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“O capitão do mato não conta a história como ela foi” – reflexões sobre terapia ocupacional e cultura a partir da trajetória dos Ternos de Congada1 1 Trabalho de pesquisa submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro com o parecer n. 2.284.759.

Resumo

Introdução

A terapia ocupacional, sob uma perspectiva crítica decolonial, problematiza suas ações na articulação entre justiça social e direitos humanos visando à democratização do acesso à produção cultural e valorização dos saberes, conhecimentos e práticas de grupos sociais historicamente excluídos. Propôs-se acompanhar a congada, uma manifestação artístico-cultural afro-brasileira presente na região Sudeste.

Objetivo

Refletir sobre a atuação da terapia ocupacional no campo da cultura com base na descrição da trajetória e nas demandas políticas e sociais dos Ternos de Congada.

Método

Estudo de abordagem qualitativa, com a utilização do método de histórias de vida. A coleta de dados consistiu na realização de entrevistas individuais registradas em áudio e observação direta dos eventos comemorativos. Resultados: A análise de dados gerou duas categorias: 1- “Cotidiano dos Ternos de Congada ontem e hoje: memórias e trajetórias”, que descreve o cotidiano e a trajetória dos Ternos de Congada, por meio das memórias afetivas dos participantes da pesquisa; e 2- “Institucionalidades e colonialidade na marginalização da cultura popular: conquistas e demandas dos grupos de congada”, abrangendo as relações dos grupos de Terno de Congada com o poder público local.

Conclusão

O fazer ético-político da profissão, ao abarcar produções artístico-culturais forjadas no bojo do colonialismo, deve adotar uma nova postura epistêmica que ofereça centralidade às narrativas subalternas. Essa perspectiva abrange a compreensão de que a práxis cultural de grupos e comunidades tradicionais marginalizadas ganha contornos políticos e de identidade e memória histórica que devem ser contemplados na produção de conhecimentos e de práticas em terapia ocupacional.

Palavras-chave:
Cultura; Terapia Ocupacional; Justiça Social

Abstract

Introduction

Occupational Therapy discusses its actions through a critical decolonial perspective based on the grounds of social justice and human rights in order to promote access to cultural production thus valuing the knowledge and practices of historically social minorities. This study proposes a follow-up to Congada which is an Afro-Brazilian artistic-cultural community.

Objective

This study aims to understand the performance of Occupational Therapy in the culture field from the description of the trajectory of Congada as well as its political and social demands.

Method

A qualitative study in which personal experiences were collected. The research was developed taking into consideration the data collection and was subdivided into two sets which consisted of three individual interviews recorded in audio and also in the direct event observation of Ternos de congada.

Results

The data analysis process has generated two categories: “Ternos de Congada Daily Life, from the past to the present: Memories and its Trajectory” that describes Congada timeline through its participant’s recollections; and “Institutionalities and coloniality in the marginalization of popular culture: achievements and demands of congada groups”.

Conclusion

The ethical-political practice of the career, when embracing artistic and cultural productions that are forged amid colonialism, should adopt a new epistemic posture that places marginalized groups in the central narratives. This perspective encompasses the understanding that the cultural praxis of marginalized cultural groups and communities gains political and identity features and historical memory that should be contemplated in the production of knowledge and practices in Occupational Therapy.

Keywords:
Culture; Occupational Therapy; Social Justice

Introdução

A cultura pode ser compreendida em uma concepção abrangente, incorporada a partir da metade do século XX, enquanto campo no qual os sujeitos humanos elaboram símbolos e signos, instituem as práticas e os valores, definem para si próprios o possível e o impossível, o sentido das linhas do tempo, as diferenças no interior do espaço, o sentido da vida e da morte, assim como as relações entre o sagrado e o profano (Chauí, 2009Chauí, M. (2009). Cultura e democracia. Salvador: Fundação Pedro Calmon.).

Sob esta perspectiva, Chauí (2009Chauí, M. (2009). Cultura e democracia. Salvador: Fundação Pedro Calmon., p. 57) afirma que “[...] cada cultura exprime, de maneira histórica e materialmente determinada, a ordem humana simbólica com uma individualidade própria ou uma estrutura própria”. No entanto, segundo a filósofa, a realização desta concepção é impossível em uma sociedade que produz a divisão cultural.

De fato, o campo da cultura é perpassado por tensionamentos socio-históricos de uma sociedade de classes. Na modernidade, tais tensionamentos, amplamente impulsionados pelo contexto capitalista-colonial, produziram uma distinção entre cultura popular e cultura erudita, que se apresenta como chave importante para a compreensão de processos históricos e atuais de opressão, dominação e desigualdade (Dorneles, 2014Dorneles, P. (2014). Jovens, território e territorialidade: experiências estéticas e de engajamento nas ações culturais dos pontos de cultura da região sul. Políticas Culturais em Revista, 2(7), 136-152., p. 148). Em uma perspectiva eurocêntrica, o processo histórico da formação da sociedade de classes estabeleceu um “apartheid cultural”, “[...] institucionalizando as artes eruditas como um modelo de expressão cultural em contraposição à cultura popular, menos valorizada socialmente e encerrada a determinadas classes sociais menos favorecidas” (Dorneles, 2014Dorneles, P. (2014). Jovens, território e territorialidade: experiências estéticas e de engajamento nas ações culturais dos pontos de cultura da região sul. Políticas Culturais em Revista, 2(7), 136-152., p. 148). No Brasil, constata-se historicamente a supervalorização da cultura europeia e inferiorização das demais culturas, com destaque àquelas ligadas a matrizes africanas e afro-brasileiras. Tais valores sociais são advindos de uma conjuntura histórico-colonial que instaurou mecanismos de controle e opressão de grupos marginalizados.

A inferiorização das culturas ligadas a matrizes africanas está relacionada ao processo histórico da escravidão no país que instalou o pensamento colonial eurocêntrico na base da formação social. No período colonial, a prosperidade econômica estava diretamente associada ao tráfico negreiro para a mão de obra escrava e tinha como instrumento de coerção a construção do imaginário colonial que preconizava a superioridade europeia para justificar a opressão contra os povos escravizados (Prandi, 2000Prandi, R. (2000). De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista USP, (46), 52-65. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i46p52-65.
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). Dessa forma, a cultura africana foi incorporada marginalmente à cultura nacional que, em consideração à ideologia do embranquecimento, expressava-se hegemonicamente como europeia, branca e cristã.

Nesse processo, segundo Prandi (2000)Prandi, R. (2000). De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista USP, (46), 52-65. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i46p52-65.
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, a comunidade negra, como tática de resistência, recriou no Brasil os cultos religiosos e também os demais aspectos da cultura africana, que abrangem a língua, culinária, música, representações místicas e religiosas. Colocadas desde os tempos da escravidão em situação de vulnerabilidade social, as populações negras se movimentam e se articulam, reinventando-se continuamente no tempo (Pereira, 2017Pereira, C. F. (2017). Racismo, espaço e colonialidade do poder, do saber e do ser: diálogos, trajetórias e horizontes de transformação. In V.C. Cruz & D. A. Oliveira (Eds.), Geografia e Giro Decolonial: experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico (pp. 132-142). Rio de Janeiro: Letra Capital.). Estes movimentos de resistência e reexistência da população negra instauram pluralidades e criatividades nas suas práticas cotidianas, além de novas lógicas e saberes contra-hegemônicos, escapando à subalternização de suas subjetividades imposta pelo domínio da racionalidade eurocêntrica moderna (Pereira, 2017Pereira, C. F. (2017). Racismo, espaço e colonialidade do poder, do saber e do ser: diálogos, trajetórias e horizontes de transformação. In V.C. Cruz & D. A. Oliveira (Eds.), Geografia e Giro Decolonial: experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico (pp. 132-142). Rio de Janeiro: Letra Capital.).

Considerando o contexto socio-histórico em que a cultura afro-brasileira está imersa, destaca-se no presente estudo a teoria do Giro Decolonial da América Latina. Esta teoria, que tem por expoente Quijano (1997)Quijano, A. (1997). Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en américa latina: anuário mariateguiano. Lima: Amatua. e Mignolo (2005)Mignolo, W. D. (2005). La idea de America Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa Editorial., distingue colonialidade do colonialismo, apontando que o conceito de colonialidade é algo que transcende às particularidades do colonialismo histórico e que não desaparece com a independência ou descolonização. A formulação advinda desta perspectiva teórica é uma tentativa de compreender a modernidade como um processo intrinsecamente vinculado à experiência colonial. A distinção entre colonialidade e colonialismo permite observar a continuidade da colonialidade do poder, do saber e do ser nos diferentes sistemas políticos, mesmo após o fim das administrações coloniais, uma vez que essas estruturas de poder e subordinação passaram a ser reproduzidas pelos mecanismos do sistema-mundo capitalista colonial moderno (Quijano, 1997Quijano, A. (1997). Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en américa latina: anuário mariateguiano. Lima: Amatua.; Mignolo, 2005Mignolo, W. D. (2005). La idea de America Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa Editorial.).

Ao definir o eurocentrismo como uma perspectiva cognitiva que perdura no tempo, Quijano (2000)Quijano, A. (2000). Colonialidad del poder, Eurocentrismo, America Latina. In E. Lander (Ed.), La colonialidaddel saber: eurocentrismo y ciências sociales: perspectivas latino americanas (pp. 201-245). Caracas: Clacso. afirma que o poder constitui uma malha de relações sociais de exploração, dominação e conflito articulada em torno da disputa pelo controle de alguns âmbitos da existência social. Assim, a cultura e os processos de produção de conhecimento refletem o sistema de poder que perdura no tecido social em visíveis formas simbólicas e residuais de exclusão e limitação de acesso aos processos de legitimação de saberes e fazeres de povos submetidos ao poder e imaginário colonial. A desvalorização da cultura de matriz africana e afro-brasileira, assim como a marginalização da produção de saberes e de sua cosmovisão de mundo, é consequência dos processos de colonialidade de poder, saber e de ser, marginalizando o outro enquanto sujeito de valor e cultura por meio de um perverso e lento silenciamento epistêmico.

Observa-se, com base em uma visão crítica decolonial e considerando a interconexão dos três eixos de dominação (capitalismo, colonialismo e patriarcado), a necessidade da emergência das epistemologias do Sul, como propõe o sociólogo Boaventura de Sousa Santos. O Sul é concebido metaforicamente neste contexto como “[...] um campo de desafios epistêmicos que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo” (Santos & Meneses, 2010, p. 12). A dominação cultural é na sua base também uma dominação epistemológica, e historicamente ocorre a partir da relação colonial que conduziu povos e/ou nações à supressão ou silenciamento de seus saberes, práticas e conhecimentos estranhos à racionalidade moderna.

Ao conceber as práticas culturais de matriz africana e afro-brasileira como uma parte do conjunto de saberes, experiências e conhecimentos historicamente desvalorizados e desqualificados pela lógica colonial da cultura euro-cristã hegemônica, observa-se a necessidade do reconhecimento da diversidade para a instauração da interculturalidade, valorizando os saberes e fazeres dos povos colonizados.

A nossa profissão absorveu essa nova tendência teórica nas ciências sociais, realizando produções com base em uma perspectiva epistemológica crítica decolonial. No texto “Terapias Ocupacionales del Sur: demandas actuales desde una perspectiva socio-histórica”, os autores relatam um movimento de visibilidade e conexão entre as terapias ocupacionais engajadas, críticas, baseadas no compromisso ético e político, que busca uma sociedade justa e equitativa com base em uma práxis relevante desde, com e no Sul (Silva et al., 2019Silva, C., Jara, R., Del Campo, Y., & Kronenberg, F. (2019). Terapias ocupacionais do Sul: demandas atuais a partir de uma perspectiva sócio-histórica. REVISBRATO, 3(2), 172-178. http://dx.doi.org/10.47222/2526-3544.rbto24867.
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).

Este compromisso ético e político, ao pensarmos em terapias ocupacionais do sul, é estabelecido com nossos povos e populações que sofrem as consequências históricas e efeitos perversos da intersecção entre o colonialismo, patriarcado e capitalismo – e que se engajam na luta cotidiana por uma sociedade socialmente justa. Na perspectiva da interculturalidade, Silva et al. (2019Silva, C., Jara, R., Del Campo, Y., & Kronenberg, F. (2019). Terapias ocupacionais do Sul: demandas atuais a partir de uma perspectiva sócio-histórica. REVISBRATO, 3(2), 172-178. http://dx.doi.org/10.47222/2526-3544.rbto24867.
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, p. 173, 176) apontam a necessidade de se promover a “[...] descolonização da terapia ocupacional”, e destacam que para construir “[...] saberes, práticas e epistemologias que sejam capazes de promover mudanças tão urgentes e necessárias em nossa realidade cotidiana, temos que compreender os processos de criação, produção e reprodução desses mecanismos de dominação e exploração”.

O processo de descolonização do conhecimento na terapia ocupacional também é possível com a observação e valorização das práticas culturais tradicionais – silenciadas ou marginalizadas – de povos que carregam a memória histórica da colonização, e que sofrem as consequências sociais deste período histórico nos processos de restrição de acesso aos seus direitos sociais e a uma vida digna.

Terapia ocupacional, cultura e os Ternos de Congada: alinhavando saberes

Sabe-se que a cultura, em suas diversas dimensões interconectadas, está intrinsecamente relacionada à produção de saberes, organização da vida social e às atividades humanas, que se compõem de diferentes formas com a racionalidade neoliberal. Diante disso, uma atuação contra um sistema perverso pautado nesta racionalidade demanda construções não alienantes, em práticas engajadas politicamente e contextualmente que considerem a cultura e a interculturalidade “[...] como ação e preceito ético” (Silvestrini et al., 2019Silvestrini, M. S., Silva, C. R., & Prado, A. C. S. A. (2019). Occupational therapy and culture: ethical-political dimensions and resistances. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 929-940. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1727.
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, p. 935).

Uma vez que as atividades humanas são inseparáveis da dimensão sociopolítica, cultural e afetiva das pessoas, grupos e comunidades (Barros, 2008Barros, J. M. (2008). Diversidade cultural da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica.), entende-se como importante problematizar os saberes e fazeres em terapia ocupacional com base no eixo articulador do conceito de cultura em coerência com o princípio da justiça social.

Para Barros (2008)Barros, J. M. (2008). Diversidade cultural da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica., a cultura engloba valores, percepções, imagens, formas de expressão, comunicação, incluindo, assim, aspectos que definem a identidade das pessoas, dos grupos e das sociedades. Desta forma, a cultura permeia as situações do cotidiano de indivíduos e grupos, e é permeada pela coletividade que a produz dialeticamente. Tal temática está presente em diferentes contextos de atuação da terapia ocupacional e é significativa na compreensão dos saberes e fazeres plurais das populações acompanhadas (França et al., 2016França, M. M. L., Queiroz, S. B., & Bezerra, W. C. (2016). Saúde dos povos de terreiro, práticas de cuidado e terapia ocupacional: um diálogo possível? Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(1), 105-116.; Dorneles, 2014Dorneles, P. (2014). Jovens, território e territorialidade: experiências estéticas e de engajamento nas ações culturais dos pontos de cultura da região sul. Políticas Culturais em Revista, 2(7), 136-152.). Nesse escopo, a diversidade cultural compõe a atividade humana e, como tal, constitui objeto de reflexão e estudo da terapia ocupacional (Caniglia, 1991Caniglia, M. M. (1991). Rumo à ciência da atividade humana. Revista de Terapia Ocupacional da USP, 2(2-3), 60-65.; Silvestrini et al., 2019Silvestrini, M. S., Silva, C. R., & Prado, A. C. S. A. (2019). Occupational therapy and culture: ethical-political dimensions and resistances. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 929-940. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1727.
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), dimensionando as experiências como vias de expressão e criação de afetos na constituição de campos de saber e de produção de vida (Silva et al., 2017Silva, C. R., Cardinalli, I., Silvestrini, M. S., Farias, A. Z., Prado, A. C. S. A., Ambrosio, L., Oliveira, M. T., & Paula, B. M. (2017). La terapia ocupacional y la cultura: miradas a la transformación social. Revista Chilena de Terapia Ocupacional, 17(1), 105-113. http://dx.doi.org/10.5354/0719-5346.2017.46383.
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; Quarentei, 2001Quarentei, M. (2001). Terapia ocupacional e produção de vida. In Anais do 7º Congresso Brasileiro de Terapia ocupacional. Porto Alegre: ABRAFIT.).

De acordo com Gonçalves et al. (2017)Gonçalves, M., Costa, S., & Takeiti, B. (2017). Terapia ocupacional e cultura: atravessamento, recurso ou campo de atuação. REVISBRATO, 1(5), 538-555. http://dx.doi.org/10.47222/2526-3544.rbto10078.
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, terapeutas ocupacionais já historicamente trabalham com a arte na interface com a cultura, articulando atualmente o desafio de sua práxis às atuais políticas culturais formuladas para atender às demandas sociais de populações vulneráveis mais suscetíveis à lógica excludente do mercado. Tendo em vista o ser em sua complexidade e suas demandas, a profissão abrange no cotidiano de suas intervenções questões como marginalização, exclusão social e cidadania em articulação crítica às políticas públicas, desenvolvendo teorias e tecnologias sociais no enfrentamento dos problemas relacionados ao exercício dos direitos sociais.

Neste contexto, terapeutas ocupacionais atuam a partir da valorização de realidades culturais específicas, articulando cidadania cultural com a noção de justiça social, na perspectiva da democratização do acesso à produção e fruição da cultura, tal como preconizado nas diretrizes das políticas culturais no país e no mundo (França et al., 2016França, M. M. L., Queiroz, S. B., & Bezerra, W. C. (2016). Saúde dos povos de terreiro, práticas de cuidado e terapia ocupacional: um diálogo possível? Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(1), 105-116.; Dorneles, 2014Dorneles, P. (2014). Jovens, território e territorialidade: experiências estéticas e de engajamento nas ações culturais dos pontos de cultura da região sul. Políticas Culturais em Revista, 2(7), 136-152.).

Com base na compreensão das suas diversas dimensões – cidadã, simbólica e econômica –, a cultura é também entendida no campo da terapia ocupacional como signo de resistência contra-hegemônica (Silvestrini et al., 2019Silvestrini, M. S., Silva, C. R., & Prado, A. C. S. A. (2019). Occupational therapy and culture: ethical-political dimensions and resistances. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 929-940. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1727.
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), devendo ser inserida no seu tensionamento epistêmico a defesa da pluralidade e da vida de populações, povos e comunidades marginalizadas pelo modelo de desenvolvimento capitalista neoliberal.

Com a finalidade de contribuir com a discussão sobre a terapia ocupacional na articulação com o campo da cultura e em uma perspectiva crítica decolonial, o presente artigo discute a trajetória da manifestação cultural afro-brasileira da congada – e suas demandas sociais – em uma cidade do interior de Minas Gerais.

Esta manifestação de matriz afro-brasileira, no âmbito da cultura popular, é caracterizada como um ritual que sincretiza a coroação de reis negros e o culto aos santos católicos, mais comumente, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, registrada no Brasil desde a época colonial (Silva, 2007Silva, R. N. (2007). Festa do rosário: encruzilhada de significados (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Goiás, Goiás.). Com a tática do sincretismo, a adoração aos santos católicos se tornou uma alternativa para o uso dos espaços públicos e legítimos da igreja pelos negros (Silva, 2007Silva, R. N. (2007). Festa do rosário: encruzilhada de significados (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Goiás, Goiás.).

No contexto atual, a congada, realizada por meio de festas, mostra-se como um meio de manter as tradições e reafirmar simbolicamente os laços comunitários desfeitos pelo tráfico negreiro e pelo sistema escravista. Dessa forma, a comemoração do dia de Nossa Senhora do Rosário é particular por recriar as tradições e ressignificar os símbolos da tradição afro-brasileira (Silva, 2007Silva, R. N. (2007). Festa do rosário: encruzilhada de significados (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Goiás, Goiás.), em que se mistura elementos, imagens e desenhos que realçam aspectos da religião católica com aspectos da cultura afro, caracterizando o sincretismo religioso e cultural (Fonseca & Ferreira, 2020Fonseca, V. M., & Ferreira, C. L. (2020). Em busca dos elos perdidos! Traços africanos em Uberaba (MG). Recuperado em 12 de fevereiro de 2020, de https://nedesc.fe.ufg.br/
https://nedesc.fe.ufg.br/...
).

O presente estudo passou a ser delineado após o contato estabelecido entre as pesquisadoras e uma liderança dos Ternos de Congada do município, resultando em um convite aberto para a participação dos eventos e comemorações tradicionais. Provocadas pelas discussões contemporâneas sobre arte e pensamento decolonial, as autoras passaram a observar o evento festivo dos Ternos de Congada no município enquanto um fazer tradicional significativo para a comunidade negra. Neste cenário, ao admitir o diálogo entre saberes plurais, a presente pesquisa teve por objetivo refletir sobre as possibilidades da atuação da terapia ocupacional no campo da cultura, com base na descrição da trajetória e das demandas políticas e sociais dos Ternos de Congada de Uberaba.

Método

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, no qual foi utilizado o método de histórias de vida que se caracteriza pelo contato direto do pesquisador com o sujeito de pesquisa, valorizando a perspectiva dos entrevistados em relação ao tema de estudo (Spindola & Santos, 2003Spindola, T., & Santos, R. S. (2003). Trabalhando com a história de vida: percalços de uma pesquisa(dora?). Revista da Escola de Enfermagem da U S P., 37(2), 119-126. http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342003000200014.
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).

Para o desenvolvimento da pesquisa, a produção de dados foi subdividida em três etapas:

  • Observação direta do evento dos Ternos de Congada de Uberaba, registrada em diário de campo: as pesquisadoras vivenciaram os eventos Festa de Nossa Senhora do Rosário (outubro de 2016) e Festa da Abolição da Escravatura (maio de 2017). Nestas experiências, foi possível estabelecer contato com os participantes da pesquisa e realizar registros fotográficos e em vídeo;

  • Levantamento de dados no Arquivo Municipal de Uberaba: nesta etapa, foi realizada uma pesquisa documental dos materiais relacionados aos Ternos de Congada. Foram encontradas reportagens de jornais antigos, apostila de cantos da congada, além de materiais descritivos que relatam as etapas da festa, seus símbolos e significados;

  • Entrevistas semiestruturadas, registradas em áudio: a partir da participação no evento de outubro de 2016, uma das pesquisadoras realizou contato com o primeiro participante da pesquisa, que foi, posteriormente, entrevistado. As demais entrevistas seguiram o critério de indicação (bola de neve).

Os critérios de inclusão dos participantes foram: estar engajado e exercer liderança em um dos grupos de Ternos de Congada de Uberaba; participar das datas comemorativas que envolvem os Ternos, como o dia sete de outubro (Nossa Senhora do Rosário) e o dia treze de maio; aceitar participar da pesquisa mediante a obtenção do consentimento livre e esclarecido. Participaram do estudo três homens, entre 60 e 63 anos, alfabetizados, que ocupam posição de destaque em Ternos de Congada do município.

Seguindo os preceitos éticos, foram utilizados nomes fictícios para identificação dos participantes de modo a garantir seu sigilo e privacidade em relação ao conteúdo do material, a saber: Antônio, José Rosa e Benedito. As entrevistas foram realizadas individualmente com cada participante e foram interrompidas com base no critério de saturação dos dados. Na fase de tratamento dos dados, as entrevistas foram transcritas integralmente e catalogadas conforme o método de história de vida. Após as transcrições, o material textual passou por apreciação dos participantes, com possibilidades de retirada ou modificação de trechos, se julgassem necessário. Realizou-se análise de conteúdo temática (Minayo, 2001Minayo, M. C. S. (2001). A análise de conteúdo. In M. C. S. Minayo & S. F. Deslandes (Eds.), Pesquisa social: teoria, método e criatividade (pp. 74-77). Petrópolis: Vozes.) nos materiais textuais produzidos com base em registros em diário de campo e transcrição das entrevistas. Não foram sugeridas alterações dos conteúdos transcritos pelos participantes da pesquisa.

Resultados

O processo de análise dos dados gerou como resultado duas categorias temáticas. A primeira, intitulada Cotidiano dos Ternos de Congada ontem e hoje: memórias e trajetórias, descreve o cotidiano e a trajetória dos Ternos de Congada, por meio das memórias afetivas dos participantes da pesquisa. Esses sujeitos abordam a congada por meio de um discurso tradicionalista, descrevendo a importância da intergeracionalidade para a transmissão oral do conhecimento da congada e enfatizam as manifestações de preconceito no cotidiano da prática cultural. Os dados reunidos nesta categoria mostram que o processo histórico da marginalização da cultura afro-brasileira se revela com a desvalorização social ligada ao imaginário da escravidão, atravessando as relações sociais presentes no cotidiano dos grupos de congada. Estas memórias e trajetórias se tornam pontos de reflexão sobre as possibilidades interventivas da terapia ocupacional na perspectiva da valorização da cultura afro-brasileira e enfrentamento do racismo e do preconceito historicamente construídos, além da utilização de recursos para produção individual e coletiva de memória visando à potencialização de saberes e fazeres tradicionais.

A segunda categoria recebe o título de Institucionalidades e colonialidade na marginalização da cultura popular: conquistas e demandas dos grupos de congada, abrangendo as relações dos grupos de Terno de Congada com o poder público local, as conquistas, demandas sociais e os processos de colonialidade do poder e do saber. Neste sentido, os resultados da pesquisa apontam para a privação histórica dos direitos sociais, a restrição de acesso às políticas culturais/ educacionais e a exclusão social, além de possibilitar a discussão sobre as políticas reparatórias como possíveis instrumentos de reversão dos mecanismos da colonialidade do saber e enfrentamento do silenciamento epistêmico perpetrado pela racionalidade moderna. Tal categoria possibilita reflexões acerca do papel do terapeuta ocupacional na perspectiva da inclusão das pautas raciais na escola, dos direitos culturais e justiça social, e aprofundamento do conhecimento sobre as práticas culturais de grupos sociais marginalizados e historicamente excluídos.

Discussão

Cotidiano dos Ternos de Congada ontem e hoje: memórias e trajetórias

O ritual da congada conta com um cortejo que sai pelas ruas da cidade. O Cordão de São Francisco forma um quadrado que delimita o espaço dos congadeiros. Homens e mulheres com trajes definidos a critério da Festeira carregam o Fitão. Ao centro, a Festeira é acompanhada pela Madrinha da Sombrinha, vestida com uma roupa de cor diferente, sapatos de salto alto e adereços no cabelo (Uberaba, 1993Uberaba. Superintendência do Arquivo Público de Uberaba. (1993). Moçambiques e Congos: história e tradição em Uberaba (Vol. 1, No. 2). Uberaba: Ministério da Cultura.). Todos os Ternos de Congada se reúnem no quartel do casal designado como festeiros daquele ano e partem em cortejo até a igreja, onde é realizada uma celebração. Durante a festa, cada Terno de Congada é caracterizado por cores, a fim de identificar o grupo quando este se apresenta fardado. Em relação às músicas cantadas nos cortejos, essas geralmente evocam a abolição da escravatura. Estes cortejos relembram a África e cantam suas devoções aos santos (Uberaba, 2000Uberaba. Superintendência do Arquivo Público de Uberaba. (2000). Oficina de Congos e Moçambiques. Uberaba: Ministério da Cultura.).

A cidade de Uberaba recebe anualmente os grupos de congada do município e da região do Triângulo Mineiro para a comemoração do dia de Nossa Senhora do Rosário e do dia treze de maio, marcado pela abolição da escravatura. A tradição dessa festividade na cidade está vinculada à família Mapuaba que forma o mais antigo Terno de Congada, chamado Minas Brasil. A família mantém a tradição desde a libertação dos escravos, época em que Vicente Luiz é liberto. O patriarca da família é o responsável pela identificação como família Mapuaba, por ser conhecido como um negro que fugia e adentrava uma vegetação espinhosa com o mesmo nome.

Os Ternos da Congada reuniram-se em frente à casa da família Mapuaba, para cantar e dançar para os festeiros do “treze de maio” e para a rainha perpétua da festa do Rosário “Mãe Luzia”, assim como para saudar a devoção aos santos festeiros. Em seguida, seguiram em cortejo pelas ruas da cidade em direção a Igreja Santa Terezinha, onde era realizada uma celebração que recebe o nome de “missa afro”. (Diário de Campo).

A tradição desta festividade está relacionada ao processo histórico da escravidão no país e os entrevistados na pesquisa relacionam esta memória histórica com a memória transmitida entre as diversas gerações, como revela o trecho a seguir:

Os Ternos, que existe em Uberaba, a metade são centenários, Ternos antigos, desde lá da “falada” abolição de 88, onde começou a congada em Uberaba. Em 88, no dia treze, os negros da senzala saíram cantando, dançando, divertindo, tocando latas e gritando, pois para eles era a libertação da escravatura. E com o tempo, esses grupos foram se organizando [...]. O cortejo da festa de Nossa Senhora do Rosário, sai do quartel do Terno de Congo da família Mapuaba porque Maria Luzia Cardoso é a matriarca, a festeira perpétua da festa. O fitão do “treze de maio” vai sair de lá porque a filha dela é a festeira desse ano. (Benedito).

A relação entre a memória da escravidão e as memórias afetivas do universo familiar, passam a significar a práxis cultural dos grupos de Ternos de Congada que mantêm as festas até os dias de hoje no município, fazendo parte do cotidiano dos grupos. Nota-se a influência do processo histórico na formação da congada também na composição e organização dos Ternos de Congada, os quais seguem a hierarquia de um Quartel. Os membros que compõem o grupo são: Marechal, General, 2º General, General de Brigada, Tenente Coronel, Coronel, Major, Capitão e Soldado. À frente dos membros, há a presença do capitão guia e, atrás, o pé guia, responsável pela não-dispersão do grupo. Benedito, na fala a seguir, esclarece a relação dos Ternos de Congada com a hierarquia de um quartel, assim como o termo utilizado para se referir ao local de encontros dos Ternos.

Existe uma hierarquia dentro dos Ternos, colocada como se fosse um quartel. Hoje, existem os Ternos que funciona na casa da pessoa, onde não se diz: “lá na casa da mãe Luzia”, e sim “lá no Quartel do Terno de Congada”, como se lá fosse um quartel. [...] Toda essa hierarquia é construída dentro dos Ternos através de conhecimentos, de idades, aqueles mais sábios, mais antigos são alçado ao cargo de general. Quando morre um general, aquele que é mais antigo, mais sábio que é o Tenente Coronel ou Coronel é alçado à General. (Benedito).

Os festeiros se apresentam com roupas de gala e aguardam o cortejo dos Ternos, que andam em procissão até a porta do quartel. A Festa do Congo acontece durante a manhã; no período da tarde, os Ternos se reúnem para um almoço e, à noite, acontece um baile de gala, em que são nomeados os festeiros do próximo ano. Benedito informa que alguns Ternos de Congada mais antigos valorizam a prática espiritual baseada na regência e na hierarquia dos antepassados que são homenageados durante os festejos.

O processo de preparação da festa atravessa o cotidiano das famílias e grupos ao longo de todo o ano com a elaboração ou o preparo das fantasias e instrumentos, ensaios de bateria, elaboração de standart, organização de eventos para arrecadação de dinheiro para os custos, reserva de transporte, articulações com o poder público, entre outras atividades. A manutenção da tradição da festa – que anualmente perpetua a memória da escravidão na região – é sustentada, portanto, no cotidiano desses sujeitos, envolvendo um fazer significativo produtivamente encenado na dimensão da coletividade.

Costa (2012)Costa, S. L. (2012). Terapia ocupacional Social: dilemas e possibilidades da atuação junto a povos e comunidades tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 43-54. afirma que a ocupação, entendida como direito social, é aquela que coletivamente significa e produz significado social. A ocupação tradicional, portanto, pode ser entendida como uma prática significante e produtora de patrimônio (material e imaterial), caracterizada pelo trabalho como mediador entre o ser humano e a natureza (Costa, 2012Costa, S. L. (2012). Terapia ocupacional Social: dilemas e possibilidades da atuação junto a povos e comunidades tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 43-54.). A relação entre memória e tradição – enquanto elementos aglutinadores na produção significativa do cotidiano de populações que se envolvem com práticas culturais tradicionais – pode ser bastante potente para se pensar em possiblidades de recursos que potencializem esses sujeitos no engajamento dessas práticas.

Um importante aspecto observado é a referência ao passado em conexão com a manutenção da tradição. A memória passa pela oralidade e esses atores sociais, como é possível observar na fala em seguida, relembram de forma saudosista as festas de congo, algumas vezes até romantizando a falta de infraestrutura.

Na época não tinha condução para levar os Ternos, ônibus, essas coisas. Era tudo feito de a pé mesmo. (José Rosa).

Assim, nota-se, na colocação de José Rosa, um discurso de cunho tradicionalista, que por vezes se aproxima da retórica da perda, negativando o processo de mudança que ocorre ao longo do tempo, mesmo em face à manutenção das tradições.

[...] e não tinha por exemplo essa, que eu falo que foi o mal da congada não só em Uberaba, mas no Brasil, essa modernização desnecessária. Então, essa modernização sem limite, que na minha opinião, foi fazendo a congada na nossa cidade perder um pouco do rumo. (Antônio).

Neste fragmento, reforça-se a noção de tradição como um elemento intocável e sólido que não deve sofrer mudanças, contrapondo-a à noção de modernidade. De acordo com Hall (2011)Hall, S. (2011). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG., a tradição deve ser concebida de forma não-fixa, compreendendo a cultura como elemento ativo, histórico e processual. A cultura deve ser entendida como algo vivo e dinâmico, que acompanha as mudanças históricas (Hall, 2011Hall, S. (2011). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG.). As manifestações culturais se adequam no tempo e a tradição se mantém: portanto, a flexibilidade não é sinônimo da perda de identidade (Luvizotto, 2010Luvizotto, C. K. (2010). A (re) invenção da tradição no contexto da modernidade tardia. São Paulo: UNESP.).

No entanto, é no tensionamento deste conflito entre passado e presente que se dá a prática cultural, possibilitando que a transmissão intergeracional ocorra por meio da preservação de uma estética que atravessa o tempo (Luvizotto, 2010Luvizotto, C. K. (2010). A (re) invenção da tradição no contexto da modernidade tardia. São Paulo: UNESP.). Segundo Costa (2012Costa, S. L. (2012). Terapia ocupacional Social: dilemas e possibilidades da atuação junto a povos e comunidades tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 43-54., p. 50), é necessário lembrar que as tradições de um povo mudam “[...] e não é o movimento de evitar a mudança que garante a manutenção da tradição, mas sim o direito à tradição e à sua inevitável mudança”. Deve-se evitar o risco de que a desigualdade seja mantida sob a justificativa de preservação de uma cultura (Costa, 2012Costa, S. L. (2012). Terapia ocupacional Social: dilemas e possibilidades da atuação junto a povos e comunidades tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 43-54.), o que, neste caso, acarretaria a falta de infraestrutura e recursos financeiros das comunidades congadeiras para a realização dos eventos.

No que tange mais especificamente à tradição, o aspecto da intergeracionalidade é recorrente nas falas dos participantes, sendo relacionada especialmente à manutenção da congada, em um discurso que enfatiza a valorização do conhecimento passado de geração para geração:

Na minha família tem congada, tem Moçambique, terreiro de Umbanda, terreiro de Candomblé, toda parte da cultura, principalmente a cultura do negro, então se preserva. Ali é de herança, você nasce dentro e vai aprendendo. Meus filhos já dançam, meus netos já dançam, tenho netos de 3-4 anos que já dançam é uma coisa de família, a gente nasce dentro desta cultura. (Benedito).

Bom, eu nasci em uma família de congadeiro. Meu avô era congadeiro, meu pai era congadeiro, minha mãe, todo mundo ajudava na congada. (Antônio).

Nesse sentido, Araújo & Morais (2013)Araújo, J. A., & Morais, E. S. (2013). Ressignificando a história e a cultura africana e afro brasileira na escola. Revista do Difere, 3(6), 79-98. destacam a relevância desse processo, uma vez que a cultura de um povo é transmitida de geração para geração como forma de manter seus costumes, valores, crenças, tradições e concepções de mundo. Mesmo que a tradição não seja fixa no tempo, ela segue uma linha entre passado e presente, preservando-se na memória de um povo os significados históricos e afetivos-familiares das suas práticas culturais.

O fenômeno da intergeracionalidade se afirma no cotidiano, entre a memória e a tradição, formando um terreno que se sedimenta por meio da oralidade, da experiência e da afetividade em torno das práticas culturais tradicionais. Essas práticas, sendo significativas para esta população, podem ser compreendidas, portanto, como uma ocupação tradicional (Costa, 2012Costa, S. L. (2012). Terapia ocupacional Social: dilemas e possibilidades da atuação junto a povos e comunidades tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 43-54.). Desta forma, corroborando Costa (2012)Costa, S. L. (2012). Terapia ocupacional Social: dilemas e possibilidades da atuação junto a povos e comunidades tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 43-54., acredita-se que o terapeuta ocupacional pode contribuir com tecnologias sociais “[...] para a produção individual e coletiva da memória [...] fortalecimento de saberes e fazeres tradicionais, e para a potencialização de laços, redes e movimentos que se ocupam da criação e manutenção de produtos culturais” (Costa, 2012Costa, S. L. (2012). Terapia ocupacional Social: dilemas e possibilidades da atuação junto a povos e comunidades tradicionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 20(1), 43-54., p. 52).

Enquanto um fazer possível da prática do terapeuta ocupacional junto a comunidades tradicionais, observa-se que a articulação comunitária em torno da construção da memória da trajetória de suas práticas culturais pode não apenas estimular o engajamento intergeracional em torno do cotidiano da congada, mas também estimular que esta memória possa ser valorizada em círculos sociais mais amplos, criando novas redes relacionais protetivas para a manutenção das ocupações tradicionais da comunidade congadeira.

Ainda nesta categoria analítica, marcando as trajetórias e as memórias em torno da prática cultural, identifica-se a manifestação do preconceito racial no cotidiano da congada, que retrata a cultura negra como uma expressão da exclusão histórica.

Pereira (2017)Pereira, C. F. (2017). Racismo, espaço e colonialidade do poder, do saber e do ser: diálogos, trajetórias e horizontes de transformação. In V.C. Cruz & D. A. Oliveira (Eds.), Geografia e Giro Decolonial: experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico (pp. 132-142). Rio de Janeiro: Letra Capital. reconhece que o racismo, na sociedade brasileira, assume o papel de sistema de poder que regula e conduz as relações sociais, acarretando prejuízos à sociedade como um todo. O racismo, assim, configura-se como elemento estruturador destas relações em diversos níveis. No que diz respeito à cultura afro-brasileira, essa passa a ser considerada como cultura marginalizada, estereotipada e inferiorizada, ressaltando a importância das discussões acerca da discriminação racial (Araújo & Morais, 2013Araújo, J. A., & Morais, E. S. (2013). Ressignificando a história e a cultura africana e afro brasileira na escola. Revista do Difere, 3(6), 79-98.). Tal consideração pode ser identificada no seguinte discurso de um dos participantes do estudo que, ao relatar o cotidiano das festas da congada, revela o processo de marginalização das manifestações culturais de matriz africana e as ideias racistas ou preconceituosas sobre a prática:

É uma liberdade entre aspas, é uma abolição entre aspas, porque continua do mesmo jeito aí, o preconceito explícito, mas ao mesmo tempo camuflado. [...] Dificulta, é difícil. Muitas vezes as pessoas falam “Ah, festa de 13 maio, festa de negro”. [...] Para um negro é muito mais difícil... Tem uns que falam “Ah, tem o dia do negro então tem que ter o dia do branco”. (José Rosa).

José Rosa esboça a problematização sobre a liberdade real dos negros. A comemoração do treze de maio segue como uma tradição, mas muitos cantos entoados durante a festa criticam a abolição no Brasil na figura da princesa Izabel, visto que a assinatura da Lei Áurea, apesar de constituir um importante marco no processo histórico, não garantiu aos negros oportunidades sociais reais como pessoas libertas (Fernandes, 2008Fernandes, F. (2008). A integração do negro na sociedade de classes: o legado da raça branca. São Paulo: Editora Globo.).

Nos relatos e memórias dos participantes, observam-se processos de marginalização, inferiorização, discriminação calcados no desconhecimento da cultura afro-brasileira no ambiente educacional. Um dos participantes relata um episódio em que um dos Ternos de Congada foi chamado para realizar uma vivência com alunos de uma escola particular:

[...] é uma escola de classe média alta, só tinha branco, não tinha nenhum negro. No primeiro dia, a professora me apresentou e eu perguntei: - Alguns de vocês já ouviram falar o que é congada? Ninguém sabia, eu falei que nessa primeira aula, íamos começar a conversar, depois trazer vídeo e mostrar como é. Um menino lá do fundo, tinha uns 10 anos na época falou: “- Tio congada é aquela dança igual macaco, que fica pulando”. (Benedito).

Os dados revelam uma desvalorização social ligada ao imaginário colonial que se manifesta por meio de discursos racistas, atravessando as relações sociais presentes no cotidiano dos grupos de congada. Os espaços sociais são espaços de conflito, e, ao mesmo tempo, espaços de resistência e transformação quando os grupos ligados à cultura afro-brasileira neles penetram para inverter a lógica colonial deste imaginário por meio da transmissão de saberes, experiências e conhecimentos construídos historicamente. Nessa perspectiva, Pereira (2017)Pereira, C. F. (2017). Racismo, espaço e colonialidade do poder, do saber e do ser: diálogos, trajetórias e horizontes de transformação. In V.C. Cruz & D. A. Oliveira (Eds.), Geografia e Giro Decolonial: experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico (pp. 132-142). Rio de Janeiro: Letra Capital. aponta que a questão negra não tem a ver somente com a questão da cor da pele, mas também com reconhecimento de que os negros são sujeitos de história, lógicas, conhecimentos e tecnologias, o que vai ao encontro da afirmação de Benedito:

Muitas vezes, a discriminação da nossa cultura é pelo desconhecimento. (Benedito).

Percebe-se que a visibilidade positiva e informada da cultura negra, principalmente em instituições sociais como escola, é necessária para que se desconstrua o imaginário colonial investido contra o negro e as culturas de matrizes africanas e afro-brasileiras. Nesse sentido, torna-se importante a reflexão sobre as tecnologias sociais e práticas, destacando, aqui, a terapia ocupacional na produção de estratégias interculturais que possam articular ações anticoloniais e antirracistas na busca pela justiça, equidade e respeito à diversidade humana (Silvestrini et al., 2019Silvestrini, M. S., Silva, C. R., & Prado, A. C. S. A. (2019). Occupational therapy and culture: ethical-political dimensions and resistances. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 929-940. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1727.
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).

As práticas antirracistas dos terapeutas ocupacionais, em diversos espaços públicos ou territórios, devem ocorrer ao se admitir que a colonização do imaginário se reproduz cotidianamente nas relações sociais e institucionais. As questões que permeiam a desvalorização, invisibilidade das culturas, povos, histórias e vozes dão espaço para o questionamento trazido por Costa & Alves (2017)Costa, S., & Alves, H. (2017). Diálogos Interepistêmicos: por uma terapia ocupacional de base alargada. therapy. REVISBRATO, 1(5), 527-532. http://dx.doi.org/10.47222/25263544.rbto13459.
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: “Onde ficam os saberes e ocupações tradicionais – sua oralidade, sua espiritualidade, sua perspectiva de integralidade – quando falamos de terapia ocupacional num país tão diverso quanto violento com as diferenças?” (Costa & Alves, 2017Costa, S., & Alves, H. (2017). Diálogos Interepistêmicos: por uma terapia ocupacional de base alargada. therapy. REVISBRATO, 1(5), 527-532. http://dx.doi.org/10.47222/25263544.rbto13459.
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, p. 527).

As manifestações artístico-culturais afro-brasileiras e seus movimentos tradutórios que trazem em seu bojo as expressões de memória e os processos de resistência das populações afrodescendentes, relacionam-se com a terapia ocupacional na medida em que apresentam os sujeitos enquanto pertencentes a uma coletividade cuja práxis, no âmbito da cultura, foi historicamente produzida por meio da vivência da exclusão e da marginalidade.

Desta forma, a produção artístico-cultural dos povos tradicionais e populações marginalizadas – que vivem as consequências sociais da colonização – é política, é ética, é pública e conta uma história de opressão que é (re)encenada tradicionalmente todos os anos em meio aos processos sistêmicos que ainda se pautam estruturalmente na desigualdade social/racial e na colonialidade do poder e do saber.

Ao esboçar como postura epistêmica a diversidade dos saberes, o terapeuta ocupacional, na perspectiva da justiça social, tem por compromisso ético aprofundar seus conhecimentos dialogando com o universo cultural e identitário da população, em especial, com grupos socialmente excluídos. O reconhecimento dos direitos humanos, culturais e econômicos, bem como a valorização da diversidade das populações tradicionais, passam pela interação e reconhecimento da identidade desses grupos. Na direção da potencialização da vida e da promoção do bem-estar social, a terapia ocupacional foca suas ações no sujeito enquanto expressão coletiva, respeitando a complexidade de sua identidade e sua inserção socio-histórico-cultural e afetiva no território.

Olhar, aprender, reconhecer e respeitar acontecimentos históricos de resistência cultural, desdobrados após a escravidão, somados aos mecanismos de reprodução da colonialidade do poder na contemporaneidade, exige um compromisso social-ético-político frente aos saberes-fazeres excluídos pela racionalidade moderna. Ao fomentar as expressões culturais enquanto princípio de valorização da diversidade dos modos de existir, a terapia ocupacional deve compreender que a práxis cultural de populações tradicionais é investida de memória histórica e afetiva, transmitida entre as gerações, posicionando sua prática no sentido de subverter a lógica do silenciamento epistêmico que elas sofreram e ainda sofrem.

As ações interculturais de apoio ao reconhecimento e valorização da diversidade exigem posturas, ações e engajamento por meio de saberes e práticas contextualizadas e colaborativas, acadêmicas e não acadêmicas. Faz-se necessário compreender outros universos culturais por meio de uma postura dialógica e aberta, epistemologicamente comprometida com os grupos sociais excluídos.

O combate ao racismo e à discriminação no seio da prática exige do terapeuta ocupacional a construção de dispositivos, recursos e espaços coletivos que mobilizem os saberes locais e promovam as trocas de conhecimentos e a valorização da cultura de matriz africana e afro-brasileira no imbricamento entre cultura e educação. Esta prática deve ser promovida na perspectiva da inclusão sociocultural, abrangendo a sociedade civil como todo, assim como gestores da cultura.

A terapia ocupacional, por meio de um investimento reflexivo crítico, é capaz de ensejar a produção de “[...] estratégias, reflexões e práticas contra-hegemônicas, anticoloniais, anti heterocispatriarcais (sic) e antirracistas na busca pela ruptura e superação dos impactos gerados pelas práticas hegemônicas e violentas, nos modos de vida e relações humanas” (Silvestrini et al., 2019Silvestrini, M. S., Silva, C. R., & Prado, A. C. S. A. (2019). Occupational therapy and culture: ethical-political dimensions and resistances. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 929-940. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1727.
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). Assim, nota-se a demanda por um projeto de profissão que contribua para a construção coletiva de uma sociedade mais justa e igualitária, cotidianamente dialogada com os sujeitos historicamente marginalizados e com as políticas sociais.

Institucionalidades e colonialidade na marginalização da cultura popular: conquistas e demandas dos grupos de congada

A presente categoria discorre sobre a colonialidade do saber, enfatizando a marginalização da cultura popular nos processos de produção do conhecimento e nas relações com a gestão pública.

Pode-se dizer que a modernidade se constitui por meio de uma forma hegemônica de se pensar as práticas políticas, éticas, sociais e o conhecimento no cotidiano. Tais características do mundo moderno se referem à colonialidade e ao modo eurocentrado de interpretação, que confere à Europa a ideia de civilização e modernidade. Dessa forma, no imaginário colonial, o que não é moderno é marcado pela marginalização e pela não-civilização (Nascimento & Garrafa, 2011). Nesse sentido, nas sociedades multiculturais, nota-se a supervalorização de uma cultura em detrimento de outra, nas quais se observa a inferiorização das culturas afro-brasileiras e valorização daquelas de origem europeia (Araújo & Morais, 2013Araújo, J. A., & Morais, E. S. (2013). Ressignificando a história e a cultura africana e afro brasileira na escola. Revista do Difere, 3(6), 79-98.):

A discriminação, ela existe, acha que o lugar do negro é embaixo... (Benedito).

A modernidade foi forjada por meio de uma forma de exercício de poder que inferioriza e que cria identidades por meio da criação violenta de alteridades baseadas em processos de subordinação, violência e opressão do “outro” (Quijano, 1992Quijano, A. (1992). Colonialidad y modernidade/racionalidad. In H. Bonillo (Eds.), Los Conquistados (pp. 437-449). Bogotá: Tercer Mundo., 1997Quijano, A. (1997). Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en américa latina: anuário mariateguiano. Lima: Amatua.). Nessa perspectiva, a colonialidade é mantida como um regime de poder que instaura formas de lidar com a economia política e moral sobre outros povos e é sustentada por uma maneira específica de produzir conhecimento (Nascimento & Garrafa, 2011).

A colonização do imaginário social expressa na escrita da história oficial é revelada quando os participantes questionam o processo de produção do conhecimento por meio de uma episteme eurocêntrica, como indicado nos trechos trazidos por Benedito e José Rosa:

Hoje a gente já tem um conhecimento melhor, tem condição de estudar um pouco, a gente lê alguma coisa, não concordando a maioria das vezes com o que tá escrito, esses livros escritos pelos brancos, o branco é aquele que era o capitão do mato, e não quer contar a história como ela foi, então tenta maquiar a história. (Benedito).

[...] a história conta de uma forma, mas a realidade é outra. Ali o livro foi escrito por quem não vivenciou essa situação. [...] Mesma coisa era nós. Nos trouxeram da África de qualquer maneira, nos jogaram num canto aí, na senzala, só cortava cana, apanhava, não sabíamos ler, não sabíamos andar na rua, aí vem e tá liberto, os negros não mais escravos. Eu não tinha casa, não tinha terra, não tinha conhecimento, não tinha uma ferramenta se quer. Que liberdade é essa? (José Rosa).

A congada, por meio da riqueza de ícones nas suas representações simbólicas, estéticas e poéticas, constitui um dos canais para veiculação dos saberes de um povo historicamente escravizado, discriminado, mas, sobretudo, resistente. Observa-se que existe, por parte deste grupo social, uma elaboração crítica sobre o processo de produção de conhecimento que se ancora em uma visão eurocentrada de mundo, excluindo os conhecimentos dos povos africanos e afro-brasileiros que vivenciaram diretamente a hierarquia de poder colonial-capitalista, desde o período histórico do colonialismo até os dias de hoje. Como é possível constatar por meio do trecho adiante:

Muitas coisas que eu leio eu não concordo, principalmente da congada, você vê hoje nos livros “a congada é um bailado”, a congada não é um bailado. Congada é uma dança de origem africana que entra cultura, entra sabedoria, entra a parte das religiões da matriz africana, em síntese é uma dança tradicional de origem africana... (Benedito).

Para uma mudança epistêmica contra-hegemônica que ressalte vozes e conhecimentos apagados – epistemologias do Sul (Santos & Meneses, 2010Santos, B. S., & Meneses, M. P. (2010). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina.), faz-se necessário realizar reflexões que redirecionem o olhar da sociedade para a importância da educação das relações étnico-raciais em todas as esferas dos saberes e práticas, assim como na produção do conhecimento. Esta inversão do polo de enunciação deve ocorrer em consideração ao processo de colonização que marginaliza e exclui a experiência, e os conhecimentos advindos das culturas de matrizes africanas e afro-brasileiras.

Nessa perspectiva, a colonialidade do poder e do saber, compreendidas como um mecanismo de controle econômico, político e do conhecimento (Quijano, 1992Quijano, A. (1992). Colonialidad y modernidade/racionalidad. In H. Bonillo (Eds.), Los Conquistados (pp. 437-449). Bogotá: Tercer Mundo.), manifestam-se também na histórica restrição do acesso aos direitos básicos, como à educação:

Minha mãe não sabe lê, ela escreve o nome, ela trabalhou 40 anos numa casa que ela entrava sete horas da manhã e saía às vinte e uma horas da noite, isso é uma escravidão. (Benedito).

O filho do patrão estudava em escola particular, não precisava trabalhar, fazia cursinho, contratava professor, fazia curso de inglês. Meus filhos não estudavam em escolas públicas, mas tinham que trabalhar pra ajudar e como que irão competir no vestibular? (Benedito).

Araújo & Morais (2013)Araújo, J. A., & Morais, E. S. (2013). Ressignificando a história e a cultura africana e afro brasileira na escola. Revista do Difere, 3(6), 79-98. apontam que comportamentos que reafirmam a colonialidade do poder e do saber não são adquiridos de forma eventual, mas, sim, por meio de uma conjuntura histórica que favoreceu o surgimento de mecanismos de controle e opressão dos grupos menos favorecidos e estigmatizados, a exemplo da população negra. A colonialidade do poder se revela na contemporaneidade por meio de processos de restrição de acesso aos direitos básicos em meio à exclusão socioeconômica no contexto neoliberal, realidade vivida pela população pobre periférica. O poder imperial, ao abolir a escravidão, não ofereceu aos negros escravizados libertos uma política de integração à sociedade de classes, o que resultou em processos de exclusão, marginalização e violação de direitos até os dias de hoje.

Observa-se que a desigualdade racial e a elitização da sociedade brasileira – presentes nas entrevistas durante o relato das trajetórias familiares, apresentam-se como consequências diretas do colonialismo. Neste contexto, outro aspecto, na visão destes participantes, diz respeito ao poder público local, discutindo-se as atuais dinâmicas e demandas sociais dos grupos de congada para a manutenção das festas tradicionais. Estes sujeitos revelam as conquistas no campo dos direitos culturais presentes nas políticas públicas no âmbito nacional, conseguindo verbas por meio de editais e convênios. No entanto, embora tenha tido muitos avanços nos últimos anos no que diz à visibilidade e ao reconhecimento da cultura afro-brasileira, ainda não se observa uma regularidade, como exposto a seguir:

falta de apoio. Porque, hoje é muito difícil fazer sem a ajuda do poder público, já conseguimos fazer, mas na maioria das vezes a gente necessita da ajuda do poder público. Muita das vezes essa ajuda chega com tanta dificuldade, é tanta humilhação, e as vezes chega muito em cima da hora. (José Rosa – itálico nosso).

A prefeitura fazia convênio com o Conselho, discutíamos e a prefeitura falava, vamos ajudar e fazia o convênio. Agora não, mudaram as normas, que ao invés de passar o dinheiro, está fazendo “por eles”. Sentimos essa dificuldade porque os grupos de congada só têm um ou dois que estão em dia, por essa questão, sairão 18 grupos, um ou dois somente que está em dia [...] A maioria por desconhecimento, o pessoal muito simples, eles não sabiam que a ata vencia de três em três anos. Todo ano, mesmo que é isento tem que fazer declaração de imposto de renda. Não tem como, é a dificuldade que nós estamos tendo. Vamos esperar passar a festa e vamos ter um trabalho de recadastrar esses ternos todos, de fazer a legalização de toda a documentação, porque segundo a prefeitura agora a norma vai ser essa. (Benedito).

Os recursos municipais existem e já foram oferecidos em forma de convênios, mas enquanto não forem concebidos como direito cultural e dever do Estado, mantém-se veladamente uma hierarquia de poder por meio da obrigatoriedade no cumprimento de formalidades burocráticas que podem constituir um obstáculo para um público que frequentemente não teve acesso à educação. Nesse regime de colonialidade do poder, mesmo com o acesso aos recursos públicos por vias institucionais, o cumprimento dos direitos culturais pode ser dificultado se não forem consideradas as particularidades de uma população que passou por um processo histórico de exclusão e violação de direitos, restringindo sua autonomia para autogerir suas práticas culturais.

Como é possível observar nos relatos analisados, o racismo pode ser diluído no funcionamento cotidiano das instituições que, segundo López (2012)López, L. C. (2012). O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface: Comunicação Saúde Educação, 16(40), 121-134., operam de forma diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população do ponto de vista racial. O excesso de burocracias e exigência de documentação para o cumprimento de um edital no âmbito da cultura pode privilegiar determinadas práticas culturais brancas-elitistas-eruditas, em detrimento das produções culturais de uma população que possui historicamente restrição de acesso a bens, capitais e serviços.

Veja aí dentro do poder público, quantos negros têm? Será que isso é incapacidade? Não, é falta de oportunidade. Não nos dão oportunidade. Não sei se é por medo. As coisas para o negro é tão difícil, que quando ele consegue alguma coisa aquilo é tão seguro que você não consegue tomar mais. (José Rosa).

As políticas públicas da área da cultura, acessadas pela população negra ligada à tradição da congada são predominantemente em nível Estadual e Federal, refletindo a falta de regulamentação do destino orçamentário fixo dos editais públicos a nível local, específicos para a manutenção de manifestações artístico-culturais de matriz africana. Sem a manutenção regular e frequente de editais específicos para a cultura afro-brasileira, eximindo essa população de cumprimento de uma burocratização excessiva que restrinja sua participação, o poder público em nível municipal corre o risco de deixar de exercer o papel de gestor cultural na perspectiva dos direitos culturais, para adotar uma postura coronelista frente à produção cultural negra, como expõe Benedito em suas colocações:

Se não for através do poder público tem que ser através dos beneméritos e nós temos poucos que tem essa condição. Tem as pessoas que ajudam, mas são poucas. (Benedito).

Todo ano aqui eu faço na faixa de 50 projetos, todos têm editais. No ano passado eu consegui. Fomos contemplados em dois editais, um do Estado e um do Governo Federal [...] O Conselho [afro-brasileiro] hoje é isso, é pra procurar parcerias, participamos de todos os editais que sai do Estado, do Governo Federal, do município, edital da nossa área... por que vamos entrar num edital pra fazer um curso de ballet? Apesar de que eu acho interessante, mas não tem nada a ver conosco. (Benedito).

O terapeuta ocupacional pode estar ao lado das comunidades nos processos de reflexão e cocriação de mecanismos e tecnologias de confronto à colonialidade do poder exercido pelas institucionalidades locais, incrementando a participação sociopolítica desta população nos conselhos de cultura em que a pauta da acessibilidade cultural seja diretamente debatida. Esta mediação cultural entre poder público local e comunidades tradicionais pode ser realizada por meio de oratórias protagonizadas pela população que evidenciem as desigualdades provocadas pelas exigências normativas dos editais de cultura e a consequente exclusão ou restrição da participação da comunidade negra. A postura do terapeuta ocupacional deve expressar o compromisso ético com a população negra e seus fazeres tradicionais, cocriando formas de resistência contra-hegemônica no campo do debate político para a ampliação do acesso aos seus direitos culturais em consideração à violência histórica do processo colonizador que marginalizou e excluiu estes saberes e fazeres no âmbito da cultura.

Paralelamente às políticas culturais, as políticas públicas de ação afirmativa possibilitam a correção da história de desigualdades e desvantagens sofridas pelos grupos étnico-raciais (López, 2012López, L. C. (2012). O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface: Comunicação Saúde Educação, 16(40), 121-134.). A exemplo de tais políticas, pode-se mencionar a Lei n. 10.639, de 2003 (Brasil, 2003Brasil. (2003, 9 de janeiro). Lei nº 10.693, de 9 de janeiro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília.), posteriormente Lei n. 11.645, de 2008 (Brasil, 2008Brasil. (2008, 10 de março). Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília.), que estabelece o ensino da História da África e da Cultura afro-brasileira nos sistemas de ensino (Brasil, 2009Brasil. (2009). Plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino da história e cultura afro brasileira e africana. Brasília: Ministério da Educação.). Segundo Araújo & Morais (2013)Araújo, J. A., & Morais, E. S. (2013). Ressignificando a história e a cultura africana e afro brasileira na escola. Revista do Difere, 3(6), 79-98., o sistema de ensino brasileiro ainda não se desprendeu das amarras de um currículo homogeneizante, eurocêntrico e monocultural, portanto, não atende às demandas e aos interesses dos diferentes grupos étnico-raciais e culturais que frequentam os diferentes níveis e modalidades de ensino.

A escola como espaço no qual a diversidade étnico-racial e cultural se faz presente tem papel de destaque no combate ao preconceito e à intolerância. Benedito relata o processo falho de implementação da Lei n. 10.639 (Brasil, 2003Brasil. (2003, 9 de janeiro). Lei nº 10.693, de 9 de janeiro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília.), criticando a restrição de acesso dos grupos de congada à escola formal, que se limita às datas comemorativas ligadas à consciência negra e à abolição da escravidão, sem que haja um projeto contínuo e profundo de entrada das manifestações artístico-culturais afro-brasileiras no currículo escolar ao longo de todo o ano. Na fala de Benedito, vemos que esta lei trouxe uma oportunidade ímpar para uma reversão da colonialidade do saber por meio da valorização e do reconhecimento dos saberes das comunidades negras no espaço da escola, já que para a implementação da Lei o MEC obriga uma parceria com estes grupos negros locais. No entanto, a seu ver, a Lei não foi ainda bem implementada no município:

Essa lei (10.639) tem mais de 10 anos, e nunca foi instituída [no município]. Tanto nas escolas municipais, estaduais e particulares. Só fazem alguma coisa quando chega perto do 13 de maio, da semana da cultura e você sente que é mais uma obrigação dos gestores, passou disso, tem casos isolados [...] mas não tem uma lei municipal. (Benedito).

Apesar dessa Lei 10.639 ter muitos anos, a luta do movimento negro não era só criar a lei, porque você criava e deixava que as pessoas colocassem como tem nos livros uma falsa história, então ela foi muito bem costurada; para o município de Uberaba colocar no currículo tinha que qualificar os gestores, o MEC só dava autorização se as entidades culturais da cidade participassem com as informações. Então aqui em Uberaba só teve alguns ensaios [...] Tem que ter parcerias com as comunidades negras locais, porque não é uma história única, se não seria fácil [...] Eu disse, entro desde que o Conselho indique as pessoas para orientar os professores, porque se não vocês vão pegar os livros, pegar a internet e vão contar a história errada e pra nós não é interessante.

Nessa perspectiva, Pereira (2017)Pereira, C. F. (2017). Racismo, espaço e colonialidade do poder, do saber e do ser: diálogos, trajetórias e horizontes de transformação. In V.C. Cruz & D. A. Oliveira (Eds.), Geografia e Giro Decolonial: experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico (pp. 132-142). Rio de Janeiro: Letra Capital. afirma que descolonizar é, antes de tudo, sensibilizar as pessoas a lidarem com a diversidade e com a diferença, a discutirem temas como racismo e religião, o que levará ao reconhecimento de saberes e valores até então negados enquanto tais. A comunidade negra observa na Lei um potencial decolonizador, possibilitando que os negros contem sua versão da história, que até o momento foi contada apenas pelos brancos.

Essas novas tendências, no entanto, podem esbarrar no conservadorismo político que se expressa no nível local, dificultando a implementação dessas políticas. Neste atual contexto de retrocesso político e falta de investimento público na área da cultura e da educação, observa-se uma ameaça à restrição de acesso aos direitos sociais e culturais por parte das comunidades negras.

No âmbito da terapia ocupacional, uma profissão articulada com a defesa dos direitos humanos, a cultura pode ser vista como “[...] uma estratégia de valorização do ser e da diversidade [...] como expressão humana que fomenta transformações e engajamento para a luta” (Silvestrini et al., 2019Silvestrini, M. S., Silva, C. R., & Prado, A. C. S. A. (2019). Occupational therapy and culture: ethical-political dimensions and resistances. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 929-940. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1727.
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, p. 937). A articulação do terapeuta ocupacional com práticas culturais e socioeducacionais que descortinem as memórias e saberes silenciados pela história é uma demanda contemporânea e urgente. Em especial, a escola pode ser um importante espaço para a construção de ações antirracistas e de valorização da cultura afro-brasileira.

O comprometimento ético deste profissional com os grupos sociais excluídos sob a égide da colonialidade deve ocorrer de acordo com o que Santos (2000)Santos, B. S. (2000). Crítica de la Razón Indolente contra el desperdício de la experiência. Bilbao: Desclée de Brouwer. chama de conhecimento-emancipação e na perspectiva da ecologia de saberes que rompe com a lógica da monocultura do saber instalada pela racionalidade científica moderna (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Critica de Ciencias Sociais, (63), 237-280. http://dx.doi.org/10.4000/rccs.1285.
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). O terapeuta ocupacional, em uma perspectiva crítica decolonial, deve alçar seu compromisso para a cocriação de estratégias e recursos no sentido da potencialização das práticas culturais e conhecimentos tradicionais que rompam com o silenciamento epistêmico de povos e populações que sofreram transgeracionalmente os efeitos perversos do sistema-mundo colonial-capitalista.

Conclusão

O presente estudo permite uma postura reflexiva sobre a atuação da terapia ocupacional no campo da cultura em uma perspectiva crítica decolonial. Na direção da interculturalidade, é necessário pensar em ações que auxiliem no processo de confronto com a colonialidade do poder e do saber manifestadas no cotidiano da práxis cultural de populações historicamente excluídas. O terapeuta ocupacional deve, portanto, ir ao encontro destes sujeitos para co-construir as ações, evitando uma postura colonialista na hierarquização dos saberes técnico-científicos sobre os saberes tradicionais e populares.

As ações terapêutico-ocupacionais devem ir ao encontro de uma difusão dos saberes desses grupos sociais na perspectiva da resistência epistêmica, oferecendo centralidade às narrativas, experiências, memórias e conhecimentos advindos de matrizes culturais que sofreram uma marginalização histórica em decorrência do pensamento e imaginário colonial.

O terapeuta ocupacional é capaz de realizar práticas que valorizem a cultura de matriz africana e afro-brasileira, como um elemento que sedimenta as diversas tecnologias sociais produzidas em uma abordagem territorial. Valorizar os conhecimentos tradicionais e as práxis culturais de grupos sociais marginalizados constitui o compromisso ético da terapia ocupacional, uma vez que, apresentando esses sujeitos como pertencentes a uma coletividade, amplia e ressignifica a prática da profissão, dialogando com a diversidade dos saberes.

Os dados da pesquisa revelam, com base nas demandas sociais observadas na trajetória dos Ternos de Congada, possiblidades de atuação do terapeuta ocupacional no processo de articulação de saberes, memórias e conhecimentos destes grupos sociais facilitando o acesso às políticas públicas reparatórias e aos direitos culturais, como ferramenta para o confronto da colonialidade do poder e do saber em nível local. Esta mediação interventiva de acesso aos direitos culturais se justifica diante da restrição histórica desta população aos direitos sociais básicos que limitam sua articulação com o Estado, mas não deve ser realizada sem o resguardo do protagonismo social e consciência histórica e cidadã destes atores.

O terapeuta ocupacional deve promover práticas estético-políticas que defrontem os processos de marginalização e estigmatização envoltos na colonialidade, por meio da valorização de epistemologias contra-hegemônicas do Sul, permitindo a estes grupos excluídos dos processos de produção de conhecimento uma nova centralidade narrativa sobre suas próprias práticas culturais, memórias e cosmovisão de mundo, que muitas vezes é impressa na voz e no corpo.

Essa perspectiva epistêmica abrange a compreensão de que a práxis cultural de grupos sociais e comunidades tradicionais marginalizadas ganha contornos políticos e de identidade e memória histórica que devem ser contemplados na produção de conhecimentos e de práticas em terapia ocupacional. As expressões apresentadas no estudo contribuem com o resgate de memórias acerca de identidade e posicionamento político de uma população marcada pelo racismo, intolerância e vulnerabilidade social. Mobilizam saberes por meio do discurso e do corpo. Por meio da luta, esses sujeitos socialmente excluídos se afirmam como grupo identitário e se reafirmam como cidadãos com plenos direitos civis e culturais.

Esse movimento prático-reflexivo aproxima a academia de populações que apresentam questões estruturais, demandando a articulação de ações que valorizem a representação cultural como valor social, assim como a protagonização de uma episteme que se volte aos saberes alijados do sistema-mundo moderno. As ações culturais no âmbito da profissão se apresentam como uma iniciativa importante no processo de centralização histórica dessas narrativas, ampliando suas perspectivas de resistência e luta pelos direitos culturais. Assim, é dever do Estado oportunizar a fruição e a produção cultural de povos e grupos sociais excluídos.

Nota-se a importância de aprofundamento dos estudos e reflexões da terapia ocupacional no campo da cultura, na direção de um maior fortalecimento e ampliação da produção de conhecimento que fundamenta a prática profissional. Considera-se, diante desta temática, os movimentos, produções e tensões epistemológicas próprias do campo da terapia ocupacional (Bourdieu, 1983Bourdieu, P. (1983). O campo científico. In R. Ortiz (Ed.), Pierre Bourdieu: sociologia (pp. 122-155). São Paulo: Ática.). Corroborando Morán & Ulloa (2016)Morán, J. P., & Ulloa, F. (2016). Perspectiva clínica desde latinoamérica: hacia uma desobediencia epistémica en Terapia ocupacional contemporânea. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(2), 421-427. http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.
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, é necessário construir uma perspectiva crítica reivindicando uma desobediência epistêmica e, mais largamente, a descolonização do pensamento no âmbito da terapia ocupacional, racializando suas produções, problematizações e práticas. Neste contexto, o presente estudo não tem a intenção de propor definições, precipitar-se ou esgotar um processo em construção. Trata-se, antes de tudo, de reafirmar a necessidade e relevância de investimento da categoria nos estudos e práticas no campo da cultura, pautados nos direitos culturais, epistêmicos e na justiça social em uma perspectiva decolonial.

Neste sentido, as reflexões tensionadas com base na noção de cultura como eixo articulador da prática em terapia ocupacional podem mobilizar a produção de uma nova postura diante da epistemologia do conhecimento no interior do processo de formação profissional. O terapeuta ocupacional, na perspectiva da inclusão, cidadania cultural e justiça social, deve aprofundar seu conhecimento sobre as práticas culturais e cosmovisão de grupos sociais marginalizados ou excluídos socialmente, compreendendo tais práticas na dimensão do cotidiano e no processo das lutas sociais. O estudo aponta para a necessidade de aproximação dos saberes acadêmicos e os saberes tradicionais e populares na co-construção de ações culturalmente engajadas no território. Ao remeter às populações historicamente excluídas que fizeram dos seus processos de produção de vida uma potente criação artístico-cultural que atravessa o tempo, é necessário compreender a importância histórica implicada na transmissão intergeracional de artefatos culturais imateriais presentes no corpo, na linguagem e no canto. O terapeuta ocupacional deve ser um profissional sensível para potencializar os mecanismos desta dinâmica social presente no interior das comunidades e grupos sociais excluídos, cocriando intervenções que possam resguardar o protagonismo destas produções culturais e sua visibilidade social, por meio de uma luta epistêmica que enfrente a colonialidade do poder e do saber na contemporaneidade.

  • 1
    Trabalho de pesquisa submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro com o parecer n. 2.284.759.

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Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Beatriz Prado Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2020
  • Revisado
    04 Jan 2021
  • Aceito
    22 Fev 2021
Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Terapia Ocupacional Rodovia Washington Luis, Km 235, Caixa Postal 676, CEP: , 13565-905, São Carlos, SP - Brasil, Tel.: 55-16-3361-8749 - São Carlos - SP - Brazil
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