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Terapia ocupacional e socioeducação: uma trajetória institucional de acompanhamento de adolescentes e jovens durante quatro décadas

Resumo

O Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas (COMEC), uma organização da sociedade civil, tem adotado, como pilares de atendimento, desde sua fundação em 1980, a garantia dos princípios fundamentais dos direitos humanos e o fomento da socioeducação como ferramenta de intervenção e transformação. Sua história de atendimento em meio aberto de adolescentes e jovens em conflito com a lei e suas famílias precede as premissas e diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), do Sistema Único de Assistência Social e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. O COMEC se tornou uma referência no município de Campinas, SP, Brasil na execução das medidas socioeducativas de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), por meio do desenvolvimento de um trabalho sólido no campo da assistência social. Este estudo tem a finalidade de apresentar a trajetória da atuação da terapia ocupacional no COMEC de 1984 a 2022, por meio de uma parceria de ensino-extensão universitária realizada pelo Curso de Graduação em Terapia Ocupacional da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, SP. Desde então, terapeutas ocupacionais têm composto as equipes técnicas de LA e PSC como profissionais de referência essenciais para o desenvolvimento desse trabalho, bem como assumido atividades de gestão. A terapia ocupacional tem contribuído de modo potente e diversificado para a oferta de acompanhamento a adolescentes, jovens e famílias e tem acumulado experiências na execução de medidas socioeducativas que podem contribuir para seus repertórios de ação.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Adolescente; Vulnerabilidade Social

Abstract

The Adolescent Guidance Center of Campinas (COMEC), a civil society organization, has adopted, as pillars of assistance since its foundation in 1980, the guarantee of the fundamental principles of human rights and the promotion of social education as a tool of intervention and transformation. Its history of providing open-setting follow-up for adolescent and young offenders and their families precedes the assumptions and guidelines of the Statute of the Child and Adolescent (ECA) of the Unified Social Assistance System and the National Socio-Educational Assistance System. COMEC has become a reference in the municipality of Campinas, state of São Paulo, Brazil in the execution of socio-educational measures of Assisted Liberty (AL) and Provision of Services to the Community (PSC) through the development of solid work in the field of social assistance. This study aims to present the trajectory of occupational therapy at COMEC from 1984 to 2022 through a university teaching-extension partnership conducted by the Occupational Therapy Course of the Pontifical Catholic University of Campinas. Since then, occupational therapists have composed the technical teams of AL and PSC as essential reference professionals to develop this work, as well as assumed management activities. Occupational therapy has contributed, in a powerful and diversified way, to offer a follow-up to adolescents, young people, and their families, and has accumulated experiences in the execution of socio-educational measures that can contribute to its repertoires of action.

Keywords:
Occupational Therapy; Adolescent; Social Vulnerability

Introdução

Este relato de experiência apresenta a atuação da terapia ocupacional junto a adolescentes, jovens e suas famílias no Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas (COMEC) ao longo de 38 anos. Abordar a trajetória de um serviço por quase quatro décadas requer situar sua interlocução com políticas sociais e legislações distintas, que foram sendo implementadas conforme a conjuntura sociopolítica do país.

O COMEC é uma organização da sociedade civil (OSC) fundada em 1980, na vigência da Política Nacional do Bem-Estar do Menor (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor, 1973Fundação Nacional do Bem Estar do Menor - FUNABEM. (1973). Política Nacional do Bem-Estar do Menor em Ação. Rio de Janeiro: FUNABEM.) e do 2º Código de Menores (Brasil, 1979Brasil. (1979, 10 de outubro). Lei nº. 6697 de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 16 de junho de 2022, de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6697.htm
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), que implantou a Doutrina da Situação Irregular (Mendez & Costa, 1994Mendez, E. G., & Costa, A. C. G. (1994). Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros.) e definiu medidas aplicáveis pela autoridade judiciária que previa, além da liberdade assistida e da semiliberdade, “a internação em estabelecimento educacional, ocupacional, psicopedagógico, hospitalar, psiquiátrico ou outro adequado” (Brasil, 1979Brasil. (1979, 10 de outubro). Lei nº. 6697 de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 16 de junho de 2022, de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6697.htm
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). Essa Doutrina institucionalizou amplamente crianças e adolescentes dos segmentos populares. No Estado de São Paulo, isso ocorreu nas dependências da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) (Trassi, 2006Trassi, M. L. (2006). Adolescência-violência: desperdícios de vidas. São Paulo: Cortez.). Apesar de criado nessa conjuntura histórica, o COMEC assumiu orientação contra-hegemônica, visando produzir um movimento de resistência à referida doutrina. Estabeleceu, assim, propostas de ação — que seguem aos dias atuais — com valores sólidos de garantia de direitos, tendo como primazia evitar a institucionalização, garantir os princípios fundamentais dos direitos humanos e cultivar a socioeducação como ferramenta de intervenção e transformação. Nesse sentido, ofereceu inicialmente programas de atenção em meio aberto a adolescentes da comunidade e em conflito com a lei, cumprindo medida de liberdade assistida, bem como acompanhamento familiar.

Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Brasil, 1990Brasil. (1990, 13 de julho). Lei no. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1.), no contexto da reestruturação das políticas sociais pós-constitucionais, o COMEC fez fácil interlocução com as premissas da nova legislação. O ECA, que se pautou na Doutrina Proteção Integral, definiu dispositivos legais e políticos para afirmar os direitos de crianças e adolescentes e estabeleceu orientações para planejar e executar medidas protetivas e socioeducativas (MSE). Após a modificação de alguns de seus dispositivos, a versão atual inclui orientação e apoio sociofamiliar, apoio socioeducativo em meio aberto, colocação familiar, acolhimento institucional, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade, internação, entre outras. Em consonância com os pressupostos do ECA, o COMEC passou a realizar propostas variadas que incluíam: atenção comunitária a crianças, adolescentes e famílias; projetos de Educação para o Trabalho, de acordo com a Lei do Aprendiz (Brasil, 2000Brasil. (2000, 19 de dezembro). Lei nº 10.097, de 19 de dezembro de 2000. Altera dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 16 de junho de 2022, de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10097.htm
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); execução de MSE de Liberdade Assistida (LA) e, desde 2007, da medida de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). Atualmente, através de Termo de Colaboração com a Secretaria Municipal de Assistência Social de Campinas, o COMEC é executor das MSE de LA e PSC, que têm sido sustentadas pelas regulamentações do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (Brasil, 2011Brasil. (2011). Lei nº 12.435 de 06 de julho de 2011. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 13 de junho de 2023, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12435.htm
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) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) (Brasil, 2012Brasil. (2012, 18 de janeiro). Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nºs 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 16 de junho de 2022, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm
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). A interlocução com o sistema de justiça, em particular com o Ministério Público e a Vara da Infância e Juventude de Campinas, tem sido uma relação de construção contínua e necessária para qualificar o trabalho. Da mesma forma, articular sua execução em consonância com a Política Nacional de Assistência Social tem permitido ampliar as interlocuções com a rede intersetorial.

O COMEC é composto por uma equipe de 25 técnicos: quatro assistentes sociais, 10 psicólogos, sete terapeutas ocupacionais, um pedagogo, um cientista social e dois educadores sociais. Há equipes distintas e unidades próprias para a execução das MSE de LA e PSC. O trabalho em equipe adota organização transdisciplinar iniciada na década de 1990, que supera o modelo de atendimento por categoria profissional e possibilita a construção de um trabalho comum para vincular os adolescentes e jovens às propostas oferecidas. Seu trabalho tem dialogado com as perspectivas teórico-metodológicas próprias de cada tempo. Inicialmente, apoiou-se no ideário preventivista que, com seus discursos, práticas e políticas, afirmava a importância de programas comunitários para prevenir processos de marginalização social, tal como o Plano de Integração do Menor Carente à Comunidade implementado em municípios brasileiros (Galheigo, 1996Galheigo, S. M. (1996). Juvenile Policy-Making, Social Control and the State in Brazil: a study of laws and policies from 1964 to 1990 (Tese de doutorado). United Kingdom: The University of Sussex.). Com a redemocratização da sociedade brasileira, a concepção da proteção integral e da afirmação dos direitos de crianças e jovens passou a orientar os programas de proteção e MSE desenvolvidos pelo COMEC. Atualmente, além dessas orientações, o trabalho tem se pautado na socioeducação, tal como proposto pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Brasil, 2012Brasil. (2012, 18 de janeiro). Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nºs 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 16 de junho de 2022, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm
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) e por aportes de Freire (2019)Freire, P. (2019). Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra., Costa (1997)Costa, A. C. G. (1997). Pedagogia da Presença - da solidão ao encontro. Belo Horizonte: Modus Faciendi. e Bell Hooks (2017)Hooks, B. (2017). Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.. Trabalha-se com as concepções de periferia como território vivo de Malvasi (2011)Malvasi, P. A. (2011). Suspeito empreendedor de si: trajeto e sofrimento de um adolescente durante intervenção socioeducativa. Etnográfica, 15(3), 501-521. e Broide & Broide (2016)Broide, J., & Broide, E. E. (2016). A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Editora Escuta. e com perspectivas de atenção familiar e grupal variadas provenientes da formação profissional dos integrantes da equipe.

Em relação aos aportes da terapia ocupacional, destaca-se que a experiência do COMEC contribuiu para problematizar a prática e a teoria produzidas por projetos de ensino-pesquisa-extensão em terapia ocupacional social desenvolvidos pelo curso de graduação de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas de 1980 a 2005, assim como para elaborações teórico-metodológicas desenvolvidas pelo Projeto Metuia (Galheigo, 2016Galheigo, S. M. (2016). Terapia ocupacional social: uma síntese histórica acerca da constituição de um campo de saber e prática. In R. E. Lopes & A. P. S. Malfitano (Orgs.), Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos (pp. 49-68). São Carlos: EdUFSCar.; Barros et al., 2011Barros, D. D., Lopes, R. E., Galheigo, S. M., & Galvani, D. (2011). Research, community-based projects, and teaching as a sharing construction: the Metuia Project in Brazil. In F. Kronemberg, N. Pollard & D. Sakellariou (Eds.), Occupational Therapies without border: towards an ecology of occupational-based practices (pp. 321-328). London: Churchill Livingstone Elsevier.). A execução das MSE no COMEC tem dialogado com aportes e experiências da terapia ocupacional no campo social e sua ação no SUAS. Em síntese, a prática se pauta na concepção do adolescente/jovem como sujeito de direitos e na relevância da compreensão de suas condições de vida para a construção do Plano Individual de Atendimento (PIA)1 1 O PIA é um instrumento de planejamento e acompanhamento das ações socioeducativas realizadas em parceria com o adolescente e seu responsável, com foco na elaboração de projeto de vida futuro. Constituído a partir da história de vida do adolescente, possui dimensão dinâmica permeada por condições sociais, econômicas, culturais, políticas e pessoais, passíveis de alterações de suas metas diante de mudanças e eventualidades do cotidiano. Previsto no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Brasil, 2012) segundo o capítulo IV. . Problematiza o ato infracional, identificando majoritariamente suas raízes no assédio do tráfico, que explora o trabalho infanto-juvenil, e em outros contextos ilícitos. Valoriza o uso de oficinas grupais, considerando a atividade como elemento da cultura que produz para o sujeito sentido, descoberta de si, validação e pertencimento. Busca promover modos de convivência, participação social, reflexão crítica e autonomia e de favorecer a construção de redes de afeto, suporte e atenção, envolvendo a família, a escola, a comunidade e os serviços sociais e de saúde. Colabora ainda para ampliar a terapia ocupacional no campo social em sua atuação junto à Assistência Social, no sentido trazido por Almeida et al. (2012)Almeida, M. C., Soares, C. R. S., Barros, D. D., & Galvani, D. (2012). Processos e práticas de formalização da Terapia Ocupacional na Assistência Social: alguns marcos e desafios. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 20(1), 33-41. de reafirmar o compromisso ético-político com as populações vulneráveis para a sua inclusão social, participação e produção de bens e valores.

O COMEC tem um histórico de divulgação de suas práticas em eventos e publicações (Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas, 2018Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas - COMEC. (2018). COMEC: uma trajetória de trabalho com adolescentes. Santa Bárbara d´Oeste: Gráfica Mundo.), bem como suas terapeutas ocupacionais (Clareto & Galheigo, 2003Clareto, L. F., & Galheigo, S. M. (2003). Experiência Ocupacional, Cotidiano e Subjetividade: Um estudo comparativo entre adolescentes em medida de Liberdade Assistida e em Programa de Educação para e pelo Trabalho. In Anais do VIII Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional e V Congresso Latino-Americano de Terapia Ocupacional (pp. 61). Foz do Iguaçu: ACTOEP.; Delorenzo et al., 2003Delorenzo, G. A. S., Santamaria, L. M., & Galheigo, S. M. (2003). Atelier de Terapia Ocupacional: Um espaço de criação e vivência cotidiana. In Anais do VIII Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional e V Congresso Latino-Americano de Terapia Ocupacional (pp. 103). Foz do Iguaçu: ACTOEP.; Galheigo et al., 2010Galheigo, S. M., Takeiti, B. A., Clareto, L. F., Yamagute, T. H., Allegretti, M. M., & Delorenzo, G. A. S. (2010). Subjectivity, Human Rights, Social Justice and Political Action: the trajectory of occupational therapy in the social field in the city of Campinas, Brazil, from the late 1970s to 2009. In Abstracts of 15th International Congress of the World Federation of Occupational Therapists. Santiago: WFOT.; Danelutti, 2010Danelutti, U. C. V. (2010). Espaço Meninas: por uma arquitetura socioeducativa para adolescentes em conflito com a lei (Trabalho de conclusão de curso). Universidade Bandeirantes, São Paulo.; Vedovello, 2010Vedovello, A. J. S. (2010). Um novo olhar para a medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade (Trabalho de conclusão de curso). Universidade Bandeirantes, São Paulo.; Vedovello & Galheigo, 2021Vedovello, A. J. S., & Galheigo, S. M. (2021). PSC COLETIVA: Participação, Cidadania e Promoção do Protagonismo de adolescentes e jovens em medidas socioeducativas, Reneto, Brasil. In Anais do VI Simpósio Nacional de Pesquisa em Terapia Ocupacional. São Carlos: RENETO: Rafael Garcia Barreiros. Recuperado em 16 de junho de 2022, de http://reneto.org.br/anais-do-vi-snpto/
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; Santamaria & Almeida, 2021Santamaria, L. M., & Almeida, M. C. (2021). Método CERCO: Percepção dos profissionais quanto ao trabalho infantil no tráfico de drogas, Reneto, Brasil. In Anais do VI Simpósio Nacional de Pesquisa em Terapia Ocupacional. São Carlos: RENETO: Rafael Garcia Barreiros. Recuperado em 16 de junho de 2022, de http://reneto.org.br/anais-do-vi-snpto/
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). Entretanto, não houve, até então, a publicação da trajetória histórica da terapia ocupacional nesta OSC. A participação de terapeutas ocupacionais do COMEC em programas de pós-graduação stricto sensu, com duas pesquisas sobre LA, duas sobre AP e uma sobre PSC, bem como o engajamento na “Comunidade de Práticas em terapia ocupacional no SUAS”, criada em 2020, deram visibilidade para a ausência desse registro histórico de suas experiências e, portanto, motivaram sua elaboração.

Percurso Metodológico

Trata-se de um relato de experiência de caráter qualitativo, histórico e descritivo que se propõe a realizar uma narrativa das experiências de terapeutas ocupacionais que atuaram na OSC ao longo de 38 anos. Após o delineamento da organização da linha do tempo até 2022 e da sequência dos depoimentos, as narrativas foram elaboradas individualmente e depois agregadas em um texto único, que foi revisto e redimensionado.

Para garantir a manutenção do depoimento histórico de quase quatro décadas, optou-se pelas narrativas descritivas, que “se detêm na descrição da situação e de seu contexto, [...] sem suas justificativas explícitas” (Marcolino & Mizukami, 2008, pMarcolino, T. Q., & Mizukami, M. G. N. (2008). Narrativas, processos reflexivos e prática profissional: apontamentos para pesquisa e formação. Interface: a Journal for and About Social Movements, 12(26), 541-547.. 544). Aspectos reflexivos e de articulação com as políticas e a literatura foram apresentados na introdução.

A Terapia Ocupacional no COMEC: Uma Apresentação Inicial

Os atendimentos de terapia ocupacional no COMEC começaram em 1984 através de convênio com o curso de graduação de terapia ocupacional da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) para oferecer estágio em terapia ocupacional social. Em 1992, o COMEC contratou sua primeira terapeuta ocupacional. Desde então, 15 terapeutas ocupacionais (Tabela 1) puderam contribuir para o desenvolvimento do trabalho, das quais sete compõem as equipes técnicas atualmente: quatro na LA, uma no PSC, uma na coordenação geral e uma na coordenação da PSC. Três atuaram no programa de Educação para e pelo Trabalho (ET) criado em 1992, renomeado Aprendizagem Profissional (AP), hoje extinto.

Tabela 1
Terapeutas ocupacionais contratadas pelo COMEC, seus períodos e engajamento institucional.

Terapeutas ocupacionais participam da articulação cotidiana e acompanhamento dos adolescentes e jovens e suas famílias, favorecendo a compreensão do uso da atividade no campo socioeducativo como mediador de processos repletos de sentidos e significados. As terapeutas ocupacionais vêm ocupando cargos de coordenação regularmente (Tabela1). As coordenações por terapeutas ocupacionais têm propiciado processos humanizados nas ações ofertadas aos usuários do COMEC, como no relacionamento da equipe, auxiliando a condução do trabalho em rede e fora dos muros institucionais. Desde 2014, terapeutas ocupacionais têm representado o COMEC junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de Campinas na elaboração e avaliação da construção da política de atendimento socioeducativo e, em 2019, duas terapeutas ocupacionais foram nomeadas membros do Comitê Gestor do Sistema Municipal de Atendimento Socioeducativo (SIMASE) para execução do Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo.

A participação de estagiários ocorre por meio de convênios com cursos de graduação de serviço social, psicologia e terapia ocupacional. Importante destacar que os convênios para oferecimento de estágios com os cursos de terapia ocupacional da PUC-Campinas, Centro Universitário São Camilo, Universidade Federal de São Carlos e Universidade de São Paulo têm sido importantes para ampliar a oferta de intervenções grupais.

A trajetória do trabalho das terapeutas ocupacionais na LA, no ET/AP e na PSC durante 38 anos; as adequações necessárias a partir de 2020, durante o período de isolamento social no contexto da pandemia de COVID-19 e as iniciativas em curso desde 2018, são descritas a seguir.

O Início da Terapia Ocupacional no COMEC: Um Projeto de Ensino e Extensão da PUC-Campinas (1984-1986)

O convênio entre o curso de graduação de terapia ocupacional da PUC-Campinas e o COMEC, estabelecido em 1984, incluía não apenas o oferecimento de estágios para estudantes do 3º e 4º anos, mas também a presença de uma docente com dedicação de 28 horas semanais para a implantação do serviço de terapia ocupacional. Assim, de 1984 a 1986, a docente e as estagiárias passaram a integrar a equipe do COMEC, participando de reuniões e do atendimento em frentes distintas. A primeira foi o trabalho comunitário no Centro Social do Bairro Boa Vista, idealizado e realizado por uma psicóloga e por uma assistente social, por meio de atendimento coletivo a crianças e jovens da comunidade, com atividades lúdicas, artesanais e esportivas. Esses atendimentos coletivos permitiam a convivência infanto-juvenil (no horário do contraturno escolar), sendo um recurso potente para a escuta e o acolhimento de complexas demandas individuais e familiares, a mediação de conflitos e o encaminhamento para acompanhamento da criança/adolescente/família em serviços da rede ou na sede do COMEC.

A segunda frente consistiu nos atendimentos individuais de terapia ocupacional aos adolescentes em MSE de LA, realizados pela docente na sede do Juizado de Menores. A partir de 1985, os atendimentos de terapia ocupacional a adolescentes da comunidade e em LA passaram a ser prioritariamente grupais, conduzidos em sala atribuída pelo COMEC para o setor de terapia ocupacional, juntamente com materiais, equipamentos e mobiliário. Esse foi o início do oferecimento de oficinas grupais que, posteriormente, solidificou-se como estratégia de atendimento da instituição, o que viria a se tornar um diferencial no trabalho socioeducativo oferecido pelo COMEC, como mostrado a seguir. Em 1987, a docente assumiu atividades de gestão universitária e, posteriormente, afastou-se para realizar seu doutorado, interrompendo o convênio. O convênio foi retomado de 1993 a 2005, sendo o acompanhamento cotidiano de estagiários realizado pelas terapeutas da OSC, com supervisão semanal com a presença da docente.

A Atuação da Terapia Ocupacional na Liberdade Assistida (1992-2022)

Uma nova fase da terapia ocupacional no COMEC se iniciou com a contratação direta de uma terapeuta ocupacional em 1992. A partir de então, nota-se um maior investimento da equipe nas intervenções em espaços informais de convivência, que resultaram no aperfeiçoamento institucional em temas culturais, artísticos, lúdicos e recreativos. Desde então, passou-se a investir no cuidado com a ambientação dos espaços institucionais pautado no estímulo às potencialidades e no respeito à singularidade dos adolescentes e jovens.

No início dos anos 1990, novas parcerias com atores e serviços municipais foram constituídas e resultaram na oferta de grupos de culinária, arteterapia e inclusão digital com apoio de profissional em tecnologia da informação, bem como de grupo musical com percussionista local. Dessa forma, durante o cumprimento da medida socioeducativa, era possível vivenciar uma variedade de novas oportunidades e de experimentação de habilidades. Algumas dessas atividades incluíam os adolescentes e seus familiares no papel de monitores nas ações abertas à comunidade desenvolvidas na denominada Semana dos Encontros”. O apogeu dessa prática ocorreu na abertura dos portões aos parceiros e adolescentes não autores de ato infracional que frequentaram livremente a OSC. Nessa ocasião, os atendimentos foram considerados atividades extras ao cumprimento da medida, e mesmo sem o vínculo obrigatório imposto pela medida, a adesão dos adolescentes foi maciça.

Essas experiências grupais foram entendidas como uma importante ferramenta no programa, que passou a investir nessa modalidade de atendimentos, com destaque para o grupo de jovens mães e meninas mulheres iniciado em meados dos anos 1990, que se tornou uma ação sistematizada da terapia ocupacional em parceria com os demais profissionais até os dias atuais. A equipe técnica tem prezado por manter espaços diferenciados para o público feminino, não no sentido de exclusão da participação do universo masculino, mas para permitir o fortalecimento das questões femininas e as reflexões sobre violência de gênero, em especial na participação das mulheres na hierarquia masculina do universo infracional.

Em 1999, o COMEC participou do documentário Meninas Mulheres, parte de um projeto chamado Criança no campo: educação, direito e trabalho, sob a coordenação da terapia ocupacional. Esse conjunto de atividades específicas para o universo feminino foi posteriormente sistematizado e intitulado projeto “Espaço Meninas”, certificado como tecnologia social pela Comissão de Certificação do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social e desenvolvido até os dias atuais. Essas ações têm colaborado para que as adolescentes reflitam sobre as violências vividas, de modo a ampliar suas possibilidades de escolhas para além das questões de identidade de gênero. Essas escolhas podem implicar o relacionamento com seus (suas) parceiros(as), a resolução de conflitos sem uso da violência, a decisão de não usar drogas durante a gestação, e/ou não assumir o ato infracional de seus companheiros(as).

O atendimento familiar dos adolescentes e jovens do COMEC sempre foi uma premissa de suas ações desde sua fundação, baseado na parceria familiar no processo socioeducativo de seus (suas) filhos(as) por meio das trocas sociais, de suas próprias experiências de vida e do fortalecimento de vínculos intrafamiliares. Em 2001, iniciou-se o atendimento familiar grupal através do projeto “Atelier de terapia ocupacional: um espaço vivencial de atividades”. Esse projeto permitiu um espaço de experimentação através das atividades, principalmente expressivas, que tinham como objetivo fortalecer a capacidade protetiva das famílias dos adolescentes, enriquecer e ampliar o repertório ocupacional e vivencial. Realizava-se um grupo de responsáveis com mães, tias, avós e madrastas dos adolescentes e jovens. Havia a oferta concomitante de uma brinquedoteca para garantir um espaço lúdico para crianças enquanto suas mães se reuniam. As ações do projeto previam o cuidado com a acolhida e escuta, sendo parte do processo dos encontros, uma roda em volta da mesa de lanche para favorecer trocas.

Posteriormente, essas mulheres decidiram iniciar uma experiência autônoma de geração de renda, passando a produzir, vender e tomar decisões, com apoio de uma terapeuta ocupacional da instituição. Inicialmente, trabalharam com a técnica de biscuit e vendas em espaços externos. Anos depois, em 2008, foi dado seguimento ao grupo de atendimento familiar por meio da atividade de costura, nascedouro do que hoje é o projeto Maria Retalho. Esse projeto se mantém até os dias atuais e é constituído de mulheres familiares de adolescentes que já foram atendidos pelo COMEC. Atualmente, desenvolvem a atividade de patchwork, com venda dos produtos em bazares internos e externos de modo a favorecer a autossustentabilidade do projeto e o empreendedorismo.

De 2005 a 2008, o COMEC realizou o projeto “Desafios, em parceria com a Fundação Telefônica. O mundo do trabalho foi o tema desenvolvido através de grupos operativos reflexivos, cursos profissionalizantes (mecânica, estética e informática) e oficinas de economia solidária (culinária e papel machê). Fez parte do repertório a construção de bonecos de mamulengo, na qual cada adolescente criou seu personagem e, ao final, foi realizado um teatro espontâneo em parceria com artistas locais do subdistrito de Joaquim Egídio.

Recentemente, destacam-se alguns projetos nos quais a terapia ocupacional compôs diretamente a elaboração, execução e coordenação junto às equipes. O projeto “Vidas em Outras Cores”, realizado em 2013 com apoio do Banco do Brasil, cujo objetivo foi desenvolver o conceito de cultura e arte com acesso a bens culturais como grafite e música. O projeto “Riscando o Risco” (2019-2021), que foi selecionado para compor o relatório do Diagnóstico Nacional sobre a Política de Atendimento Socioeducativo em Meio Aberto - Visão Mundial, utilizou o significante das tatuagens realizadas pelos adolescentes para dialogar sobre as violências sofridas.

Entre 2012 e 2020, a terapia ocupacional esteve na gestão do programa e, atualmente, mantém-se na referência dos atendimentos aos adolescentes e jovens, sejam individuais ou grupais, compondo as diversas ofertas grupais (grupo de culinária, espaço meninas, grupo de atividades, entre outras).

Na perspectiva de garantir o acompanhamento técnico, a elaboração do PIA construído com o adolescente e responsável, é o norteador das ações individuais e posteriormente grupais. Diversos projetos e atividades são implementados com a proposta de favorecer espaços de expressão, de aprendizado e reflexões durante o processo da medida, bem como são necessárias parcerias com a rede intersetorial de serviços para efetivar ações complementares quanto à escolarização, cuidados com a saúde, profissionalização, entre outros aspectos, construindo um novo projeto de vida para o adolescente.

A Atuação da Terapia Ocupacional na Aprendizagem Profissional (1992-2012)

O Programa de Educação para e pelo Trabalho iniciou-se em 1992 para acompanhar e inserir adolescentes em condições de vulnerabilidade social no mundo do trabalho, com parceria inicial com a Caixa Econômica Federal e, posteriormente, com outras empresas, respeitando os direitos trabalhistas e a condição de desenvolvimento dos adolescentes. Com as mudanças normativas da Lei nº 10.097/2000 (Brasil, 2000Brasil. (2000, 19 de dezembro). Lei nº 10.097, de 19 de dezembro de 2000. Altera dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 16 de junho de 2022, de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10097.htm
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), que regulariza o contrato de aprendizagem para adolescentes a partir de 14 anos, foi renomeado Programa de Aprendizagem Profissional (AP). A partir da ampliação do projeto, três terapeutas ocupacionais foram contratadas para realizar o acompanhamento dos adolescentes em suas experiências de trabalho e escolaridade por meio de atendimentos individuais e grupais, bem como orientações aos familiares e contato com as empresas parceiras.

O acompanhamento dos adolescentes era grupal, com oferta de atendimentos individuais quando necessário. Tinha como premissa acompanhar o cotidiano do adolescente e suas dificuldades, iniciando-o (ou não) em atividades de aprendizagem profissional, bem como ser um espaço para compartilhamento das experiências de ser um jovem trabalhador. Eram utilizadas atividades e técnicas diversas nos grupos - dramatização, dinâmicas de grupo e atividades artesanais, que eram facilitadoras da comunicação de ideias e reflexões. O programa encerrou-se em 2012 em razão da reorganização institucional. Esses 20 anos de experiência contribuíram para disseminar essa prática nos programas de LA e PSC.

Atuação da Terapia Ocupacional na Prestação de Serviços à Comunidade (2007-2022)

Na trajetória de trabalho com adolescentes e jovens, o COMEC ganhou visibilidade em Campinas, sendo referência na execução da MSE de LA. Em decorrência, recebeu convite da então Secretaria Municipal de Cidadania, Trabalho e Inclusão Social para executar a MSE de PSC. Em 2007, foi elaborado pelo COMEC um projeto específico para essa medida, com base na experiência de trabalho da LA e nos alicerces legais do ECA (Brasil, 1990Brasil. (1990, 13 de julho). Lei no. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, seção 1.), do SUAS (Brasil, 2011Brasil. (2011). Lei nº 12.435 de 06 de julho de 2011. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 13 de junho de 2023, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12435.htm
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) e do SINASE (Brasil, 2012Brasil. (2012, 18 de janeiro). Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nºs 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 16 de junho de 2022, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm
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).

A terapia ocupacional compôs a equipe técnica desde o início do programa, legitimando a profissão como fundamental para o trabalho socioeducativo. Na PSC, a terapeuta ocupacional tem atuado no atendimento aos adolescentes e jovens por meio de escuta qualificada, que favorece a compreensão de seu cotidiano, e do uso de atividades como mediação para desenvolver suas potencialidades. São realizadas intervenções individuais, grupais e domiciliares com o objetivo de tecer redes de apoio que viabilizem a consecução do PIA, a garantia de direitos e a constituição de um novo projeto de vida. Nesse percurso, demarca-se ainda que, desde 2012, uma terapeuta ocupacional tem ocupado cargo de gestão da unidade de PSC.

A proposta metodológica PSC COLETIVA desenvolvida pelo COMEC enfoca a modalidade grupal, a promoção do protagonismo, a participação social e a cidadania dos adolescentes, com implicações no fazer coletivo e nas potencialidades do sujeito. Entre 2007 e 2013, trabalhou-se a oferta de atividades grupais pré-estabelecidas realizadas por meio de parcerias fixas. Em 2014, houve reformulação da metodologia a partir da construção colaborativa e participativa com os adolescentes de ações a serem realizadas em seu território. Nesse sentido, houve maior relevância do trabalho coletivo e territorial, tendo como eixos centrais o trabalho grupal, a ação territorial e o acompanhamento familiar.

Alguns projetos tiveram destaque: em 2011 e 2012, “Captando imagens, revisitando histórias e “Revelando a vida”, com oferta de oficinas de fotografia e produção de dois livros fotoilustrativos; em 2013, “Ressignificando o mundo do trabalho”, com apoio da Fundação das Entidades Assistenciais de Campinas (FEAC), com realização de oficinas do mundo do trabalho e a técnica tie-dye , bem como a sistematização das atividades para ações continuadas nas medidas, renomeado projeto “Ressignificar”; em 2016, foi elaborado o jogo “Mitos e Verdades” e em 2018, “Cidade em Fluxo”, ambos com o objetivo de trabalhar, de forma lúdica, informações sobre a MSE. Destaca-se também que a readequação da metodologia possibilitou avanços na diversidade de parcerias estabelecidas nos territórios de origem dos adolescentes, e ainda nas atividades desenvolvidas como prestação de serviços, como exemplos: revitalização de espaços, oficinas diversas, grafite, confecção de jornal-fanzine, gincanas, hortas, confecção de jogos, customização, entre outras.

O uso da atividade e da criação nos atendimentos grupais com adolescentes e jovens tem sido um recurso utilizado no trabalho socioeducativo que possibilita a formação de vínculos, o despertar de interesses e potencialidades, a expressão da leitura de mundo e a compreensão crítica de seu cotidiano. Um exemplo de atividade desenvolvida como PSC foi a escolha do grupo em realizar a atividade em uma escola onde adolescente que sugeriu a parceria teve conflitos com alunos e professores. Os adolescentes se identificaram com a situação e todo o processo da PSC foi pensado pelo grupo, com a proposta de realizar um grafite no muro da entrada da escola com a imagem de uma árvore de pensamentos, propondo a importância da troca e do aprendizado. Nesse contexto, foi possível ressignificar as relações com a escola por meio da atividade desenvolvida, na perspectiva de prestar serviços à comunidade. Para o adolescente e para o grupo, o processo permitiu a experiência de mudança de lugar social na comunidade escolar.

A Execução da LA e da PSC em Tempos de Pandemia de COVID-19 (2020-2021)

Com a pandemia de COVID-19, iniciada em 2020, a execução das medidas de LA e PSC atravessaram mudanças na rotina de atendimento, tendo em vista as restrições de contato social que impediram a realização de atividades presenciais, mas que impulsionaram a equipe do COMEC a dar continuidade às ações planejadas, embora com outras estratégias metodológicas e finalidades. A LA foi suspensa pelo Tribunal de Justiça no período de março a agosto de 2020 e a PSC de março de 2020 a setembro de 2021. Na fase inicial da pandemia, apenas situações emergenciais foram atendidas presencialmente, sendo as ações individuais e grupais adaptadas para manter-se o vínculo com os adolescentes e suas famílias e ofertar orientações preventivas contra a COVID-19. As atividades foram adaptadas por meio de vídeos, entrega de kits de materiais e interações tecnológicas. O processo de atendimento tornou-se mais longo, reflexivo e descritivo; inicialmente, a atividade era realizada à distância e depois compunha o atendimento via aplicativo de comunicação. Dessa forma, ações foram (re)criadas pela equipe e surgiram práticas e experiências que demonstraram uma boa interlocução entre os adolescentes e sua medida.

Como destaque, citamos dois projetos Quarencenas: um retrato do isolamento social”, que utilizou cenas cotidianas fotografadas pelos adolescentes como recurso para diálogo sobre os conflitos e situações durante o isolamento e “Panela de expressão”, que teve como objetivo a criação de conteúdo audiovisual, mobilizando a produção de receitas culinárias pelos adolescentes e seus familiares, com entrega de kits de ingredientes para realização da culinária no domicílio e depois a experiência era pauta no atendimento virtual.

O COMEC de Agora - Construindo o Futuro (2018-2022)

Iniciativas em curso com a participação das terapeutas ocupacionais buscam trazer elaborações críticas sobre ato infracional, violência policial, tráfico de drogas e trabalho infantil. Desde 2018, O COMEC busca ampliar frentes de atuação para, a partir da experiência técnica acumulada, desenvolver ferramentas metodológicas para atendimento e oferecimento de capacitações, serviços e produtos nos temas e finalidades de sua especificidade. Dentre as iniciativas, investe-se na construção de um jogo interativo de tabuleiro - “Dichavando: um jogo sobre maconha e juventudes”, cuja proposta é a informação, reflexão e produção de narrativas sobre o uso de drogas. Outra iniciativa é o desenvolvimento do Método cerco”, que consiste em estratégia metodológica para capacitar profissionais sobre o tema do tráfico de drogas enquanto trabalho infantil. Em 2020, através de financiamento da FEAC, iniciou-se o projeto “Sintonizando na TransformAção” para capacitar adolescentes e jovens (pós-cumprimento das MSE) como mobilizadores sociais através de ferramentas de comunicação e recursos tecnológicos, como podcasts, músicas e documentários. Em 2021, iniciou-se o projeto “QualificAção para o Trabalho”, financiado pelo CMDCA, para ampliar o repertório dos adolescentes sobre o mundo do trabalho por meio de oficinas e o custeio de cursos na área de mecânica e cinema de animação.

Conclusão

O COMEC tornou-se uma referência na execução das medidas socioeducativas de LA e de PSC no município de Campinas com o desenvolvimento de um trabalho que, por quatro décadas, destaca-se pela diversidade de abordagens com adolescentes e jovens e suas famílias, pela competência técnica e criatividade das ações, pelo investimento em espaços de supervisão técnica para as equipes e pelos projetos complementares e inovadores desenvolvidos. Suas equipes de LA e PSC têm atravessado mudanças sociais e normativas que têm impulsionado a avaliação de suas ações, recolocando suas práticas frente às mudanças previstas nas leis, como o ECA, o SINASE e o SUAS.

Terapeutas ocupacionais têm participado das ações desenvolvidas em 38 dos 42 anos de existência da OSC com um conjunto potente e diversificado de estratégias de ação que podem contribuir para o repertório de ações de terapia ocupacional no campo social, em MSE e no âmbito do SUAS. Este relato de experiência teve como foco apresentar uma narrativa descritiva que mostrasse a trajetória histórica e as transformações das estratégias utilizadas nesse longo período. Espera-se que produções futuras possam aprofundar teórico-conceitualmente e dialetizar recortes das experiências aqui descritas.

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    O PIA é um instrumento de planejamento e acompanhamento das ações socioeducativas realizadas em parceria com o adolescente e seu responsável, com foco na elaboração de projeto de vida futuro. Constituído a partir da história de vida do adolescente, possui dimensão dinâmica permeada por condições sociais, econômicas, culturais, políticas e pessoais, passíveis de alterações de suas metas diante de mudanças e eventualidades do cotidiano. Previsto no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Brasil, 2012)Brasil. (2012, 18 de janeiro). Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nºs 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 16 de junho de 2022, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    segundo o capítulo IV.
  • Como citar: Vedovello, A. J. S., Santamaria, L. M., Said, G. A. D., Rosa, T. H. Y., & Galheigo, S. M. (2023). Terapia ocupacional e socioeducação: uma trajetória institucional de acompanhamento de adolescentes e jovens durante quatro décadas. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 31(spe), e3396. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoRE259933961

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Editado por

Editora Convidada

Profa. Dra. Iara Falleiros Braga

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2022
  • Revisado
    19 Ago 2022
  • Revisado
    03 Fev 2023
  • Aceito
    09 Mar 2023
Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Terapia Ocupacional Rodovia Washington Luis, Km 235, Caixa Postal 676, CEP: , 13565-905, São Carlos, SP - Brasil, Tel.: 55-16-3361-8749 - São Carlos - SP - Brazil
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