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A fragmentação à margem da rodovia: as práticas espaciais dos moradores de espaços residenciais fechados

Resumo

Na modernidade, as inseguranças da vida na metrópole desencadeiam estratégias de autossegregação em espaços residenciais fechados. Assim, o objetivo geral desta pesquisa é investigar as práticas espaciais dos moradores de espaços residenciais fechados da área metropolitana de Brasília. Os objetivos específicos são identificar os fatores que levam ao consumo de unidades habitacionais nestes espaços e analisar as práticas espaciais de trânsito destes moradores. Mediante pesquisa bibliográfica e aplicação de questionários, observou-se que controlar o acesso ao espaço habitacional coletivo é o principal fator para o consumo destas unidades autônomas, a metrópole é vivida como uma região única e a sensação de segurança proporcionada por viver em espaço residencial fechado contrastam com a insegurança viária.

Palavras-chave
autossegregação; fragmentação socioespacial; práticas espaciais; fobópole; segurança viária

Abstract

In modernity, the insecurities of life in the metropolis trigger strategies of self-segregation in gated community. Thus, the general objective of this research is to investigate the spatial practices of residents of gated communities in the metropolitan area of Brasília. The specific objectives are to identify the factors that lead to the consumption of housing units in these spaces and to analyze the spatial practices of these residents. Through bibliographic research and application of questionnaires, it was observed that controlling access to collective housing space is the main factor for the consumption of these autonomous units, the metropolis is experienced as a unique region and the feeling of security provided by living in a gated community contrasts with road insecurity.

Keywords:
self-segregation; socio-espatial fragmentacion; espatial pratices; fobópole; road safety

Resumen

En la modernidad, las inseguridades de la vida en la metrópolis desencadenan estrategias de autosegregación en barrios cerrados. El objetivo general de esta investigación es investigar las prácticas espaciales de los residentes de barrios cerrados en el área metropolitana de Brasilia. Los objetivos específicos son identificar los factores que conducen al consumo de viviendas en estos espacios y analizar las prácticas espaciales de residentes. A través de investigación bibliográfica y aplicación de cuestionarios, observó que el control de acceso al espacio de vivienda colectiva es el factor principal para el consumo de estas unidades autónomas, la metrópolis se vive como una región única y la sensación de seguridad que brinda vivir en un barrio cerrado contrasta con la inseguridad vial.

Palabras clave:
autosegregación; fragmentación socioespacial; practicas espaciales; fobópole; seguridad en carretera

Introdução

A modernidade enquanto recorte temporal de parte da experiência humana sobre a Terra é alvo de discussões em vários espectros científicos. Suas características e consequências forjadas no âmbito do modo de produção contemporâneo são questões sobre as quais pensadores debruçam-se com a perspectiva de explicar as relações e processos do mundo atual.

Na ciência geográfica não é diferente. Essa tão discutida modernidade trouxe consigo mudanças - e transformações - na maneira que o homem se distribui sobre e ocupa o território. Ainda mais complexos são estes fenômenos quando colocados sob a perspectiva de análise dos espaços urbanos. Pela primeira vez na história, a humanidade é primordialmente urbana. Sem dúvida esta é uma das principais características deste tempo. A esta, somam-se a explosão demográfica (nunca houve tantas pessoas sobre o planeta) e um sistema de produção que privilegia o individualismo, o que enseja uma série de conflitos, opondo indivíduos versus coletividades, instituições versus sociedade e, em outra perspectiva, o “Eu” versus o “Outro”.

Estes conflitos desdobram-se em suas facetas econômicas, sociais, culturais que consequentemente materializam-se no espaço, que cada vez mais é alvo de disputas territoriais. No que concerne ao espaço com função residencial, de moradia, estas disputas são motivadas pela busca de um ideal de controle, onde quem detém poder impõe limites e fronteiras que potencializam inseguranças, incertezas, ansiedades e medo. Desta maneira, a subjetividade com a qual é experimentada a vida na metrópole corporifica-se no espaço particular, coletivo e público de várias formas: sobre o espaço particular, controle e exclusão; sobre o coletivo, repressão e ordem; sobre o espaço público, anemia e esvaziamento.

Neste contexto, o objetivo geral desta pesquisa é investigar as práticas espaciais dos moradores de espaços residenciais fechados da Área Metropolitana de Brasília sul. Os objetivos específicos são identificar os fatores que levam ao consumo de unidades habitacionais nestes espaços e analisar as práticas espaciais de trânsito destes moradores.

Passos metodológicos da pesquisa

A investigação realizada neste artigo é qualiqualitativa, que inclui “pesquisas que têm por objetivo levantar as opiniões, atitudes e crenças de uma população” (GIL, 2008GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2008, 200 p., p. 28). Quanto aos procedimentos, eles foram realizados em etapas.

Na primeira etapa, foi realizada a pesquisa bibliográfica, onde para compreender as características do tempo atual e seus respectivos desdobramentos no espaço urbano tem protagonismo as contribuições de Bauman (2011BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2011. Edição Digital., 2012BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2012. Edição Digital.), Graham (2016)GRAHAM, S. Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo. Editora Boitempo, 2016. Versão digital. e Souza (2008)SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p.. A transição do processo de segregação para a fragmentação socioespacial, especificamente no caso brasileiro, foi interpretada a partir das perspectivas de Souza (2008)SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p., Sposito e Góes (2013)SPOSITO, M. E. B.; GÓES, E. M. Espaços fechados e cidades. Insegurança urbana e fragmentação socioespacial. São Paulo. Unesp, 1ª Edição, 2013. 359 p. e Sposito (2018)SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93.. Para compreender como as práticas espaciais impactam no processo de produção do espaço, tiveram destaque as contribuições de Souza (2013)SOUZA, M L. de. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2013. 320 p. e Sposito (2017)SPOSITO, M. E. B. Práticas espaciais e reestruturação em cidades médias. Consumo e cotidiano. In FERREIRA, A; RUA, J.; MATTOS, R. C. (Orgs). O espaço e a metropolização. Cotidiano e ação. Rio de Janeiro. Editora Consequência. 2017. P. 627677..

A segunda etapa da pesquisa foi a de levantamento de campo (survey), do tipo questionário (GIL, 2008GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2008, 200 p.). O universo da pesquisa são os moradores do espaço residencial fechado “Villa Suíça”, inserido no município de Cidade Ocidental/GO, composto por 1.197 lotes residenciais e 93 unidades comerciais. De acordo com a associação de moradores do residencial, existiam 300 unidades habitacionais ocupadas em outubro de 2021. Nesta pesquisa foram desprezadas informações fornecidas por aqueles que ainda não moravam ali, por mais que possuíssem direitos sobre lotes residenciais no interior do loteamento ou na sua área comercial.

Como o acesso ao interior do loteamento é restrito, optou-se por criar o questionário em plataforma digital - Google Formulários - e disponibilizá-lo para o público-alvo por meio do grupo de aplicativo de mensagens instantâneas - Whatsapp - daqueles que estavam vinculados à associação de moradores.

O questionário ficou disponível para receber respostas entre os dias 9 e 30 de novembro de 2021, obtendo 57 respostas. Das respostas obtidas, três eram de pessoas que não moravam no loteamento naquele momento, portanto, foram desprezadas da análise que focou nas outras 54 respostas. Considerando o público-alvo que era composto pelos moradores das 300 unidades autônomas habitadas naquele momento, a amostra obtida com o questionário corresponde a 18% do universo.

Quanto a estrutura do questionário, ele contou com perguntas no modelo fechado, onde as possibilidades de respostas dos moradores foram previamente elaboradas, cabendo ao respondente escolher apenas uma das opções propostas. Ele foi composto de 45 questões, agrupados em quatro blocos. O primeiro trata apenas de uma pergunta de controle. O próximo da caracterização da amostra. Os demais abordam as práticas espaciais dos moradores do Villa Suíça. Vale destacar que para analisar as práticas, enquanto ações faz-se necessário compreender que elas se originam na “combinação entre materialidade (condições objetivas e de natureza físico-territorial) e representações que se constroem sobre o mundo e o espaço (condições subjetivas que mesclam razão e sentimento)” (SPOSITO, 2017SPOSITO, M. E. B. Práticas espaciais e reestruturação em cidades médias. Consumo e cotidiano. In FERREIRA, A; RUA, J.; MATTOS, R. C. (Orgs). O espaço e a metropolização. Cotidiano e ação. Rio de Janeiro. Editora Consequência. 2017. P. 627677., p. 636). Com o intuito de investigar a sensação apresentada pelos moradores acerca do tema questionado foram apresentadas questões com respostas no modelo de escala Likert, variando entre cinco graus, com uma alternativa de neutralidade, considerando que “esta mensuração é mais utilizada nas ciências sociais, especialmente em levantamentos de atitudes, opiniões e avaliações” (GUNTHER, 2003GUNTHER, H. Como elaborar um questionário. Planejamento de Pesquisa nas Ciências Sociais, Nº 1. Brasília: UnB, Laboratório de Psicologia Ambiental, 2003., p. 11).

Inseguranças, incertezas, ansiedades e medo na era da modernidade líquida

Segundo Bauman (2011)BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2011. Edição Digital. a metáfora utilizada para distinguir a modernidade sólida e a modernidade líquida se baseia na análise de duas categorias geográficas: espaço e tempo. Na perspectiva do autor, o espaço e tempo estiveram alinhados enquanto o hardware (o corpo) impunha limites a ação humana. Outrora, nenhum homem detinha vantagens sobre os demais já que o corpo humano era a limitação de cada um. Ninguém se deslocava com velocidade muito maior do que outro. Da mesma maneira, a disseminação da informação também era limitada.

Com o surgimento do wetware (a máquina) a igualdade de condições deixa de existir. Àqueles que dispõem de recursos para usufruir da tecnologia, são oferecidas alternativas de deslocamento que proporcionaram vantagens consideravelmente maiores que são negadas a outros. Com o aprimoramento dos meios de comunicação e transporte, o espaço e tempo passaram a ser categorias dissociadas.

Bauman e Lyon (2013)BAUMAN, Z; LYON, D. Vigilância líquida. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2013. Edição Digital. também analisaram as características da modernidade, apontando duas que se destacam: a primeira, é o fato de que as formas sociais se desmancham mais depressa do que são criadas novas formas. A outra é o fato de que poder e política está separando-se. Segundo eles “sem controle político, o poder torna-se fonte de grande incerteza, enquanto a política parece irrelevante para os problemas e temores da vida das pessoas” (BAUMAN; LYON, 2013BAUMAN, Z; LYON, D. Vigilância líquida. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2013. Edição Digital., p. 9).

Os “problemas e temores” das pessoas agravam-se em um cenário onde aquele ator da vida pública, constituído para garantir segurança, está em declínio. No atual momento, as dinâmicas de desregulamentação e privatização dos serviços prestados, além de enfraquecimento do alcance e impacto das políticas sociais financiadas pelo Estado, evidenciam uma mudança conjuntural, de particular importância na modernidade líquida. Atualmente o Estado se “recusa em endossar as aspirações de certeza, segurança e garantia de seus cidadãos” (BAUMAN, 2011BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2011. Edição Digital., p. 211). Neste contexto,

A incerteza do futuro, a fragilidade da posição social e a insegurança da existência - que sempre e em toda parte acompanham a vida na modernidade líquida, mas têm raízes remotas e escapam ao controle dos indivíduos - tendem a convergir para objetivos mais próximos e a assumir a forma de questões referentes à segurança pessoal: situações desse tipo transformam-se facilmente em incitações à segregação-exclusão que levam - é inevitável - a guerras urbanas (BAUMAN, 2012BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2012. Edição Digital., p. 21).

O autor apresenta como a incerteza, fragilidade e insegurança, os medos da modernidade, emergem da perspectiva subjetiva e objetivam-se na realidade, materializando no espaço os processos que acontecem na estrutura social. Delegado a cada indivíduo ou grupo, a defesa da propriedade e do corpo toma protagonismo no cotidiano do citadino, envolvido nesse tempo em um contexto urbano belicoso.

As “guerras urbanas” da modernidade líquida, foram denominadas por Feldman (2004 apud GRAHAM, 2016GRAHAM, S. Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo. Editora Boitempo, 2016. Versão digital.) como “guerra securocrática”. Para Graham (2016)GRAHAM, S. Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo. Editora Boitempo, 2016. Versão digital., as guerras securocráticas têm três características: não tem data para acabar, não possuem territórios específicos (sendo travado contra as drogas, o crime, o terror, imigração ilegal, etc) e são organizadas ao redor de ideias vagas de segurança pública, em vez de conquista territorial, como foi em outro momento. As guerras securocráticas exigem o engajamento de cidadãos-soldados para “monitorar pessoalmente suas paisagens cotidianas, para estar sempre de olho para o “incomum” sempre esquivo e indefinido” (GRAHAM, 2016GRAHAM, S. Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo. Editora Boitempo, 2016. Versão digital., p. 164).

Outra perspectiva pela qual pode ser observada a situação atual de incerteza, fragilidade e insegurança na vida urbana é a partir do que Enzensberger (1993 apud SOUZA, 2008SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p.) chamou de “guerra civil molecular”. Para Souza (2008)SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p., a guerra civil molecular inclui, estado crônico de low intensity urban warfare (guerra urbana de baixa intensidade), discursos conservadores repressivos, aquecimento do “mercado da segurança” e disseminação de estratégias de autoproteção dos mais privilegiados. O autor destaca as consequências deste conflito, dentre as quais “respostas menos ou mais preventivas, menos ou mais repressivas por parte da polícia e reações autodefensivas por parte da classe média e das elites” (SOUZA, 2008SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p., p. 36).

Ambas definições - guerra securocráticas e guerra civil molecular - compõe a ideia de “guerras urbanas”, compartilhando princípios em comum. O primeiro, o espaço onde são travados os embates. Ao contrário de outrora, onde os conflitos desenrolavam-se nos campos de batalha, muitas vezes distantes do cotidiano civil, hoje a guerra avança sobre os espaços do dia-a-dia, sobre o ambiente urbano. Antes a guerra até podia chegar à cidade, porém a cidade não era o principal lócus da guerra. Na modernidade, a casa precisa de muros e cercas cada vez mais altos, o local de trabalho apenas é acessível àqueles identificados previamente e os espaços públicos somente são seguros se completamente vigiados.

O segundo princípio trata do tempo. Se antes os beligerantes enfrentavam-se até a rendição de um dos lados, em tempos líquidos, o estado de guerra é permanente, sem previsão de fim. Atualmente, vive-se em guerra. Em muito devido ao terceiro princípio que perpassa os dois anteriores: o inimigo que está do outro lado nesta guerra permanente não tem rosto. Ele não usa fardamento, não é identificável à olho nu e pode ser qualquer “outro” - o outro entendido como o externo a individualidade, que pode ser também um indivíduo (o estrangeiro, o pobre, o favelado) ou ainda mesmo uma ideia (o terrorismo, o tráfico de drogas, ou ainda, o Corona vírus3 3 Durante o período de realização desta pesquisa, em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde-OMS declarou o surto do coronavírus como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) - o mais alto nível de alerta da Organização. Fonte: Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em [https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19] acessado em 16 de novembro de 2022. A OMS anunciou que cerca de 14,9 milhões de pessoas em todo o mundo morreram como resultado direto ou indireto da Covid-19. Os dados correspondem ao período entre janeiro de 2020 e dezembro de 2021. Fonte: Organização Mundial da Saúde. Disponível em [https://news.un.org/pt/story/2022/05/1788242] acessado em 16 de novembro de 2022. ).

Nesta perspectiva, experimenta-se na modernidade líquida uma conjuntura armífera, que acontece no espaço urbano, por tempo indeterminado contra um inimigo não rastreável. No caso brasileiro, o espaço protagonista nesta batalha é a fobópole. O termo fobópole

condensa aquilo que tento qualificar como cidades nas quais o medo e a percepção do crescente risco, do ângulo da segurança pública, assumem uma posição cada vez mais proeminente nas conversas, nos noticiários da grande imprensa etc., o que se relaciona, complexamente, com vários fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou repressor, levados a efeito pelo Estado ou pela sociedade civil - o que tem claras implicações em matéria de desenvolvimento urbano e democracia (lato sensu). (...) Uma “fobópole” é, dito toscamente, uma cidade violenta (SOUZA, 2008SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p., p. 9).

Neste mesmo sentido, o autor ainda afirma que “uma fobópole é uma cidade em que grande parte de seus habitantes, presumivelmente, padece de estresse crônico por causa da violência, do medo da violência e da sensação de insegurança” (SOUZA, 2008SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p., p. 40). Portanto, fobópole é o termo que une medo e cidade em uma só palavra. Para além de uma definição, a fobópole pode ser entendida como a forma material, portanto o lócus de um processo mais amplo - fobopolização - que está diretamente relacionada a perspectiva subjetiva com a qual os indivíduos experimentam a realidade urbana.

Um medo generalizado, ainda que matizado também ele (de acordo com a classe, a cor da pele, a faixa etária, o sexo e o local de residência), toma conta de corações e mentes, (re)condicionando hábitos de deslocamento e lazer, influenciando formas de moradia e habitat e modelando alguns discursos-padrão sobre a violência urbana (SOUZA, 2008SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p., p. 54, grifo nosso).

Este contexto tem suas implicações espaciais. A análise das formas, funções, inseridas na estrutura social que as significam e ressignificam constantemente por o mais alto nível de alerta da Organização. Fonte: Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em [https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19] acessado em 16 de novembro de 2022. A OMS anunciou que cerca de 14,9 milhões de pessoas em todo o mundo morreram como resultado direto ou indireto da Covid-19. Os dados correspondem ao período entre janeiro de 2020 e dezembro de 2021. Fonte: Organização Mundial da Saúde. Disponível em [https://news.un.org/pt/story/2022/05/1788242] acessado em 16 de novembro de 2022. meio do tempo, contribui para desmistificar processos que tem vinculação direta à subjetividade da experiência individual da vida humana.

Da segregação à fragmentação socioespacial

Entregue a cada indivíduo ou grupo, a defesa da propriedade e do corpo toma protagonismo no cotidiano de quem vive na cidade. Contra os medos da modernidade, materializam-se estratégias de autoproteção ou mesmo de autossegregação. Discutir autossegregação no contexto urbano brasileiro é uma tarefa que exige esforço teórico para que o processo seja analisado sem que se perca a essência que lhe é própria. Uma possibilidade de fazê-lo, é percorrer o caminho inverso: partir da segregação para compreender a autossegregação.

Segundo Sposito (2018)SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93. a segregação é utilizada comumente como conceito polissêmico, assim correndo o risco de perder força explicativa. Ao tratar do tema, deve-se atentar para delimitação do seu conteúdo, suas formas de expressão espacial, as práticas espaciais que engendra, seus sujeitos sociais, bem como os elementos que lhe dão tonalidade. Dessa maneira, a partir da complexidade da análise do processo “há tantas segregações, de fato e em potencial, quantas cidades e situações urbanas com as quais nos deparamos” (SPOSITO, 2018SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93., p. 64).

Das “tantas segregações” existentes observa-se um movimento de intensificação de uma espécie que possui características bastante peculiares na realidade brasileira: a autossegregação. Sposito e Góes (2013)SPOSITO, M. E. B.; GÓES, E. M. Espaços fechados e cidades. Insegurança urbana e fragmentação socioespacial. São Paulo. Unesp, 1ª Edição, 2013. 359 p. contribuem para diferenciá-las:

Segregação e autossegregação seriam, facetas de um mesmo processo, uma vez que a distinção entre as duas proposições conceituais está no ponto de vista a partir do qual a separação se estabelece. No caso da segregação, é a maioria que decide pela separação total ou relativa da minoria, submetida a essa condição por razões de diferentes ordens e, no caso das cidades latino-americanas, sobretudo pela situação socioeconômica. No que se refere à autossegregação, é o grupo com melhores condições que opta pelo isolamento em relação ao conjunto da cidade, que para eles, é o espaço dos outros e, portanto, não mais de todos (SPOSITO; GOES, 2013, p. 281).

Correa (2018) destaca que os meios de controle do espaço em áreas autossegregadas fornecem “segurança aos seus habitantes, ampliando o status e prestígio que possuem. Essas áreas são consideradas nobres, tendo sido criadas pelo grupo de alto status social e para ele” (CORREA, 2018CORREA, R. L. Segregação residencial: classes sociais e espaço urbano. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.). A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 39-59., p. 43). A autossegregação é “uma forma radical de agrupamento residencial defensivo que procura juntar os semelhantes e excluir os diferentes e impedir o acesso dos indesejáveis” (VASCONCELOS, 2018VASCONCELOS, P. de A. Contribuição para o debate sobre processos e formas socioespaciais nas cidades. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.). A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 17-37., p. 27).

A autossegregação complexifica a análise do processo de segregação. Neste sentido, Sposito (2018)SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93. defende que na atualidade, o conceito de segregação socioespacial é insuficiente para tratar as formas radicais de segmentação, com função habitacional, juntamente com a tendência da multiplicação de áreas de consumo de bens e serviços. A autora defende que está em curso um processo de verdadeira fragmentação socioespacial. Para isso, ela aponta as seguintes justificativas: morfologias urbanas multi(poli)cêntricas, em contraposição às estruturas mono e multicêntricas do século XX, o que tornam as formas de estruturação espacial mais complexas. Dentre elas destacam-se a segregação e autossegregação impossível de, em alguns casos, diferenciar onde termina um processo e começa outro; a autossegregação vai além de dinâmicas de segmentação socioespacial radicais, incluindo também os espaços de consumo; além disso, o processo de autossegregação reúne os interesses dos que a produzem e daqueles que consomem este produto. Em relação aos seus consumidores, tem destaque a motivação por “valores” como distinção social e segurança; por fim, há uma diminuição dos espaços de convívio entre todos, e agora a vida pública se realiza em grande parte em espaços que não são públicos, porém de uso coletivo (SPOSITO, 2018SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93.).

Neste cenário, a cidade é produzida em fragmentos, com fronteiras - visíveis e invisíveis - delimitadas por todas as partes.

Fronteiras são estabelecidas com a finalidade de controle espacial, e no caso em questão o principal fator é um dos dois seguintes, dependendo do tipo de espaço e dos atores envolvidos: ou o exercício de uma modalidade de “economia da violência”, incluindo atividades de extorsão (tráfico e milícias), ou a busca de segurança e manutenção de certos privilégios (SOUZA, 2008SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p., p. 58-59, grifo nosso).

O processo de fragmentação socioespacial não anula ou substitui a segregação. Segundo Souza (2008)SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p. a fragmentação “não é meramente uma nova maneira de designar a segregação residencial, muito embora a segregação se veja, na esteira do processo, agravada, por conta dos novos ou renovados preconceitos contra os moradores de favela” (SOUZA, 2008SOUZA, M. L. de. Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2008. 288 p., p. 58). Para Sposito (2018)SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93. segregação e fragmentação são “processos que se sucedem no tempo, sendo o de fragmentação socioespacial mais recente e mais abrangente, visto que resulta de um arco amplo de dinâmicas, envolvendo diferentes formas de uso e apropriação do espaço” (SPOSITO, 2018SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93., p. 84). A autora ainda desta que o conceito de fragmentação deve ser reservado para analisar o par segregação-autossegregação.

Ainda nesta perspectiva, Sposito e Sposito (2020)SPOSITO, E. S.; SPOSITO, M. E. B. Fragmentação socioespacial. Mercator, Fortaleza, ISSN:1984-2201, v.19, 2020. https://doi.org/10.4215/rm2020.e19015
https://doi.org/10.4215/rm2020.e19015...
rejeitam a utilização dos conceitos segregação e fragmentação como sinônimos. Para os autores, o conceito de fragmentação socioespacial “pode abarcar os demais, sem com isso superá-los ou descartá-los, mas sim incorporando-os na reflexão” (SPOSITO, SPOSITO, 2020SPOSITO, E. S.; SPOSITO, M. E. B. Fragmentação socioespacial. Mercator, Fortaleza, ISSN:1984-2201, v.19, 2020. https://doi.org/10.4215/rm2020.e19015
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, p. 3).

As formas geográficas com função residencial que tem destaque no processo de fragmentação socioespacial são os Espaços Residenciais Fechados-ERF.

Os Espaços Residenciais Fechados são espaços voltados a cumprir a função precipuamente residencial, de moradia, onde para chegar ao ambiente privado, particular, necessariamente há uma transição, passagem, pelo espaço coletivo, que é vigiado, policiado, somente acessível àqueles que vem do espaço público depois de processos de triagem (DOURADO; SOBRINHO, 2022DOURADO, J.; SOBRINHO. A fragmentação socioespacial na metropolização: entre condomínios, loteamentos fechados e de acesso controlado na Área Metropolitana de Brasília Sul. Cerrados, Montes Claros, MG. v. 20, 2022. p. 313-346. DOI: 10.46551/rc2448269220221
https://doi.org/10.46551/rc2448269220221...
).

Estes espaços fechados admitem gêneros construtivos verticais, com unidades habitacionais do tipo apartamento, ou ainda horizontais, com casas ou sobrados (DOURADO; ARAUJO SOBRINHO, 2022DOURADO, J.; SOBRINHO. A fragmentação socioespacial na metropolização: entre condomínios, loteamentos fechados e de acesso controlado na Área Metropolitana de Brasília Sul. Cerrados, Montes Claros, MG. v. 20, 2022. p. 313-346. DOI: 10.46551/rc2448269220221
https://doi.org/10.46551/rc2448269220221...
). Eles são encontrados na realidade sob diversos rótulos, como “condomínios”, “loteamentos fechados” e “condomínios exclusivos”. Bauman destaca uma característica destes espaços: o isolamento.

Isolamento quer dizer separação de todos os que são considerados socialmente inferiores”, e - como os construtores e as imobiliárias insistem em dizer - “o fator-chave para obtê-lo é a segurança. Isso significa cercas e muros ao redor dos condomínios, guardas (24 horas por dia) vigiando os acessos e uma série de aparelhagens e serviços… que servem para manter os outros afastados” (BAUMAN, 2012BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2012. Edição Digital., p. 20).

Parte da segurança que faz parte dos elementos básicos dos “condomínios fechados” e dos ERF horizontais - em sentido mais amplo - é o isolamento em relação ao centro da cidade. Como são distantes dos centros, devem ser “universos autocontidos”, onde “os moradores devem ter a seu dispor quase tudo o que precisam para que possam evitar a vida pública da cidade” (CALDEIRA, 2000CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP; 2000., p. 267). Ainda que disponham desta característica, evitar a vida na cidade ainda não é possível em muitos casos. Por isso, quando da escolha da inserção urbana destes espaços é considerada a acessibilidade como condição para realização dos deslocamentos cotidianos.

Entre os fatores que constituem a acessibilidade, um deles, o meio de transporte individual, age como potencializador da segregação. Para Sposito (2018)SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93., a segregação causada pelo automóvel, separa as pessoas por meio dos vidros fumê e sistemas de segurança já que de dentro do automóvel se “passa pelos espaços públicos, sem que isso signifique apropriação deles; porque propicia com nível de velocidade na circulação que os meios de transporte coletivo não oferecem” (SPOSITO, 2018SPOSITO, M. E. B. Segregação socioespacial e centralidade urbana. In VASCONCELOS, P. de A.; CORREA, R. L.; PINTAUDI, S. M. (Orgs.) A cidade contemporânea. Segregação espacial. São Paulo. Editora Contexto, 2018. p. 61-93., p. 80).

O Villa Suíça Brasília

A Área Metropolitana de Brasília Sul, região composta pelos municípios goianos de Cidade Ocidental, Luziânia, Novo Gama e Valparaíso de Goiás tornou-se lócus privilegiado da atividade imobiliária entre os anos de 2009 e 2020. Os municípios goianos receberam a maior parte dos recursos do programa do governo federal “Minha Casa Minha Vida” durante seu período de vigência, se comparados ao núcleo da metrópole, o Distrito Federal. Também houve o incremento na produção e comercialização de unidades habitacionais em ERF, tanto verticais como horizontais (DOURADO; SOBRINHO, 2020aDOURADO, J.; SOBRINHO, F. L. A. O processo de periferização da habitação financiado pelo Programa Minha Casa Minha Vida. Sociedade e Natureza, Uberlândia, MG. v. 32, 2020A. p.740-751. https://doi.org/10.14393/SN-v32-2020-54948
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, 2020bDOURADO, J.; SOBRINHO, F. L. A. Entre a forma e o produtor do edifício. O processo de verticalização urbana em Valparaíso de Goiás, Brasil. Terr@ Plural, Ponta Grossa, PR. v. 14, 2020B. p. 1-20. DOI: 10.5212/TerraPlural.v.14.2013203.023
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, 2022DOURADO, J.; SOBRINHO. A fragmentação socioespacial na metropolização: entre condomínios, loteamentos fechados e de acesso controlado na Área Metropolitana de Brasília Sul. Cerrados, Montes Claros, MG. v. 20, 2022. p. 313-346. DOI: 10.46551/rc2448269220221
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).

A Rodovia Federal BR040, que liga a região sudeste do Brasil à Brasília, conecta-se a Rodovia Distrital DF495, onde no lado goiano da rodovia, praticamente no limite entre as unidades da federação (Distrito Federal e Goiás) está inserido um dos maiores ERF horizontais da Área Metropolitana: o Villa Suíça Brasília (mapa 1).

Mapa 1
A inserção urbana do Villa Suíça Brasília

O residencial foi produzido pela incorporadora Swiss Park, que possui um extenso histórico neste seguimento, datando o início de suas atividades no município de Marília, em 1977. Depois de produzir sete empreendimentos em Marília, avançou com suas atividades para os municípios de Tatuí, São Bernardo do Campo, Campinas e São Carlos todos no estado de São Paulo. Em 2011 lançou o residencial Villa Suíça em Manaus/AM, inaugurando o processo de expansão para fora do território paulista, que culminou no residencial Villa Suíça Brasília, na Cidade Ocidental/GO em 2012 (SWISS PARK, 2021SWISS PARK, Incorporadora. Disponível em [https://swisspark.com.br/] acessado em fevereiro de 2021.
https://swisspark.com.br/...
).

Em sentido estrito, o Villa Suíça Brasília é registrado junto à prefeitura municipal de Cidade Ocidental/GO como “Loteamento Parque do Distrito”. Como loteamento, em tese, as vias internas de circulação e seus equipamentos coletivos constituem espaço público e bens públicos, portanto, disponíveis para todos que tiverem interesse em transitar ou utilizá-los. Contudo, o acesso ao interior do fechamento somente é permitido após autorização de um morador, tornando indisponível o acesso público, privatizando, na prática, espaço e bens públicos.

As práticas espaciais dos moradores do Villa Suíça

Segundo Sodré (2021)SODRÉ, R. Prática espacial, habitus e espaço urbano: ensaio de geografia da vida cotidiana. Geopauta, Vitória da Conquista, ISSN: 2594-5033, V. 5, n. 1, 2021. https://doi.org/10.22481/rg.v5i1.7287
https://doi.org/10.22481/rg.v5i1.7287...
as práticas espaciais constituem um tema da geografia humana, mais especificamente “geografias da vida cotidiana”, campo onde as reflexões estão ainda bastante dispersas e em estágio preliminar. Este campo surge da aproximação, a partir dos anos de 1990, da geografia com a psicologia social, linguística e filosofia.

Para Souza (2013)SOUZA, M L. de. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2013. 320 p. as práticas espaciais são práticas sociais. Entretanto, para ele, nem toda prática social é espacial. Segundo o autor, as práticas espaciais são práticas sociais “em que a espacialidade (a organização espacial, a territorialidade, a ‘lugaridade’...) é um componente nítido e destacado da forma de organização, do meio de expressão e/ou dos objetivos a serem alcançados” (SOUZA, 2013SOUZA, M L. de. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2013. 320 p., p. 241). Dentre as práticas espaciais heterônomas, aquelas impostas de “cima para baixo”, pelos grupos socialmente dominantes, Souza destaca a “(auto[s])segregação” no rol do que ele denominou de práticas espaciais coercitivas.

Ao discutir acerca das práticas espaciais, Sposito (2017)SPOSITO, M. E. B. Práticas espaciais e reestruturação em cidades médias. Consumo e cotidiano. In FERREIRA, A; RUA, J.; MATTOS, R. C. (Orgs). O espaço e a metropolização. Cotidiano e ação. Rio de Janeiro. Editora Consequência. 2017. P. 627677. as relaciona diretamente as lógicas espaciais. Enquanto as práticas são ações realizadas pelos citadinos, as lógicas são implementadas pelas empresas. De acordo com a autora, “as práticas são atinentes à sociedade como movimento que se realiza empiricamente” (SPOSITO, 2017SPOSITO, M. E. B. Práticas espaciais e reestruturação em cidades médias. Consumo e cotidiano. In FERREIRA, A; RUA, J.; MATTOS, R. C. (Orgs). O espaço e a metropolização. Cotidiano e ação. Rio de Janeiro. Editora Consequência. 2017. P. 627677., p. 635).

É nesta perspectiva que a autora destaca que

Cada um, ao fazer uma escolha espacial (um percurso qualquer na cidade, um lugar para morar ou para o lazer e diversão, o trajeto entre a casa e o local de trabalho, o itinerário entre residência e espaços de consumo etc.) faz sua opção considerando condições bem objetivas, mas também outras de natureza subjetiva (SPOSITO, 2017SPOSITO, M. E. B. Práticas espaciais e reestruturação em cidades médias. Consumo e cotidiano. In FERREIRA, A; RUA, J.; MATTOS, R. C. (Orgs). O espaço e a metropolização. Cotidiano e ação. Rio de Janeiro. Editora Consequência. 2017. P. 627677., p. 636).

Em mais uma contribuição para distinguir as lógicas das práticas espaciais, Sposito (2017)SPOSITO, M. E. B. Práticas espaciais e reestruturação em cidades médias. Consumo e cotidiano. In FERREIRA, A; RUA, J.; MATTOS, R. C. (Orgs). O espaço e a metropolização. Cotidiano e ação. Rio de Janeiro. Editora Consequência. 2017. P. 627677. evidencia, dentre outros, os pontos que caracterizam as práticas dos citadinos: estão diretamente associadas ao cotidiano e, por isso, muito mais afeitas aos tempos curtos, em que pesem as tradições; nem sempre são planejadas; são uma mescla imponderável entre objetividade e subjetividade; são, de modo prevalente, afeitas às dimensões locais, ainda que os que têm mais poder econômico e/ou maior conhecimento possam fazer escolhas de consumo em múltiplas escalas geográficas, movimentando-se entre elas e articulando-as de modo mais intenso.

Neste cenário, é possível afirmar que lógica espacial da Swiss Park, que produziu um loteamento na franja metropolitana de Brasília, exigiu uma série de práticas dos consumidores de suas mercadorias - os lotes. Desta maneira, admite-se que a primeira prática espacial realizada pelos moradores foi propriamente o consumo, a compra, a aquisição, de sua unidade autônoma.

Da perspectiva quantitativa, 53,7% dos entrevistados afirmaram ter adquirido o lote pagando parceladamente a empresa loteadora, enquanto 25,9% compraram de proprietário pessoa física (à vista ou parceladamente), 11,1% financiaram em instituições de crédito e 9,3% pagaram à vista para a Swiss Park. Em relação ao tipo de residência anterior a mudança para o loteamento, do total dos entrevistados, 44,4% vieram de condomínios verticais de edifícios, 40,7% afirmaram que não moravam em ERF e 14,8% moravam em condomínios horizontais (de casas). Quando perguntados se no espaço interno ou na vizinhança da residência anterior já haviam sido vítimas de crime 83,3% afirmaram que “não” e 16,7% disseram que “sim”. Deste último grupo, os que sofreram crimes, todos eles não moravam em ERF na residência anterior, sendo seis no território distrital e três deles no estado de Goiás.

Conforme o Quadro 1, o controle de acesso a área residencial é o fator de maior importância para os moradores, seguido do distanciamento de outros núcleos urbanos. O interesse em se afastar, “autossegregar”, portanto, se fragmentar do restante do conjunto urbano é perceptível ao somar a relevância destas duas características que totalizam conjuntamente 79,6% das respostas. A disponibilidade de equipamentos coletivos não foi apontada por nenhum entrevistado como característica mais importante.

Quadro 1
Caracterísca mais importante do Villa Suíça para escolha como local de moradia

Ao tratar do controle de acesso, cerca de 96,3% deles afirmaram que não teriam escolhido morar no Villa Suíça caso não houvesse o perímetro murado e controle de acesso, enquanto 3,7% disseram ser indiferentes a esses fatores e nenhum entrevistado declarou que moraria ali ainda caso não existissem estes atributos.

Quando questionados sobre a possibilidade de remoção dos muros e retirada dos dispostivos de controle de acesso 83,3% disseram que nestas condições não permaneceriam morando ali, enquanto 11,1% continuariam e 5,6% afirmaram ser indiferentes. A ânsia de controlar o acesso do espaço habitacional coletivo é mais uma vez reforçada à proporção que para 57,4% os valores arrecadados pela associação de moradores devem ser investidos prioritariamente em atividades de segurança particular, enquanto para 31,5% em obras de infraestrutura básica, 9,3% equipamentos coletivos e 1,9% serviço de limpeza urbana.

No tocante à subjetividade com a qual o espaço residencial fechado é consumido e as práticas espaciais que são realizadas a partir disso, 63% dos moradores concordaram que estavam satisfeitos em pagar a contribuição para a associação de moradores com o intuito de manter o controle de acesso das vias e equipamentos coletivos do Villa Suíça, 25,9% concordaram completamente com a afirmação, 9,3% discordaram completamente e 1,9% discordou. Ou seja, 88,9% dos moradores concordam ou concordam completamente em pagar a contribuição para que o loteamento permaneceça com seu acesso controlado.

Conforme apresentado pelo Gráfico 1, ainda que exista todo um aparato tecnológico e profissional, que obedece a regulamentação proposta pelos próprios moradores, com o objetivo de controlar o acesso ao Villa Suíça, 33,4% deles constituem o grupo que discordam (27,8%) e que discordam completamente (5,6%) que estas medidas são suficientes para promover a sua segurança. Apesar disso, 90,7% dos respondentes concordam (57,4%) ou concordam completamente (33,3%) com a afirmação de que caso não houvesse o controle, a utilização do espaço interno do fechamento seria perigoso. Na mesma perspectiva, 68,5% dos moradores questionados concordam que se sentem seguros no Villa Suíça e 24,1% concordam completamente, compondo um grupo que totaliza 92,6% da amostra.

Gráfico 1
condições subjetivas que motivam as práticas espaciais dos moradores do Villa Suíça

Se na perspectiva dos entrevistados o controle de acesso diminui o perigo, impactando a sensação de segurança, quando estão na cidade, entendido a grosso modo como espaço urbano fora do fechamento, os moradores do Villa Suíça apresentaram sensações diferentes em relação a insegurança se comparado as questões anteriores. 38,9% deles formaram um grupo que discordou (31,5%) e discordou completamente (7,4%) que sentiam-se inseguros na cidade: ou seja, sentiam-se seguros fora do Villa Suíça. Do outro lado, há o grupo, composto por 37% da amostra, que concordou (31,5%) e concordou completamente (5,6%) que sentiamse inseguros fora do fechamento. O terceiro grupo foi o de indiferentes, representado por 24,1% das respostas obtidas.

as práticas espaciais expressam dimensões da vida social, micropolíticas e culturais, assim, sua inter-relação com a subjetividade é complexa: sentidos, significados e imagens sobre os espaços se constroem e tomam forma, no desenvolvimento das práticas e, ao mesmo tempo, uma vez construídos, condicionam as práticas futuras (GÓES; SPOSITO, 2016GÓES, E. M.; SPOSITO, M. E. B. Práticas espaciais, cotidiano e espaço público: o consumo como eixo da análise do calçadão de Presidente Prudente-SP. Revista da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege). p.39-65, V.12, n.19, 2016. https://doi.org/10.5418/RA2016.1219.0002
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, p. 42, grifo nosso).

É assim que, ao mesmo tempo em que promovem segurança os “processos que tornam espaços ‘seguros’ estão sempre carregados de teatralidade; a simbologia e a performance ao mesmo tempo tranquilizam e semeiam ansiedade” (GRAHAM, 2016GRAHAM, S. Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo. Editora Boitempo, 2016. Versão digital., p. 212). Em outras palavras, quanto mais segura promete ser a “comunidade”, mais ansiosos são os seus membros, gerando ainda mais ansiedade e indiretamente, insegurança.

Os que se sentem seguros na cidade formam um grupo que é apenas 1,9% (nesta pesquisa correspondendo a somente um indivíduo) maior do que o outro, que pensa ao contrário. Apesar disso, nas questões anteriores percebe-se o quanto o controle de acesso é valorizado pelo grupo majoritário dos moradores, contrastando com a sensação de segurança na cidade que não aponta no mesmo sentido.

Retomando a análise, a partir das características mais importantes que justificaram a escolha do Villa Suíça como local de moradia, a próxima trata do isolamento de outros núcleos urbanos. Sposito e Góes (2013)SPOSITO, M. E. B.; GÓES, E. M. Espaços fechados e cidades. Insegurança urbana e fragmentação socioespacial. São Paulo. Unesp, 1ª Edição, 2013. 359 p. atentam para as particularidades que apresentam os ERF localizados em regiões periféricas. Para as autoras, um dos atributos que caracterizam os ERF é o fato de que são áreas de uso estritamente residencial o que impele o consumo de bens e serviços para a “cidade aberta”, fora dos muros. O isolamento influencia diretamente nas práticas espaciais dos moradores e torna-se elemento central destas práticas quando é considerado o fato de que a área comercial do loteamento, externa ao fechamento, onde deveriam estar concentrados os equipamentos de comércio e serviços voltados para o cotidiano - supermercado, hortifruti, açougue, padaria, instituições de ensino - sofre com a baixa ocupação e disponibilidade destes equipamentos.

Uma vez “impelidos” para a “cidade aberta”, o terreno precisa ser percorrido, por meio de deslocamentos, que originam-se no espaço particular da habitação e tem como objetivo final o local de consumo e de geração de renda, onde são exercidas as atividades econômicas: o local de trabalho. As informações sobre os deslocamentos “constituem importante referencial para a análise dos processos de metropolização e expansão urbana. (...) As centralidades dessas áreas tornam-se nítidas e permitem a identificação de processos seletivos de uso e apropriação do espaço” (MOURA; BRANCO; FIRKOWSKI, 2005MOURA, R.; BRANCO, M. L. G. C.; FIRKOWSKI, O. L. C. de F. Movimento pendular e perspectivas de pesquisas em aglomerados urbanos. São Paulo em perspectiva, v. 19, n. 4, p. 121-133, 2005., p. 121).

Considerando que o Villa Suíça fica, em linha reta, a 14 km do bairro Setor Sul (Região Administrativa do Gama/DF), 7,5km do bairro Total Ville e 8,3km da Quadra QR 419 (Região Administrativa de Santa Maria/DF), 6,5 km do bairro Cidade Jardins (Valparaíso de Goiás/GO) e 6 km do bairro Nova Friburgo (Cidade Ocidental/GO), centralidades de destaque na Área Metropolitana de Brasília Sul, transitar pelas vias públicas abertas a circulação torna-se um imperativo, que enseja uma série de consequências diretas.

Uma metrópole espraiada e dispersa significa maior tempo de deslocamento de seus habitantes, maior tráfego de veículos e maior movimento pendular entre o local de moradia e o local de trabalho. Produz-se nessa metrópole uma irracionalidade que cobra do capital maior dispêndio de tempo com a locomoção pela cidade, com possibilidades de se multiplicarem os acidentes de trânsito e de se aumentar o ambiente carregado de poluentes (LENCIONI, 2017LENCIONI, S. Metrópole, Metropolização e Regionalização. Rio de Janeiro: Editora Consequência; 2017., p. 93).

De acordo com o Quadro 2, observa-se como a motivação do deslocamento influencia diretamente na rota a ser tomada. Ao analisar as práticas espaciais de trânsito para estudo, o DF apresenta-se como o principal destino dos moradores do Villa Suíça, para onde 53,8% deslocam-se, com protagonismo para o Plano Piloto e Santa Maria (ambas Regiões Administrativas com 20,4%), enquanto o estado de Goiás recebe 31,5% do fluxo. O município onde está inserido o loteamento, Cidade Ocidental, é o destino de apenas 1,9% dos moradores. Ao desprezar 11,1% dos respondentes que estudam em casa, portanto não se deslocam, Valparaíso de Goiás apresenta-se como principal destino goiano, atingindo a marca de 18,5%, ficando pouco atrás do próprio Plano Piloto e Santa Maria.

Quadro 2
Destino das práticas espaciais de trânsito para estudo, trabalho e compras domésticas dos moradores do Villa Suíça

Investigando as práticas espaciais de trânsito, neste caso para trabalho, observa-se como o núcleo metropolitano é demasiadamente relevante no arranjo populacional da AMB como principal polo gerador de renda. O DF é o destino de 61,1% dos moradores do Villa Suíça, principalmente o Plano Piloto (29,6%), enquanto este deslocamento para Goiás representa 27,8%. Do percentual que trabalha no território goiano, ainda vale destacar que 11,1% trabalham em casa, ou seja, não precisam realizar deslocamento com esta motivação.

Para realizar compras domésticas, compreendidas enquanto compras de supermercado, hortifruti, açougue e padaria, 50% dos moradores afirmaram que as realizam em território goiano, 44,5% no DF e 5,6% fora do Distrito Federal e Goiás. Nesta prática espacial de trânsito, tem destaque a aparição de Valparaíso de Goiás para onde afirmam seguir 48,1% dos entrevistados, seguido por Santa Maria (27,8%) e outras Regiões Administrativas do DF (11,1%). Em contraponto ao que acontece nas práticas espaciais de trânsito para estudo e trabalho onde aparece liderando o ranking, o Plano Piloto é apontado apenas por 3,7% dos moradores do Villa Suíça como local de compras domésticas.

Vale destacar o papel de destaque exercido por Valparaíso de Goiás, sendo esta a única localidade que está presente no ranking dos três primeiros colocados de cada prática espacial de trânsito, inclusive liderando a de compras de supermercado, hortifruti, açougue e padaria. Ainda da análise do Quadro 2 apreende-se o quanto as práticas espaciais de trânsito reforçam a “região”, neste caso, ao sul de Brasília:

Esse sentido de viver uma região, mais que numa cidade, revela a ideia de conjunto territorial. Habitat, emprego e atividades estão integrados no funcionamento cotidiano dessa região. Integrados graças ao descompasso que se faz presente entre o emprego - os postos de trabalho - e a população ativa de uma cidade. Ou entre a possibilidade de educação formal (instrução) em relação à população. Integrados, também, devido a um aspecto específico da fragmentação do espaço, o mercado imobiliário, que segrega territorialmente a população (LENCIONI, 2017LENCIONI, S. Metrópole, Metropolização e Regionalização. Rio de Janeiro: Editora Consequência; 2017., p. 177).

Outra particularidade dos ERF que é apresentada por Sposito e Góes (2013)SPOSITO, M. E. B.; GÓES, E. M. Espaços fechados e cidades. Insegurança urbana e fragmentação socioespacial. São Paulo. Unesp, 1ª Edição, 2013. 359 p. diz respeito a acessibilidade. Segundo elas, a acessibilidade ao conjunto da cidade, não deve ser medida pela distância, mas sim pela relação entre distância e tempo necessário para realizar o deslocamento, junto com a qualidade das condições desse deslocamento. Neste cenário, o tempo investido para realizar o deslocamento constitui uma parcela dos recursos que são mobilizados nesta ação.

Portanto, para além da kilometragem percorrida, a distância não pode ser entendida apenas a partir das dimensões físicas da superfície do terreno. O tempo também precisa ser considerado (gráfico 2).

Gráfico 2
tempo gasto nas práticas espaciais de trânsito para estudo e trabalho

Observa-se que os deslocamentos para estudo não são necessários para 29,6% dos entrevistados. A maior parte dos que se deslocam, ficam no grupo que leva entre 15 e 40 minutos, totalizando conjuntamente 38,9% da amostra. Àqueles que precisam de 40 minutos até mais de uma hora correspondem a 14,8% dos entrevistados.

Em relação ao tempo gasto em deslocamento para trabalho, o ranking é liderado por aqueles que levam entre 25 e 40 minutos (22,2%) e uma hora ou mais (também com 22,2%), seguidos por quem leva entre 40 e 59 minutos (20,4%). Estes três grupos somados representam 64,8% da amostra. Considerando que para 11,1% não é necessário deslocar para trabalho, apenas 24,1% (menos de 1/4) demora até 25 minutos deslocando-se para trabalhar.

Mais um importante fator que se soma ao destino e tempo gasto nos deslocamentos e contribui para compreender as práticas espaciais de trânsito destes moradores é a frequência com que precisam deslocar. A distância é tempo; não apenas tempo de um deslocamento, mas do somatório de todos os deslocamentos bem como seus custos e frequências para todos os membros da família (VILLAÇA, 2017VILLAÇA, F. Espaço intra-urbano no Brasil. Studio Nobel. São Paulo. 2ª edição. 2017. 391 p., p. 73, grifo nosso).

Conforme o Quadro 3, para estudar, 29,6% dos moradores do loteamento não precisam sair, enquanto outros 29,6% saem uma vez por dia e 37,1% deles saem duas vezes ou mais por dia. Para trabalhar, 46,3% saem apenas uma vez, 29,6% saem duas ou mais vezes por dia e 24,1% não saem ou não precisam sair do Villa Suíça para trabalhar. Para realizar compras domésticas, observa-se um nítido protagonismo do grupo que não sai todo dia, correspondendo a 64,8% da amostra, seguido por aqueles que saem uma vez por dia (25,9%) e os que afirmam sair duas ou mais vezes por dia (9,3%) para realizar compras domésticas. Observa-se como os deslocamentos para estudo e trabalho são mais frequentes, a tal ponto que praticamente um terço dos que se deslocam com estes objetivos o fazem mais de uma vez por dia. Por outro lado, para realizar as compras domésticas, os deslocamentos são menos frequentes, sugerindo que os deslocamentos para estudo/trabalho são aproveitados para as compras, tornando mais raras as saídas do loteamento este único objetivo.

Quadro 3
Frequência das práticas espaciais de trânsito para estudo, trabalho e compras domésticas dos moradores do Villa Suíça

Destino, tempo e frequência são fatores considerados pelo citadino para realizar suas práticas espaciais. Outro fator determinante nestas escolhas cotidianas é o tipo de transporte. Neste sentido

As relações entre proximidade e contiguidade foram alteradas, uma vez que o uso do transporte automotivo e a ampliação das possibilidades de comunicação redefinem as interações espaciais entre diferentes áreas residenciais, entre estas e as áreas de trabalho, consumo e lazer. O resultado dessas transformações é a geração de uma geometria espacial de fluxos mais complexa e menos apoiada nos espaços de inserção imediata de diferentes sujeitos sociais nas cidades (SPOSITO; GOES, 2013, p. 295).

Quanto aos meios de transporte utilizados nas práticas espaciais dos moradores do Villa Suíça, o transporte individual, particular, é o principal modal destes moradores. Tanto para estudo como para trabalho este meio de transporte tem total protagonismo. Para estudo, o transporte individual corresponde a 66,7% dos entrevistados, considerando que 25,9% sequer precisam deslocar para estudar. Para trabalho, 88,9% utilizam seus próprios veículos para deslocar-se e 9,3% não deslocam com este intuito. Vale destacar que apesar de apresentado como alternativa para resposta no questionário, não existem linhas de transporte público que transitem nas proximidades do loteamento.

Partindo da constatação que as práticas espaciais de trânsito dos moradores do Villa Suíça são realizadas primordialmente em veículos particulares, uma vez que não há linhas de transporte público nas imediações, considerando ainda o fato que o transporte coletivo é pouquíssimo utilizado tanto como a carona solidária, a análise das condições subjetivas que tratam das práticas espaciais de trânsito pode contribuir para compreender se o isolamento em relação a outros núcleos urbanos e a disponibilidade - ou não - de transporte público é determinante para a preferência pelo modal mais utilizado. Além disso, também buscou-se identificar como a segurança viária é percebida pelos moradores (gráfico 3).

Gráfico 3
Condições subjetivas que motivam as práticas espaciais de trânsito dos moradores do Villa Suíça

Os moradores percebem o isolamento do loteamento em relação a outros núcleos urbanos de maneira diversificada. 46,3% avaliaram negativamente a ideia de que o Villa Suíça pudesse ser mais próximo de outros núcleos urbanos, sendo este grupo composto pelos que discordaram (31,5%) ou discordaram completamente (14,8%) da afirmativa que tratava deste tema. 25,9% da amostra respondeu ser “indiferente”, enquanto 25,9% concordaram e 1,9% concordaram completamente com a afirmação, este último grupo, dos que avaliaram positivamente, representa 27,8% da amostra. Neste cenário, observa-se que apesar do isolamento infligir a necessidade de práticas espaciais de trânsito, em alguns casos superando a marca de duas vezes por dia, quase metade (46,3%) dos moradores demonstraram gostar do fato do loteamento estar apartado do restante da malha urbana.

Se há um movimento de valorização da distância, existe, por outro lado, o interesse na mudança do modal de transporte pelo quais as práticas são realizadas. 50% dos respondentes concordam que gostariam que houvesse linhas de transporte público para o Villa Suíça e 44,4% concordam completamente com a afirmação.

Considerando que os destinos, o tempo gasto, a frequência, o tipo de transporte se constituem como fatores das práticas espaciais de trânsito, a segurança viária com a qual os deslocamentos são realizados também faz parte do rol destes atributos. Ao serem questionados sobre a sensação de segurança no trajeto (gráfico 3), ou seja, nas vias de circulação de veículos, entre os espaços urbanos adjacentes e o loteamento, 3,7% discordou completamente e 44,4% discordou que sentiam-se seguros, 18,5% declararam-se indiferentes perante a afirmação, enquanto os que sentiam-se seguros neste deslocamento formam um grupo de 33,4%. Assim, dentre os três grupos analisados, tem destaque os que se sentem inseguros, grupo composto de 48,1% da amostra.

Quando analisada a satisfação em relação as condições de engenharia e sinalização de trânsito das rodovias que dão acesso ao Villa Suíça o grupo dos insatisfeitos prevalece com evidência. Eles totalizam 83,4% da amostra, sendo formado por aqueles que discordaram completamente da afirmação proposta (24,1%) e os que discordaram (59,3%). Muito da insatisfação se deve ao fato de que a sinalização de trânsito, a cargo do Departamento de Estradas de Rodagens-DER do Distrito Federal, carece de implantação e manutenção, nas imediações do loteamento, o que segundo a associação de moradores, já foi alvo de diversas solicitações junto àquele órgão.

Em relação a eficiência da fiscalização de trânsito, o que promove a segurança viária nas rodovias que dão acesso ao Villa Suíça, 81,5% dos entrevistados apresentaram respostas negativas, sendo que 20,4% discordaram completamente e 61,1% discordaram da afirmação. Para finalizar os dados que tratam da segurança viária das práticas espaciais de trânsito dos moradores do loteamento, 81% deles afirmaram já ter visto acidente de trânsito nas vias que dão acesso ao Villa Suíça e 19% nunca viram. Neste contexto, para estes moradores, tanto como a engenharia e sinalização viária, a fiscalização de trânsito também precisa ser aprimorada nesta região como ação para redução da insegurança das vias.

Considerações finais

Analisando a prática espacial do consumo da própria unidade autônoma - o lote - ficou evidente o quanto o pagamento facilitado, entendido como parcelamento, contribuiu para a compra da maioria dos moradores. Para o consumidor, a compra à juros aparenta ser uma boa alternativa - ou é a única que lhe cabe, o que aponta para o fato de que sem envolver as complexas operações de crédito do mercado imobiliário, dificilmente estas unidades habitacionais teriam sido compradas.

Tratando da característica que determinou a opção da moradia naquele espaço, pode-se observar como o controle de acesso é a maior motivação. Controlar o acesso do “outro” ao espaço coletivo da moradia é o que une os moradores em torno de um ideal comum, “a defesa da comunidade”, já que eles são praticamente unânimes ao afirmar que caso não houvesse o fechamento, eles não teriam escolhido morar ali. Somando estes indicadores ao fato de que os valores arrecadados pela associação de moradores deveriam ser investidos prioritariamente em atividades de segurança, para a maioria dos entrevistados, nota-se o quanto este fator é importante.

Comparando a importância do controle territorial observa-se o contraste no tocante ao consumo das unidades autônomas do Villa Suíça. Se por um lado há o protagonismo na necessidade de controlar o acesso como característica mais importante, a maioria dos moradores considera as medidas adotadas atualmente suficientes, a tal ponto que praticamente todos os entrevistados sentem-se seguros no interior do fechamento.

Além disso, quando analisada a sensação de segurança na cidade, fora do fechamento, o grupo dos “seguros” superou (em apenas um indivíduo) o composto pelos que sentem-se “inseguros”. Isto não justificaria os índices alcançados pela necessidade de controle territorial apresentada nas questões anteriores. Seguros e inseguros quase se equivalem, todavia há um movimento bravejando em prol do aperfeiçoamento do controle no espaço coletivo. Esta relação sugere que há um verdadeiro fetichismo em torno da necessidade de controle do espaço intra-muros em contraponto ao que é realmente sentido quando o morador está na cidade aberta.

No que se refere as práticas espaciais de trânsito foi possível perceber o quanto a Área Metropolitana de Brasília é vivenciada como uma região. Se para estudar e trabalhar o morador do loteamento segue sua rota em direção ao DF, para realizar suas compras domésticas, o principal destino é o estado de Goiás. Isso demonstra como na vida cotidiana, o citadino realiza suas escolhas espaciais - práticas espaciais - a partir do que ele elege objetiva e subjetivamente como vantagem locacional. Se existe maior disponibilidade de instituições educacionais e maiores opções de geração de renda e atividades econômicas no núcleo metropolitano é para lá que ele segue. Se os valores cobrados por itens domésticos na periferia da metrópole tendem a ser menores, o deslocamento é naquela direção. Nesta perspectiva, morar na fronteira apresenta uma série de potencialidades onde o morador as explora de acordo com o que lhe é mais conveniente naquele momento.

Se a fronteira pode ser um local de potencialidades, também é um local de conflitos. Como é pouco habitada - pelo menos, por enquanto - as imediações do Villa Suíça não conta com linhas de transporte público, o que impõe a obrigação de que as práticas espaciais sejam realizadas por meio do transporte particular, o que aumenta a necessidade de investimento de recursos nesta prática: sejam os recursos financeiros, como a compra e manutenção dos próprios veículos, assim como o tempo que é investido no deslocamento, que para um grupo considerável, é realizado mais de uma vez por dia.

Relacionando as condições subjetivas que motivaram a compra da unidade habitacional no Villa Suíça e as que permeiam as práticas espaciais de trânsito fica clara outra contradição: se o espaço interior ao fechamento é seguro, o mesmo não acontece com o trajeto, o deslocamento entre a cidade e o loteamento. A insatisfação com as condições de engenharia e sinalização, a ineficiência da fiscalização acrescentadas aos acidentes de trânsito já presenciados apontam para uma insegurança viária latente nas rodovias que dão acesso ao loteamento, sugerindo que além de investir recursos financeiros e de tempo, subjetivamente, para viver no paraíso fechado é necessário antes passar pelo calvário do trânsito da cidade aberta.

  • 3
    Durante o período de realização desta pesquisa, em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde-OMS declarou o surto do coronavírus como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) - o mais alto nível de alerta da Organização. Fonte: Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em [https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19] acessado em 16 de novembro de 2022. A OMS anunciou que cerca de 14,9 milhões de pessoas em todo o mundo morreram como resultado direto ou indireto da Covid-19. Os dados correspondem ao período entre janeiro de 2020 e dezembro de 2021. Fonte: Organização Mundial da Saúde. Disponível em [https://news.un.org/pt/story/2022/05/1788242] acessado em 16 de novembro de 2022.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2022
  • Aceito
    30 Mar 2023
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