizando 118 páginas (fonte 12 e espaçamento 1,5). Nas transcrições, a fala dos entrevistados foi mantida integralmente e preservado o conteúdo semântico gramatical. Na análise dos dados utilizou-se o software Nvivo e o método de análise temática2121. Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol 2006;3(2):77-101.. Este método, por meio de seis etapas progressivas (i- familiarização dos dados; ii- geração de códigos iniciais; iii - busca por temas; iv- revisão dos temas; v- definição e nomeação dos temas; vi- produção do relatório), é considerado uma ferramenta flexível e útil que possibilita a interpretação e análise de dados complexos2121. Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol 2006;3(2):77-101. de forma profunda, quando permite ao pesquisador recorrer constantemente aos dados, gerando temas e códigos capazes de identificar ideias, princípios, valores e crenças de discursos de entrevistas qualitativas2222. Lawless B, Chen Y-W. Developing a method of critical thematic analysis for qualitative communication inquiry. Howard J Commun 2018;30(1):92-106. DOI:10.1080/10646175.2018.1439423.
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.

Visando obter validez interpretativa e proporcionar maior confiabilidade dos dados, adotou-se os procedimentos propostos por Shenton2323. Shenton AK. Strategies for ensuring trustworthiness in qualitative research projects. Educ Inf2004;22(2):63-75. DOI:10.3233/EFI-2004-22201
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que procuram assegurar maior confiabilidade na pesquisa qualitativa em quatro dimensões: credibilidade, transferibilidade, confiabilidade, confirmabilidade. Assim, o engajamento e a familiaridade da pesquisa foram facilitados pelo fato do primeiro autor ser um treinador de alta performance de futebol, contudo, os outros autores do trabalho serviram como “amigos críticos” na construção e validação da interpretação dos dados, diminuindo assim o viés pessoal. Os entrevistados validaram a transcrição e interpretação de suas entrevistas. Além disso, a triangulação com o modelo teórico permitiu a assertividade da interpretação dedutiva e da construção dos temas. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) da Universidade Federal de Santa Catarina (CAAE 01716018.1.0000.0121) sob o parecer: 3.013.820. A participação dos treinadores foi viabilizada a partir da leitura e assinatura do TCLE.

Resultados

As evidências encontradas no estudo foram sistematizadas dedutivamente a partir do MTEL (Figura 1), contemplando os resultados em três categorias: I) filosofia de liderança; II) a prática de liderança; e III) critérios de liderança, de treinadores de futebol de alta performance (Figura 1).

Figura 1
MTEL para treinadores de alta performance do futebol brasileiro

Filosofia de liderança de treinadores de futebol de alta performance

No que diz respeito às concepções de filosofia de liderança, os dados coletados evidenciaram competências (liderança, comunicação, equilíbrio emocional, capacidade de adaptação e capacidade reflexiva), princípios/valores (honestidade, coerência, disciplina, humildade, lealdade e empatia) e conhecimentos profissionais (gerais e específicos) relatados pelos treinadores de futebol de alta performance (Figura 1).

Dentre as competências citadas pelos treinadores, liderança e comunicação destacaram-se pela relevância que ocupam em suas concepções de liderança. Afirmam que liderança é fundamental à qualificação do treinador, potencializa o desempenho esportivo e, se aliada a comunicação, permite uma eficiente gestão de equipe e estafe: “Se não tiver liderança, não adianta nem tentar ser treinador, pois se não tem liderança ele já perde logo o grupo, e não adianta aquela liderança forçada ou imposta, porque liderança você conquista” (T2).

Assim, a comunicação assegura ao treinador a transmissão de suas ideias, princípios, valores e crenças de liderança, de forma que deve adequar a linguagem e ajustá-la ao contexto do ouvinte a fim de se fazer compreendido:

“O treinador precisa saber passar o conteúdo para estabelecer uma relação de confiança com o jogador, tem que ajustar a sua fala aos atletas, ser mais simples, mais direto, mais didático, dizer o que você quer, dar exemplos e simplificar, não demorar mais do que quinze minutos e ser transparente no seu discurso” (T4).

Os treinadores investigados destacaram, como indicadores de uma boa liderança e comunicação, a qualidade na gestão de pessoas, o carisma, o respeito, a admiração e a coesão de grupo. Em adição, os treinadores relataram que o equilíbrio emocional, a capacidade de adaptação e a capacidade reflexiva são competências essenciais à sobrevivência e qualificação profissional no contexto de alta performance. “O treinador sofre pressão de todos os lados. Egos e vaidades levam ambientes internos (atletas, estafe, diretoria) e externos (imprensa, torcida, agentes) a conflitarem e o treinador emocionalmente equilibrado deve gerir esses conflitos e dirigir sua equipe” (T2). Essa pressão por resultados, aliada a experiência, prepara o treinador para adaptar-se rapidamente aos diferentes contextos de forma a saber reagir aos estímulos ecológicos com melhores tomadas de decisões: “a terra gira em torno do sol e não o contrário. Por isso, o treinador gira em torno do futebol e não o contrário. É fundamental que o treinador tenha uma boa leitura do ambiente e se adapte a ele, criando respostas aos diferentes problemas que lhes são propostos” (T5). Assim, a capacidade reflexiva, além de contribuir na melhora dessa tomada de decisão, faz com que o treinador se qualifique e sobreviva ao meio, por evoluir e contribuir na elevação de seu desempenho profissional:

“Esse período reflexivo do treinador pode ser comparado ao período de repouso do jogador profissional. Assim como o jogador precisa do descanso para que seu corpo chegue a novos patamares de performance, o treinador precisa refletir sua rotina prática para melhorar seu desempenho. Se o jogador não repousar, o seu corpo chega a um limite de ganho desportivo e pode chegar até um overtraining, assim como o treinador que, se não parar para refletir, chega a um limite cognitivo ou até a reprodução automática do que sempre fez, e não evolui mais” (T5).

Os treinadores relataram que fundamentam sua filosofia de liderança em princípios/valores (PV) como honestidade, coerência, disciplina, humildade, lealdade e empatia. Acreditam, por exemplo, que a honestidade e coerência têm influência direta na liderança, gestão e coesão de grupo: “o treinador tem que ser muito honesto nas suas decisões com o grupo, tem que jogar aberto com o clube. E para ter sucesso precisa de um vestiário saudável” (T2). A coerência nos discursos gera o respeito, mas também conquista a confiança da equipe:

“É ter coerência nos discursos. Coerência nas ações. Coerência nas tomadas de decisões. Porque se os jogadores perceberem que você tem dois pesos e duas medidas, perdeu a confiança do grupo. Eles podem até não concordar com as suas decisões, mas se elas forem coerentes, eles vão te respeitar” (T3).

A lealdade e a empatia também são PVs vitais ao desenvolvimento dos conhecimentos interpessoais: “a lealdade é muito importante. Quando o resultado não aparece, é nesse momento que conheço de verdade quem está comigo. Já sofri muito no futebol, por isso acho que é tão importante quanto você ter um baita profissional do teu lado” (T1). Os treinadores acreditam que a empatia assegura o carisma do líder, o que potencializa a confiança, a segurança e o respeito, fazendo com que a equipe atenda a voz do treinador, garantindo o processo de liderança e gestão do grupo: “um dos treinadores que mais dominava grupo fazia com que o jogador jogasse por ele. Se via alguém no cantinho triste, ele ia lá e se interessava pelo problema. Se o clube não resolvia, ele tentava resolver” (T2). Ao passo que humildade e disciplina favorecem a evolução dos conhecimentos profissionais e o desempenho do treinador:

Acho que a disciplina é a principal. A disciplina é necessária em toda área de atuação e essencial para um ambiente de trabalho produtivo. É fundamental para que você possa qualificar o seu trabalho com planejamento, organização, montagem e gestão da sua equipe. O teu crescimento profissional passa muito por leitura, atenção e foco, mas o principal é a disciplina (T1).

A humildade também fomenta a aprendizagem e desenvolvimento contínuo: “se não tiver humildade você não vai chegar e é assim com os grandes treinadores de sucesso, a humildade vai te levar a chegar mais longe” (T4).

Os participantes sugerem que a filosofia de liderança de um treinador de alta performance deve considerar dois tipos de conhecimentos: gerais e específicos. O primeiro abarca as informações que tangem o futebol como tecnologia, língua estrangeira, cultura, política, didática, geografia, história e outras disciplinas:

“Você tem que saber o que está se passando no teu país, no mundo politicamente. Tem que saber um pouco sobre preparação física, fisiologia, psicologia, administração, leis e etc., porque afinal você precisa dialogar com todos os profissionais que estão ao seu redor no clube e fora dele” (T3).

Outro treinador comentou: “Muitos não dominam essa coisa hoje de tecnologia e hoje o treinador é obrigado a saber” (T4). Enquanto o conhecimento específico abrange conteúdos técnico-táticos, metodológicos, leitura de jogo, gestão de vestiário, regras do jogo entre outros: “ele tem que entender de metodologia, de vestiário no intervalo dos jogos, ter uma boa leitura de jogo, saber passar o conhecimento do que ele pensa” (T2).

O conhecimento profissional foi ressaltado pelos investigados como condição relevante para que um treinador aprimore sua prática e alcance o sucesso: “você deve ser irrequieto na busca de informação. Um treinador com conhecimento motiva a si mesmo e sua equipe e quanto mais conhecimento tiver, mais chance de sucesso terá” (T5).

Prática de liderança de treinadores de futebol de alta performance

Os dados referentes a prática de liderança dos treinadores permitiram identificar três categorias de práticas: as estratégias de liderança (gestão de equipe, corresponsabilidade e comunicação assertiva), prática de princípios/valores (comunicação oral, comportamental e ambiental) e gestão do conhecimento (conhecimentos gerais e específicos) (Figura 1).

Os treinadores indicam que a gestão da equipe é uma prática de liderança crucial ao sucesso do treinador. Apontam que práticas como cobrança (com coerência), gerência de egos e vaidades, coesão de grupo, gestão de não relacionados e suplentes, desafiar positivamente (criar metas e objetivos individuais/coletivos que inspirem, motivem e mobilizem os atletas), liderança oculta (liderar o indivíduo sem o mesmo perceber que está sendo liderado), compreensão e cuidado (importar-se e preocupar-se), instrução e conselhos de relacionamento com meio interno (colegas, estafe e direção) e externo (redes sociais, agentes, imprensa), adaptar-se as particularidades de cada equipe e criar fato novo quando a gestão está ameaçada. “Na minha gestão, tem que ter disciplina e cobrança, o treinador tem que sempre apertar, sempre cobrar mais, você tem que estar sempre desafiando o teu grupo (T1). “O treinador tem que administrar muito mais conflitos de quem não joga, do que quem está jogando” (T3).

Os dados evidenciam que os treinadores costumam compartilhar algumas responsabilidades, isto é, utilizam a corresponsabilidade: “Quando o líder é centralizador demais, além de ficar mais sobrecarregado, ele vai perdendo a sua equipe aos poucos. Porque se as pessoas não colocarem a mão na massa, elas não se sentem parte do processo e vão desanimando” (T5). Por isso, entendem que delegar funções e ações, ser mais consultivo (brainstorming), dar liberdade à equipe para solucionar problemas, passar mais confiança e segurança, gerar mais autonomia em tomada de decisões, criação de comitês (grupo de atletas que auxiliam na gestão de equipe), cobrança compartilhada (o comitê ajuda a cobrar), auxiliam em demasiado a gestão da equipe.

Os entrevistados relataram que ter uma comunicação assertiva é essencial na gestão de equipe: “Tem que falar a língua do jogador, não adianta vir com palavras difíceis. Tem que ter boa comunicação e influenciar os demais a segui-lo” (T2). É importante o treinador customizar/ajustar sua linguagem, conhecer seus liderados para criar uma estratégia de comunicação, encontrar o gatilho de atenção e foco de seu ouvinte, ser sucinto, objetivo, honesto e transparente em sua comunicação: “O mais importante é o treinador entender que tem que adequar a fala e a estratégia de comunicação para cada jogador, cada ser humano tem as coisas que soam como música para o seu ouvido e faz o olhinho dele brilhar” (T5).

Com relação às práticas de liderança, as evidências encontradas permitiram enumerar três categorias que os treinadores investigados utilizam na transmissão dos seus princípios e valores: a) comunicação oral; b) comunicação comportamental; c) comunicação ambiental.

Os treinadores relataram que a comunicação oral deve ocorrer de forma frequente, sucinta, objetiva e direta. Deve ser intencional, adequando o tom de voz ao contexto, sendo coerente, persuasivo e com bons argumentos para que a equipe absorva suas ideias. Ocorre durante a sessão de treinamento, ou por meio de feedbacks no vestiário, durante os seus discursos ou até por meio de diálogos informais: “é comum a gente ver o jogador dizer na entrevista o que nós treinadores dissemos no vestiário. Por isso você tem que passar suas ideias aos poucos, mas tem que ser todo dia, e não como fazem alguns que falam por mais de horas a mesma coisa e o jogador nem presta mais atenção” (T5).

A comunicação comportamental, como o próprio nome sugere, é realizada pelo exemplo pessoal do treinador. Os entrevistados relataram que um treinador transmite seus PV por meio de seus comportamentos, gestos, atitudes, exemplos e prática que apregoa: “você tem que ter princípios, ser honesto e ser exemplo. Não adianta chegar no vestiário e falar que temos que ser uma família, se você não for exemplo de família. Você tem que ser exemplo e honesto no vestiário” (T4).

Os treinadores entendem que a comunicação ambiental ocorre por meio da cultura e clima organizacional, no qual a transmissão de PV ocorre por meio de normas e regras formais/informais aplicadas à equipe, interações sociais históricas com o estafe, gestores e grupo de trabalho, bem como frases, ideias e pensamentos difundidos diariamente por agentes culturais ou diferentes locais no ambiente de trabalho: “você tem que estar atento a tudo, no que as pessoas e até no que as placas espalhadas nas paredes do clube te dizem. Porque o clube não começa quando você chega, ele já tem uma história e que você tem que conhecê-la para fazer um bom trabalho” (T2).

A análise das entrevistas realizadas com os treinadores investigados permitiu agrupar as informações sobre a gestão do conhecimento em duas categorias: a) Prática de conhecimentos específicos; b) Prática de conhecimentos gerais. Classificou-se como prática do conhecimento, pois a categoria visa exemplificar o modo pelo qual os treinadores operacionalizam e colocam em ação seus conhecimentos gerais e específicos.

Os entrevistados relataram que as práticas de conhecimento específico mais relevantes abrangem a leitura/interpretação do jogo na preleção e correção de intervalo, tomada de decisão nas poucas substituições (três) durante o jogo, metodologia/pedagogia de treinamento para evoluir a equipe, domínio das competições e de mercado de atletas para contratação e formação de elenco, bem como buscar conhecimento com os pares e reciclagem em cursos e viagens: “O treinador precisa entender de parte tática, de conceitos de jogo, de ataque, de defesa e estar sempre por dentro do mercado e do que estão falando por aí. Ele precisa dominar essas novas tecnologias” (T4).

Acerca das práticas de conhecimentos gerais, os treinadores destacaram a interdisciplinaridade para a gestão enquanto um head coach, comunicação em outros idiomas, diversidade de culturas nacionais, didática, domínio de relações interpessoais com meio externo e interno e equilíbrio entre a vida profissional e pessoal (familiar): “No futebol você tem que entender de pessoas, de psicologia, de tática, de política, de regras, de imprensa, de medicina e de tantas áreas, que se você só souber de futebol, você não se mantém no alto nível” (T5). “Por isso o mercado para treinadores de hoje pede mais um perfil generalista, do que um especialista” (T3).

Critérios de liderança de treinadores de futebol de alta performance

Os dados obtidos sobre o tema critérios de liderança permitiram a sistematização de duas categorias: a) Critérios Quantitativos; b) Critérios Qualitativos. Enquanto que o primeiro diz respeito aos dados objetivos que são possíveis mensurar numericamente, isto é, quantitativamente, o segundo se refere aos dados obtidos com critérios mais subjetivos, que valorizam mais as características, particularidades e peculiaridades dos dados, ou melhor, a qualidade em detrimento a sua quantidade.

Com relação aos dados quantitativos, os treinadores utilizam como principal ferramenta de avaliação de seus trabalhos as estatísticas. Nestas, o critério mais relevante é o resultado (títulos e vitórias), além de scouts de treinos e jogos que auxiliam nesses números. Outra alternativa citada é a utilização de objetivos e metas coletivas e individuais como alcançar determinada zona de classificação, salvar de rebaixamento, colocar o máximo de garotos da base para jogar ou negociações de atletas: “Infelizmente, no Brasil, um treinador de sucesso é avaliado por títulos, por vitórias, por ter alcançado objetivos. Ele é avaliado por atingir o objetivo a que o clube se propõe” (T2). “Às vezes, um treinador é avaliado por bons trabalhos quando ele evita o rebaixamento de equipes. Muitos treinadores são chamados para apagar incêndios e nem por isso deixam de ser bons treinadores” (T4).

Os dados evidenciam também que os treinadores investigados utilizam como critérios qualitativos: a) feedbacks; b) percepções (feeling). No primeiro, dizem que para avaliar seu trabalho costumam escutar as opiniões de atletas, estafe, gestores e imprensa: “é importante a percepção de cada um deles, porque jogadores te passam um feedback daquilo que desejam ou não, se concordam ou não, se compram a sua ideia ou não, comunicado pelo falar ou expressão corporal” (T1).

Já o segundo, diz respeito às percepções pessoais que os treinadores procuram captar no ambiente para julgar seu próprio trabalho. Entendem que rever vídeos de jogos e treinos, sentir o vestiário, observar as reações das pessoas no cotidiano profissional são formas de analisar a qualidade do trabalho: “Você não precisa ter número quando você tem essa percepção, e um treinador experiente consegue perceber com mais facilidade” (T2). “Costumo ver e rever sempre jogos e treinos. De que adianta muitos números naquelas folhinhas se eu não tenho as imagens” (T4).

Discussão

As evidências do presente estudo revelam que os treinadores possuem o conhecimento declarativo de suas filosofias, práticas e critérios de liderança, porém expressam as três categorias de forma desconexa e de lógica não linear entre si. Além disso, não apresentam critérios de liderança coerentes com as práticas de liderança relatadas, o que dificulta ao treinador realizar uma avaliação mais qualificada do processo ideia-ação33. Resende R, Sá P, Barbosa A, Gomes AR. Exercício profissional do treinador desportivo: Do conhecimento a uma competência eficaz. J Sport Pedagogy Res 2017;3(1):42-58.),(66. Resende R. Filosofia do treinador e sua implementação com eficácia. J Sport Pedagogy Res 2018;4(3):51-59..

Dentre as competências citadas pelos treinadores, se destacaram a liderança e a comunicação. Acreditam que tais competências são essenciais para uma boa gestão de pessoas e ambiente. Ao utilizar uma linguagem acessível, clara, objetiva e com autoridade, fomenta-se atletas e estafe a “comprarem a ideia” do treinador, o que potencializa o rendimento desportivo da equipe e conquistas de resultados. Tal percepção corrobora os estudos realizados com treinadores vencedores em série55. Mallett CJ, Lara-Bercial S. Serial winning coaches: People, vision, and environment. In: Raab M, Wylleman P, Seiler R, Elbe AM, Hatzigeorgiadis G, editores. Sport and exercise psychology research: theory to practice. Amsterdam: Elsevier; 2016. p. 289-322.),(2424. Mallett CJ, Coulter TJ. The anatomy of a successful Olympic coach: Actor, agent, and author. Int Sport Coach J 2016;3(2):113-127. DOI:10.1123/iscj.2015-0069.
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, os quais afirmam que a gestão de um treinador vencedor se baseia na transmissão de sua filosofia de liderança (comprar a ideia) sustentada no tripé visão, ambiente e pessoas. Isto é, comissão técnica, atletas, gestores e demais profissionais (pessoas), devem seguir a filosofia do treinador (visão), construindo uma cultura e clima organizacional saudável, desafiador, equilibrado e de desenvolvimento ótimo (ambiente), a fim de conquistarem seus objetivos. E para colocar isso em prática, os entrevistados acreditam que os treinadores devem saber cobrar, persuadir, ter convicção, didática, confiança, respeito, humildade, honestidade, coerência, empatia e motivação para extrair o melhor da sua equipe. Segundo Becker2525. Becker AJ. It's not what they do, it's how they do it: Athlete experiences of great coaching. Int J Sports Sci Coach 2009;4(1):93-119. DOI:10.1260/1747-9541.4.1.93.
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),(2626. Becker AJ. Quality coaching behaviors. In: Potrac P, Gilbert W, Denison J, editores. The Routledge handbook of sports coaching. London: Routledge; 2013. p. 184-195., a capacidade de operacionalizar tais comportamentos classifica o profissional como um grande treinador.

Apesar de alguns estudos apontarem o planejamento de treinamento, organização de tarefas e conduções de práticas como competências importantes para treinadores esportivos2727. Cunha GBd, Mesquita IMR, Rosado AFB, Sousa T, Pereira P. Necessidades de formaçao para o exercício profissional na perspectiva do treinador de futebol em função da sua experiencia e nível de formação. Motriz2010;16(4):931-941. DOI:10.5016/1980-6574.2010v16n4p931.
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), (2828. Santos SFM, Mesquita IMR, Graça ABS, Rosado AFB. What coaches value about coaching hnowledge: A comparative study across a range of domains. Int J App Sport Sci 2010;22(2):96-112. DOI: 10.24985/ijass.2010.22.2.96.
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),(2929. Abraham A, Collins D. Taking the next step: Ways forward for coaching science. Quest2011;63(4):366-384. DOI: 10.1080/00336297.2011.10483687.
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, foi possível notar que não houve o mesmo destaque nos dados coletados. Acredita-se que o contexto de maior instabilidade, projetos de curto prazo (média de três meses), trocas constantes de diretores estatutários e calendários saturados1010. Tozetto AB, Carvalho HM, Rosa RS, Mendes FG, Silva WR, Nascimento JV, et al. Coach turnover in top professional Brazilian football championship: A multilevel survival analysis. Front Psychol 2019;10:1-6. DOI:10.3389/fpsyg.2019.01246.
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possam ser os motivos para tal dissonância em relação aos treinadores brasileiros de alta performance no futebol. Talvez, por isso, as demais competências reveladas pelos entrevistados (equilíbrio emocional, capacidade de adaptação e reflexiva) sejam prioritárias, a fim de suportar/resistir a um cenário tão adverso.

Embora os resultados apontem um distanciamento inconsciente entre a filosofia e a prática de liderança, é possível identificar algumas ações instintivas relevantes que são provenientes do conhecimento tácito dos treinadores. O êxito desportivo enquanto ex-atleta ou experiências de conquistas enquanto um treinador expert, asseguram ao treinador uma autoridade que favorece a conquista do respeito dos atletas33. Resende R, Sá P, Barbosa A, Gomes AR. Exercício profissional do treinador desportivo: Do conhecimento a uma competência eficaz. J Sport Pedagogy Res 2017;3(1):42-58.. A prática de gestão de equipe demanda experiência, sensibilidade, autoridade, resolução de problemas e tomada de decisão constante. Foi possível identificar também uma considerável consonância das práticas citadas pelos entrevistados em relação ao estudo de Becker2626. Becker AJ. Quality coaching behaviors. In: Potrac P, Gilbert W, Denison J, editores. The Routledge handbook of sports coaching. London: Routledge; 2013. p. 184-195., que revisou mais de trezentos artigos acerca do impacto dos comportamentos dos treinadores na performance dos atletas. A autora sistematizou as ações em sete categorias: a) comportamento positivo; b) suporte e apoio; c) individualidades; d) ser justo e honesto; e) comportamento apropriado; f) clareza e transparência; g) ser consistente.

A comunicação assertiva assegura que as ideias do comunicador alcancem a compreensão e assimilação do ouvinte. Para isso, é fundamental que o treinador desenvolva uma estratégia de comunicação a partir de sua equipe. Os dados sugerem que os treinadores devem conhecer os objetivos e propósitos de seus liderados, elaborando feedbacks, diálogos e ajustes de linguagem customizados (o que, como, quando e onde falar), a fim de serem assertivos. Em um estudo com uma treinadora de basquete cinco vezes campeã nacional consecutivas, Vallée e Bloom3030. Vallée CN, Bloom GA. Four keys to building a championship culture. Int Sport Coach J 2016;3(2):170-177. DOI: 10.1123/iscj.2016-0010.
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recomendam que treinadores evitem ser prolixos, devendo ser claros, diretos, coerentes, de linguagem acessível e que pratiquem aquilo que predicam (comunicação comportamental).

De acordo com os dados obtidos, os treinadores transmitem seus princípios, valores e crenças por meio da comunicação oral, comportamental e ambiental. Para potencializar a performance da equipe, é importante que o treinador, além de ser consciente de sua filosofia, elabore um planejamento para disseminar suas ideias, não apenas pelo que diz, mas também pelo exemplo e direcionamento do ambiente33. Resende R, Sá P, Barbosa A, Gomes AR. Exercício profissional do treinador desportivo: Do conhecimento a uma competência eficaz. J Sport Pedagogy Res 2017;3(1):42-58.. Entretanto, importante ressaltar que o treinador, quando elabora sua filosofia de liderança, deve levar em consideração a cultura/clima organizacional, as características do líder (autoconhecimento) e características dos membros de equipe44. Gomes AR, Resende R. O que penso, o que faço e o que avalio: Implicações para treinadores de formação desportiva. In: Molina SF, Alonso MC, editores. Innovaciones y aportaciones a la formación de entrenadores para el deporte en la edade escolar. Cáceres: Universidade de Extremadura & Editora da Unicamp; 2015. p. 195-213..

Para melhor controlar a eficácia dessa transmissão, a elaboração de critérios de liderança torna-se muito importante. Assim, é possível avaliar o processo de forma mais consciente, justa e adequada, evitando a visão simplista e redutora de avaliar o trabalho apenas pelos resultados esportivos. Ao invés de avaliar o treino-jogo apenas com o feeling, scout e resultado, como relatado pelos entrevistados, os treinadores podem criar indicadores de sucesso de eficiência (qualitativos) e de eficácia (quantitativos) para sua liderança, considerando pormenores processuais que permitem ao treinador discernir entre erros e acertos, atacando problemas e evidenciando pontos positivos, ao contrário de precipitadamente modificar tudo apenas por conta do resultado final33. Resende R, Sá P, Barbosa A, Gomes AR. Exercício profissional do treinador desportivo: Do conhecimento a uma competência eficaz. J Sport Pedagogy Res 2017;3(1):42-58.),(44. Gomes AR, Resende R. O que penso, o que faço e o que avalio: Implicações para treinadores de formação desportiva. In: Molina SF, Alonso MC, editores. Innovaciones y aportaciones a la formación de entrenadores para el deporte en la edade escolar. Cáceres: Universidade de Extremadura & Editora da Unicamp; 2015. p. 195-213..

Conclusões

Conclui-se que os treinadores manifestaram o domínio do conhecimento processual acerca de suas concepções e princípios de liderança. Entretanto, apesar de descreverem suas ações e práticas, foi possível identificar uma relação desconexa entre a filosofia e a prática de liderança. A falta de conexão entre o que se pensa (filosofia) e o que se faz (prática) sugere, ainda que involuntariamente, a escolha do modelo tripartido de liderança (filosofia, prática e critérios desconexos, lógica não linear e independentes entre si). Acredita-se que tais comportamentos são espontâneos e norteados por um conhecimento tácito, reproduzidos de modo automático por condutas irrefletidas, o que pressupõe justificar a incongruência e a escassez de critérios de liderança encontrados na pesquisa.

Recomenda-se que os treinadores de futebol de alta performance no Brasil adotem o MTEL, no qual a filosofia, a prática e a avaliação são interdependentes entre si. Isto é, são harmônicos de lógica linear, no qual as ações e os critérios são embasados na filosofia de liderança (suas ideias). Nesse modelo, a aprendizagem do treinador centra-se na reflexão da prática deliberada, contemplando o processo e o resultado, bem como embasando-se na complexidade da relação entre o contexto, o líder e os membros da equipe. Assim, acredita-se que a liderança será mais dinâmica e ajustada ao ciclo conceitual e prático, possibilitando ao treinador uma atuação reflexiva, consciente e evolutiva, de maneira a potencializar sua eficiência e eficácia. Neste sentido, a adoção de uma filosofia de atuação clara e congruente com a sua prática efetiva é determinante para a sua eficácia enquanto líderes. Sugere-se que os treinadores reúnam igualmente critérios de avaliação objetivos sobre a sua atuação assim como da performance dos seus atletas (de forma abrangente e não somente por meio dos resultados esportivos) no sentido de retroalimentar a sua atuação (prática) de acordo com os princípios (filosofia) a que se propôs.

A aplicação da reflexão sistematizada é essencial para o desenvolvimento dos treinadores. De fato, a prática deliberada, sustentada por uma jornada reflexiva transversal, potencializa a aprendizagem do treinador, tornando-o cônscio de suas experiências. Estas, assistidas por uma dialética reflexiva, fomentam melhores tomadas de decisões e evitam constantes ações reprodutivas não refletidas. Assim, os discursos acerca de um conhecimento tácito estagnado, que se repete de forma empírica e de maneira incidental, emancipam-se e transformam-se em uma prática mais desenvolvida e eficaz.

Diante das limitações do estudo, especialmente aquelas associadas à utilização de entrevistas na coleta de dados, recomenda-se a continuidade da investigação para averiguar a prática in loco dos treinadores, comparando aquilo que dizem fazer com o que realmente fazem, bem como identificar os impactos de modelos distintos de liderança (trifásico e tripartido) nas equipes de futebol. Além de acompanhar por um período prolongado a intervenção de treinadores, recomenda-se utilizar os procedimentos de triangulação de diferentes fontes de informação.

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Editado por

Editor: Ademar Avelar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2021
  • Revisado
    19 Jan 2023
  • Aceito
    27 Jan 2023
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