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Revisitando o materialismo histórico em terapia ocupacional: o papel técnico, ético e político na contemporaneidade

Resumo

A terapia ocupacional no Brasil vem consolidando uma diversidade de ações nos seus diferentes campos de atuação que reflete o engajamento dos profissionais nas reais e desafiantes demandas da sociedade brasileira. No fim da década de 1980, algumas formulações teóricas em torno das bases epistemológicas da terapia ocupacional, em especial a perspectiva materialista-histórica, contribuíram para a reflexão e a revisão da prática profissional, defendendo o engajamento profissional nas demandas sociais. Por meio de uma revisão assistemática da literatura, este texto objetiva refletir e atualizar acerca dos conceitos trazidos pelo materialismo histórico frente ao campo metodológico de embasamento teórico e intervenção em terapia ocupacional. Por meio de uma análise de textos “clássicos” da profissão, que lançaram a discussão da corrente materialista-histórica nos anos de 1980 e 1990, apresentam-se argumentos acerca da pertinência e atualidade desta linha de pensamento na defesa de uma prática profissional que seja técnica, ética e política, respondendo às demandas e desafios da sociedade contemporânea.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional/Tendências; Epistemologia; Política

Abstract

Occupational therapy in Brazil has been consolidating a diversity of actions in different fields that reflects the engagement of occupational therapists in Brazilian society. At the end of the 1980s, some theoretical formulations around occupational therapy epistemological bases, especially the materialist-historical perspective, contributed to the reflection and review of professional practice, defending professional engagement in social demands. Through a systematic literature review, this text aims to reflect and update on the concepts brought by materialism-historical adding for the discussion of the ways of life and their projection in the methodological field theoretical background of the intervention of occupational therapy. Through an analysis of profession “classic” texts from the 1980's and 1990's decades, that discussed the materialist historical perspective, the arguments presented are related trough their relevance and contemporaneity in theoretical perspective defending a professional practice that is based on professional, ethical and political approaches, responding to the demands and challenges of contemporary society.

Keywords:
Occupational Therapy/Trends; Knowledge; Politics

1 Introdução

A discussão sobre o materialismo histórico vem se explicitando como uma chave de leitura para práticas em terapia ocupacional no Brasil desde a década de 1980, constituindo-se em uma base teórica pertinente e atual para a compreensão de parte da atuação da terapia ocupacional brasileira contemporânea. Nessa direção, Soares (1987)Soares, L. B. (1987). Terapia Ocupacional: Lógica do Capital ou do Trabalho? Retrospectiva histórica da profissão no Estado brasileiro de 1950 à 1980 (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., Francisco (1988)Francisco, B. R. (1988). Terapia ocupacional. São Paulo: Papirus., Galheigo (1988)Galheigo, S. M. (1988). Terapia ocupacional: a produção do conhecimento e o cotidiano da prática sob o poder disciplinar: em busca de um depoimento coletivo (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas., Medeiros (1989)Medeiros, M. H. R. (1989). A terapia ocupacional como um saber: uma abordagem epistemológica e social (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas., Pinto (1990)Pinto, J. M. (1990). As correntes metodológicas em terapia ocupacional no estado de São Paulo (1970-1985) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. e Lopes (1991)Lopes, R. E. (1991). A formação do terapeuta ocupacional – o currículo: histórico e propostas alternativas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. foram precursoras em seus estudos acadêmicos dentro desta vertente de raciocínio, pois problematizavam o papel do terapeuta ocupacional na sociedade (Lopes, 2004Lopes, R. E. (2004). Terapia ocupacional em São Paulo: um percurso singular e geral. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 12(2), 75-88.). Esse movimento reflete um importante marco acerca do pensamento crítico na terapia ocupacional brasileira, questionando unicamente o seu papel técnico e procedimental, muitas vezes de “adaptador social” (Galheigo, 1997Galheigo, S. M. (1997). Da adaptação psicossocial à construção do coletivo: a cidadania enquanto eixo. Revista de Ciências Médicas da PUCCAM, 6(2-3), 105-108.), caminhando para um compromisso técnico-político (Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento e perspectivas teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738.).

Os clássicos estudos de Jussara Mesquita Pinto, em 1990, assim como o de Berenice Rosa Francisco, publicado em 1988, demonstravam a preocupação na busca de um embasamento teórico como chave de leitura da prática profissional do terapeuta ocupacional. Na opção nominal de “correntes metodológicas”, com base na filosofia para leitura das práticas realizadas, as autoras se basearam no positivismo, no humanismo e no materialismo histórico como referenciais que poderiam contribuir na compreensão de práticas em terapia ocupacional no Brasil.

Dando continuidade a este debate, o presente texto tem por objetivo refletir acerca das proposições teóricas que já foram problematizadas em outros momentos históricos na terapia ocupacional brasileira, com destaque para o materialismo histórico, como embasamento teórico e metodológico para a compreensão das ações práticas com o público destinatário à intervenção terapêutica ocupacional. Parte-se da releitura de tais estudos clássicos da área para o debate acerca do papel ético-político do terapeuta ocupacional na contemporaneidade, com vistas a integrar um conjunto atualizado de trabalhos que tem se dedicado ao tema, por exemplo Galheigo et al. (2018)Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento e perspectivas teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738. e Shimouguiri & Costa-Rosa (2017)Shimouguiri, A. F. D. T., & Costa-Rosa, A. (2017). Contribuições do materialismo histórico para a terapia ocupacional: uma análise dialética do fazer e da genericidade humana. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional., 1(5), 704-720..

2 Apontamentos sobre o Materialismo Histórico

A dialética materialista histórica pode sinalizar diversos caminhos de compreensão e de debate de estudos específicos deste campo. O entendimento aqui proposto, sem a pretensão de aprofundamento na temática, é orientado pela concepção metodológica do materialismo histórico, conceituado por Marx e Engels na “Ideologia Alemã”, tal como trabalhada pelas terapeutas ocupacionais, e apresentado por alguns comentadores de sua obra, entre eles Lowy (1991)Lowy, M. (1991). Ideologias e a Ciência Social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez.. Para o autor: os processos de produção ideológicos não se fazem no campo individual, mas sim a partir das classes sociais, configurando um conjunto orgânico, “[...] uma maneira de pensar o mundo” (Lowy, 1991Lowy, M. (1991). Ideologias e a Ciência Social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez., p. 95).

A dialética pode ser compreendida como o desenvolvimento e a transformação dos fatos dentro de uma trama de relações entre aquilo que é histórico com aquilo que é a realidade. Logo, o materialismo se torna imperativo pela concepção da produção social da existência, ou seja, a partir de uma interpretação da realidade, do mundo e até da existência humana baseada na configuração histórica e social (Frigotto, 2000Frigotto, G. (2000). O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In I. Fazenda (Ed.), Metodologia da pesquisa educacional (pp. 71-90). São Paulo: Cortez.). Nesse entendimento, as contribuições trazidas por Vazquéz (2011)Vazquéz, A. S. (2011). Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular. podem ser de grande interesse para a terapia ocupacional, na medida em que evidencia, com base no pensamento de Marx e Engels, a emergência do conceito de práxis.

Para Vazquéz (2011)Vazquéz, A. S. (2011). Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular., a práxis é entendida a partir da atividade, ou seja, um ato ou um conjunto de atos dos quais um agente (físico, biológico ou humano) modifica a matéria-prima dada (corpo físico, ser vivo, vivência psíquica, grupo, relação ou instituição social), resultando num processo de transformação da atividade em um produto que pode ser um conceito, um instrumento, uma obra artística ou um novo sistema social. O autor aponta que a distinção entre a atividade humana e a atividade em geral se dá pela ação dos sujeitos frente à realidade, transformando um objeto e o resultando em um produto efetivo e real (Galheigo, 2012Galheigo, S. M. (2012). Perspectiva crítica y compleja de terapia ocupacional: actividad, cotidiano, diversidad, justice social y compromisso ético-político. A Coruña, 9(5), 176-197.). Com isso, a práxis se baseia na construção da realidade a partir do fazer humano, por meio de instrumentos e conhecimentos que resultam num produto final, na materialização de um projeto (Galheigo, 2012Galheigo, S. M. (2012). Perspectiva crítica y compleja de terapia ocupacional: actividad, cotidiano, diversidad, justice social y compromisso ético-político. A Coruña, 9(5), 176-197.).

Desta forma, o materialismo histórico buscou construir a explicação acerca da vida social pelo plano de conhecimento da dialética do real, ou seja, na busca do entendimento dos diferentes agentes em execução na vida concreta material, buscando refletir e analisar criticamente a realidade (Frigotto, 2000Frigotto, G. (2000). O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In I. Fazenda (Ed.), Metodologia da pesquisa educacional (pp. 71-90). São Paulo: Cortez.). Tal fundamento se baseia no questionamento acerca das condições para a reprodução da vida material, na compreensão de que a estrutura social capitalista molda a sociedade em estratificadas classes sociais e tem na desigualdade sua condição de existência (Marx & Engels, 2001Marx, K. E., & Engels, F. (2001). A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes.). Assim, para haver a coesão social, o trabalho atua com centralidade organizativa nos mecanismos de exploração (Castel, 2002Castel, R. (2002). Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. São Paulo: Vozes.) e também na configuração das relações sociais estabelecidas (Alves, 2010Alves, A. M. (2010). O método materialista histórico dialético: alguns apontamentos sobre a subjetividade. Revista de Psicologia da UNESP, 9(1), 1-13.).

Nessa perspectiva, Gramsci (1966)Gramsci, A. (1966). Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. integra a discussão materialista histórica adicionando os conceitos de hegemonia e contra-hegemonia. O autor discorre que é de grande relevância social a presença de projetos em disputa na arena social que tensionem a hegemonia, pois, mesmo que “derrotados” nos debates democráticos, podem modificar o padrão hegemônico. Ademais, o autor aponta que o pensamento hegemônico é minimizado ao pensarmos na indissociabilidade entre a relação público e indivíduo. A constituição da individualidade de cada sujeito na sociedade passa por sua relação orgânica com a dimensão macrossocial, caracterizando sujeitos que não são apenas individuais, mas também coletivos. Dessa forma, adquirir a consciência individual, que pode ser mediada por processos técnicos daqueles que têm a função social de “intelectual”, como definido por Gramsci (1991)Gramsci, A. (1991). Maquiavel, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. como intelectuais orgânicos, é buscar modificar o conjunto hegemônico em que as relações sociais estão implicadas, contribuindo para novas disputas na sociedade (Gramsci, 1966Gramsci, A. (1966). Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Gramsci (1991)Gramsci, A. (1991). Maquiavel, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. define a consciência política como um dos elementos imprescindíveis para a execução do papel técnico e científico, pois, é a partir deste lugar que os interesses da sociedade são organizados. A ação técnica por si só não deixa de cumprir a função ideológica das camadas dominantes, a atitude política pode inverter essa lógica, dada pela consciência social (Gramsci, 1991Gramsci, A. (1991). Maquiavel, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

3 O Terapeuta Ocupacional: de Funcionário do Consenso a Agente Técnico, Ético e Político

Inspirados por este pensamento, que coloca em questão a relação entre ação técnica e atitude política, os terapeutas ocupacionais brasileiros, a partir dos anos de 1980, foram promovendo reflexões que foram contextualizadas pelas lutas para ampliação dos direitos sociais e a oferta de condições mais humanitárias junto aos públicos em que a profissão já atuava, como pessoas com sofrimento psíquico e com deficiência.

Terapeutas ocupacionais que atuavam juntamente com o campo da saúde mental, reforma sanitária e ligado a lutas de direitos de diferentes grupos populacionais passaram a fazer estes questionamentos com a mesma inspiração teórica gramsciana, interrogando o papel dos técnicos nas Instituições (Barros, 1990Barros, D. D. (1990). Operadores de saúde na área social. Revista de Terapia Ocupacional da USP, 1(1), 11-16.), bem como suas ações realizadas em nome da “paz social”, ou seja, da manutenção da ordem (Basaglia & Ongario, 1977Basaglia, F., & Ongario, B. F. (1977). Los crímenes de la paz: investigacíon sobre losintelectuales y los técnicos como servidores de laopresíon. México: Siglo Veintiuno Editores.). Segundo esses autores, o técnico pode atuar pela consolidação de uma ação hegemônica, em torno dos interesses das classes dominantes, ou construir uma posição contra-hegemônica, buscando a transformação da ordem social vigente e o debate de novos projetos na arena pública (Lopes, 2016Lopes, R. E. (2016). Cidadania, direitos e terapia ocupacional social. In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Eds.), Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos (pp. 29-48). São Carlos: EdUFSCar.).

Dentro da abordagem materialista histórica, torna-se imperativo ultrapassar o limite do sujeito individual e qualificar o espaço social como indissociável à prática profissional, buscando transpor para a ação coletiva dos grupos populacionais com os quais a terapia ocupacional atua. Essa perspectiva pode colaborar com a publicização de novos projetos na esfera política, que disputem uma outra ordem social, contribuindo com a produção contra-hegemônica. Tal processo pode qualificar a atuação profissional para que, inicialmente, dedique-se à garantia de direitos sociais às populações atendidas pelos terapeutas ocupacionais.

Lopes (1991)Lopes, R. E. (1991). A formação do terapeuta ocupacional – o currículo: histórico e propostas alternativas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. discute os interesses hegemônicos que são representados na formação profissional do terapeuta ocupacional. Para isso, traça uma contextualização histórica da terapia ocupacional no início do século XX, surgindo em países desenvolvidos, como os EUA, Inglaterra e Canadá, oriunda das demandas sociais do fim do século XIX, que responsabilizaram o Estado pelo financiamento do trabalho social em justaposição às condições de classe social. O contexto pós-guerra, aliado à reconstrução nacional e às perdas econômicas dos países desenvolvidos, potencializou um eixo de trabalho necessário na área social, abrindo espaço para a terapia ocupacional trabalhar dentro da lógica da readaptação e da reabilitação (Lopes, 1991Lopes, R. E. (1991). A formação do terapeuta ocupacional – o currículo: histórico e propostas alternativas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.). Com a consolidação legal da profissão naqueles países nas décadas de 1940 e 1950, somada ao avanço do capitalismo industrial, que perdeu importantes mercados com a Segunda Guerra Mundial, aqueles países se voltaram a nações subdesenvolvidas, que necessitavam de apoio do capital industrial, como o caso do Brasil, investindo na entrada da profissão no país, em áreas de interesse e “[...] intervenção do Estado Capitalista na esfera social” (Lopes, 1991Lopes, R. E. (1991). A formação do terapeuta ocupacional – o currículo: histórico e propostas alternativas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 27).

Frente ao papel ideológico do Estado, a autora questiona a ação prática da terapia ocupacional no contexto público, ou seja, se não estava reforçando a visão assistencialista predominante na área da saúde perante o contexto vigente (Lopes, 1991Lopes, R. E. (1991). A formação do terapeuta ocupacional – o currículo: histórico e propostas alternativas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.). Nessa mesma direção, Soares (1991)Soares, L. B. (1991). Terapia ocupacional: lógica do capital ou do trabalho? São Paulo: Hucitec. aborda o aspecto reducionista que a terapia ocupacional tomou, frente à perspectiva assistencialista alinhada à lógica da produtividade para a manutenção da profissão nos espaços que já possuíam uma legitimidade. Para isso, a autora questiona sobre a absorção de técnicas advindas dos países desenvolvidos, que demonstravam a eficiência sobre o público atendido pela terapia ocupacional, não buscando refletir no espaço institucional e muito menos no meio social dos sujeitos envolvidos na prática terapêutica ocupacional (Soares, 1991Soares, L. B. (1991). Terapia ocupacional: lógica do capital ou do trabalho? São Paulo: Hucitec.).

A “ultra-especialização” da profissão, como discute Lopes (1991)Lopes, R. E. (1991). A formação do terapeuta ocupacional – o currículo: histórico e propostas alternativas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., tornou-se desalinhada ao conhecimento global, incapacitando a compreensão crítica do objetivo do trabalho da ação terapêutica ocupacional e um desconhecimento do próprio papel na sociedade, determinado por uma lógica alienadora que impedia transformar por meio da ação política consciente. Por essa concepção, a ação do terapeuta ocupacional poderia ser dotada de uma face material e moralmente opressora, caracterizada pelo modo capitalista de produção (Lopes, 1991Lopes, R. E. (1991). A formação do terapeuta ocupacional – o currículo: histórico e propostas alternativas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

As questões frente à prática profissional daquele período, em conjunto com a proposição de uma corrente metodológica materialista histórica, podem ser interrogadas com base na concepção gramsciana do papel do intelectual orgânico. A “crise da hegemonia” ocorre quando “[...] determinado grupo social, ainda não dominante, consegue atingir um consenso entre os demais grupos, consignando o corpo social e dando-lhes a direção política e cultural” (Soares, 1991Soares, L. B. (1991). Terapia ocupacional: lógica do capital ou do trabalho? São Paulo: Hucitec., p. 37). A definição acerca do papel do intelectual orgânico torna-se fundamental no direcionamento, organização e síntese das necessidades e contradições internas ao seu agrupamento (Soares, 1991Soares, L. B. (1991). Terapia ocupacional: lógica do capital ou do trabalho? São Paulo: Hucitec.). Nessa relação, é possível discutir o quanto os terapeutas ocupacionais podem vislumbrar agir como intelectuais orgânicos, no sentido de operar ações e novos modos de pensar contra-hegemônicos junto ao seu público destinatário, valorizando o conhecimento intrínseco daquele grupo e buscando superar a condição de subalternidade que o sistema lhes impõe, por meio de ações técnico-profissionais que componham a contra-hegemonia (Yazbek, 2014Yazbek, M. C. (2014). A dimensão política do trabalho do assistente social. Serviço Social & Sociedade, (120), 677-693.).

Trata-se da defesa que a atuação profissional deve se basear na compreensão que a demanda deve ser abordada dialeticamente, entre a necessidade singular e plural que representa. Dessa forma, a ação técnica engloba necessariamente o diálogo com as esferas políticas, na busca pelo acesso daquela população aos direitos sociais estabelecidos. Tal trabalho não deve ser reduzido a uma explicação acerca da militância política (o que, em parte, não deixa de ser), mas a discussão colocada aqui compreende esse aspectono bojo da ação técnica profissional do terapeuta ocupacional.

4 Retomando a Concepção Materialista Histórica na Terapia Ocupacional

Por meio deste resgate dos percursos iniciais da profissão no Brasil, pontuam-se as críticas produzidas pelas terapeutas ocupacionais aos referenciais, modelos e atuações adotados até então na profissão e que, em suas opiniões, necessitavam ser revistos, pontuando a elaboração de um novo paradigma para a terapia ocupacional, no caso a perspectiva materialista histórica.

Esta perspectiva contribuiu em responder e enfrentar questões acerca da identidade profissional (Galheigo, 1988Galheigo, S. M. (1988). Terapia ocupacional: a produção do conhecimento e o cotidiano da prática sob o poder disciplinar: em busca de um depoimento coletivo (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.). Tal situação fortaleceu o debate sobre quais rumos e modelos que a profissão deveria tomar, requalificando o aporte teórico humanístico até então predominante (Pinto, 1990Pinto, J. M. (1990). As correntes metodológicas em terapia ocupacional no estado de São Paulo (1970-1985) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

Francisco (1988)Francisco, B. R. (1988). Terapia ocupacional. São Paulo: Papirus. apontava que o terapeuta ocupacional sempre teve como finalidade formal de seu trabalho desenvolver a autonomia do ser humano, porém, a ação terapêutica se limitava à manutenção da estrutura social, da preservação da alienação e do conformismo, por meio das ações institucionais realizadas. A autonomia buscada, para além das relevantes questões advindas das aquisições/tratamentos motores, deveria, segundo Guihard (2001)Guihard, J. P. (2001). A “Pólis”: e se a terapia ocupacional for uma terapia política? Tradução Jô Benneton. Revista CETO, 6(6), 3-8., ser caracterizada pelo ato de se fazer política, pois, quando projetada sob um sujeito singular, expõe contextos históricos e sociais, explicitando as ordens formalmente estabelecidas no espaço social e público.

Tais indagações inspiraram toda discussão ocorrida nos anos de 1980 sobre o contexto social e a insuficiência do setor de saúde para atenção às demandas dos sujeitos com quem trabalhamos (Barros et al., 1999Barros, D. D., Guirard, M. I. G., & Lopes, R. E. (1999). Terapia ocupacional social. Revista de Terapia Ocupacional da USP, 10(2-3), 71-76.). Assim, o terapeuta ocupacional foi instigado a refletir não somente sobre a reabilitação física do sujeito, o que em si é um tema de grande relevância e magnitude, mas também a mediar ações junto às problemáticas que tangenciam ou se centralizam no aspecto social (Barros, 1990Barros, D. D. (1990). Operadores de saúde na área social. Revista de Terapia Ocupacional da USP, 1(1), 11-16.). A negação da realidade na qual o sujeito está inserido deixa o terapeuta ocupacional fechado e aprisionado sob uma suposta vocação terapêutica que, por vezes, caracteriza-se como uma tradução abstrata e distante do real (Barros, 1990Barros, D. D. (1990). Operadores de saúde na área social. Revista de Terapia Ocupacional da USP, 1(1), 11-16.).

O materialismo histórico, proposto por Marx, considera o ser humano como construído socialmente, frente à sua necessidade de produzir materialmente a vida, condição essencialmente realizada pelo trabalho (Marx, 2011Marx, K. (2011). O capital. São Paulo: Boitempo Editorial.). Nessa conceituação, as autoras dessa vertente definem a terapia ocupacional como prática que se utiliza “[...] prioritariamente do trabalho socialmente contratado para possibilitar as pessoas se transformarem em cidadãos” (Pinto, 1990Pinto, J. M. (1990). As correntes metodológicas em terapia ocupacional no estado de São Paulo (1970-1985) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 75).

Dessa forma, Pinto (1990Pinto, J. M. (1990). As correntes metodológicas em terapia ocupacional no estado de São Paulo (1970-1985) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 77) elabora, sob a perspectiva conceitual, uma reflexão acerca da função técnica e política no processo terapêutico ocupacional, que, nas atribuições da corrente materialista histórica, rompe com outras orientações no que diz respeito à individualidade da ação terapêutica. Esse apontamento, portanto, questiona a atuação com os sujeitos como se fosse descontextualizada da sociedade, sendo necessária uma postura crítica da organização social vigente que “provoca, agudiza e cronifica o problema como individual”.

A prática então é conceituada como parte da organização social, “Ao trabalhar materialista-historicamente o profissional opta pelo papel transformador, o que significa atuar em diferentes frentes, além do seu campo específico de atuação e local de trabalho, junto com outras forças da comunidade” (Pinto, 1990Pinto, J. M. (1990). As correntes metodológicas em terapia ocupacional no estado de São Paulo (1970-1985) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 77). O caráter transformador e criativo supera o caráter abstrato e alienante da ação terapêutica ocupacional, que promulga os modelos reducionistas (Soares, 1991Soares, L. B. (1991). Terapia ocupacional: lógica do capital ou do trabalho? São Paulo: Hucitec.). O ser humano é visto a partir de sua capacidade de poder inventar os seus modos de vida, embora sempre influenciado pelos determinantes macrossociais, pois tem em sua base um campo político, que respalda sua capacidade de criar, mudar e agir (Guihard, 2001Guihard, J. P. (2001). A “Pólis”: e se a terapia ocupacional for uma terapia política? Tradução Jô Benneton. Revista CETO, 6(6), 3-8.).

Francisco (1988)Francisco, B. R. (1988). Terapia ocupacional. São Paulo: Papirus., ao refletir sobre as práticas em terapia ocupacional, aborda a perspectiva materialista histórica como contributiva para o terapeuta ocupacional atuar como agente de transformação social por meio do “fazer”, que busca conscientizar sobre a opressão de uma sociedade de classes e que deve buscar “formas revolucionárias” (Francisco, 1988Francisco, B. R. (1988). Terapia ocupacional. São Paulo: Papirus., p. 66) para a solução das problemáticas existentes. Ao romper com a postura neutra frente ao sujeito e sua problemática, a linha materialista histórica discute a produção de conhecimento e de ação com a busca de mediações para melhores condições para o desenvolvimento dos modos de vida de todas as pessoas na sociedade (Medeiros, 1989Medeiros, M. H. R. (1989). A terapia ocupacional como um saber: uma abordagem epistemológica e social (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas.; Pinto, 1990Pinto, J. M. (1990). As correntes metodológicas em terapia ocupacional no estado de São Paulo (1970-1985) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

Desde da década de 1980 até a atualidade, essa corrente passou a fundamentar práticas em diferentes campos, políticas e populações assistidas pela terapia ocupacional, sobretudo naqueles em que a atuação do terapeuta ocupacional estava para além da aplicabilidade técnica, mas também na sua articulação junto aos movimentos sociais (Oliver et al., 2003Oliver, F. C., Aoki, M., Tissi, M. C., & Nicolau, S. M. (2003). Reabilitação com ênfase no território: Jardim de Abril e Jardim Boa Vista, no município de São Paulo. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 14(3), 141-146.; Ribeiro, 2001Ribeiro, M. B. S. (2001). Relato de Experiência: Inclusão social de pessoas com transtornos mentais: a experiência de Botucatu. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 9(2), 113-118.; Ribeiro & Machado, 2008Ribeiro, M. C., & Machado, A. L. (2008). A terapia ocupacional e as novas formas do cuidar em saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 19(2), 72-75.; Lopes et al., 2014Lopes, R. E., Malfitano, A. P. S., Silva, C. R., & Borba, P. L. O. (2014). Recursos e tecnologias em terapia ocupacional social: ações com jovens pobres na cidade. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 22(3), 591-602.). Dentre estes, torna-se relevante citar a reforma psiquiátrica, o movimento de defesa por direitos para as pessoas com deficiência, direitos específicos para as crianças e adolescentes e a luta e defesa por moradia (Lopes, 2004Lopes, R. E. (2004). Terapia ocupacional em São Paulo: um percurso singular e geral. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 12(2), 75-88.).

As ações propostas por meio desta vertente também consolidaram áreas importantes da prática do terapeuta ocupacional, como a saúde mental, a terapia ocupacional social e a saúde pública via Sistema Único de Saúde (SUS) (Santos, 2016Santos, M. F. S. (2016). Contemporâneos da terapia ocupacional: contribuições da discussão materialista histórica-dialética para a prática profissional (Trabalho de conclusão de curso). Universidade Federal de São Paulo, Santos.).

Buscando listar alguns exemplos de atuação profissional na contemporaneidade, que demonstrem a articulação dialética para compreensão da demanda, apresentamos três situações. É importante assinalar que os exemplos propostos não têm a intenção de mostrar uma relação direta com as autoras que delinearam a discussão histórica acerca da corrente materialista histórica. Mas, sim, problematizar demandas contemporâneas que demonstram a necessidade de abordagens dialéticas, entre o sujeito individual e coletivo, nos desafios vivenciados pela sociedade brasileira.

A primeira situação se refere ao acompanhamento de adolescentes autores de ato infracional, que desejam retomar sua educação formal e não conseguem uma vaga na escola pública. Tal circunstância nos leva a dialogar junto aos gestores de escolas para a garantia dessa vaga, sendo que, quando essa negociação não se efetiva em prol do direito do adolescente pelo acesso à educação, outras instâncias e redes intersetoriais devem ser acionadas – como o Conselho Tutelar e a Vara da Infância e da Juventude. Como essa é uma situação muito recorrente entre adolescentes que cometeram um ato infracional, faz-se necessário que o terapeuta ocupacional, junto com outros atores sociais, possa colocar em debate a questão do acesso à escola, sensibilizando gestores, professores e comunidade para o acolhimento desse público (Borba, 2012Borba, P. L. O. (2012). Juventude marcada: relações entre o ato infracional e a Escola Pública em São Carlos – SP (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

O segundo exemplo engloba o campo da saúde pública, sob uma perspectiva comunitária, em equipes interdisciplinares na Estratégia da Saúde da Família, focando especificamente a população com deficiência física. A atenção básica em saúde pode ser compreendida como um local em que podem desenvolver, acompanhar e orientar questões acerca do acesso a equipamentos públicos e políticas focadas para a população com deficiência, sendo que, sem esta assistência garantida, não possuem os mínimos elementos para a participação na vida social. Desta forma, o trabalho inicial do terapeuta ocupacional se refere à busca de acesso a serviços (Oliver et al., 2016Oliver, F. C., Galheigo, S. M., Nicolau, S. M., & Caldeira, V. A. (2016). Terapia Ocupacional enla comunidade: desafios para elacceso a los derechos. In S. S. Algado, A. G. Córdoba, F. C. Oliver, S. M. Galheigo & S. García-Ruiz (Eds.), Terapias ocupacionales desde el sur: derechos humanos, ciudadanía y participación (pp. 341-356). Santiago: Editorial USACH.).

O terceiro exemplo decorre das proposições da Reabilitação Psicossocial (Saraceno, 1998Saraceno, B. (1998). A concepção de reabilitação psicossocial como referencial para as intervenções terapêuticas em saúde mental. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 9(1), 26-31.) no campo da saúde mental, objetivando-se na construção e fortalecimento das redes sociais de suporte aos sujeitos com sofrimento psíquico. Nesta, parte-se da compreensão de que todo sujeito social, independentemente de sua condição física, psíquica e/ou social, é um sujeito de direitos, incluindo a possibilidade de acesso ao trabalho e a construção de seu lugar social também nesta central dimensão. A intervenção em terapia ocupacional deve buscar uma vivência da real cidadania (Morato & Lussi, 2018Morato, G. G., & Lussi, I. A. O. (2018). Contribuições da perspectiva da Reabilitação Psicossocial para a terapia ocupacional no campo da saúde mental. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 26(4), 943-951.).

Porém, a expansão da profissão para diferentes campos e contextos, somada ao avanço tecnológico e às especificidades de cada área, fizeram com que a articulação entre técnica e política não fosse considerada como um elemento norteador para a prática nos diferentes espaços. Um fator que pode explicar essa barreira ideológica, como afirma Guihard (2001)Guihard, J. P. (2001). A “Pólis”: e se a terapia ocupacional for uma terapia política? Tradução Jô Benneton. Revista CETO, 6(6), 3-8., está ligado às organizações institucionais que, com exceções, atuam majoritariamente por valores normativos, concretos e objetivos, impostos pela economia financeira que rege tais instituições.

O desenvolvimento da profissão no Brasil possui uma forte inserção nas instituições públicas estatais. Pelo Estado capitalista, as políticas sociais, ainda que haja um domínio da burguesia sobre elas, são a forma que grupos populacionais desfavorecidos acessam aos bens sociais (Hofling, 2001Hofling, E. M. (2001). Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos CEDES, 21(55), 30-41.). Ao terapeuta ocupacional, técnico direto ou indireto do Estado para a execução das políticas sociais, cabe atuar na busca de mediar processos que favoreçam a inserção/reinserção social dos sujeitos e grupos com quem atua (Malfitano, 2016Malfitano, A. P. S. (2016). Contexto social e atuação social: generalizações e especificidades na terapia ocupacional. In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Eds.), Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos (pp. 117 - 133). São Carlos: EdUFSCar.).

Situando-nos em uma vertente de consonância com os debates atuais acerca da demarcada necessidade de avanço dos questionamentos e desenvolvimento de conhecimento e metodologias de atuação em terapia ocupacional, considera-se fundamental alcançar o contexto das relações sociais amplas, no qual é configurada a sociedade capitalista, mais especificamente no contexto em que o Estado conduz a questão social, no alvo de sua intervenção política (Bezerra & Trindade, 2013Bezerra, W. C., & Trindade, R. L. P. (2013). Gênese e constituição da terapia ocupacional: em busca de uma interpretação teórico-metodológica. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 2(24), 155-161.). Dessa forma, a terapia ocupacional ainda necessita expandir sua representatividade nos diferentes campos de atuação, garantindo um maior engajamento político, ofertando condições materiais para que a prática profissional desenvolva o papel político pela ação profissional, “[...] capazes de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano” (Cavalcante et al., 2008Cavalcante, G. M. M., Tavares, M. M. F., & Bezerra, W. C. (2008). Terapia ocupacional e capitalismo: articulação histórica e conexões para a compreensão da profissão. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 19(1), 29-33., p. 32).

Trata-se, portanto, de um debate atual e necessário para uma análise crítica acerca do papel social do terapeuta ocupacional. Resgatar a discussão acerca da corrente materialista histórica da profissão, com o risco de ser classificada como antiga ou utópica1 1 No âmbito internacional, outras perspectivas também têm se desenvolvido, buscando promover a retomada do fator predominantemente político do terapeuta ocupacional, com a denominação de uma perspectiva crítica na terapia ocupacional. Trata-se de recolocar o contexto social como espaço relevante de atuação, em um questionamento acerca da insuficiência de uma dimensão tecnificada e funcionalista das ações realizadas, rompendo com metodologias que ainda abarcam concepções fragmentadas, em que o contexto social se torna tangenciável para as investigações e intervenções (Córdova, 2012; Galheigo, 2012; Algado, 2015; Morán & Ulloa, 2016; Jara et al., 2016). Outras reflexões sobre o materialismo histórico e a necessidade de abordagem de outros marcadores sociais para compreensão da vida social têm sido realizadas por meio dos “Marcadores sociais da diferença” (Zamboni, 2014; Silva, 2014), resultados da produção simbólica de identidades culturalmente construídas e suas relações de poder implicadas, estruturando a sociedade de classes a partir da exclusão ou não da diferença. Tais teorias, embora pertinentes e atuais, não serão aqui abordadas, planejando-se sua discussão específica em estudos futuros. , visa, contudo, promover a reflexão do terapeuta ocupacional em seu papel de articulador técnico-político e ético realizado por meio de sua ação profissional.

5 Considerações Finais

A discussão realizada por terapeutas ocupacionais nos anos 1980 e 1990 acerca de um embasamento teórico e metodológico para as ações práticas da profissão foi fundamental no Brasil para abrir novos campos de trabalho e questionar o papel do terapeuta ocupacional frente aos contextos institucionais que se encontravam inseridos. Dentro da ação técnica, podemos pontuar que a discussão acerca da corrente materialista histórica continua atual e importante para a projeção social que a profissão tem, pois, quando alinhamos o individual e seu contexto social, podemos intervir em instâncias que valorizem os aspectos sociais, comunitários e territoriais, buscando criar tensões que atuem de forma contra-hegemônica, compreendendo as desigualdades sociais que os sujeitos e grupos assistidos pelos terapeutas ocupacionais vivem.

É imprescindível a reflexão da ação técnica, ética e política para a terapia ocupacional. Conforme apresentamos, não existe um ineditismo na utilização de uma leitura conceitual materialista histórica, tampouco respostas fechadas, contudo, defendemos que se trata de um arcabouço teórico sólido e atual com contribuições para o posicionamento da terapia ocupacional na contemporaneidade e com possibilidades de relevantes diálogos com outras teorias.

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    No âmbito internacional, outras perspectivas também têm se desenvolvido, buscando promover a retomada do fator predominantemente político do terapeuta ocupacional, com a denominação de uma perspectiva crítica na terapia ocupacional. Trata-se de recolocar o contexto social como espaço relevante de atuação, em um questionamento acerca da insuficiência de uma dimensão tecnificada e funcionalista das ações realizadas, rompendo com metodologias que ainda abarcam concepções fragmentadas, em que o contexto social se torna tangenciável para as investigações e intervenções (Córdova, 2012Córdova, A. G. (2012). Enfoque y práxis em terapia ocupacional: reflexiones desde uma perspectiva de la terapia ocupacional crítica. A Coruña, 9(5), 18-29.; Galheigo, 2012Galheigo, S. M. (2012). Perspectiva crítica y compleja de terapia ocupacional: actividad, cotidiano, diversidad, justice social y compromisso ético-político. A Coruña, 9(5), 176-197.; Algado, 2015Algado, S. S. (2015). Una terapia ocupacional desde um paradigma crítico. A Coruña, 12(7), 25-40.; Morán & Ulloa, 2016Morán, J. P., & Ulloa, F. (2016). Perspectiva crítica desde latinoamérica: hacia una desobediencia epistémica em terapia ocupacional contemporánea. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(2), 421-427.; Jara et al., 2016Jara, R. M., Guajardo, A., & Schliebener, M. (2016). Conferencia: debates y reflexiones para uma ciencia de la ocupación crítica y social: diálogos para compreender la ocupación humana. Revista Argentina de Terapia Ocupacional, 2(1), 40-58.). Outras reflexões sobre o materialismo histórico e a necessidade de abordagem de outros marcadores sociais para compreensão da vida social têm sido realizadas por meio dos “Marcadores sociais da diferença” (Zamboni, 2014Zamboni, M. (2014). Marcadores sociais da diferença. Sociologia: Grandes Temas do Conhecimento (Especial Desigualdades), 1, 14-18.; Silva, 2014Silva, T. T. (2014). A produção social da identidade e da diferença. In T. T. Silva (Ed.), Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais (pp. 73-103). Petrópolis: Vozes.), resultados da produção simbólica de identidades culturalmente construídas e suas relações de poder implicadas, estruturando a sociedade de classes a partir da exclusão ou não da diferença. Tais teorias, embora pertinentes e atuais, não serão aqui abordadas, planejando-se sua discussão específica em estudos futuros.
  • Como citar: Barreiro, R. G., Borba, P. L. O., & Malfitano, A. P. S. (2020). Revisitando o materialismo histórico em terapia ocupacional: o papel técnico, ético e político na contemporaneidade. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional. Ahead of Print. https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoRE1950

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2019
  • Revisado
    24 Jul 2019
  • Aceito
    16 Ago 2019
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