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Encontro de mulheres poderosas: estratégia de intervenção em terapia ocupacional social com cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual1 1 Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (parecer n° 3.775.581).

Resumo

Objetivo

Este trabalho analisa a experiência de um grupo denominado “Encontro de Mulheres Poderosas” desenvolvido por terapeutas ocupacionais em um Serviço de Convivência e Fortalecimentos de Vínculos da Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social, com mulheres cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual.

Método

Trata-se de estudo retrospectivo, de caráter exploratório e descritivo, com base em análise documental dos relatos das participantes do grupo, onde foram realizadas consultas a fontes diversificadas como relatórios desenvolvidos durante as intervenções, banco de imagens e diários de campo da análise. Os dados foram interpretados através dos pressupostos teóricos e metodológicos da Terapia Ocupacional Social.

Resultados

As intervenções, por meio de rodas de conversa, oficinas de atividades temáticas e um ensaio fotográfico, promoveram um espaço de reflexão e exercício do protagonismo feminino e o fortalecimento da rede de suporte e da participação social. Foram abordadas temáticas de gênero a partir do cotidiano e das experiências de vida das participantes como: sobrecarga, machismo, crenças socioculturais, sexualidade e objetificação do corpo feminino.

Conclusões

O grupo propiciou o fortalecimento de vínculos e a criação de redes de suporte social e a (re)construção de projetos de vida que valorizaram outros papéis ocupacionais, favorecendo a desconstrução da figura estrita de mulher-mãe-cuidadora.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Assistência Social; Cuidadores; Gênero; Deficiência Intelectual

Abstract

Objective

This paper analyzes the experience of a group called “Meeting of Powerful Women” developed by occupational therapists in a Service for Coexistence and Strengthening of Bonds of Basic Social Protection of the Unified Social Assistance System, with women who are informal caregivers of people with intellectual disabilities.

Method

This is a retrospective, exploratory and descriptive study, based on document analysis of the group participants' reports, where consultations were carried out with diverse sources such as reports developed during the interventions, image bank and field diaries of the analysis. The data were interpreted through the theoretical and methodological assumptions of Social Occupational Therapy.

Results

The interventions, through conversation rounds, thematic activity workshops and a photo essay, promoted a space for reflection and exercise of female protagonism and the strengthening of the support network and social participation. Gender themes were addressed based on the participants' daily life and experiences, such as: overload, sexism, sociocultural beliefs, sexuality and objectification of the female body.

Conclusions

The group facilitated the strengthening of bonds and the creation of social support networks and the (re)construction of life projects that valued other occupational roles, favoring the deconstruction of the strict figure of woman-mother-caregiver.

Keywords:
Occupational Therapy; Welfare; Social; Caregivers; Gender; Intellectual Disability

Introdução

As mulheres podem desempenhar preponderantemente o papel de cuidadoras em situações de dependência familiar, assumindo a centralidade no gerenciamento desses cuidados e da proteção familiar, conforme apresentado neste estudo. Esta centralidade nas tarefas com a família acentua-se na figura da mulher-mãe, reforçada culturalmente pelos estereótipos de gênero no patriarcado, incluindo a omissão de outros membros da família, principalmente, da figura paterna (Wollstonecraft, 2016Wollstonecraft, M. (2016). Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo.; Santos & Oliveira, 2010Santos, S. M. M., & Oliveira, L. (2010). Igualdade nas relações de gênero na sociedade do capital: limites, contradições e avanços. Revista Katálysis, 13(1), 11-19.). Outros papéis sociais que reforçam a submissão da mulher, bem como a centralidade da vida e extensão dela, restrita ao desempenho doméstico, são apresentados por Friedan (1971)Friedan, B. (1971). Mística Feminina. Petrópolis: Editora Vozes. como crítica ao modo de vida americano no século XIX, e podem ser transpostos para os cotidianos brasileiros e as estratégias duras e sedutoras utilizadas, inclusive na contemporaneidade, para dominação de corpos e vidas. São situações e fazeres impostos de geração em geração desde a infância sobre como ser mulher e qual o espaço de prestígio que lhe é designado: o lar e os afazeres domésticos.

A discussão dos papéis sociais de mulheres na sociedade ocidental é permeada por violências, violações, repressões e opressões, e mesmo com as conquistas no campo dos direitos civis e sociais, a prática cultural ainda reproduz o modelo patriarcal justificado pela permissividade e superioridade dos homens sobre as mulheres, caracterizado pela misoginia2 2 A Misoginia é um conceito que abarca sentimentos de ódio, desprezo, preconceito, repulsa e aversão às mulheres e o que remete ao feminino. Entende-se que a misoginia pode se manifestar de diversas formas, como através da objetificação, depreciação, descrédito e vários tipos de violência contra a mulher. . Destarte, “não obstante a força e a eficácia política de todas as tecnologias sociais, especialmente as de gênero, e, em seu seio, das ideologias de gênero, a violência ainda é necessária para manter o status quo. Isso não significa adesão ao uso da violência, mas uma dolorosa constatação” (Saffioti, 2004, pSaffioti, H. I. B. (2004). Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo.. 148-149).

Os diferentes sexos são condicionados a cumprirem funções específicas e diversas, sendo essa aprendizagem um processo social, geralmente atrelado ao sexo de nascimento. As características são tratadas como se fossem de suas próprias “naturezas”, na qual a menina geralmente aprende a ser doce, passiva, altruísta e dependente; sendo esse papel oposto aquele do homem, que deve ser agressivo, ativo, competitivo e independente. Por se tratarem de construções culturais, a mulher deve exercer um papel que lhe é esperado socialmente: “ser mulher” e “aceitar” as relações de poder estabelecidas entre os sexos como naturais (Dalbeto & Oliveira, 2015Dalbeto, L. D. C., & Oliveira, A. P. (2015). Oh My Goddess: pensamentos antropológicos sobre a representação da tempestade da Marvel e o legado das mulheres negras nos quadrinhos. The Comics Grid. Journal of Comics Scholarship, 5(1), 1-5.; Weschenfelder & Colling, 2011aWeschenfelder, G. V., & Colling, A. (2011a). As super-heroínas das histórias em quadrinhos e as relações de gênero. Diálogos-Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, 15(2), 437-454.).

A incorporação da identidade materna ou a aquisição do papel materno, determinados pelos papéis sexuais em relações condicionantes, envolve atuações culturalmente definidas e exigências sociais de comportamentos esperados, de forma que a mulher assuma o papel principal do cuidado e disponibilidade, valorizando a maternidade, como sua função social (Barbosa & Rocha-Coutinho, 2007Barbosa, P. Z., & Rocha-Coutinho, M. L. (2007). Maternidade: novas possibilidades, antigas visões. Psicologia Clínica, 19(1), 163-185.; Pinquart & Teubert, 2010Pinquart, M., & Teubert, D. (2010). Effects of parenting education with expectant and new parents: a meta-analysis. Journal of Family Psychology, 24(3), 316-327.). A descoberta de um filho com deficiência acarreta mudanças mais acentuadas na identidade social da mulher do que aquela introduzida pela maternidade em si. Deixando de dedicar horas diárias ao convívio social e cuidado para si, para exercer exclusivamente o papel de mãe, relegando a um segundo plano a identidade anteriormente construída por sua história de vida e projetos (López, 2016López, R. M. M. (2016). Identidade social: mãe de autista. Revista Agenda Social, 9(2), 106-118.). Após o nascimento desse filho, ocorre uma mudança relevante nos papéis sociais da mulher, que passa a postergar suas outras ocupações de acordo com as necessidades geradas pela nova circunstância, e seu papel principal torna-se o de mãe daquele filho (Barrozo et al., 2015Barrozo, B. M., Nobre, M. I. R., & Montilha, R. C. I. (2015). As alterações nos papéis ocupacionais de cuidadores de pessoas com deficiência visual. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 26(3), 409-417.). É importante salientar que essa caracterização pode se estender às outras mulheres cuidadoras, como avós, irmãs, tias e primas.

Caracteriza-se como cuidador informal a pessoa que emprega grande parte de suas horas diárias na atividade de cuidar, assumindo a responsabilidade total ou maior parte dela pela assistência prestada à pessoa com deficiência, sendo reconhecida pelos demais membros da família como principal provedora dos cuidados, sem receber remuneração econômica (Braccialli et al., 2012Braccialli, L. M. P., Bagagi, P. dos S., Sankako, A. N., & Araújo, R. C. T. (2012). Qualidade de vida de cuidadores de pessoas com necessidades especiais. Revista Brasileira de Educação Especial, 18(1), 113-126.; Gomes et al., 2020Gomes, C. M. S., Zuqui, A. C., Schiavo, K. V., & Oliveira, J. F. P. (2020). Funcionalidade e qualidade de vida de pessoas com esclerose lateral amiotrófica e percepção da sobrecarga e apoio social de cuidadores informais. Acta Fisiátrica, 27(3), 167-173.). Ao traçar o perfil sociodemográfico e da qualidade de vida de cuidadores de pessoas com deficiência intelectual, Silva & Fedosse (2018)Silva, R. S., & Fedosse, E. (2018). Perfil sociodemográfico e qualidade de vida de cuidadores de pessoas com deficiência intelectual. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(2), 357-366. apuraram que o papel de cuidador é desempenhado predominantemente por mulheres, com média de idade acima dos 50 anos, mães, com baixo nível de escolaridade e vulneráveis economicamente, que se dedicam ao cuidado em tempo integral. Pimenta et al. (2011)Pimenta, R. A., Rodrigues, L. A., & Greguol, M. (2011). Avaliação da qualidade de vida e sobrecarga de cuidadores de pessoas com deficiência intelectual. Revista Brasileira de Ciências da Saúde, 14(3), 69-76., ao avaliarem a qualidade de vida e a sobrecarga de cuidadores informais de pessoas com deficiência intelectual, constataram que as mães obtiveram valores menores em todos os domínios da qualidade de vida mensurados em comparação com aqueles de outros familiares. Ainda, considerando o gênero, essas cuidadoras apresentaram escores inferiores aos masculinos em todos os domínios da qualidade de vida, além de relatos de alto nível de sobrecarga.

Nessa perspectiva, tais desigualdades de gênero devem ser superadas, visto que o processo de cuidar demanda responsabilidade, tempo, dedicação e instrumentalização de quem exerce tal função, acarretando prejuízo à realização de atividades cotidianas, relações sociais, acesso às redes de suporte e de participação social e a elaboração de estratégias de enfrentamento dos aspectos de sobrecarga advindos do cuidar, acentuando a vulnerabilidade social, a fragilização dos vínculos e a violação de seus direitos.

O Relatório Mundial sobre a Deficiência (World Health Organization, 2012World Health Organization - WHO. (2012). Relatório mundial sobre a deficiência. São Paulo: SEDPcD. ) aponta que, em todo o mundo, pessoas com deficiência apresentam níveis mais baixos de escolaridade, participação econômica menor, taxas de pobreza mais elevadas e piores perspectivas de saúde em comparação às pessoas sem deficiência. Para muitas pessoas com deficiência, a seguridade social e as redes de suporte são pré-requisitos para sua participação social. O documento ainda ressalta a importância dos serviços de Assistência Social, uma vez que a falta desses dispositivos pode fazer com que a pessoa com deficiência se torne extremamente dependente de suas famílias, impedindo que ambas as partes acessem seus direitos e exerçam sua cidadania.

Para promover o acesso a esses direitos sociais, existem no Brasil os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), que pautados em práticas que promovam o enfrentamento da vulnerabilidade social, compreendendo que a forma mais eficaz de realizar tal ação se dá pela socialização, promoção da autonomia e protagonismo enquanto cidadão de direito (Brasil, 2009Brasil. (2009). Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Recuperado em 11 de agosto de 2022, de http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf
http://www.mds.gov.br/webarquivos/public...
). O SCFV é um serviço inserido na Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) com a proposta de serem realizadas ações em grupo, organizadas a partir de percursos individuais e coletivos dos participantes, de modo a garantir aquisições progressivas aos seus usuários de acordo com seu ciclo de vida, a fim de complementar o trabalho social com famílias e prevenir a ocorrência de situações de vulnerabilidade e risco social (Brasil, 2017Brasil. (2017). Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Recuperado em 11 de agosto de 2022, de http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/perguntas_e_respostas/PerguntasFrequentesSCFV_032017.pdf.
http://www.mds.gov.br/webarquivos/public...
). Esse serviço é regulamentado pela Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, via Resolução CNAS nº 109/2009, reordenado por meio da Resolução CNAS nº 01/2013.

A prática de terapia ocupacional em um SCFV como o do contexto deste estudo pode promover estratégias e criar alternativas para que as pessoas com deficiência e suas famílias ampliem seu repertório ocupacional, de suas redes de suporte e de sua participação social, através de atividades significativas e facilitadoras de trocas sociais e afetivas na família e na comunidade, pautadas na valorização de seus conhecimentos e realidades.

A terapia ocupacional social utiliza recursos e tecnologias para mediar o trabalho de aproximação, acompanhamento, apreensão das demandas e fortalecimento dos sujeitos e grupos para os quais direciona sua ação (Lopes et al., 2011Lopes, R. E., Borba, P. L. de O., Trajber, N. K. de A., Silva, C. R., & Cuel, B. T. (2011). Oficinas de atividades com jovens da escola pública: tecnologias sociais entre educação e terapia ocupacional. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 15(36), 277-288.). A utilização da atividade possibilita o aprendizado e o reconhecimento de necessidades do sujeito e o desenvolvimento de sua capacidade de buscar soluções próprias e criativas, tornando a técnica dependente da interpretação e apreensão da realidade, e não o inverso (Barros et al., 2002Barros, D. D., Ghirardi, M. I. G., & Lopes, R. E. (2002). Terapia ocupacional social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 95-103.; Lopes et al., 2011Lopes, R. E., Borba, P. L. de O., Trajber, N. K. de A., Silva, C. R., & Cuel, B. T. (2011). Oficinas de atividades com jovens da escola pública: tecnologias sociais entre educação e terapia ocupacional. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 15(36), 277-288.; Silva & Malfitano, 2021Silva, M. J., & Malfitano, A. P. S. (2021). Oficinas de atividades, dinâmicas e projetos em Terapia Ocupacional Social como estratégia para a promoção de espaços públicos. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 25, 1-18.).

Este estudo apresenta os resultados e análises de uma pesquisa sobre a experiência de um grupo denominado “Encontro de Mulheres Poderosas” desenvolvido por terapeutas ocupacionais em um SCFV com mulheres cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual. Durante os encontros, utilizou-se como recurso as Histórias em Quadrinhos (HQs), consideradas uma forma de expressão artística caracterizada pela narrativa de uma história através de imagens sequenciadas com predomínio do estímulo visual (Dalbeto & Oliveira, 2015Dalbeto, L. D. C., & Oliveira, A. P. (2015). Oh My Goddess: pensamentos antropológicos sobre a representação da tempestade da Marvel e o legado das mulheres negras nos quadrinhos. The Comics Grid. Journal of Comics Scholarship, 5(1), 1-5.). O gênero literário objetiva atingir públicos econômica e socialmente diferenciados através da abordagem de temas transversais presentes na sociedade e expressados por questões socioculturais (Vergueiro, 2005Vergueiro, W. (2005). Histórias em quadrinhos e serviços de informação: um relacionamento em fase de definição. DataGramaZero: Revista de Ciência da informação, 6(2), 1-12.;Weschenfelder & Colling, 2011aWeschenfelder, G. V., & Colling, A. (2011a). As super-heroínas das histórias em quadrinhos e as relações de gênero. Diálogos-Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, 15(2), 437-454.).

A escolha das HQs como recurso apresentou significativo potencial reflexivo e de intervenção, visto que através das representações desenvolvidas nesse universo foi possível compreender a forma como a mulher era retratada e entendida pela sociedade em determinado contexto e período histórico, analisando as construções sociais criadas e impostas (Siqueira & Vieira, 2008Siqueira, D., & Vieira, M. (2008). De comportadas a sedutoras: representações da mulher nos quadrinhos. Comunicação Mídia e Consumo, 5(13), 179-197. ). Valores patriarcais e machistas que, mesmo contestados há séculos, estão latentes na sociedade contemporânea e mostram-se rígidos quanto aos papéis desempenhados pela figura feminina (Coutinho, 2010Coutinho, L. L. (2010). Antônia sou eu, Antônia é você: identidade de mulheres negras na televisão brasileira (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre. ). As HQ, enquanto gênero literário, inicialmente foram idealizadas, criadas e desenhadas por homens e para homens, sendo o papel das mulheres nelas um retrato da sociedade machista na qual eram subjugadas pelo domínio masculino, tidas como vítimas, moças indefesas e frágeis e/ou personagens secundárias que apenas auxiliavam os super-heróis (Siqueira & Vieira, 2008Siqueira, D., & Vieira, M. (2008). De comportadas a sedutoras: representações da mulher nos quadrinhos. Comunicação Mídia e Consumo, 5(13), 179-197. ; Weschenfelder & Colling, 2011aWeschenfelder, G. V., & Colling, A. (2011a). As super-heroínas das histórias em quadrinhos e as relações de gênero. Diálogos-Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, 15(2), 437-454., 2011bWeschenfelder, G. V., & Colling, A. (2011b). Histórias em quadrinhos de super-heroínas: do movimento feminista às questões de gênero. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, 8(1), 200-218.).

Com isso, esse grupo de mulheres cuidadoras foi denominado “Encontro de Mulheres Poderosas” com o propósito de ressignificar os papéis sociais de mulheres e refletir sobre o ‘ser mulher’ na contemporaneidade, o enfrentamento da sobrecarga de cuidados e a ampliação da rede de suporte social. A palavra “poderosa” remete a termos como ter poder, autonomia, liberdade, protagonismo, tornar-se empoderada, o “empoderamento” em si.

Historicamente, o termo “empoderamento” foi difundido de forma difusa, e desde o século XIX surge como entendimento de autorização, distribuição de poder, também ligado à justiça social e emancipação de mulheres, embora ainda institucionalizado, restrito a alguns espaços e pautas. Segundo Sardenberg (2008), aSardenberg, C. M. B. (2008). Liberal vs. Liberating Empowerment: a Latin American feminist perspective on conceptualising women’s empowerment 1. IDS Bulletin, 39(6), 18-27. partir da década de 1970, passa a ser caracterizado como um processo, vinculado a movimentos sociais, através do qual as mulheres desenvolvem uma consciência social e crítica e que as permitiria adquirir capacidades de ação, tanto individual quanto coletiva e com perspectiva de transformação social, o chamado Girl Power. No entanto, essas pautas foram sendo incorporadas à democracia reformista e, nessa disputa, não desempenharam o papel revolucionário de superação do capitalismo e de perspectiva de classe. Na contemporaneidade, esse termo aproxima-se ainda mais do caráter liberal empregado, muito propagado por órgãos e instituições como o Banco Mundial, vinculado ao individualismo, esforço pessoal, e passa a reforçar o status quo e garantir a continuidade das práticas dominantes e do consumismo (Sardenberg, 2008Sardenberg, C. M. B. (2008). Liberal vs. Liberating Empowerment: a Latin American feminist perspective on conceptualising women’s empowerment 1. IDS Bulletin, 39(6), 18-27., 2018Sardenberg, C. M. B. (2018). O pessoal é político: conscientização feminista e empoderamento de mulheres. Inclusão Social, 11(2), 15-29.; Moraes, 2018Moraes, L. D. C. G. (2018). O “empoderamento” como prática política feminista: Fundamentos Históricos e Ideológicos. In Anais da IV Conferência Internacional Greves e Conflitos Sociais (pp. 1-15). São Paulo: IASSC. Recuperado em 11 de agosto de 2022, de http://sinteseeventos.com.br/site/iassc/GT6/GT6-07-Livia.pdf.
http://sinteseeventos.com.br/site/iassc/...
). Neste estudo, adotamos a perspectiva do empoderamento libertador, compreendido como um processo pelo qual mulheres alcançam autonomia e autodeterminação, como um instrumento para a erradicação do patriarcado, um meio e um fim em si mesmo (Sardenberg, 2008Sardenberg, C. M. B. (2008). Liberal vs. Liberating Empowerment: a Latin American feminist perspective on conceptualising women’s empowerment 1. IDS Bulletin, 39(6), 18-27.). Essa abordagem tem como foco a organização de mulheres na ação coletiva, embora não desconsidere a importância do empoderamento em nível pessoal.

Com isso, reafirmamos esse entendimento ao termo “empoderar” como um processo individual e coletivo de superação da sociedade patriarcal e capitalista, gerador de protagonismos, liberdades, conhecimentos, acessos, equidades, participação e transformação social, mesmo compreendendo todas as limitações do contexto histórico atual apresentado. Dessa forma, este estudo analisa a experiência do grupo “Encontro de Mulheres Poderosas”, desenvolvido por terapeutas ocupacionais em um SCFV da Proteção Social Básica do SUAS, com mulheres cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual com o objetivo de verificar se as ações possibilitaram à essas mulheres ressignificarem seus papéis sociais, criarem estratégias para enfrentar a sobrecarga de cuidados, bem como, ampliar suas redes de suporte e cuidado.

Métodos

Estudo retrospectivo, exploratório e descritivo (Minayo, 2009Minayo, M. C. S. (2009). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes.), com base em análise documental (Kripka et al., 2015Kripka, R., Scheller, M., & Bonotto, D. L. (2015). Pesquisa Documental: considerações sobre conceitos e características na Pesquisa Qualitativa. Atas - Investigação Qualitativa na Educação, 2, 243-247. ), onde foram realizadas consultas a fontes diversificadas, como relatórios desenvolvidos durante as intervenções, banco de imagens e diários de campo sobre um grupo no SCFV da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de Vitória - ES, desenvolvido por terapeutas ocupacionais com mulheres cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual, denominado grupo “Encontro de Mulheres Poderosas”. A pesquisa documental foi elaborada a partir de materiais que não receberam tratamento analítico, consistindo na análise de documentos contemporâneos e retrospectivos, cientificamente autênticos, com a finalidade de descrever ou comparar fatos sociais (Pádua, 2019Pádua, E. M. M. (2019). Metodologia da pesquisa: abordagem teórico-prática. Campinas: Papirus Editora.).

Utilizou-se a abordagem qualitativa (Minayo, 2009Minayo, M. C. S. (2009). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes.) para compreender as narrativas das participantes, seu histórico de vida e participação nas atividades propostas obtidas a partir de diário de campo, registros de imagens e das informações documentadas em prontuário e através de informações disponibilizadas por meio de questionário demográfico e socioeconômico, sendo a classe econômica das participantes estimada pelo Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), as pontuações deste instrumento vão de A (45-100 pontos) a D-E (0-16 pontos) (Brasil, 2015Brasil. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa - ABEP. (2015). Critério de Classificação Econômica Brasil. Recuperado em 11 de agosto de 2022, de http://www.abep.org/criterio-brasil.
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).

Os dados coletados foram submetidos às fases fundamentais da análise de conteúdo: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação. A análise de conteúdo consiste em um conjunto de técnicas de análise das comunicações através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo, indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. ). Posteriormente, os dados foram interpretados sob os pressupostos teórico-metodológicos, em permanente construção, da terapia ocupacional social e através do diálogo acerca das discussões sobre gênero e estudo das deficiências.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (parecer nº 3.775.581), CAAE nº 22829319.1.0000.5073, conforme preconizado pelas Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (Res. CNS 466/2012 e Res. CNS 510/2016) do Conselho Nacional de Saúde.

Os dados foram coletados do material produzido e documentado a partir dos relatos dos encontros realizados no SCVF da APAE de Vitória, Espírito Santo, que presta atendimento a jovens e adultos com deficiência intelectual e seus familiares/cuidadores. Nesse serviço, os familiares/cuidadores permanecem na instituição durante o atendimento da pessoa com deficiência e participam de atividades específicas, como rodas de conversas, oficinas de culinária e cozinha experimental, hidroginástica, grupos e oficinas temáticas.

O “Encontro de Mulheres Poderosas” foi implementado por dois terapeutas ocupacionais da instituição, duas estagiárias e uma docente do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Para o estabelecimento das ações, foram identificadas, pela equipe do projeto, demandas individuais e do grupo de mulheres sobre o acesso à informação a temas emergentes com base no histórico de participação nas atividades da instituição e discussões com a equipe interdisciplinar do SCFV.

Na sequência, as intervenções dos encontros foram desenhadas e construídas através da interseccionalidade3 3 A interseccionalidade pode ser entendida como a interação entre dois ou mais fatores sociais que definem uma pessoa. Questões de identidade como gênero, etnia, raça, deficiência, sexualidade, localização geográfica ou mesmo idade, não afetam uma pessoa separadamente. dos temas: Empoderamento, processo que envolveu a aquisição de informações sobre o protagonismo feminino ao longo da história e a construção crítica e consciente da conquista de direitos sociais de mulheres; Fortalecimento da Rede de Suporte Social/Apoio, a partir da vinculação institucional e das identificações com as histórias de vida entre as participantes - favoreceu-se a construção dessa rede de suporte social, promovendo efeitos emocionais e de colaboração entre os membros do grupo; Participação Social, atuação, interação e envolvimento efetivo e organizado em ações que envolve a vida em sociedade, refletem a consciência do indivíduo acerca de sua posição em um dado contexto ou sistema social - nesse tópico foram discutidos os temas machismo, sexismo, crenças socioculturais relacionadas ao gênero, sexualidade e objetificação do corpo feminino; Construção de Projetos de Vida, de forma dialógica com as participantes - situa-se no terreno do pertencimento grupal e exercício da cidadania, referenciando o futuro através de ações projetadas. Na construção desses novos projetos de vida, foram identificadas as necessidades e desejos de redução da sobrecarga de cuidados advindos do papel excessivo de cuidador e do resgate da feminilidade, autocuidado e protagonismo, orientando o processo de elaboração e manejo de conflitos e de mudanças pessoais e sociais.

Nos encontros, foram utilizadas as metodologias Roda de Conversa - com propósito de priorizar discussões em torno das temáticas de forma dialógica, possibilitando a apresentação de elaborações pessoais e posicionamento dos participantes (Méllo et al., 2007Méllo, R. P., Silva, A. A., Lima, M. L. C., & Di Paolo, A. F. (2007). Construcionismo, práticas discursivas e possibilidades de pesquisa em psicologia social. Psicologia e Sociedade, 19(3), 26-32.), e Oficinas de Atividades (Lopes et al., 2011Lopes, R. E., Borba, P. L. de O., Trajber, N. K. de A., Silva, C. R., & Cuel, B. T. (2011). Oficinas de atividades com jovens da escola pública: tecnologias sociais entre educação e terapia ocupacional. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 15(36), 277-288.; Silva & Malfitano, 2021Silva, M. J., & Malfitano, A. P. S. (2021). Oficinas de atividades, dinâmicas e projetos em Terapia Ocupacional Social como estratégia para a promoção de espaços públicos. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 25, 1-18.) - através de recursos como a contação de história, criação de personagem, costura de figurino e fotografia, aliadas aos pressupostos teórico metodológicos da terapia ocupacional social.

As ações foram desenvolvidas por meio de quatro grupos, totalizando 16 momentos, sendo quatro encontros por grupo, com duração aproximada de uma hora e meia, com intervalo médio de quinze dias, entre setembro e dezembro de 2018. O convite para participar dos encontros foi realizado pessoalmente pelos profissionais de terapia ocupacional na sala de espera dos familiares em diferentes turnos através de cartazes e por meio digital em aplicativo de conversa no grupo do SCFV.

Resultados e Discussão

A partir dos encontros foi possível mapear o perfil das participantes: mulheres com idades entre 23 e 82 anos (média 55 anos e 7 meses), 87,0% mães, 6,5% avós e 6,5% irmãs de pessoas com deficiência intelectual, num total de 32 participantes. Estado civil: 36,0% solteiras, 32,0% casadas, 16,0% divorciadas e 16,0% viúvas. Escolaridade: 48,1% Ensino Médio completo, 18,4% Ensino Fundamental I, 14,8% Ensino Fundamental II, 3,7% Ensino Superior, 3,7% Curso Técnico e 3,7% Ensino Médio incompleto. Profissão: 51,8% trabalhadoras do lar, 18,5% autônomas, 11,1% desempregadas, 3,7% estudantes, 3,7% professoras e 3,7% pensionistas.

A classe econômica estimada através do Critério de Classificação Econômica Brasil demonstrou que 48,4% das participantes correspondem à classe C2, 29,6% à classe C1, 24,1% à classe D-E, e 6,9% à classe B2. A média de idade dos filhos/familiares com deficiência intelectual foi de 26 anos e 6 meses. Os dados socioeconômicos das participantes corroboram os estudos de Silva & Fedosse (2018)Silva, R. S., & Fedosse, E. (2018). Perfil sociodemográfico e qualidade de vida de cuidadores de pessoas com deficiência intelectual. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(2), 357-366. e Barrozo et al. (2015)Barrozo, B. M., Nobre, M. I. R., & Montilha, R. C. I. (2015). As alterações nos papéis ocupacionais de cuidadores de pessoas com deficiência visual. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 26(3), 409-417. no que se refere a predominância de mulheres adultas e idosas que desempenham o papel de cuidadoras informais da família. Isso ocorre em razão da proximidade parental, física e afetiva e do fato de ser mulher. Além disso, os dados apresentam consonância com relação ao nível de escolaridade e classe econômica mais baixa das cuidadoras informais, evidenciando a interseccionalidade entre as questões de gênero e classe postas como expressão da questão social nesses contextos de desigualdades, podendo somar-se à questão de raça em muitos dos casos (Collins, 2017Collins, P. H. (2017). Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, 5(1), 6-17.).

Durante as oficinas de atividades, destaca-se a utilização das HQs como mediadora para reflexões sobre a criação de estratégias e ferramentas de enfrentamento da vulnerabilidade social e promoção de protagonismos. O uso de HQs auxiliou o desenvolvimento dos temas e facilitou a compreensão da representação feminina, relacionada às construções sociais impostas por valores patriarcais e machistas (Coutinho, 2010Coutinho, L. L. (2010). Antônia sou eu, Antônia é você: identidade de mulheres negras na televisão brasileira (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre. ).

No primeiro encontro, foram realizadas apresentações individuais da equipe e das participantes na roda de conversa, motivando-se a discussão relacionada ao nome do grupo associada a temas como movimento feminista, culto ao corpo feminino e o universo das super-heroínas nas HQs. Dessa forma, observou-se que as participantes foram convidadas para conhecer a proposta do grupo por identificação, por se sentirem mulheres que deveriam ser reconhecidas e valorizadas pelos papéis sociais exercidos, ou por não se sentirem pertencentes ao que é exigido socialmente para que sejam consideradas mulheres poderosas. Algumas relatam terem sido atraídas pelo nome do projeto, por curiosidade:

Fiquei curiosa com o cartaz e queria saber como é uma Mulher Poderosa. (Poderosa 6).

Outras participantes relataram considerar-se poderosas no cotidiano por terem muitas tarefas a cumprir, incluindo o fato de serem mães de pessoas com deficiência:

Toda mãe de uma pessoa com deficiência é uma mulher poderosa, uma verdadeira heroína. (Poderosa 11).

Acrescentaram ainda falas relacionadas aos padrões de beleza estéticos aos quais não se sentem pertencentes, como processos químicos para alisamento de cabelo e corpos musculosos e esculturais:

Eu não preciso ser toda ‘saradona’ e musculosa pra me sentir poderosa (Poderosa 2).

Só em sonho um corpo desses. (Poderosa 16).

Eu não pinto mais, gosto do meu cabelo branco. (Poderosa 18).

Amo meu pixaim. (Poderosa 22).

Essas participantes relataram baixa autoestima ao se sentirem afetadas pelos rótulos e padrões de beleza reproduzidos pela mídia, presentes em comerciais de cervejas e carros, expondo o corpo feminino visando atingir o público masculino.

Ainda discutiram sobre a expressão da cultura machista, relataram os entraves para exercer a participação social, inclusive no ambiente familiar, onde têm ou já tiveram dificuldade em se posicionar, na condição de submissão, com ausência de fala nas relações afetivas, gerando arrependimento em algumas delas, fazendo-se necessário sua expressão, o “dar-se voz”, de acordo com elas, para o próprio bem-estar, e em alguns casos permitindo brechas nas relações familiares, abrindo outras possibilidades relacionais:

Homem nenhum manda em mim. (Poderosa 6).

Eu o coloco no seu devido lugar. (Poderosa 3).

Durante o segundo encontro, foram abordadas ainda por meio da roda de conversa as histórias de mulheres do universo das HQs, como Mulher Maravilha, Mulher Gavião, Batwoman, Tempestade, Vampira, Jean Grey, Viúva Negra, dentre outras comparadas às personalidades femininas do contexto brasileiro, como a atriz e cantora Carmen Miranda, a futebolista Marta Silva, a militar Maria Quitéria, a comunicadora Hebe Camargo, Princesa Isabel, Maria da Penha, Marielle Franco e personalidades regionais como a capixaba Maria Ortiz, além de Madre Tereza de Calcutá. Essa discussão, mediada por narrativas das histórias de personagens e figuras públicas, oportunizou às participantes realizarem questionamentos sobre o cotidiano de uma heroína e o de uma mulher no dia-a-dia, de forma a abordar os papéis socialmente esperados e desempenhados por ambas e suas superações.

Um comentário que se destacou em relação ao desconhecimento da maioria das participantes foi a discrepância salarial existente entre homens e mulheres no exercício de uma mesma função. Essa discussão foi vinculada à divulgação através da mídia sobre o salário inferior recebido pela atriz principal do filme “Mulher Maravilha” quando comparado aos valores de protagonistas de outros títulos do universo DC Comics. Parte das participantes demonstraram espanto e insatisfação com a situação exposta e desabafaram:

Eu achava que esse tipo de coisa só acontecia no Brasil, não acho justo ela ganhar menos, ela teve que fazer muita coisa pra conseguir esse papel, aprender a lutar, correr riscos. (Poderosa 9).

Adentrando temas sobre as lutas e conquistas do movimento feminista, muitas das participantes associaram as alterações na dinâmica familiar, a divisão das tarefas domésticas, a violência conjugal, a culpabilização da mulher e/ou o abandono das responsabilidades paternas quando é descoberto que o filho possui alguma deficiência:

Ele fala que a obrigação de cuidar é minha, pois sou a mãe. (Poderosa 14).

Meu marido não joga nada na minha cara, mas também não ajuda a cuidar. (Poderosa 23).

Hoje sou sozinha pra cuidar do meu filho, mas quando tinha marido ele também não ajudava. (Poderosa 7).

É sua obrigação fazer isso. (Poderosa 3).

Me arrependo de não ter exigido mais e de não ter deixado outros familiares participarem do cuidado. (Poderosa 11).

Historicamente, a ação de cuidar dos filhos sempre foi tida como feminina em razão dos estereótipos de gênero associados à figura da mulher-mãe-cuidadora, detentora de habilidade e maestria para realizar tarefas que envolvessem movimentos finos associados às características de bondade infinita e paciência (Figueiredo et al., 2018Figueiredo, M. O., Zambulim, M. C., Emmel, M. L. G., Fornereto, A. P. N., Lourenço, G. F., Joaquim, R. H. V. T., & Barba, P. D. (2018). Terapia ocupacional: uma profissão relacionada ao feminino. Historia, Ciencias, Saude--Manguinhos, 25(1), 115-126.).

Na relação cuidado-paternidade, alguns autores sinalizam que, além do abandono de forma direta, quando o homem não aceita a realidade do nascimento do filho com deficiência por causa da idealização realizada durante a gestação, pode ocorrer o abandono indireto, que é quando os pais não sabem como agir em relação ao cuidado por ser uma atividade pouco designada aos homens, optando pela ausência, de forma que a responsabilidade se torna somente das mães (Silva et al., 2019Silva, E. M., Bernardes, R., Chicon, J. F., Oliveira, I. M. D., & Sá, M. G. C. S. (2019). Ser mulher cuidadora de pessoas com deficiência à luz da categoria gênero: reflexões a partir de um projeto de ensino/pesquisa/extensão no campo da educação física. Educación Física y Ciencia, 21(1), 11-12.). Nesses casos, os homens têm internalizado o modelo dominante de família, no qual as mães devem ser responsáveis pelo cuidado dos filhos e os pais pela provisão material (Henn & Sifuentes, 2012Henn, C. G., & Sifuentes, M. (2012). Paternidade no contexto das necessidades especiais: revisão sistemática da literatura. Paidéia, 22(51), 131-139.).

A partir dos questionamentos e reflexões suscitadas através das rodas de conversas, foi sugerido, no terceiro encontro, uma oficina de atividades com a proposta de criar e materializar novas super-heroínas que representassem as mulheres participantes, contemplando elementos identitários como nome, personalidade, habilidades/poderes, aparência física e vestimentas, disponibilizando cartolina, tecidos, missangas, tintas, lápis, linhas, entre outros materiais para a sua confecção.

Durante esse encontro, houve trocas de experiências e imersões das participantes baseadas nas práticas de cuidado com o membro familiar com deficiência, da centralidade dos cuidados familiares, acrescidos de relatos de sobrecarga física e emocional. Silva & Fedosse (2018)Silva, R. S., & Fedosse, E. (2018). Perfil sociodemográfico e qualidade de vida de cuidadores de pessoas com deficiência intelectual. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(2), 357-366. apontam que o papel predominantemente de cuidadora exercido por mulheres pode acarretar sobrecarga e predisposições a riscos de agravamento de fragilidades relacionadas a saúde mental, como depressão, estados emocionais negativos, distúrbios de comportamento e insônia. A maioria das participantes vivencia ou já vivenciou situações de estresse decorrente do exercício da função de cuidadora em tempo integral, além dos seus afazeres domésticos, representando uma significativa carga extra de trabalho. Elas ainda atrelam a esse cotidiano de sobrecarga relatos de violências verbais sofridas no ambiente doméstico, de contexto cultural machista, que influenciam diretamente suas realidades. É relevante ressaltar que a cidade de Vitória é uma das capitais brasileiras com maior incidência de violência contra a mulher, sendo o machismo uma realidade cultural capixaba (Waiselfisz, 2015Waiselfisz, J. J. (2015). Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília: Flacso.).

A Figura 1 mostra o processo de engajamento na criação das super-heroínas e a apresentação de suas características.

Figura 1
Processo de criação e apresentação das super-heroínas durante o Encontro de Mulheres Poderosas.

A partir dos encontros, as participantes desenvolveram quatro super-heroínas, intituladas: Mulher Guerreira - caracterizada por ser ativa 24 horas ao dia, possuir punhos de aço, possibilitando cruzar os braços e aproximar os membros de uma família, ter o poder de promover proteção e socialização aos filhos, com premonições e supervisão em alusão a visão de águia; Maria de Fátima - possui uma personalidade forte, é inteligente, perseverante, corajosa, estrategista e poderosa, sendo uma mulher de atitude com poder de liberdade, vence todos os obstáculos e adversidades, carrega em mãos os direitos da mulher; Deusa do Amor - possui como características a feminilidade, seu poder é lutar para combater situações de agressões físicas e verbais, é defensora dos relacionamentos amorosos; Nega Maluca - em alusão à boneca de pano por conta de suas características “excêntricas e marcantes”(Poderosa 3), escolhendo traços que referiram se assemelhar a elas, da necessidade de representatividade, como cabelo “cacheado”(Poderosa 11), “nariz de barraca” (Poderosa 6), peças como calcinha “fio-dental”(Poderosa 9), bijuterias grandes e uma tatuagem com símbolo do feminismo no ombro esquerdo, seu poder é ser o que quiser, representando sua autonomia.

Durante todo o processo, as participantes conversaram entre si sobre a super-heroína que estava sendo criada, em relação à aparência e características pessoais, de forma a estabelecer e/ou consolidar um vínculo, suscitando questões do seu cotidiano e identificações. Em alguns grupos, a construção demandou mais de algumas participantes que de outras, que algumas vezes assumiram postura passiva, sendo necessário a intervenção da equipe de terapia ocupacional para proporcionar as interações. A realização coletiva da proposta permitiu momentos de troca de experiências e de acolhimento pelo grupo, a construção de vínculos de amizade durante o processo e sentimentos de representatividade em relação ao resultado final.

O debate sobre o gênero feminino se deu de forma intensa nos grupos, visto que todas as participantes sofrem com algum aspecto da ditadura da beleza, sendo retratadas nas HQs mulheres irreais, pois passam a habitar os quadrinhos a partir de uma projeção masculina sobre os modelos reivindicados pelas mulheres, acentuando cinturas finas e curvas, bustos e quadris fartos, reforçando ideais de beleza entre jovens, pautados na erotização da super-heroína, uma vez que estão estereotipadas, objetificando as mulheres (Dalbeto & Oliveira, 2015Dalbeto, L. D. C., & Oliveira, A. P. (2015). Oh My Goddess: pensamentos antropológicos sobre a representação da tempestade da Marvel e o legado das mulheres negras nos quadrinhos. The Comics Grid. Journal of Comics Scholarship, 5(1), 1-5.; Vergueiro, 2005Vergueiro, W. (2005). Histórias em quadrinhos e serviços de informação: um relacionamento em fase de definição. DataGramaZero: Revista de Ciência da informação, 6(2), 1-12.). Os super-heróis são produtos do inconsciente, e a partir deles é possível enxergar os valores dominantes de uma sociedade e época, denuncia-se a hipersexualização nos quadrinhos atuais, trazendo uma reivindicação por maior representação feminina nas mídias que retratem outros papéis, características e valores, diferentes dos disseminados pelo machismo, pois essas representações acabam por reforçar somente o padrão de beleza juvenil e sensual. A construção de identidades é considerada individual, mas elas são também socialmente construídas, podendo ser modificadas quando influenciadas por outras representações e, por meio delas, auxiliar a sociedade a longo prazo a mudar pensamentos e minimizar desigualdades de gênero (Coutinho, 2010Coutinho, L. L. (2010). Antônia sou eu, Antônia é você: identidade de mulheres negras na televisão brasileira (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre. ; Siqueira & Vieira, 2008Siqueira, D., & Vieira, M. (2008). De comportadas a sedutoras: representações da mulher nos quadrinhos. Comunicação Mídia e Consumo, 5(13), 179-197. ).

A partir da elaboração e criação das super-heroínas que representassem os grupos, foram realizados ensaios fotográficos, utilizados como recurso, na oficina de atividades no quarto encontro. A materialização dos figurinos foi efetivada a partir dos croquis produzidos pelas participantes, confeccionados através da colaboração de uma educadora social do SCFV que possui formação em moda. Durante essa oficina, os figurinos foram disponibilizados em manequins acompanhados de adereços das personagens criadas para que as participantes pudessem escolher e se produzir, promovendo assim uma maior aproximação e ressignificação do conceito de super-heroína.

Nesse encontro foram disponibilizadas as quatro roupas das super-heroínas para todos os grupos, além de capas extras e a realização de ajustes quando necessários. Nesse momento, observou-se a vontade das participantes de conhecer as heroínas criadas por outros grupos, destacando diferentes características pessoais e de representação na escolha das vestimentas e adereços, experimentando as vestimentas e caracterizando-se de forma lúdica e teatral aos elementos identitários das super-heroínas criadas. A oficina de atividades possibilitou a redescoberta de outros papéis sociais através de tais vestimentas que valorizaram características eleitas pelas participantes e assim puderam perceber-se como mulheres e heroínas dos e nos cotidianos, promovendo a autoestima e a participação social através do exercício de empoderamento feminino. A Figura 2 mostra o processo fotográfico do encontro.

Figura 2
Ensaio fotográfico durante o Encontro de Mulheres Poderosas.

Mesmo a sociedade definindo através de processos socioculturais e midiáticos padrões de beleza inalcançáveis, as participantes demonstraram satisfação e espanto ao observarem suas imagens na tela da câmera durante o ensaio:

Essa sou eu? Essa câmera faz milagre? (Poderosa 16).

Não sabia que a câmera já fazia o photoshop! (Poderosa 6).

Meninas, olha como nós ficamos bonitas nas fotos mesmo cheias de pelancas - risos. (Poderosa 21).

Meu filho tem 32 anos e há 30 estou na APAE, nunca tive um momento como esse aqui. (Poderosa 26).

Minha família nem vai acreditar que sou eu nestas fotos, nós ficamos muito sexy - risos. (Poderosa 16).

De acordo com Barros (2004), aBarros, D. D. (2004). Terapia ocupacional social: o caminho se faz ao caminhar. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 15(3), 90-97. terapia ocupacional social tem a cidadania como eixo de seu escopo e encontra em seu campo de atuação um olhar especificamente voltado para os sujeitos, o fazer humano e as significações e ressignificações desse fazer no cotidiano, o que significa pensar como compreender essas vivências, exigindo uma construção, desconstrução e reconstrução constante sobre como os processos normativos incidem nas formas de viver. Inicialmente, algumas participantes mostraram-se animadas e desinibidas e outras tímidas e/ou envergonhadas com a proposta, não demonstrando tanta intimidade com a câmera. Entretanto, ao observarem-se nas fotos na tela da câmera, as mulheres demonstraram entusiasmo e alegria, algumas exibindo alterações de postura e atitudes quando vestidas com cada uma das roupas, incentivando umas às outras a se vestirem de heroínas e a experienciar diferentes papéis.

Durante o ensaio houve sugestões de fotos individuais e em grupo, como também de poses estimulando a interação entre elas, visto que essa interação ocorreu na frente e por trás das câmeras, assim, sentiram-se mais confiantes e confortáveis consigo mesmas. A compreensão da deficiência como um termo entrelaçado na interseccionalidade de raça, gênero, sexualidade e classe a localiza como uma construção social e histórica, pautada em uma norma também social e histórica (Clímaco, 2020Clímaco, J. C. (2020). Análise das construções possíveis de maternidades nos estudos feministas e da deficiência. Revista Estudos Feministas, 28(1), 1-17.). É relevante considerar como marcadores sociais da diferença, além do gênero e da sexualidade, a deficiência e a interseccionalidade que reforça as dinâmicas de marginalização desses sujeitos, tais como raça, geração, etnia, religião, classe social, entre outros (Melo, 2016Melo, K. M. M. (2016). Terapia Ocupacional Social, pessoas trans e Teoria Queer:(re) pensando concepções normativas baseadas no gênero e na sexualidade. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(1), 215-223.). Historicamente, o patriarcado operou de maneira a separar os indivíduos em normais e anormais. Mães de pessoas com deficiências apontam que a instituição da maternidade patriarcal as interpela de maneira distinta, pois não são compelidas, mas desestimuladas a se reproduzirem e a cuidarem, vivenciando uma maternidade normativa (Clímaco, 2020Clímaco, J. C. (2020). Análise das construções possíveis de maternidades nos estudos feministas e da deficiência. Revista Estudos Feministas, 28(1), 1-17.). As mulheres do mundo real podem sofrer com problemas de autoestima e autoaceitação por não se encaixarem em padrões sociais impostos e muitas vezes por serem estigmatizadas em razão da deficiência do familiar, classe e cor. A fotografia pode ser um instrumento de empoderamento feminino e de elevação de autoestima se utilizada de maneira a ressignificar padrões e a valorizar a diversidade dessas mulheres.

Nesse encontro, o ensaio fotográfico foi utilizado a partir de embasamento teórico para oportunizar maior representatividade para todas as mulheres participantes, possibilitando, através da ressignificação dos papéis sociais, a aceitação de seus próprios corpos e aparências, além de reflexões sobre a invisibilidade e desprezo de tudo que culturalmente é associado ao feminino e a supervalorização do que é associado ao masculino, resultando na dominação dos homens sobre as mulheres tanto em nível familiar quanto na sociedade em geral. A terapia ocupacional deve amparar-se em estratégias de participação social, buscando a dimensão de uma prática que extrapole os limites do sujeito individual, dimensionando a urgência de intervenções pautadas no coletivo, na estrutura e no trânsito social (Melo, 2016Melo, K. M. M. (2016). Terapia Ocupacional Social, pessoas trans e Teoria Queer:(re) pensando concepções normativas baseadas no gênero e na sexualidade. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 24(1), 215-223.). As Figuras 3 e 4 apresentam as fotos realizadas nas sessões e editadas para proporcionar a imersão das participantes no universo das HQs.

Figura 3
Fotos individuais do ensaio fotográfico realizado.
Figura 4
Fotos coletivas do ensaio fotográfico realizado.

A partir da sessão fotográfica realizada, as participantes puderam olhar sobre si mesmas, seus próprios corpos e identidades. Essa atividade resgatou o cotidiano dessas cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual, incentivando sua autodescoberta, autoconhecimento e potencializando sua identidade feminina, visto que a edição das fotos se manteve voltada apenas à imersão no universo das HQs, não alterando a imagem corporal das participantes.

As fotos foram divulgadas com a autorização das participantes através de mídias sociais, no jornal institucional do setor e apresentadas na sala de espera dos familiares. Na ocasião, foram apresentadas todas as fotos finalizadas, oportunizando elogios mútuos, reconhecimento de mulheres de outros turnos que participaram da proposta, e o estreitamento de vínculos, além de possibilitar que elas se perceberem a partir de uma nova perspectiva. As ações da terapia ocupacional social devem articular os níveis macro e microssociais, discutindo a disponibilização de redes de serviços intersetoriais que ampliem a conscientização/participação da comunidade e dos sujeitos no processo de resolução de problemas, contribuindo para a ressignificação dos espaços públicos e institucionais, promovendo experiências de acesso e de novos modos de fazer (Monzeli, 2013Monzeli, G. A. (2013). Em casa, na pista ou na escola é tanto babado: espaços de sociabilidade de jovens travestis (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. ).

A realização da proposta possibilitou a leitura do cotidiano dessas mulheres, facilitou as intervenções e criou um espaço de trocas, afetos e fortalecimento das suas redes pessoais e sociais de suporte. O eixo central das ações de terapia ocupacional social é a elaboração de estratégias para a criação e/ou fortalecimento das redes sociais de suporte a sujeitos em contextos de vulnerabilidade, norteadas pelo direito à cidadania (Barros et al., 2002Barros, D. D., Ghirardi, M. I. G., & Lopes, R. E. (2002). Terapia ocupacional social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 13(3), 95-103.; Lopes et al., 2011Lopes, R. E., Borba, P. L. de O., Trajber, N. K. de A., Silva, C. R., & Cuel, B. T. (2011). Oficinas de atividades com jovens da escola pública: tecnologias sociais entre educação e terapia ocupacional. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 15(36), 277-288.). Como estratégia de ação prático-profissional, a terapia ocupacional social tem desenvolvido e utilizado recursos e tecnologias sociais e metodologias participativas de trabalho pautados em ações que buscam oferecer espaços protegidos de convivência e pertencimento (Silva & Malfitano, 2021Silva, M. J., & Malfitano, A. P. S. (2021). Oficinas de atividades, dinâmicas e projetos em Terapia Ocupacional Social como estratégia para a promoção de espaços públicos. Interface: Comunicacao, Saude, Educacao, 25, 1-18.). Nesse sentido, a elaboração das atividades desenvolvidas durante o “Encontro de Mulheres Poderosas”, voltadas à realidade e a partir de características físicas, emocionais e sociais das participantes contribuíram para identificar outros papéis sociais, principalmente voltados ao feminino, possibilitando o reconhecimento e a ressignificação das vivências cotidianas. Adicionado a desconstrução da figura da mulher no papel de mulher-mãe-cuidadora. Viabilizado através da construção de novos projetos de vida que valorizam o autocuidado e o protagonismo, acrescido a desconstrução de crenças socioculturais do patriarcado relacionadas ao gênero. Consideramos, ainda, que as atividades desenvolvidas foram utilizadas nesse contexto como instrumento para a emancipação sócio-política, cultural e afetiva das participantes.

Considerações Finais

Este estudo apontou que as mulheres são as principais cuidadoras informais do familiar com deficiência intelectual, estão em idade avançada, possuem mais de duas décadas de dedicação a essa atividade e pertencem a classes economicamente mais baixas. Dessa forma, reafirmamos a importância de intervenções voltadas à realidade das participantes a fim de prevenir situações de vulnerabilidade social as quais estão susceptíveis. O “Encontro de Mulheres Poderosas” proporcionou o exercício do empoderamento feminino às participantes através da discussão e elaboração de temas referentes às crenças socioculturais relacionadas a gênero, sexualidade e direitos das mulheres, promovendo a desconstrução da figura estritamente mulher-mãe-cuidadora. Essa ressignificação possibilitou a criação de estratégias de enfrentamento da sobrecarga de cuidados acarretada pela dedicação predominante ao membro familiar com algum grau de dependência e a ampliação da participação social e do acesso às redes de suporte social.

Ressaltamos que as ações, recursos e tecnologias empregados pela equipe de terapia ocupacional na condução do grupo estavam em consonância com os objetivos do Serviço de Convivência e Fortalecimentos de Vínculos e com os princípios do Sistema Único de Assistência Social. Dessa forma, acreditamos que este estudo pode nortear o raciocínio profissional de outros terapeutas ocupacionais no acompanhamento socioassistencial de mulheres cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual.

Um fator limitante deste estudo é a ausência de participação de outros familiares nas atividades propostas. Em intervenções futuras, almeja-se incluir outros membros do núcleo familiar, principalmente os do sexo masculino, que, por causa dos estereótipos culturais de gênero, geralmente omitem sua participação no cuidar do familiar com deficiência, bem como no ambiente doméstico, sendo fator expressivo na sobrecarga das tarefas cotidianas das cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual.

  • 1
    Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (parecer n° 3.775.581).
  • 2
    A Misoginia é um conceito que abarca sentimentos de ódio, desprezo, preconceito, repulsa e aversão às mulheres e o que remete ao feminino. Entende-se que a misoginia pode se manifestar de diversas formas, como através da objetificação, depreciação, descrédito e vários tipos de violência contra a mulher.
  • 3
    A interseccionalidade pode ser entendida como a interação entre dois ou mais fatores sociais que definem uma pessoa. Questões de identidade como gênero, etnia, raça, deficiência, sexualidade, localização geográfica ou mesmo idade, não afetam uma pessoa separadamente.
  • Como citar: Gomes, C. M. S., Schiavo, K. V., Nascimento, A. P. C., & Macedo, M. D. C. (2023). Encontro de mulheres poderosas: estratégia de intervenção em terapia ocupacional social com cuidadoras informais de pessoas com deficiência intelectual. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31(spe), e3402. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO260834021
  • Fonte de Financiamento

    Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Vitória - ES.

Referências

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Editado por

Editora Convidada

Profa. Dra. Rosângela Gomes da Mota de Souza

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2022
  • Revisado
    19 Ago 2022
  • Revisado
    31 Jan 2023
  • Aceito
    10 Mar 2023
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