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Atividades, mundo comum e formas de vida: contribuições do pensamento de Hannah Arendt para a terapia ocupacional1 1 Este artigo foi produzido com base na tese de livre-docência “Vida ativa, mundo comum, políticas e resistências: pensar a terapia ocupacional com Hannah Arendt”, apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em 2017 (Lima, 2017).

Resumo

No campo da terapia ocupacional, as atividades – que se atualizam na ação e no fazer das gentes – são abordadas com base em múltiplas óticas: como recurso, instrumento, ferramenta ou objeto de estudo. Este texto buscará pensar as atividades na terapia ocupacional com base em uma perspectiva ontológica, isto é, como elemento constitutivo da vida dos seres humanos. Do ponto de vista ontológico, as ações e os fazeres constituem o seres humanos na medida em que, por meio delas, as gentes criam e recriam as relações que estabelecem entre si, o mundo em que vivem juntas e uma multiplicidade de formas de vida, ao mesmo tempo em que perseveram na existência, perpetuando a vida que atravessa seus corpos. Considerando as atividades com base em uma perspectiva ontológica, apresentaremos o pensamento de Hannah Arendt e o seu conceito de ação, buscando um diálogo com a terapia ocupacional. Arendt colocou a vida ativa no centro de sua reflexão, privilegiando a política e a coexistência entre os seres humanos em sua pluralidade. Para a autora, a liberdade, exercida e experimentada no mundo comum e na esfera pública, garante a existência de seres singulares que, por meio do pensamento, da palavra e da ação vivas, exercem uma ética na forma de cuidado com o mundo.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Teoria Crítica; Atividades Cotidianas; Política

Abstract

In Occupational Therapy, activities - which take shape in actions and doings - are approached from multiple perspectives: as a resource, instrument, tool, or object of study. This text will try to think about activities in occupational therapy from an ontological perspective, as a constitutive element of human life. From the ontological point of view, actions and doings constitute human beings: through them, people create and recreate the relationships they establish among themselves, the world in which they live together, a multiplicity of forms of life, and, at the same time, they persevere in existence, perpetuating the life that goes through their bodies. Considering activities from an ontological perspective, we will present Hannah Arendt's thinking and her concept of action, proposing a dialogue with occupational therapy. Arendt placed vita activa at the center of her reflection, focusing on politics and coexistence among human beings in their plurality. For her, freedom, exercised and experienced in the common world and the public sphere, guarantees the existence of singular beings who, through living thought, word and action, exercise an ethic in the form of caring for the world.

Keywords:
Occupational Therapy; Critical Theory; Activities of Daily Living; Politics

1 Introdução: uma ontologia da ação, do devir e da produção de diferenças

No campo da terapia ocupacional (TO), as atividades – que se atualizam na ação e no fazer das gentes – são abordadas com base em múltiplas óticas: como recurso, instrumento, ferramenta ou objeto de estudo. Este texto buscará pensar as atividades na terapia ocupacional em sua posição ontológica, isto é, em sua relação intrínseca com as concepções de vida, saúde e humanidade que sustentam as práticas neste campo2 2 Alguns terapeutas ocupacionais têm se proposto a pensar a terapia ocupacional com base na Ontologia. Morrison (2018) considera a perspectiva ontológica um dos eixos centrais para compreender a terapia ocupacional; para ele, a ocupação é um constructo ontológico da profissão. No livro Perspectivas Ontológicas de la Ocupación Humana en Terapia Ocupacional, escrito com Diego Vidal, os autores exploram diferentes matrizes ontológicas para a ocupação humana na TO (Morrison & Vidal, 2012). Já Almeida & Costa (2019, p. 62) afirmam que compreender a TO como ontologia implica dizer que a TO “não procura tratar ou minimizar sequelas por meio do uso de atividades, mas entende o fazer como parte fundamental, constitutiva e essencial da vida dos homens, doando um sentido existencial à humanidade”. .

Do ponto de vista ontológico, as ações e os fazeres constituem o seres humanos na medida em que, por meio deles, as gentes criam e recriam as relações que estabelecem entre si, o mundo em que vivem juntas e uma multiplicidade de formas de vida, ao mesmo tempo em que perseveram na existência, perpetuando a vida que atravessa seus corpos. Há aqui “[...] uma ontologia de causalidade circular: ao realizar as atividades em seu dia a dia, o homem se constitui, isto é, o ser humano se faz fazendo” (Almeida & Costa, 2019Almeida, M. V. M., & Costa, M. C. (2019). Movimento de artes e ofícios: perspectiva ética-política-estética de constituição da terapia ocupacional. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 59-79). São Paulo: Hucitec., p. 62).

Neste sentido, estaríamos falando não de uma ontologia referida a uma essência do ser humano, mas de uma ontologia da ação, da produção de diferença e do devir, que coloque, no coração da existência, as relações e os processos de produção de seres e realidades que só existem em diferenciação constante. Com Bergson, diríamos que o ser se diz em seu fazer-se. Com Deleuze & Guattari (1978)Deleuze, G., & Guattari, F. (1978). O Anti-Édipo. Lisboa: Assírio & Alvin., diríamos que “tudo é produção!”3 3 “Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro” (Deleuze & Guattari, 1978, p. 8). .

Em uma tal ontologia, o ser se diz em um processo constante de diferenciação. Trata-se de pensar processos de heterogênese no interior de agenciamentos: cada elemento de uma montagem em terapia ocupacional – pessoas, atividades, materiais, produtos, mundos – só pode ser pensado em relação com todos os outros. As atividades envolvem e se desenvolvem em agenciamentos heterogêneos compostos de gentes, corpos, formas de vida, mundos, relações, linguagens e sentidos, engendradas pelos próprios agenciamentos que constituem. Assim, a depender das montagens e arranjos no interior dos quais as atividades se desenrolam, elas podem produzir saúde e laço social; mas também, adoecimento, sofrimento, isolamento e desenraizamento.

Considerando as atividades com base em uma perspectiva ontológica, apresentaremos o pensamento de Hannah Arendt, na busca de um diálogo com a terapia ocupacional. No livro A Condição humana, a autora se propõe a refletir sobre “o que estamos fazendo” com base em:

[...] uma reconsideração da condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes. [...], abordando suas manifestações mais elementares, aquelas atividades que estão ao alcance de todo ser humano (Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 13).

Permanece vivo, nesta reflexão, o problema que motivou o livro anterior da autora – Origens do Totalitarismo – e que atravessa toda a sua obra: o esforço para compreender como foi possível a emergência dos totalitarismos no seio das sociedades ocidentais modernas. Dando seguimento às linhas de investigação que este livro monumental abriu, Arendt se dedicou a uma pesquisa dos elementos totalitários que estariam presentes na grande tradição da filosofia política ocidental. Nesta nova pesquisa, a autora encontra o procedimento da differentia specifica para a determinação da essência do ser humano (Dias, 2018Dias, T. (2018). Totalitarismo, tempo e ação: uma leitura de “A condição humana” de Hannah Arendt (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo.). Definir a essência de alguma coisa equivale a estabelecer um corte fundamental entre o que pertence e o que não pertence a um determinado campo. Quando se aborda o humano com base em uma definição tomada como fundamento, aquilo que há de indeterminado na experiência humana fica de fora, é deformado ou simplesmente ignorado. Neste sentido, para Thiago Dias, o livro A condição humana indica um engajamento na crítica desse procedimento e a formulação de uma outra forma de pensar o acontecimento humano sem um fundamento, abandonando as pretensões totalizantes que marcaram a tradição ocidental.

Arendt é, assim, levada a tematizar, não a natureza humana, mas aquilo que condiciona a vida humana tal como a conhecemos, distinguindo sua abordagem de qualquer perspectiva essencialista. Para a autora, a existência humana se desenvolveu no planeta terra sob determinadas condições, incluindo aquelas criadas pelo próprio homem. No entanto, essas condições – a vida, a natalidade, a mundanidade e a pluralidade – jamais poderiam explicar o que somos ou responder à pergunta sobre quem somos, pois jamais nos condicionam de modo absoluto. As condições sob as quais a vida humana tem se dado podem ser alteradas; pensar se queremos transformá-las e em que direção é uma questão política de primeira grandeza (Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.).

Impulsionada pelos problemas do tempo em que viveu, Arendt colocou a vida ativa no centro de sua reflexão. Privilegiando a política e a coexistência entre os seres humanos em sua pluralidade, desenvolveu longas análises sobre o trabalho, a fabricação e a ação; sobre as implicações da ciência moderna e do crescimento econômico; e sobre os obstáculos para o agir e o pensar no contemporâneo. Espero poder evidenciar, com este texto, a valiosa contribuição que essas análises podem trazer para o campo da terapia ocupacional4 4 Hannah Arendt é uma autora ainda pouco conhecida e trabalhada no campo da TO. Em artigo recentemente publicado, Jansson & Wagman (2017) apresentam o pensamento da autora como uma importante contribuição para que cientistas ocupacionais e terapeutas ocupacionais ampliem suas perspectivas sobre atividades e ocupações. No Brasil, Lima (2017) realizou um estudo do pensamento da autora e suas contribuições para a Terapia Ocupacional, defendido como tese de Livre-docência na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. .

2 A vida ativa e o devir humano de seres singulares

Ao se propor a investigar o que condiciona a vida humana tal como a conhecemos, Hannah Arendt encontra a vida ativa – “[...] a vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo” (Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 31) – e passa a examinar as atividades que a compõem e as modalidades de concebê-las na tradição da filosofia ocidental e do pensamento político.

A expressão vita activa surge na filosofia medieval como tradução para a expressão bios politikos, que designa a vida dedicada aos assuntos da polis. Para os gregos, a capacidade humana de produzir coisas – obras, feitos e palavras – seria a forma que os mortais têm de deixar vestígios atrás de si e-atingir um tipo de imortalidade. Por conseguinte, nenhum trabalho seria sórdido em si: a mesma atividade poderia ser expressão de autonomia, se realizada em liberdade, ou de servilismo e sujeição à necessidade, se o que estivesse em jogo fosse a mera sobrevivência.

Em consonância com esta visão, Aristóteles entendia que todas as atividades teriam relevância e valor, desde que exercidas livremente. A finalidade da existência humana seria a procura do bem e da felicidade, alcançáveis pela prática de atividades que permitissem ao ser humano sua plena realização. Neste quadro, o modo de vida de cada homem, seu bios, seria definido pela atividade predominante que escolhesse livremente exercer. A vida do filósofo – bios theoretikos – estaria voltada ao cultivo do espírito e dedicada ao pensamento e à contemplação, enquanto o bios politikos seria a vida dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produziria feitos e obras, e se daria na esfera dos assuntos humanos.

No texto Ética a Nicômano, Aristóteles (2002)Aristóteles. (2002). Ética a Nicômaco. Bauru: Edipro. propõe uma distinção, no seio do bios politikos, entre práxis e poésis. Práxis – ação – é aquela atividade na qual o produto não pode ser separado do produtor, só existindo durante sua realização, como ensinar, tocar um instrumento ou representar uma peça. Poiésis – fabricação –, por sua vez, é a atividade que encontra na produção de uma obra seu termo final; uma atividade que resulta em um artefato ou coisa separada do autor, que segue seu destino próprio (como um livro, um sapato, ou uma escultura...). Enquanto esses dois tipos de atividade estariam ligados a uma forma de permanência e imortalidade potencial, e ocorreriam na esfera dos negócios humanos, a theoria ou contemplação seria a experiência do eterno, que se daria quando se deixa de estar entre os homens.

É importante apontar que, para os gregos, uma vida voltada aos assuntos da polis, eminentemente política, não era incompatível com o ócio, considerado indispensável para uma existência livre e feliz, bem como para o exercício das atividades de cultivo do espírito (contemplação, letras, artes, ciência) e de cuidado do corpo (ginástica, dança). O ócio era, para eles, condição para o desenvolvimento físico, espiritual e político.

Na filosofia medieval, a expressão vita activa abandona o significado político da expressão grega e passa a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. A vita activa medieval corresponderia, assim, à askholia grega – com sentido de desassossego, inquietude ou nec-otium –, e sua distinção da vida contemplativa se daria pela oposição entre quietude e ocupação. A principal diferença entre a visão grega e aquela do período medieval estaria na hierarquia entre os modos de vida e, consequentemente, entre as atividades humanas. A ideia de uma vida eterna após a morte fez com que a busca por realizar feitos e obras que pudessem permanecer no mundo para além da vida individual perdesse o sentido. Ação e fabricação passaram a ser vistas como formas de responder às necessidades da vida terrena, tornando-se servas da contemplação, a qual, por estar ligada à busca do eterno, tornou-se o único modo de vida realmente livre (Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 22).

Com a Era Moderna, o primado da contemplação sobre a atividade foi invertido. As Revoluções Francesa e Industrial elevaram o trabalho, que havia sido a mais desprezada das atividades humanas, ao máximo grau de produtividade e valor, enquanto o humanismo colocava o homem5 5 Homem indica aqui uma forma de vida e um tipo específico de ser humano: o homem moderno, ocidental, racional, do sexo masculino, branco e heterossexual. no centro do mundo, fonte do próprio processo criador.

A filosofia de Marx aparece em sintonia com essa inversão da hierarquia entre contemplação e trabalho. Sua formulação, produzida com Engels, de que o trabalho criou o homem, sustenta que o homem cria a si mesmo e que sua humanidade é resultado de sua própria atividade. Segundo Arendt, a ideia de que o homem, ao produzir, produz a si mesmo é uma formulação de grande radicalidade e coerência, com a qual toda a Era Moderna veio a concordar (Arendt, 2014Arendt, H. (2014). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva.).

No entanto, ao estudar Marx, Arendt encontra uma contradição fundamental que permanece insolúvel em seus próprios termos: a glorificação do trabalho. Sem uma distinção clara entre as várias formas que a atividade humana pode ter, a exaltação do trabalho aparece ao lado do ideal de uma sociedade liberada do trabalho e da política. Marx insistiu que o objetivo da revolução seria a emancipação do homem em relação ao trabalho, o que equivaleria, nos termos do próprio Marx, a uma emancipação da necessidade. Mas, “[...] se o trabalho é a mais humana e a mais produtiva das atividades [...], o que acontecerá quando, depois da revolução, no reino da liberdade, o homem houver logrado emancipar-se dele?” (Arendt, 2014Arendt, H. (2014). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva., p. 51)6 6 Segundo Arendt, uma contradição dessa magnitude em um grande pensador como Marx remete ao centro de sua obra e é uma chave preciosa para a compreensão dos problemas em torno dos quais ela se constitui. Expressa, também, o que significa lidar com problemas novos com base em uma tradição de pensamento que já não dá conta do novo que se apresentava. Pensando contra a tradição, mas utilizando as ferramentas conceituais desta mesma tradição, Marx indicaria o ápice e o fim desta tradição de pensamento. .

Essa incompatibilidade entre duas ideias de trabalho – como sujeição à necessidade e como expressão de liberdade, produtividade e criação humanas –, indica para Arendt a necessidade de propor distinções entre as atividades da vida ativa. O enorme valor dado à contemplação teria obscurecido as diferenças no âmbito da vida ativa, que não foram evidenciadas nem mesmo pela inversão hierárquica que acompanhou a ruptura com a tradição em Marx.

Com a expressão vida ativa, a autora passa a se referir, então, a três atividades fundamentais: trabalho, fabricação e ação7 7 Nos textos de Hannah Arendt publicados em português, encontramos diferentes escolhas para a tradução dos termos labour e work. Na tradução de 2003 d’A condição humana, publicada pela Forense Universitária, Roberto Raposo propõe as palavras labor e trabalho. Já Adriano Correia, na tradução do texto “Trabalho, obra, ação”, publicado nos Cadernos de Ética e Filosofia Política, prefere trabalho e obra. Mais recentemente, alguns autores, como Thiago Dias, empregam trabalho e fabricação. Optamos por esta tradução, já que trabalho deriva de tripalio (instrumento de tortura), o que leva à associação entre trabalho e castigo; fabricação, por sua vez, traz a dimensão de construção do mundo comum que está contida no termo original work. . Cada uma delas corresponde a uma das condições básicas mediante as quais a vida humana pode emergir da rede de relações que compõe a terra: as condições de estar vivo, de habitar o mundo e de existir como ser singular em meio à pluralidade humana. Cada uma delas está associada também a uma capacidade humana: a capacidade de responder às necessidades vitais, de fabricar um mundo comum como lar na terra, e de agir entre os outros como ser político.

Observa-se que, ao partir da distinção proposta por Aristóteles entre práxis e poiésis, entre ação e fabricação, Arendt (2003)Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. introduz uma terceira modulação, distinguindo trabalho da fabricação de obras. Estabelece, assim, três diferentes arranjos em que a capacidade criativa do ser humano, em sua virtualidade, atualiza-se na experiência compartilhada. Sua argumentação para esta distinção baseia-se no estudo etimológico e associa-se ao sentido que os gregos davam às atividades ligadas à manutenção da vida e àquelas relacionadas à fabricação e construção do mundo. Do ponto de vista etimológico, Arendt sustenta que todas as línguas europeias possuem duas palavras, de origem e universo semântico diferentes, para designar o que se entende ser uma mesma atividade, e as utilizam como sinônimo. Assim, tem-se: em grego, ponein e ergazesthai; em latim, laborare e faceres ou fabricare; em francês, travailler e ouvrer; em alemão, arbeiten e werken; em inglês, língua em que o livro foi escrito, labour e work.

O trabalho como labor é a atividade imposta pela necessidade, voltada a assegurar a sobrevivência do indivíduo e a vida da espécie. A condição humana do trabalho é a própria vida, como processo biológico do corpo humano.

Já a fabricação está diretamente relacionada à construção do mundo comum: lar feito pelos seres humanos, que testemunha a presença de outros seres e garante a realidade do mundo e de cada um. O mundo comum é a casa dos humanos na terra, na qual adentram ao nascer e que abandonam quando morrem, sendo o que eles têm em comum com os que lhe são contemporâneos, os que viveram antes deles e os que ainda virão. A fabricação corresponde, portanto, à condição humana da mundanidade.

Por fim, a ação é a atividade que se exerce diretamente entre os seres humanos e depende da presença dos outros; ela cria a teia de relações entre os seres humanos e é, portanto, política por excelência. Aquele que age inicia alguma coisa, que é também o início de si mesmo em uma variação contínua (Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 22). A ação se ancora na escuridão da alma. Uma escuridão que “[...] se converte em singularidade no momento mesmo de sua revelação”, quando aparece diante de outras singularidades, no interior de uma pluralidade (Dias, 2018Dias, T. (2018). Totalitarismo, tempo e ação: uma leitura de “A condição humana” de Hannah Arendt (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 158). Assim, a ação corresponde à condição humana da pluralidade de seres singulares, que vivem na terra e habitam o mundo, sem que nenhum seja igual ao outro. A singularidade humana se manifesta no discurso e na ação, e por isso a ação é a condição de toda política (Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.).

Arendt (2003)Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. chama atenção para a diferença entre o que se produz em cada uma das atividades que compõe a vida ativa: enquanto a fabricação garante a permanência e a durabilidade do mundo, o trabalho produz coisas efêmeras destinadas ao consumo incessante, que asseguram a sobrevivência. É por isso que a produtividade do trabalho é aferida em relação às necessidades do processo vital e à própria reprodução da vida, e não em relação à qualidade ou ao caráter daquilo que foi produzido. Diferentemente dos produtos a serem consumidos e dos objetos que compõem o mundo comum, os “produtos” da ação e do discurso constituem a tessitura das relações humanas e instauram o espaço público. Sua efetivação depende integralmente da existência e presença dos outros, e, portanto, da pluralidade humana. Por incidir em uma rede de ações e relações que lhe preexiste, ação tem caráter indeterminado, seus resultados são imprevisíveis e irreversíveis, e seu significado se revela apenas em uma visão retrospectiva.

As três diferentes atividades que caracterizam a vida ativa no mundo ocidental moderno compõem um conjunto articulado, em que cada uma retira seu significado da relação com as demais. Assim, a vida humana se produziu no ocidente por meio de uma imbricada trama entre ação, trabalho e fabricação e essas formas de atividade são condicionadas pelo fato de que, não um ser humano, mas a humanidade e o conjunto dos seres vivos habitam a terra e de uma maneira ou de outra vivem juntos aí.

3 A vida ativa no contemporâneo

A distinção entre essas três atividades que compõem a vida ativa é essencial para que Arendt possa sustentar a tese original deste seu trabalho, por meio da qual procurou responder ao problema que o provocou: como foi possível a emergência dos totalitarismos?

A filósofa afirma que o modo de existência predominante na sociedade moderna praticamente reduziu todas as atividades que são realizadas, mesmo aquelas de fabricar e agir, ao denominador comum de um trabalho voltado a assegurar as coisas necessárias à vida do corpo biológico, produzi-las e consumi-las. Em um curto espaço de tempo, as comunidades modernas foram transformadas em sociedades de operários e assalariados, de forma que os grupos humanos passaram a se organizar em torno da sobrevivência, por meio de atividades que visam à manutenção da vida.

Arendt (2003)Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. explica que a súbita e surpreendente promoção do trabalho à posição da mais valorizada das atividades humanas está associada às ideias de Locke e Adam Smith, respectivamente, de que o trabalho seria fonte de toda a propriedade e de toda a riqueza; para, finalmente, com Marx, ser considerado origem e forma de toda a produtividade humana. A descoberta da produtividade do trabalho levou à associação entre um processo crescente de produção, aquisição e apropriação de riqueza, e a fertilidade natural da vida, isto é, o próprio processo vital. Entre todas as atividades humanas, a que mais se aproxima desse processo é o trabalho, em seu caráter interminável e cíclico. Assim, trabalho e procriação passaram a ser vistos como duas modalidades do mesmo processo fértil da vida: o primeiro, responsável pela produção da vida social, e a segunda pela reprodução da espécie. Nessa perspectiva, o equacionamento da produtividade com a fertilidade levaria ao desenvolvimento das forças produtivas para a criação de uma sociedade da abundância.

O capitalismo é, para Arendt, esse sistema econômico que se conectou de forma impressionante aos processos fisiológicos e seus ritmos. A produção de riqueza e sua transformação em capital – características da Era Moderna – realizaram-se por meio de um trabalho entendido, na expressão de Marx, como “[...] metabolismo do homem com a natureza” (Marx, 1950 apud Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 118), no qual produção e consumo são dois estágios do eterno ciclo da vida biológica8 8 “Ao definir o trabalho como o ‘metabolismo do homem com a natureza’, em cujo processo ‘o material da natureza [é] adaptado por uma mudança de forma às necessidades do homem’, de sorte que ‘o trabalho se incorpora ao sujeito’, Marx deixou claro que estava ‘falando fisiologicamente’, e que o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do eterno ciclo da vida biológica” (Arendt, 2003, p. 110). .

Todavia, o acúmulo de capital, decorrente do aumento de produtividade, não levou à estagnação ou lentificação do processo, nem a apropriação terminou com a satisfação das necessidades e desejos; pelo contrário, deu início a um fluxo crescente de riqueza. O “processo vital da sociedade”, cuja capacidade de produzir riqueza pode ser comparada à fertilidade dos processos naturais, permaneceu ligado ao princípio da alienação do mundo e todas as coisas produzidas ficaram a serviço de realimentar esse acúmulo em uma velocidade cada vez maior.

Esse processo trouxe enormes consequências na esfera da vida ativa: a fabricação passou a tomar a forma do trabalho, e seus produtos, ao invés de construírem um mundo, passaram a ser tratados como objetos de consumo; a ação, por sua vez, foi substituída pelo comportamento e a política pela burocracia e pelo planejamento, na tentativa de controlar os resultados e suprimir o caráter de incerteza que toda ação e toda política comportam.

O homem, reduzido ao trabalho como labor e à manutenção de uma vida em sua nudez de esforço pela sobrevivência, está aprisionado, segundo Arendt (2003)Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., a um processo ininterrupto de produção cada vez maior de coisas pouco duráveis a serem consumidas; processo que não termina senão com a exaustão da força de trabalho. Tudo o que o homem moderno faz é quase exclusivamente um modo de garantir seu próprio sustento e a subsistência de sua família. Por outro lado, toda atividade que não seja necessária para a vida do indivíduo ou da sociedade é considerada hobby ou lazer.

Quando tudo que é feito se resume a este mecanismo de produção incessante de bens perecíveis e consumo incessante desses mesmos bens, os seres humanos deixam de construir um mundo e de coexistir no espaço público como seres políticos. Além disso, a sobreposição entre a atividade e o processo vital faz com que se consumam rapidamente todas as riquezas da terra sem que se possa interromper esse fluxo produtivo. Isto é, este processo, que tem por objetivo único o acúmulo de riqueza, só é possível se o mundo e a terra forem sacrificados.

Os seres humanos passam, então, a experimentar a futilidade de uma vida que não se realiza em coisa alguma que seja permanente e tornam-se seres inteiramente privados: privados da presença dos outros, da realidade que advém de compartilhar um mundo, de realizar algo duradouro. Tem-se aí o apagamento do espaço público e da esfera política que, para a autora, diz respeito sobretudo ao desinvestimento no mundo comum.

Para fazer frente a esse crescimento constante, que devora a terra e o mundo e que se impõe como única forma de vida, o íntimo e o próprio, de um lado, e o político e o comum do outro, estabelecem-se como polos de uma difícil e necessária resistência.

4 As atividades e as formas de vida

Ligados aos outros seres vivos pela vida, como força que atravessa o planeta, os seres humanos possuem uma outra camada da existência, indissociável da primeira, que a recobre e significa: a vida especificamente humana, limitada entre o nascimento e a morte, feita de histórias, encontros, linguagens, sentidos, ação e obra. Arendt (2003)Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. recupera aqui a distinção grega entre zoé – a vida comum a todos os seres vivos – e bios – a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou grupo, plena de eventos e qualidades. Trata-se, nos termos de Agamben (2015)Agamben, G. (2015). Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica., do fato-da-vida e das formas-de-vida que, embora distintos, não deveriam ser separados na experiência humana, ao preço de gerar o que o autor denomina de vida nua. Mas, adverte o filósofo, os regimes políticos ocidentais contemporâneos incidem sobre a vida humana e separam o que nela é indissociável, instaurando uma fratura entre bios e zoé e reduzindo a multiplicidade das formas-de-vida à unidade do fato-da-vida. Se tudo o que fazemos tem a forma do trabalho como labor, a vida que mantemos e reproduzimos reduz-se cada vez mais ao simples fato de viver, de modo que a vida no estado de exceção passa a ser naturalizada e normalizada como forma de vida dominante.

No entanto, Agamben considera que uma vida humana não pode jamais ser separada de sua forma e reduzida inteiramente ao fato-da-vida; ela é sempre uma forma de vida como vida política. São formas de vida que se apresentam ao mundo e definem uma vida humana “[...] em que os modos singulares, atos e processos do viver nunca são simplesmente fatos, mas sempre e primeiramente possibilidade de vida, sempre e primeiramente potência” (Agamben, 2015Agamben, G. (2015). Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica., p. 14).

Assim, as formas de vida, quaisquer que sejam, são plenas de virtualidade e não podem ser reduzidas ao fato biológico. Os gestos, ações, criações e formas do viver humano:

[...] nunca são prescritos por uma vocação biológica específica, nem atribuídos por uma necessidade qualquer, mas, por mais ordinários, repetidos, e socialmente obrigatórios, conservam sempre o caráter de uma possibilidade, isto é, colocam sempre em jogo o próprio viver (Agamben, 2015Agamben, G. (2015). Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica., p. 14).

Formas de vida são subjetividades corporificadas: pulsos e ritmos corporais vestidos de linguagem, cultura e sentidos que só se produzem nos encontros, em meio a relações. Feixes de músculos, ossos e vísceras que, atravessados por experiências e acontecimentos, encarnam modos de pensar, sentir, fazer e agir, produzidos coletivamente e singularizados em cada existência.

5 Fazer e agir como formas de cuidar e produzir saúde

Os terapeutas ocupacionais enfrentam, no contemporâneo, o desafio de conceber intervenções nas esferas da saúde, da educação, do trabalho, da cultura e do campo social, em um mundo dominado pelo poder que mimetiza a vida e se constitui atuando sobre o que Agamben (2015)Agamben, G. (2015). Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica. chamou de vida nua.

Nesse jogo entre poder e resistência, uma marca da profissão tem o potencial de provocar um desvio importante no campo da saúde: a aposta de que o enfrentamento dos problemas de saúde – adoecimentos e sofrimentos de todo tipo – pode se dar por meio do exercício e da experimentação de formas de fazer e agir. Ao colocar as atividades que compõem a vida ativa no cerne de sua prática, os terapeutas ocupacionais realizam, talvez inadvertidamente, uma ação contra-hegemônica, na afirmação de que a vida do corpo não pode ser dissociada dos fazeres e agires, de seus valores sociais, das relações que põem em jogo. Em síntese, não há corpo humano que seja somente zoé, que exista sem mundo, sem linguagem, sem relações; por outro lado, não há vida humana sem corpo, sangue, músculo e vísceras. Trata-se sempre de uma montagem, um agenciamento entre componentes heterogêneos, que abre o campo do possível, imprevisível e prenhe de virtualidades.

As formas de vida são realidades sociais, culturais e corpóreas. O corpo humano é uma realidade que se constrói juntamente com a experiência, como um ambiente articulado a outros ambientes, formando ecologias (Favre, 2004Favre, R. (2004). Viver, pensar e trabalhar o corpo como um processo de existencialização contínua. Revista Reichiana do Instituto Sedes Sapientiae, 12(13), 75-84.). Assim, um corpo não se define pela forma que o determina, tampouco pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce, mas pelos afetos e composições de que é capaz (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34.).

Tendo como paisagem de sua atuação a vida ativa – que se desenrola no mundo comum e na esfera das relações entre os seres humanos –, os terapeutas ocupacionais inserem no campo da saúde as condições da mundanidade e da pluralidade que caracterizam o existir humano. Assim, a atuação em terapia ocupacional comporta um caráter político, e pode se constituir como força que tensiona o campo da saúde em direção às formas de vida, isto é, à vida que não pode ser separada de sua forma, possibilitando a reconexão daquilo que foi separado: bios e zoé, o fato-da-vida e as formas-de-vida.

Neste sentido, variados modos de se fazer terapia ocupacional esboçam tentativas de afirmar a vida qualificada ali onde só se via vida biológica. Essas práticas evidenciam que, se um corpo em uma cama de hospital pode parecer uma vida nua, esta é uma realidade criada com base em dispositivos bem precisos que isolam e objetificam um corpo. O corpo ainda pulsa, respira, transpira (Liberman, 2010Liberman, F. (2010). O corpo como pulso. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 14(33), 449-460.). E neste pulsar há um ritmo; um embrião de si que se arrisca; uma música prestes a nascer. A vida ali lentificada, talvez, só seja nua para quem não quer ver suas roupagens. Como diz Peter Pelbart,

[...] uma vida que parece nua e animal só é nua em aparência, pois ela é sempre composição de relações, amizades, força produtora de formas de vida. Até o silêncio, a recusa de falar ou de se alimentar já pode ser expressão de uma riqueza de relações. A vida singularizada é sempre uma vida que em algum momento escapa ao poder e se faz vida qualificada (Pelbart, 2003Pelbart, P. P. (2003). Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras., p. 66).

É preciso que possamos nos libertar da ideia de que a vida é um mero fato para que ela possa tornar-se o que é: um conjunto de possibilidades e variações de formas de vida. É nesse terreno incerto, nessa zona opaca de indiferenciação entre corpo biológico e corpo político, como diz Agamben (2016)Agamben, G. (2016). Uma biopolítica menor (Série Pandemia). São Paulo: N-1 ediçoes., que podemos encontrar o caminho de uma outra política, de um outro corpo e de uma outra palavra.

Constrói-se, assim, com base na terapia ocupacional, uma perspectiva de atuação diante de condições muitas vezes graves, pautadas na ética e na afirmação da dignidade humana. Operando no âmbito da vida ativa, o terapeuta ocupacional ocupa-se e preocupa-se com a manutenção da vida e alia-se à vida que quer perseverar; estabelece, ou busca reestabelecer, redes de relações humanas que foram rompidas; e participa, com as pessoas atendidas, da construção do mundo comum. Sua atuação se dá, portanto, nos termos de Hannah Arendt, na esfera política.

A ação do terapeuta ocupacional envolve a busca por diminuir a alienação em relação ao mundo comum, a luta contra o isolamento e o desenraizamento e a ampliação do horizonte da vida ativa dos usuários, sua capacidade de criar e agir, seus espaços de ação e de liberdade, suas relações com o mundo e com os outros. Trata-se de estabelecer espaços de vida em comum nos quais formas de agir e fazer possam levar em conta o respeito a diferentes temporalidades e estilos, compreendendo as relações com a infância, com a velhice, com a deficiência, com a loucura, com a condição feminina, com as diferenças étnico-culturais. Trata-se, enfim, de fortalecer a teia das relações humanas e investir na afirmação de uma vida qualificada, que se inventa e se singulariza.

E essa singularização, as formas e maneiras de viver que vão ganhando corpo, não podem jamais ser reduzidas àquilo que alguém faz ou produz e tampouco ao corpo como máquina biológica. Os seres humanos são esses seres de potência, que podem fazer e não fazer, conseguir e falhar, perder-se e encontrar-se. Sua singularidade ganha existência e aparece na dimensão pública do mundo comum, no exercício daquelas atividades que só existem na mera realização e que estão condicionadas à presença dos outros. O quem, que aparece na ação e no discurso, aparece em sua singularidade (Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.) e importa sobretudo porque sua existência é potência (Agamben, 2013Agamben, G. (2013). A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica.).

Este ser de potência, qualquer que seja, importa muito além de suas habilidades ou a soma das qualidades que possa ter. Para Arendt (2003)Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., a premissa de que a existência de alguém, sua capacidade de fazer, agir e dizer ultrapassa em grandeza e importância todos os produtos que possam ser gerados em seu fazer, é o elemento indispensável da dignidade humana. A fonte da criatividade emana de quem se é e nunca estará completamente absorvida pelo trabalho, nem contida integralmente na obra.

A questão que se coloca, portanto, é a da possibilidade de experimentação e composição entre diferentes modos de ser. Produzir uma nova poesia, uma relação inédita com o social, uma nova arte de viver, um novo tipo de amor, por meio de processos criadores sempre recomeçados. Amor que não transporta alguém para outro lugar nem o transforma em outra coisa, mas que o ama “[...] tal qual é e o transporta para seu próprio ter-lugar” (Agamben, 2013Agamben, G. (2013). A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica., p. 11).

6 Atividades: capturas e resistências...

Como vimos no início deste texto, toda a pesquisa empreendida por Hannah Arendt gravita em torno de uma questão: as condições que tornaram possível que o mundo ocidental engendrasse a experiência totalitária, experiência que continua assombrando nossos sonhos e nosso mundo, mesmo nas sociedades ditas democráticas.

Com base na vasta e profunda pesquisa genealógica realizada, algumas linhas para desdobrar esse problema foram puxadas. A autora encontra, no seio do pensamento ocidental, o procedimento de estabelecer uma definição do humano em sua essência e identifica, no coração do mundo totalitário, a produção de formas de vida e modos de fazer marcados pelo isolamento e pelo desenraizamento. O isolamento, nos diz ela, é o começo do governo totalitário: o terror só pode reinar sobre seres humanos isolados uns dos outros. Quando a este processo soma-se a destruição das formas de expressão da criatividade humana e a possibilidade de acrescentar algo de si mesmo ao mundo, o desenraizamento se instaura e torna o isolamento inteiramente insuportável. O ser isolado perde seu lugar no terreno político e já não é reconhecido pelo seu fazer, de modo que desaparece a relação com o mundo e com os outros, e só sobrevive o esforço por se manter vivo (Arendt, 2012Arendt, H. (2012). Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras.).

O totalitarismo se baseia, portanto, em uma das mais radicais e desesperadoras experiências que se pode ter: aquela de não pertencer ao mundo, não ter no mundo um lugar reconhecido e assegurado pelos outros, de ser dispensável. Ao isolamento na esfera política soma-se a solidão na esfera das relações humanas e o desenraizamento como expulsão do mundo, destruindo a capacidade de sentir, pensar e agir.

Quando tudo que fazemos é capturado pelo movimento incessante de produção e consumo, tudo se torna mercadoria, incluindo o trabalho, os recursos naturais, a terra, as relações humanas. O efeito na vida ativa das pessoas e no modo como vivem seu cotidiano é devastador e penetra em todas as áreas da experiência, mesmo que de modo sutil e difuso.

Como campo de saber-fazer entre as várias ciências humanas aplicadas, que desenvolve práticas em saúde, educação, trabalho, cultura e na esfera social, a terapia ocupacional constrói sua forma própria de atuação e de pensamento com base em uma perspectiva singular que a caracteriza. A perspectiva é um lugar de onde se olha o mundo, os seres, as coisas. O terapeuta ocupacional olha para as pessoas e situações problemáticas que se apresentam a ele da perspectiva da vida ativa; ele faz coisas junto com os outros, age em composição com a pessoa ou coletivos que acompanha. Sua lente é a vida ativa; sua ferramenta, as diferentes atividades que a compõem.

Assim, o terapeuta ocupacional olha para o corpo como lugar do entrelaçamento entre bios e zoé, para ver os gestos e movimentos deste corpo e suas ações no mundo; olha para a subjetividade como composição de modos de viver, pensar e agir, atravessada por sentimentos e sensações, imaginação, sonho e desejo, e vê suas relações com as coisas e com os outros e suas formas de expressão no mundo, que se dão no fazer e no agir; e olha para o mundo como criação coletiva de seres singulares, ambiente de multiplicidade em que se desenrolam seus fazeres e suas ações, em variação contínua, desvios, tentativas, esboços, invenções, começos...

Sendo assim, as atividades compõem e sustentam uma ontologia em terapia ocupacional. Uma ontologia do devir que parte das formas atualizadas, do sujeito que se apresenta ao mundo em um determinado momento, do corpo que age e sofre, das funções que exerce para alcançar os movimentos de singularização e, assim, aproximar-se daquilo que cada um está em vias de tornar-se (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34.).

Os devires são as gentes que se subtraem ao poder enquanto dominação, aquelas que se erguem e resistem, sem lugar ou regresso anunciados; são afinal os acontecimentos que rompem com o vetor linear do tempo histórico e recriam os traços de um sentido nômade (Vilela, 2010Vilela, E. (2010). Silêncios tangíveis: corpo, resistência e testemunho nos espaços contemporâneos do abandono. Porto: Edições Afrontamento., p. 29).

Devir é atualizar continuamente a capacidade humana de agir como iniciar, radicada ontologicamente no fato do nascimento. Para Arendt (2003)Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., os seres humanos são criaturas que agem no sentido de iniciar algo novo e disparar acontecimentos. Novos seres humanos estão continuamente chegando ao mundo, cada um, único e capaz de novas iniciativas; podem, portanto, interromper ou desviar as cadeias de eventos acionados por ações que, em agenciamentos múltiplos, produziram a eles mesmos e ao mundo em seu estado atual.

Arendt (2003)Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. trouxe para a filosofia a perspectiva do nascimento, invertendo a lógica de filosofias que se constroem com base no destino inexorável de todo ser vivo, que caminha para a morte. Para a autora, embora os seres humanos devam morrer, eles não nascem para morrer, mas para começar. E no começo de todos os começos está o nascimento. Cada criança que nasce nos diz que é possível novamente acreditar no mundo. Acreditar que outros mundos possam surgir.

O nascimento de um ser humano é um acontecimento vital, ao mesmo tempo sagrado e imediatamente político. Reestabelece, assim, a vida inextrincavelmente como bios e zoé, conjugando o corpo em sua potência de gerar vida, entre sangue e vísceras, e o mundo no qual um novo ser adentra. O ser que nasce mantém-se ligado a todos os seres vivos e à terra pelos processos do vivo, ao mesmo tempo em que é recebido por uma comunidade com sua linguagem, cultura, seus objetos, suas formas de viver e de pensar.

Pelo fato de ter nascido e se inserir em uma teia de relações que hoje cobre o planeta, cada ser humano, em cada gesto, movimento e ação, altera toda a composição da teia e inicia algo de desdobramentos imprevisíveis. O início, que só acontece em relação, é a própria essência da liberdade que consiste em “[...] chamar à existência o que antes não existia, o que não foi dado nem mesmo como um objeto de cognição ou de imaginação” (Arendt, 2014Arendt, H. (2014). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva., p. 198).

Agir e fazer permitem viver sobre uma linha inventiva, instituinte de novas formas. Pelo fazer e pelo agir escapa-se ao enrijecimento das formas instituídas e ao isolamento, desenraizamento e desmoronamento existencial que advém quando se está fora do mundo e de toda relação; e engendra-se a criação de lugares onde seja possível viver, territórios constituídos por ritmos e formas abertas a uma permanente invenção de si e do mundo. Nesse sentido, fazer e agir se dão sempre por agenciamentos. “É preciso falar com, escrever com. Com o mundo, com uma porção do mundo, com pessoas” (Deleuze & Parnet, 1998Deleuze, G., & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta., p. 67).

Por se construir pela participação, o conceito de ação em Arendt aponta para uma ética pautada na visibilidade de atos criados pelos seres humanos em sua pluralidade. Aqueles que agem são livres e responsáveis por suas ações, quando essas não se dissociam do pensamento, necessário para que se possa decidir o que fazer em cada situação que se apresenta. O totalitarismo, separando a ação do pensamento, transforma-a em comportamento: não pensar é também negar a si a responsabilidade pelo que se faz e anestesiar a criticidade (Arendt, 2004Arendt, H. (2004). Responsabilidade coletiva. In H. Arendt, Responsabilidade e julgamento (pp. 213-225). São Paulo: Cia das Letras.). A liberdade, por sua vez, exercida e experimentada no mundo comum e na esfera pública, garante a existência de seres singulares que, por meio do pensamento, da palavra e da ação vivas, exercem uma ética na forma de um cuidado com o mundo.

  • 2
    Alguns terapeutas ocupacionais têm se proposto a pensar a terapia ocupacional com base na Ontologia. Morrison (2018)Morrison, R. (2018). O que une a terapia ocupacional? paradigmas e perspectivas ontológicas da ocupação humana. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 2(1), 182-203. considera a perspectiva ontológica um dos eixos centrais para compreender a terapia ocupacional; para ele, a ocupação é um constructo ontológico da profissão. No livro Perspectivas Ontológicas de la Ocupación Humana en Terapia Ocupacional, escrito com Diego Vidal, os autores exploram diferentes matrizes ontológicas para a ocupação humana na TO (Morrison & Vidal, 2012Morrison, R., & Vidal, D. (2012). Perspectivas ontológicas de la ocupación humana en terapia ocupacional: una aproximación a la filosofía de la ocupación. Madrid: Editorial Académica Española.). Já Almeida & Costa (2019Almeida, M. V. M., & Costa, M. C. (2019). Movimento de artes e ofícios: perspectiva ética-política-estética de constituição da terapia ocupacional. In C. R. Silva (Ed.), Atividades humanas e terapia ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências (pp. 59-79). São Paulo: Hucitec., p. 62) afirmam que compreender a TO como ontologia implica dizer que a TO “não procura tratar ou minimizar sequelas por meio do uso de atividades, mas entende o fazer como parte fundamental, constitutiva e essencial da vida dos homens, doando um sentido existencial à humanidade”.
  • 3
    “Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro” (Deleuze & Guattari, 1978Deleuze, G., & Guattari, F. (1978). O Anti-Édipo. Lisboa: Assírio & Alvin., p. 8).
  • 4
    Hannah Arendt é uma autora ainda pouco conhecida e trabalhada no campo da TO. Em artigo recentemente publicado, Jansson & Wagman (2017)Jansson, I., & Wagman, P. (2017). Hannah Arendt’s vita activa: a valuable contribuition to ocupacional science. Journal of Occupational Science, 24(3), 290-301. apresentam o pensamento da autora como uma importante contribuição para que cientistas ocupacionais e terapeutas ocupacionais ampliem suas perspectivas sobre atividades e ocupações. No Brasil, Lima (2017)Lima, E. M. F. A. (2017). Vida ativa, mundo comum, políticas e resistências: pensar a terapia ocupacional com Hannah Arendt (Tese de livre-docência). Universidade de São Paulo, São Paulo. realizou um estudo do pensamento da autora e suas contribuições para a Terapia Ocupacional, defendido como tese de Livre-docência na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
  • 5
    Homem indica aqui uma forma de vida e um tipo específico de ser humano: o homem moderno, ocidental, racional, do sexo masculino, branco e heterossexual.
  • 6
    Segundo Arendt, uma contradição dessa magnitude em um grande pensador como Marx remete ao centro de sua obra e é uma chave preciosa para a compreensão dos problemas em torno dos quais ela se constitui. Expressa, também, o que significa lidar com problemas novos com base em uma tradição de pensamento que já não dá conta do novo que se apresentava. Pensando contra a tradição, mas utilizando as ferramentas conceituais desta mesma tradição, Marx indicaria o ápice e o fim desta tradição de pensamento.
  • 7
    Nos textos de Hannah Arendt publicados em português, encontramos diferentes escolhas para a tradução dos termos labour e work. Na tradução de 2003 d’A condição humana, publicada pela Forense Universitária, Roberto Raposo propõe as palavras labor e trabalho. Já Adriano Correia, na tradução do texto “Trabalho, obra, ação”, publicado nos Cadernos de Ética e Filosofia Política, prefere trabalho e obra. Mais recentemente, alguns autores, como Thiago Dias, empregam trabalho e fabricação. Optamos por esta tradução, já que trabalho deriva de tripalio (instrumento de tortura), o que leva à associação entre trabalho e castigo; fabricação, por sua vez, traz a dimensão de construção do mundo comum que está contida no termo original work.
  • 8
    “Ao definir o trabalho como o ‘metabolismo do homem com a natureza’, em cujo processo ‘o material da natureza [é] adaptado por uma mudança de forma às necessidades do homem’, de sorte que ‘o trabalho se incorpora ao sujeito’, Marx deixou claro que estava ‘falando fisiologicamente’, e que o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do eterno ciclo da vida biológica” (Arendt, 2003Arendt, H. (2003). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 110).
  • Como citar: Lima, E. M. F. A. (2020). Atividades, mundo comum e formas de vida: contribuições do pensamento de Hannah Arendt para a terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional. Ahead of Print. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1995
  • Fonte de Financiamento

    O trabalho recebeu apoio da Comissão de Pesquisa da Faculdade de Medicina da USP na forma de bolsa de pesquisa.
  • 1
    Este artigo foi produzido com base na tese de livre-docência “Vida ativa, mundo comum, políticas e resistências: pensar a terapia ocupacional com Hannah Arendt”, apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em 2017 (Lima, 2017Lima, E. M. F. A. (2017). Vida ativa, mundo comum, políticas e resistências: pensar a terapia ocupacional com Hannah Arendt (Tese de livre-docência). Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2019
  • Revisado
    12 Dez 2019
  • Aceito
    27 Jan 2020
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